e-ISSN 1984-7246  

 


O aspecto pedagógico como componente metodológico do pensamento de Gramsci e de Lenin: uma leitura da hegemonia internacional e da tradução

 

 

Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)

Marília, SP - Brasil

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orcid.org/0000-0002-5542-2812

rodrigo.passos@unesp.br

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O aspecto pedagógico como componente metodológico do pensamento de Gramsci e de Lenin: uma leitura da hegemonia internacional e da tradução

 

Resumo

O objetivo deste artigo é responder à questão: como efetuar uma leitura, uma reflexão sobre a tradutibilidade das linguagens envolvendo Lenin e Gramsci analisando o aspecto pedagógico, em sentido mais amplo, não escolar, e seu nexo com o plano internacional? A hipótese é de que o aspecto pedagógico em seu sentido mais amplo e não escolar pode ser entendido também como uma perspectiva de tradução. Isso envolve as transformações e perspectivas totalizantes da história e da realidade, abrangendo a desigual complexidade e totalidade pertinentes às possibilidades da vida no interior dos Estados abrangendo estruturas e superestruturas como um todo, incidindo sobre as consciências, as coletividades, as classes e as civilizações ou sobre como visões de mundo e seus componentes são recepcionados ou assimilados. Isto se desdobra em aspectos desiguais e heterogêneos da hegemonia internacional. Em termos metodológicos de pesquisa, o texto se pautou por uma análise e uma leitura de textos de Gramsci e de Lenin pertinentes à problemática em pauta. No que se refere à metodologia no tocante às consequências analíticas, a tradução no sentido gramsciano como ressignificação, releitura, recepção, transformação é o ponto central a ser considerado. A tradução se constitui num aspecto pedagógico para captar toda a complexa dinâmica de totalidade que envolve inúmeras possibilidades de transformação no que se refere à hegemonia internacional e seu nexo com o âmbito interno dos Estados.

 

Palavras-chave: Gramsci; Lenin; tradução; hegemonia internacional; aspecto pedagógico.

 

The pedagogical aspect as a methodological component of Gramsci’s and Lenin’s thought: a reading of international hegemony and translation

 

Abstract

The objective is to answer the question: how is it possible to make a reading, a reflection on the translatability of languages involving Lenin and Gramsci analyzing the pedagogical aspect, in a broader way and no school sense, and its link with the international plan? The hypothesis is that the pedagogical aspect in its broadest and non-school sense can also be understood as a translation perspective. As such, that involves the transformations and totalizing perspectives of history and reality, covering the unequal complexity and totality relevant to the possibilities of life within states encompassing structures and superstructures as a whole, focusing on consciences, collectivities, classes and civilizations or about how worldviews and their components are received or assimilated. This unfolds into unequal and heterogeneous aspects of international hegemony. In terms of research methodology, the text was based on an analysis and a reading of texts by Gramsci and Lenin relevant to the issue at hand. Regarding the Methodology on the analytical consequences, translation in the Gramscian sense as resignification, re-reading, reception, transformation is the central point to be considered. The translation is a pedagogical aspect to capture all the complex dynamics of totality that involves numerous possibilities of transformation with regard to international hegemony and its connection with the internal scope of states.

 

Keywords: Gramsci; Lenin; translation; international hegemony; pedagogical aspect.

1 Introdução

O nexo entre Lenin e Gramsci é apontado de diferentes formas, sobretudo na perspectiva de influência de vários conceitos do primeiro sobre o segundo. Seja pelo fato de as formulações leninianas incidirem de forma inestimável sobre o perfil de todos os partidos comunistas que vieram a se formar desde o início do século XX e da Internacional Comunista e sobre o marxismo de forma geral a partir do século referido, seja porque Gramsci travou contato com Lenin como delegado do Partido Comunista da Itália no Quarto Congresso da Internacional Comunista em 1921 em Moscou.

Menções diretas[1] e indiretas aparecem nos Cadernos do Cárcere gramscianos. Em perspectiva mais oculta aparece de diferentes formas. Seja como “Vilici”, numa menção (Gramsci, 1977, Q7, §2, p. 854) e, em outra (Gramsci, 1977, Q11, §46, p. 1468), em forma cifrada para fugir à censura fascista do cárcere, seja como “o maior teórico da filosofia da práxis”. Nessa última menção, a filosofia da práxis como referência cifrada alusiva ao materialismo histórico (Gramsci, 1977, Q10-I, §12, p. 1235).

Há alguns exemplos sobre a formulação leniniana de hegemonia. A presença do argumento da hegemonia (Lenin, 1982b) em Que fazer?, no qual o debate incide na luta contra o exercício da referida hegemonia burguesa sobre o proletariado. O argumento leniniano dá conta de que a hegemonia do partido como vanguarda deve prevalecer e liderar a consciência política contra o espontaneísmo. Mencione-se outro exemplo. A provável ascendência da elaboração de Lenin sobre Gramsci, a partir do que é contemplado em Duas Táticas da Social Democracia (Lenine, 1982a) no que se refere ao proletariado exercer a hegemonia (Gramsci, 1977, Q10-I, §12, p. 1235), implicando na liderança com o consenso das classes aliadas, tais como o campesinato, como assevera Morton (2007, p. 88).

Contudo, formular esse nexo entre Lenin e Gramsci deve ser mais preciso para além de uma vagueza ou de uma eventual relação ou assimilação passiva sugerida pela perspectiva de uma “influência”. Como sugere Edmundo Fernandes Dias (1991, p. 80), o tributarismo de Gramsci a Lenin na questão da hegemonia é óbvio, dentre outros temas, mas deve-se acrescentar que as formulações gramscianas são resultantes também de uma elaboração anterior a esse encontro, numa articulação fértil entre o que havia de mais avançado no movimento operário italiano e europeu com a linha de frente do movimento intelectual de vanguarda da Universidade.

O pensamento de Gramsci, egresso inconcluso do curso de Filologia Moderna da Universidade de Turim, é resultante também desse movimento, ponto fundamental para o argumento deste artigo. Sempre importante ressaltar, contudo, conforme estudos específicos mostraram, que a noção de hegemonia pouco aparece de forma sistemática e pontual no conjunto da obra escrita de Lenin, dotado de um perfil militante e dirigente que a usou na perspectiva concreta, da luta política (Shandro, 2014, p. 3-4). Importante também ter em mente as várias fontes que contribuíram para a formação da noção gramsciana de hegemonia, como as referências de Croce, Maquiavel, das elaborações da Internacional Comunista e do contexto da luta ítalo-serva pela hegemonia do Mar Adriático no início do século XX, léxico presente na imprensa socialista italiana do início do século XX (Boothman, 2008).

A propósito do perfil específico da formação universitária de Gramsci, no que se relaciona ao estudo das línguas e das linguagens, e no sentido de dirimir a vagueza referida, propõe-se a noção gramsciana de tradução (Gramsci, 1977, Q11, §47, p. 1467). Tal proposição tem o objetivo de entendê-la como uma leitura, uma ressignificação, uma reelaboração, uma recepção de formulações teóricas ou de questões concretas com transformações em diferentes contextos, uma assimilação própria que guarda nexos com a elaboração original e como uma categoria metodológica central quando se remete a uma categoria, uma formulação ou uma análise sobre a maneira como é interpretada, lida.

Tal como ocorre no âmbito das linguagens, uma tradução pode ser mecânica, pobre ou profunda, rica, orgânica. Entretanto, somente a filosofia da práxis ou o materialismo histórico pode proporcionar uma tradução rica, não mecânica, orgânica e profunda (Gramsci, 1977, Q11, §47, p. 1468). Ou seja, algo coerente com uma ressiginificação que leve em consideração a transformação da totalidade em toda a sua riqueza e complexidade. Tal é a perspectiva metodológica central que orienta o argumento a ser desenvolvido. Nesse sentido, embora não seja o recorte específico deste texto, toma-se como exemplo a hegemonia na acepção gramsciana em termos de uma tradução contemplando as diversas fontes e referências mencionadas que contribuíram para a definição e formação de tal noção.

Além da noção da hegemonia, há em comum entre Lenin e Gramsci o léxico do caráter pedagógico para as coletividades, as massas e para as classes, em sentido mais amplo, não estrito e não escolar, no âmbito dos conflitos políticos e históricos. Na concepção de Gramsci, trata- se de uma perspectiva de eco ao líder soviético ou mesmo de uma tradução de Lenin no sentido gramsciano do termo. Embora colocada com ênfases e léxicos um pouco diferentes entre um e outro, outra temática comum é a tradutibilidade das linguagens e a menção que Gramsci (1977, Q7, §2, p. 854) faz a uma intervenção de Lenin (Lenine, 1980, p. 627-628) sobre a dificuldade de “traduzir”, adaptar e aplicar as resoluções do Terceiro Congresso da Internacional Comunista a partir da experiência russa para as peculiaridades de distintos Estados por outros partidos comunistas. Ou como referiu Gramsci de forma mais específica, a impossibilidade de traduzir tal conteúdo para as línguas europeias (Gramsci, 1977, Q7, §2, p. 854), ao se referir à análise de Lenin sobre a dificuldade de aplicar tal conteúdo para outras realidades distintas daquela da Rússia. Essa perspectiva dá ensejo ao ponto em discussão neste texto. Por outras palavras, o nexo do aspecto pedagógico com a hegemonia e a sua tradutibilidade internacional na maneira como ele é abordado por Lenin e Gramsci.

Em certa medida, “traduzir é trair”. Por outras palavras, a tradutibilidade, a possibilidade de se traduzir uma linguagem ou uma formulação se relaciona a uma perspectiva pedagógica, metodológica de transmitir ou assimilar de uma forma não mecânica, heterogênea, em termos escolares ou em sentido mais amplo.

Assim, o objetivo central é responder: como efetuar uma leitura, uma reflexão sobre a tradutibilidade das linguagens envolvendo Lenin e Gramsci analisando o aspecto pedagógico e seu nexo com o plano internacional? A hipótese é de que o aspecto pedagógico, em seu sentido mais amplo e não escolar, pode ser entendido também como uma perspectiva de tradução que envolve as transformações e as perspectivas totalizantes da história e da realidade, abrangendo a desigual complexidade e totalidade pertinentes às possibilidades da vida no interior do Estado que abrange estruturas e superestruturas como um todo, incidindo sobre as consciências, as coletividades, as classes e as civilizações, ou sobre como as visões de mundo e os seus componentes são recepcionados ou assimilados. Isso se desdobra de forma heterogênea e desigual na hegemonia internacional.

Nesse sentido, o plano internacional se inseriria nessa lógica mais ampla. Visões de mundo, enquanto hegemonias e projetos hegemônicos que conflitam, permeiam os âmbitos nacional e internacional e se traduzem, se ressignificam de forma desigual e contraditória. Elas são recepcionadas do plano nacional para o nível internacional de forma não homogênea, não linear, interagindo entre si de uma forma não esquemática de múltiplas formas, perfazendo esse caráter de transformações e mudanças de forma pedagógica. A tradução se constitui num componente metodológico no sentido de evidenciar e mediar em toda a riqueza da totalidade histórica o conjunto de todas essas transformações. A tradução se constituiria também, como complemento de sua definição, num aspecto pedagógico para captar toda a complexa dinâmica de totalidade que envolve inúmeras possibilidades de transformação no que se refere à hegemonia internacional e seu nexo com o âmbito interno dos Estados.

O argumento seguirá algumas etapas. A primeira tratará a perspectiva leniniana que dá ensejo à tradução, abordando a formulação do líder soviético sobre o aspecto pedagógico em sentido mais amplo, além de trecho afim a tal discussão proferido no Quarto Congresso da Internacional Comunista, destacando também possibilidades de nexos com a temática internacional. A segunda abordará e analisará a formulação gramsciana que relaciona a hegemonia, o aspecto pedagógico e as relações internacionais, relacionando tal ponto com as formulações leninianas de modo a sugerir a tradução do comunista italiano do líder soviético sobre a questão em pauta. As considerações finais resumirão os principais argumentos e ponderarão possibilidades futuras de investigação.

 

 

2 Lenin e o aspecto pedagógico como uma possibilidade de tradução

Nesta seção, será abordado o aspecto pedagógico como uma possibilidade de tradução, de transmissão didático-pedagógica da estratégia revolucionária em termos da consecução de uma consciência afim a partir da elaboração de Lenin. Para tal, abordar-se-á um texto incompleto escrito em 1905, que só veio a ser publicado pela primeira vez em 1926 na forma de coletânea de textos leninianos, com uma breve análise a partir do recorte proposto. Em seguida, será abordada a formulação leniniana que suscita a necessidade de uma perspectiva pedagógica de “tradução”, adaptação para as peculiaridades da totalidade histórica de outros Estados e sociedades que não somente a russa.

A “tradução” referida pode dar ensejo a um nexo com uma perspectiva pedagógica no sentido de uma aplicação dinâmica e didática. Em qual sentido? Em termos de um aprendizado do caráter dialético e dinâmico da avaliação e da direção para uma consecução efetiva da estratégia revolucionária. Isso seria um componente de uma abordagem da temática educacional num sentido mais amplo e não meramente escolar. Entretanto, o conjunto da obra de Lenin não contemplou exatamente um conjunto sistemático de pesquisas e elaborações voltadas aos temas educacionais, tendo poucos textos dedicados ao tema (Fazzio, 2019). Ainda assim, nem sempre a temática pedagógica foi tratada no sentido estrito em termos escolares. Tome-se um exemplo disso a seguir.

Um artigo inconcluso de 1905 trata a questão pedagógica em sentido semelhante à temática de traduzir em sentido não escolar, na perspectiva de transformar a consciência dos trabalhadores. Assim escreve Lenin (1977, p. 453-455, tradução própria, grifo próprio) em passagem longa, mas importantíssima para o argumento:

 

Mas pela mesma razão que o trabalho de intensificação e de ampliar nossa influência sobre as massas é sempre necessário, após cada vitória como após cada derrota, em tempos de refluxo como nos períodos mais tempestuosos da revolução, não devemos transformar a ênfase sobre este trabalho em um slogan especial ou construir sobre ele qualquer tendência especial, se não queremos correr o risco de descer à demagogia e degradar os objetivos da classe avançada e somente verdadeiramente revolucionária. Há é e sempre haverá um elemento de pedagogia na atividade política do Partido Social-Democrata. Devemos educar toda a classe de trabalhadores assalariados para o papel de lutadores pela emancipação da humanidade de toda opressão. Nós devemos ensinar constantemente cada vez mais partes desta aula; devemos aprender a abordar os mais atrasados, os membros mais não desenvolvidos desta classe, aqueles que são menos influenciados pela nossa ciência e pela ciência da vida, de modo a ser capaz de falar com eles, de se aproximar deles, de levantá-los de forma constante e paciente ao nível da consciência da social-democracia, sem fazer um dogma seco fora da nossa doutrina - para ensiná-los não só a partir de livros, mas através de participação na luta diária pela existência destes estratos atrasados e subdesenvolvidos do proletariado. Há, repetimos, um certo elemento da pedagogia neste cotidiano atividade. O social-democrata que perdeu de vista esta atividade deixaria de ser social-democrata. Isso é verdade. Mas alguns de nós muitas vezes esquecemos, hoje em dia, que um social-democrata que reduziria as tarefas da política à pedagogia também, embora por outra razão, deixe de ser social-democrata. Quem quer que pense em transformar essa "pedagogia" em um slogan especial, de contraposição à "política", de construção uma tendência especial sobre ele, e de apelar para as massas sob este slogan contra os "políticos" da social-democracia, iria instantaneamente e inevitavelmente descer à demagogia. Que as comparações são odiosas é um velho axioma. Em cada comparação uma semelhança é desenhada em relação a apenas um aspecto ou vários aspectos dos objetos ou noções comparados, enquanto os outros aspectos são provisoriamente e com reserva abstraídos. Vamos lembrar ao leitor disso comumente conhecido, mas frequentemente ignorado axioma e proceder à comparação do Partido Social-Democrata a uma grande escola que é ao mesmo tempo elementar, secundária e colegiada. O ensino do ABC, instrução nos rudimentos do conhecimento e em pensamento independente, nunca, em nenhuma circunstância, é negligenciado nesta grande escola. Mas se alguém procurou invocar a necessidade de ensinar o ABC como pretexto para descartar questões de ensino mais avançado, caso alguém tentasse compensar os resultados impermanentes, duvidosos e "estreitos" este ensino avançado (acessível a um círculo muito menor de pessoas que aprendem o ABC) para os resultados duráveis, profundos, extensos e sólidos do ensino elementar, ele trairia uma incrível miopia. Ele poderia até ajudar a perverter todo o propósito da grande escola, uma vez que ignorando o ensino avançado, ele estaria simplesmente tornando isso mais fácil para que os charlatões, demagogos e reacionários enganem as pessoas que só tenham aprendido o ABC. Ou, novamente, deixemos comparar o Partido a um exército. Nem em tempo de paz nem em tempo de guerra ousamos negligenciar o treinamento de recrutas, ousamos negligenciar a instrução do uso do rifle, ou a disseminação dos rudimentos da ciência militar tão intensiva e extensivamente quanto possível entre as massas.

 

Depreendem-se do trecho algumas teses relevantes. A primeira é o sentido pedagógico de aprimorar a consciência de frações menos esclarecidas da classe trabalhadora como uma tarefa no âmbito da humanidade, de alcance internacional. Esse ponto passa pela busca de aprendizado da abordagem e da persuasão daqueles que não alcançaram o patamar da consciência revolucionária. A segunda é perspectiva de unidade orgânica, inseparável entre tal sentido pedagógico de transformar e educar tais consciências e a atividade política, sob pena de tal separação incorrer numa ótica demagógica. Por outras palavras, não se pode fazer somente uma ou somente outra. A terceira, muito relacionada à tese anterior, é que a atividade política dos social-democratas não pode ser reduzida a slogans em si próprios. Não pode ser a mera repetição de palavras consubstanciada numa desconexão entre a verbalização e a atividade política. Reforça tal tese o argumento comparativo de que o preparo para a luta militar e treinamento dos soldados é algo inadiável nos tempos de paz, o que reforça o entendimento da luta pelo aprimoramento das consciências em termos pedagógicos como algo inseparável da luta política de forma permanente. Aparece aqui o aspecto pedagógico como uma espécie de metáfora, semelhante à perspectiva gramsciana também metafórica de tradução, que se refere à forma como se deve conduzir o trabalho de educação e de transformação das consciências como um devir a ser buscado em termos internacionais, de emancipação de toda a humanidade.

Isso posto, qual o argumento de Lenin que suscita a discussão de Gramsci da tradução e da tradutibilidade das linguagens que motiva este texto?

O texto e a fala de Lenin em questão foram proferidos no Quarto Congresso da Internacional Comunista. Ela se detém sobre o teor da resolução do Congresso da Terceira Internacional Comunista. Em sendo extremamente importante para a argumentação a ser desenvolvida como justificativa, esta longa passagem à qual Gramsci referiu – conforme será visto depois no texto – é assim escrita:

 

Em 1921, no III Congresso, aprovamos uma resolução sobre a estrutura orgânica dos partidos comunistas e sobre os métodos e o conteúdo do seu trabalho. A resolução é excelente, mas é quase inteiramente russa, isto é, tudo é tomado das condições russas. Este é o seu lado bom, mas também o mau. Mau, porque estou convencido de que quase nenhum estrangeiro poderá lê-la; eu reli esta resolução antes de dizer isto. Em primeiro lugar, é demasiado longa, conta 50 parágrafos ou mais. Habitualmente os estrangeiros não podem ler coisas assim. Segundo, mesmo que a leiam, nenhum dos estrangeiros a compreenderá, precisamente porque é demasiado russa. Não porque esteja escrito em russo – foi magnificamente traduzida para todas as línguas -, mas porque está inteiramente impregnada de espírito russo. E, terceiro, se por exceção algum estrangeiro a conseguir compreender, não poderá cumpri-la. Este é o seu terceiro defeito. Conversei com alguns delegados que vieram para cá e espero poder conversar detidamente com grandes números de delegados de diferentes países durante o congresso, embora não participe pessoalmente nele, pois infelizmente não me é possível. Tenho a impressão de que cometemos um grande erro com esta resolução, isto é, que nós próprios cortamos o caminho para o êxito futuro. Como já disse, a resolução está excelentemente redigida e eu subscrevo todos os seus 50 ou mais parágrafos. Mas não compreendemos como se deve levar a nossa experiência russa aos estrangeiros. Tudo quanto se diz na resolução permaneceu letra morta. E se não compreendermos isto não poderemos avançar. Penso que o mais importante para todos nós, tanto pra os russos como para os camaradas estrangeiros, é que depois de cinco anos de Revolução Russa devemos estudar. Só agora conseguimos a possibilidade de estudar. Não sei quanto tempo durará essa possibilidade. Não sei quanto tempo concederão às potências capitalistas a possibilidade de estudar tranquilamente. Mas cada minuto livre de atividade militar, da guerra, devemos aproveitá-lo para estudar, começando pelo princípio.

Todo o partido e todas as camadas da Rússia o demonstram com a sua sede de saber. Esta inclinação para o estudo mostra que a nossa tarefa mais importante agora é estudar e estudar. Mas os camaradas estrangeiros também devem estudar, não no sentido em que nós estudamos – ler, escrever e compreender sobre aquilo que se leu que é o que ainda precisamos. Discute-se sobre se isto diz respeito à cultura proletária ou à cultura burguesa. Deixo esta questão em aberto. Em todo o caso, é indubitável que nós necessitamos, antes de mais nada, de aprender a ler, a escrever e a compreender o que lemos. Os estrangeiros não necessitam disso. Necessitam já de qualquer coisa de mais elevado: isto refere-se, em primeiro lugar, a que compreendam também aquilo que escrevemos acerca da estrutura orgânica dos partidos comunistas, e que os camaradas estrangeiros assinaram sem ler nem compreender. Esta deve tornar-se a sua primeira tarefa. É preciso levar esta resolução à prática. Mas isso não pode fazer-se da noite para o dia, é absolutamente impossível. A resolução é demasiado russa: refletem a experiência russa, por isso os estrangeiros não a compreendem e não podem satisfazer-se com pendurá-la num canto como um ícone e adorá-la. Assim não se pode conseguir nada. Eles devem assimilar parte da experiência russa. Não sei como o farão. Pode ser que os fascistas em Itália, por exemplo, nos prestem um bom serviço explicando aos italianos que ainda não são bastante cultos e que o seu país ainda não está garantido contra os cem-negros. Talvez isso seja muito útil. Nós, os russos, devemos procurar também a forma de explicar aos estrangeiros os fundamentos desta resolução. Doutro modo eles serão absolutamente incapazes de cumprir esta resolução. Estou convencido de que, neste sentido, devemos dizer não só aos camaradas russos, mas também aos estrangeiros, que o mais importante no período que agora começa é o estudo. Nós estudamos em sentido geral. Mas eles devem estudar num sentido especial, para chegarem a compreender realmente a organização, a estrutura, o método e o conteúdo do trabalho revolucionário. Se isto for realizado, então estou convencido de que as perspectivas da revolução mundial serão não apenas boas, mas excelentes (Lenine, 1980, p. 627-628, grifo próprio).

 

Há que se analisar a passagem e, em especial, os pontos destacados do trecho. A perspectiva internacional de aplicação, ressignificação adequada para as particularidades históricas, culturais, econômicas, sociais etc. das resoluções do Terceiro Congresso da Internacional Comunista para outras realidades distintas daquela da Rússia, com um especial destaque para o estudo dessas particularidades históricas, é um ponto mencionado por Lenin como uma necessidade para o êxito da construção do movimento revolucionário. Em outras palavras, buscar “traduzir” da perspectiva nacional russa para o âmbito internacional em sua diversidade nas especificidades nacionais, liberando a resolução do espírito demasiadamente russo em seu teor, o que sugere vagamente uma certa perspectiva mecânica na forma como está escrita e concebida.

Há também uma preocupação implícita com a uma perspectiva didático-pedagógica com o tamanho do texto e as dificuldades dos estrangeiros o lerem e compreenderem para que possam aplicar o seu conteúdo. Acrescente-se a preocupação com as distintas possibilidades e necessidades de estudo e de interpretação, adequando tudo isso à construção do trabalho revolucionário. Além disso, há uma menção específica à Itália e ao fascismo, sugerindo, talvez, evidências de eventual contato com Gramsci e conhecimento do conflito histórico em curso na terra do comunista italiano. Em poucas palavras, Lenin aponta a necessidade de “traduzir” o conteúdo da resolução de forma não mecânica e de forma historicamente adequada às distintas formações daquela da terra dos Soviets.

Como tais formulações ecoaram ou foram traduzidas no pensamento gramsciano? Tal ponto será tratado a seguir.

 

3 Gramsci, a tradução, o aspecto pedagógico e o internacional

Neste tópico, será tratada uma leitura referente à tradução gramsciana do nacional para o internacional como uma relação didático-pedagógica em seu sentido mais amplo, ou seja, não estritamente escolar. A referência leniniana aparecerá de forma indireta ou implícita, considerando as temáticas comuns das formulações do comunista italiano e do líder soviético a serem analisadas. Em primeiro lugar, será tratada a menção indireta a Lenin a propósito de sua intervenção no Quarto Congresso da Internacional Comunista. Posteriormente, serão abordadas algumas possibilidades de tradução do nacional para o internacional como uma perspectiva pedagógica no sentido indicado.

Em texto escrito provavelmente em novembro de 1930 (Francioni, 1984, p. 142), classificado como “A” na edição crítica italiana dos cadernos, ou seja, um texto de primeira redação, Gramsci assim se referiu ao discurso leniniano acima mencionado no Quarto Congresso da Internacional Comunista: “Traducibilidade das linguagens cientificas e filosóficas. Em 1921: questões de organização. Vilici disse e escreveu: ‘não soubemos “traduzir” na língua “europeia” a nossa língua”. (Gramsci, 1977, Q7, §2, p. 854, tradução própria).

A reescrita desse texto ocorrida provavelmente entre agosto e o final de 1932, o que o classifica como um texto “C” de acordo com a edição crítica, está assim configurada: “Em 1921, tratando de questões de organização, Vilici escreveu e disse (mais ou menos) assim: “não soubemos ‘traduzir’ na língua ‘europeia’ a nossa língua” (Gramsci, 1977, Q11, §46, p. 1468).

São trechos com pequenas diferenças entre si. Gramsci acentua a incapacidade salientada por Lenin, em 1921, na direção de verter para a língua europeia as questões partidárias organizativas tratadas no Congresso em questão. O primeiro trecho, contudo, menciona “linguagens científicas”, ponto que parece ecoar a menção que Lenin fez no texto de 1905 no tocante à influência “da nossa ciência e a ciência da vida”. A temática de uma tradução internacional envolvendo o idioma russo e as demais línguas europeias é um ponto de relevo a ser considerado. Como essa temática aparece sob outras formas e argumentos nos cadernos carcerários?

Um dos exemplos possíveis está no trecho seguinte (Gramsci, 1977, Q13, §2, p. 1562), conforme a tradução de Carlos Nelson Coutinho (Gramsci, 2000, p. 20): “As relações internacionais precedem ou seguem (logicamente) as relações sociais fundamentais? Indubitavelmente seguem”. Dito de outra forma, há um nexo lógico entre as relações sociais fundamentais e as relações internacionais. Esse nexo lógico subentende uma tradução, uma ressignificação ou transformação que pode ocorrer de várias formas em conformidade com o sentido das possibilidades do âmbito internacional se modificar no que diz respeito às relações sociais fundamentais.

Ainda no sentido de tal tradução ocorrer como transformações envolvendo o nexo entre interno e internacional, há uma formulação (Gramsci, 1977, Q13, § 17, p. 1585), conforme a tradução de Coutinho (Gramsci, 2000, p. 42): “Deve-se ainda levar em conta que estas relações internas de um Estado-Nação entrelaçam-se com as relações internacionais, criando novas combinações originais e historicamente concretas”. Ou seja, o entrelaçamento entre nacional e internacional resulta nesta tradução entre um outro em novos devires históricos dotados de singularidades nunca antes registradas. Por outras palavras, situar isso no âmbito de uma hegemonia internacional implica que a base nacional das frações hegemônicas de classe no Estado hegemônico como ponto de partida não se desdobra, não se traduz de forma linear, homogênea, idêntica em outros Estados. As traduções ocorrem de forma contraditória, fragmentária, com distintas velocidades e temporalidades do conjunto das dimensões que compõem essa concepção de mundo mundializada.

E por fim, mas não menos importante há a pontuação gramsciana que relaciona linguagens, hegemonia e o aspecto pedagógico (Gramsci, 1977, Q10-II, §44, p. 1330-1331). O parágrafo que contempla a teorização gramsciana relaciona filosofia, línguas, linguagens e senso comum. São reproduzidos textos a seguir em conformidade com a tradução de Carlos Nelson Coutinho. Trata-se de trecho grande, cuja longa menção também é justificada em função de sua enorme importância para a discussão pautada:

 

Introdução ao estudo da filosofia. A linguagem, as línguas, o senso comum. Posta a filosofia como concepção de mundo – e o trabalho filosófico sendo concebido não mais apenas coerentes, mas além disso, e sobretudo, como luta cultural para transformar a “mentalidade” popular e difundir as inovações filosóficas que revelem “historicamente verdadeiras” na medida em que se tornem concretamente, isto é, histórica e socialmente, universais -, a questão da linguagem e das línguas deve ser “tecnicamente” colocada em primeiro plano. [...]

Disto se deduz a importância que tem o “momento cultural” também na atividade prática (coletiva): todo ato histórico não pode deixar de ser realizado pelo “homem coletivo”, isto é, pressupõe a conquista de uma unidade “cultural-social” pela qual uma multiplicidade de vontades desagregadas, com fins heterogêneos, solda-se conjuntamente na busca de um mesmo fim, com base numa idêntica e comum concepção de mundo (geral e particular, transitoriamente operante – por meio da emoção – ou permanente, de modo que a base intelectual esteja tão enraizada, assimilada e vivida que possa se transformar em paixão). Já que assim ocorre, revela-se a importância da questão linguística geral, isto é, da conquista coletiva de um mesmo “clima” cultural.

Este problema pode e deve ser aproximado da colocação moderna da doutrina e da prática pedagógicas, segundo as quais a relação entre professor é uma relação ativa, de vinculações recíprocas, e que, portanto, todo professor é sempre aluno e todo aluno, professor. Mas a relação pedagógica não pode ser limitada às relações especificamente “escolares”, através das quais as novas gerações entram em contato com as antigas e absorvem suas experiências e valores historicamente necessários, “amadurecendo” e desenvolvendo uma personalidade própria, histórica e culturalmente superior. Esta relação existe em toda a sua sociedade no seu conjunto em todo indivíduo com relação aos outros indivíduos, entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exército. Toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo o campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais (Gramsci, 1999, p. 398-399, grifo próprio).

 

Não é fortuito que a escrita gramsciana num parágrafo relacione a discussão do aspecto pedagógico e das relações internacionais às questões da língua e da linguagem. A tradução envolve na sua peculiaridade a temática internacional de verter línguas e linguagens distintas. Algumas teses importantes compõem o trecho reproduzido.

Em primeiro lugar, o nexo entre o senso comum, as filosofias, as concepções de mundo, as hegemonias e as línguas e as linguagens com a cultura e as consciências no sentido de buscar aprimorar a consciência popular no âmbito da cultura. Em segundo lugar, o reconhecimento da importância de uma perspectiva coletiva da cultura para transformar vontades desagregadas e fins heterogêneos, direcionar paixões e emoções para a construção de uma nova consciência, mais avançada enquanto uma nova concepção de mundo. Em terceiro lugar, a perspectiva pedagógica é muito mais ampla que o seu sentido escolar na relação recíproca de papéis entre professor e aluno. Ela envolve também o processo de amadurecimento e desenvolvimento de experiências envolvendo gerações, coletividades e seus processos de subordinação na direção da construção de uma consciência superior.

Tais transformações compõem um processo pedagógico em seu sentido mais amplo, não escolar, e fazem parte de um processo de embates hegemônicos e todos os elementos e as forças que os compõem no qual um deles prevalece. Isso incide sobre os níveis nacional e internacional e sobre o conjunto de civilizações nacionais e continentais, desdobrando-se para a configuração de uma hegemonia em nível internacional. Toda relação de hegemonia é uma relação pedagógica porque implica no embate, nas ressignificações, recepções e transformações das consciências, dos múltiplos componentes de uma concepção de mundo enquanto tradução, enquanto uma mediação didática para a sua transmissão, ressignificação, transformação e incidência sobre as coletividades, as consciências, as civilizações e assim por diante.

Toda relação de hegemonia é necessariamente pedagógica porque implica numa interação, numa tradução recíproca e dialética entre estruturas e superestruturas no nível nacional em suas múltiplas dimensões e possibilidades, de forma análoga à relação recíproca na qual todo aluno é professor e todo professor é aluno. Em tal processo pedagógico de hegemonia que se traduz das mais diferentes possibilidades para o plano internacional e a forma como a hegemonia é configurada no além-fronteiras, também de forma dialética, incidem força e consenso, violência e persuasão que compõem também, em alguma medida, todos os processos de construção dessa concepção de mundo mundializada.

Tomando como ponto de partida as bases históricas de totalidade dos níveis nacionais, e usando metáforas como recursos didáticos para argumento, a hegemonia internacional é traduzida, é “transmitida de forma didática” do nível nacional do hegemon enquanto Estado que contempla frações de classe dominantes em diferentes “aprendizados”, percepções, ressignificações e recepções. De forma metafórica e análoga, o processo de transformação das consciências nos planos nacional e internacional, em suas múltiplas possibilidades, também passa pelo processo pedagógico de interação dialética em que há distintas possibilidades de traduzir, de assimilar, de aprender, de reagir de forma passiva e de forma ativa em relação às múltiplas dimensões pertinentes ao conflito político e ao processo histórico na sua totalidade.

Tal é o sentido do aspecto pedagógico, como múltiplas possibilidades de tradução, de apreensão, em termos de uma metáfora da aprendizagem dialética e interativa que envolve várias possibilidades enquanto professor e aluno, estrutura e superestrutura, nacional e internacional. Tudo isso permeia uma contraditória e complexa totalidade histórica por trás de um processo histórico que perfaz uma hegemonia em nível internacional.

 

4 Considerações finais

À guisa de buscar resumir os principais argumentos deste texto, enumeram-se os principais pontos.

Em primeiro lugar, uma semelhança na maneira como Gramsci e Lenin abordam a questão pedagógica de uma forma não estrita, mas pautada por uma perspectiva mais ampla que envolve inúmeras possibilidades de transformação sobre a forma como a transformação, a tradução das inúmeras dimensões da vida é efetuada num tipo específico de aprendizado, de assimilação didática. Isso perpassa todos os processos de hegemonia, porque envolve a transformação coletiva em nível, inclusive, das consciências, como um processo pedagógico de mudança, de recepção tomado a partir de uma metáfora de tradução, de assimilação em termos de uma aprendizagem passiva e ativa nas múltiplas possibilidades de tais ocorrências.

Em segundo lugar, a forma como essa discussão, colocada de forma geral, se traduz, se desdobra para o processo histórico e de totalidade de uma hegemonia internacional em suas múltiplas possibilidades heterogêneas tomando como ponto de partida uma base nacional num Estado hegemônico e suas frações de classe dominantes, considerando a seguinte formulação gramsciana: “Por certo, o desenvolvimento é no sentido do internacionalismo, mas o ponto de partida é nacional [...]. O conceito de hegemonia é aquele em que se reúnem as exigências de caráter nacional” (Gramsci, 1977, Q 14, § 68, p. 1729, tradução própria).

É evidente que esta leitura e reflexão aqui apresentadas estão longe de esgotar o problema, mas elas apresentam uma perspectiva inicial que merece um aprofundamento e um nexo com a análise de processos históricos concretos e com coletividades de carne e osso, parafraseando Gramsci. Entretanto, continuar e aprofundar essa discussão transcende os limites de espaço aqui estabelecidos. Mas, dentro do escopo proposto nesta discussão, ela pode e deve continuar a ser debatida em termos históricos e concretos, de forma a não envolver um devir abstrato histórico de linguagem, como no caso do esperanto como língua universal, criticado por Gramsci por conta de seu caráter abstrato e distanciado das questões concretas (Gramsci, 1977, Q29, §5, p. 2347).

Neste mesmo sentido, como arremate e sugestão para ampliar e aprofundar o complexo e instigante universo que pode ser desbravado para futuras investigações pertinentes a Lenin e Gramsci, termina-se esta leitura e reflexão com esta citação de Giorgio Baratta (2004, p. 230-231):

 

A filosofia da práxis assume para si, em toda a sua extensão e organicidade, o problema epocal da tradução ou tradutibilidade recíproca de linguagens diferentes, porque só ela e nenhuma outra tem condições de pensar a universalidade e a identidade da perspectiva que define, atravessando os mais diversos contextos geopolíticos e culturais, a fase atual da civilização: a unificação do gênero humano, o comunismo. O que aquele problema tenha a ver com esta perspectiva é um tema aberto, que agora podemos só formular como pergunta. Somos induzidos a pensar que, por trás ou além das questões mundiais da linguagem – a crucial dificuldade de compreensão e de entendimento entre povos e culturas, o caráter ao mesmo tempo histórico e geográfico desta dificuldade, a incapacidade de uma solução abstratamente utópica, como o esperanto – aflore uma problemática mais ampla e geral. Está em jogo, em termos políticos, a estratégia leninista da “frente unida” (entre operários e camponeses ou em sentido lato entre “grupos sociais subalternos”) e, em uma perspectiva mais geral, a questão da unidade/diferenciação territorial do mundo – Norte e Sul, Oriente e Ocidente – como também a unidade/diferenciação do saber humano (filosofia-política-economia).

          

Referências

BARATTA, Giorgio. As rosas e os cadernos: o pensamento dialógico de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

 

BOOTHMAN, Derek. The Sources for GRAMSCI's Concept of Hegemony. Rethinking Marxism. [Kalamazoo], v. 20, n. 2, p. 201-215, 2008.

 

DIAS, Edmundo Fernandes. Gramsci, um interlocutor sempre atual. Quaderni. [São Paulo], n. 1, p. 77-98, 1991.

 

FAZZIO, Gabriel Landi. Confundindo pedagogia e política: Marx e Lenin sobre a educação revolucionária do proletariado. [S. l.], 2019. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2019/05/29/confundido-pedagogia-e-politica-marx-e-lenin-sobre-a-educacao-revolucionaria-do-proletariado/. Acesso em: 27 out. 2023.

 

FRANCIONI, Gianni. L´Officina gramsciana: ipotesi sulla strutura del “quaderni del carcere. Nápoli: Bibliopolis, 1984.

 

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. v. 1.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. v. 3.

 

GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere: edizione a cura di Valentino Gerratana.  Torino: Einaudi, 1977.

 

LENIN, Vladimir Ilitch. On confounding politics with pedagogics. In: LENIN, Vladimir Ilitch. Lenin Collected Works. Moscow: Progress Publishers, 1977. v. 8. p. 452-455.

 

LENINE, Vladimir Ilitch. Duas tácticas da social-democracia na revolução democrática. In:

 

LENINE, Vladimir Ilitch. Obras escolhidas em três tomos. São Paulo: Alfa-Omega, 1982a. v. 1. p. 381-472.

 

LENINE, Vladimir Ilitch. Cinco anos da Revolução Russa e perspectivas da Revolução Mundial: relatório no IV Congresso da Internacional Comunista em 13 de novembro (1922). In: LENINE, Vladimir Ilitch. Obras escolhidas em três tomos. São Paulo: Alfa-Omega, 1980. v. 3. p. 618-628.

 

LENINE, Vladimir Ilitch. Que fazer? problemas candentes do nosso movimento. In:

 

LENINE, Vladimir Ilitch. Obras escolhidas em três tomos. São Paulo: Alfa-Omega, 1982b. v. 1. p. 79-214.

 

MORTON, Adam David. Unravelling Gramsci: hegemony and passive revolution in the global political economy. London: Pluto Press, 2007.

 

SHANDRO, Alan. Lenin and the logic of hegemony. Leiden: The Netherlands: Brill. Crossref, 2014.

 

 

 

 

 



[1] Tomam-se como exemplos de tais menções algumas passagens aqui referenciadas (Gramsci, 1977, Q4, §29, p. 446; Q13, §22, p. 1622). Doravante, a maior parte das referências dos cadernos carcerários de Gramsci se baseará na edição crítica italiana organizada pela equipe de pesquisadores liderada por Valentino Gerratana. Na edição em questão, é possível identificar a elaboração assistemática, incompleta e em movimento por parte de Gramsci, na qual são classificados os textos de Gramsci de primeira redação (textos “A”), os escritos de redação final com alterações ou não em relação à primeira escrita (textos “C”) e aqueles de redação única (textos “B”). As referências a tal edição remetem a “Q”, como o número do caderno, um algarismo romano designando a parte do caderno (quando for o caso), a “§” como o número do parágrafo nos escritos dos cadernos carcerários e “p.” como o número de página da edição referida.