e-ISSN 1984-7246
Educação em Gramsci como
esteira de necessária atuação política[i]
Deise Rosalio Silva
Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG)
Educação em Gramsci como
esteira de necessária atuação política
Resumo
Este
artigo versa sobre a perspectiva político-pedagógica de Antonio Gramsci.
Centrado especialmente em sua produção realizada no cárcere, estabelecendo
relações com escritos anteriores, cartas do cárcere em diálogo com importantes
comentaristas do autor, abordará a conceituação de ser humano, o trabalho
enquanto princípio educativo, as considerações a respeito da organização
escolar, a proposta de escola única, sublinhando o papel docente indispensável
no processo de ensino e aprendizagem, em consonância com a premissa fundamental
de direção consciente para a constituição de uma vontade coletiva capaz de
edificar a transformação social emancipadora. Dessa forma, demarca o
incortonável papel da educação como estratégia de ação política capaz de se
fazer revolucionária.
Palavras-chave: Gramsci; política;
educação; direção consciente; escola única.
Education in Gramsci as a
track for necessary political action
Abstract
The article deals with
Antonio Gramsci's political pedagogical perspective. Focusing especially on his
production carried out in prison, establishing relationships with previous
writings, letters from prison in dialogue with important commentators of the
author, it will address the concept of human being, work as an educational
principle, considerations regarding school organization, the proposal for
unique school, highlighting the indispensable teaching role in the teaching and
learning process, in line with the fundamental premise of conscious direction
to establish a collective will capable of building emancipatory social
transformation. In this way, it demarcates the inescapable role of education as
a political action strategy capable of becoming revolutionary.
Keywords: Gramsci; policy; education; conscious leadership;
single school.
1 Introdução
Antonio Gramsci, militante político e
intelectual italiano, viveu as transformações mais impactantes do século XX,
atravessando desde a Primeira Guerra Mundial, à Revolução Russa e o advento e
crescimento fascista na Itália, que o vitimou até o fim de sua vida. Elaborou
conceituações que se tornaram canônicas, principalmente, nas análises da
ciência política e no conjunto das ciências humanas e sociais aplicadas,
justamente pela riqueza das contribuições que nos provocam a pensar e agir
sobre as contradições e os dilemas sociais que nos afetam. Com todo o estudo e
as profundas reflexões desenvolvidas em seu período encarcerado, agregadas a
toda a produção anterior de sua trajetória militante, deixa-nos um legado
incalculável.
Nos limites deste texto, optou-se pelo
recorte de alguns elementos essenciais da concepção político-pedagógica do
autor sardo, já que uma abordagem mais completa exigiria um minucioso exame de
suas categorias e uma exposição deveras superior ao que é possível em um
artigo. Assim sendo, será abordada a concepção de ser humano creditada por
Gramsci, em consonância com a sua perspectiva historicista absoluta,
subsidiadora da compreensão de como a sociedade está organizada estrutural e
superestruturalmente e das relações de força materiais e ideológicas que não
podemos nos furtar, exigindo-nos posicionamento na arena política. Essa
concepção materialista histórica e dialética balizará o inevitável papel
formativo para a construção da hegemonia, situando o lugar da educação enquanto
ferramenta política.
Nesse sentido, a temática de educação das
massas ocupará um lugar cerne na proposta gramsciana de superação da
subalternidade. Busca-se trazer luz a alguns aspectos desse ideário escolar
gramsciano: o trabalho como princípio educativo, a crítica à reforma
educacional fascista e às escolas imediatamente profissionalizantes, o papel da
disciplina e de uma direção consciente para ampla formação e construção da
autonomia dos subalternos, motor de um processo coletivo de revolução social.
2 O ser humano como sujeito histórico e político
Gramsci
não compreende o ser humano como ser abstrato, mas, reiterando a posição de
Marx, como resultado do modo de produção de sua vida material, de sua prática
social concreta, das relações de força e de produção social. Contestando tanto
o criacionismo religioso quanto o inatismo
filosófico, o intelectual sardo afirma:
O homem deve ser concebido como um bloco histórico de elementos
puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa e objetivos ou
materiais, com os quais o indivíduo está em relação ativa (Gramsci, 2007, Q10,
§48, p. 1338).
Desse
modo, entende-se que o ser humano pode atuar sobre os
rumos de sua vida, mas não tece solitariamente sua própria história. Não se
encontra independente da ação de outros indivíduos porque é necessariamente um
sujeito social, constituído pelo aglomerado de relações que estabelece com o
meio em que vive e com os demais sujeitos. O que nos remete à premissa marxista
de que “os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua
escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e
transmitidas pelo passado” (Marx, 1968, p. 15).
As relações que os sujeitos estabelecem dependem do modo como a
sociedade está organizada estruturalmente na esfera econômica e
superestruturalmente no terreno ideológico, e elas influem marcantemente na
constituição do indivíduo. Portanto, a prefiguração do ser humano descolado das
disputas de força e dos conflitos de classe entre eles só pode ser abstrata e,
por isso, anacrônica.
Existem
determinadas premissas ideológicas e materiais que modelam o ser dos sujeitos e
são historicamente datadas. Conhecer essas premissas é reconhecer a eficácia
histórica. Essa postulação historicista absoluta de Gramsci reforça a inerente
associação entre os aspectos filosóficos e históricos
da “atividade humana (história-espírito) em concreto, indissoluvelmente ligada
a uma certa ‘matéria’ organizada (historicizada), à natureza transformada pelo
homem” (Gramsci, 2007, Q11, §64, p. 1492).
A
consciência de como esses arranjos são pactuados incide sobre o próprio modo de
os indivíduos interagirem com os demais, com o meio e, consequentemente sobre a
sua maneira de ser e atuar. Por isso, Gramsci acentua que “cada um transforma a si mesmo, modifica-se, na medida em
que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o centro
estruturante” (Gramsci, 2007, Q10, §54, p. 1345). Dessa forma, instiga a percepção sobre o papel que o
conhecimento e a consciência adquirem na compreensão de como as relações
sociais se desenvolvem e se transformam – uma vez que conhecer desperta o sujeito, revelando a sua capacidade individual
de atuação crítica e a importância do coletivo na promoção de modificações
sociais substanciais –, defende que “o verdadeiro
filósofo é, e não pode deixar de ser, nada mais do que o político, isto é, o
homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente o conjunto das
relações de que todo indivíduo faz parte” (Gramsci, 2007, Q10, §54, p. 1345).
A
política compreendida, em seu sentido amplo, como a própria atuação humana, o
exercício cotidiano, de que nenhum sujeito pode se eximir, da inevitável tomada
de posição, ainda quando se pretende neutro, da decisão entre um calar e um dizer,
entre um fazer e outro, ou seja, das inúmeras ações que constituem nossos dias,
a nós mesmos e a sociedade. Na medida em que qualquer poder instituído é
estabelecido e reforçado por práticas sociais e culturais, não é possível
pensar uma estratégia política de transformação social que deixe de dar a
devida atenção à cultura, à educação e a modificação das práticas atualmente
existentes.
A
batalha política revolucionária só poderia ser de amplo espectro. Era
irrenunciável uma ampliação dos espaços formativos e
culturais, imprescindível o alargamento das possibilidades de se reunir o maior
número de pessoas para o livre exercício do pensar, debater, discutir, criticar
e desfrutar das mais variadas artes, literatura e instrumentos de
enriquecimento do repertório cultural.
Era necessário criar uma nova cultura “sobre uma base
social nova” (Gramsci, 2007, Q1, § 153, p. 136) que, compondo um projeto maior
de educação integral, gerasse novas relações estabelecidas pelos horizontes dos
novos seres humanos, afinal a cultura organiza a política e, portanto, a
incidência sobre essa esfera determinaria o surgimento de uma nova práxis.
É a atividade política que
contribui para a formação do homem coletivo, por isso a forma mais intensa de
atividade política é a educação: todo homem, observa Gramsci, é um ator
político, porque, de uma forma ou de outra, todo homem é um educador. A
atividade política é, portanto, atividade de cultura (Nardone, 1977, p. 83).
Eis a íntima relação entre cultura, educação e política na
tessitura histórica dos seres humanos e da sociedade. Sendo a cultura o
resultado de uma produção histórica, o plano de ação revolucionário gramsciano
implicava construir, através da materialização da crítica, uma nova história,
um “novo humanismo” (Gramsci, 2007, Q23, §3, p. 2188).
Compreende-se,
assim, como Gramsci, contrariando qualquer tipo de essencialismo e
determinismo, reformula o conceito de ser humano, revestindo-o de absoluta
historicidade e, consequentemente, elevando a importância da sociabilidade e
dos processos formativos na edificação dos sujeitos e da sociedade urdida por
eles.
3 O trabalho como princípio educativo
Nos “Manuscritos econômicos e
filosóficos de 1844”, Marx trata dessa relação do homem com a natureza através
do trabalho. O homem é gerado enquanto tal ao mesmo tempo em que o devir da
natureza passa, de certo modo, a compô-lo, já que a sua constituição se
estabelece nessa relação pelo seu trabalho, eis a onilateralidade humana (Marx,
2004).
Ainda em outro excerto, Marx
ressalta:
como criador de valores de uso, como
trabalho útil, o trabalho é, assim, uma condição de existência do homem,
independente de todas as formas de sociais,
eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre o homem e a
natureza e, portanto, da vida humana (Marx, 2013, p. 120).
O trabalho enquanto mobilizador e
constituidor do humano não poderia, nessa acepção, deixar de ser o princípio
educativo, pois é o elemento que caracteriza a própria espécie, e a relação que
se estabelece com o trabalho, nesse sentido ontológico, é em si uma relação
pedagógica: “é através da mediação de um elemento politizador e socializante
como o trabalho que a criança
torna-se ativa” (Broccoli, 1972, p. 154).
Cabe ressaltar que a sabida
crítica de Marx ao trabalho, corroborada por Gramsci, se dirigia à
superação do modo como o trabalho foi constituído historicamente na sociedade
capitalista, enquanto mercadoria de domínio do capital. O trabalho humano
explorado era o que necessitava ser extirpado com a fundação de um novo bloco
histórico regido pela hegemonia dos subalternos, não o trabalho em si. Nesse
sentido, cabia a demarcação do trabalho enquanto constituidor do sujeito e dos
sentidos que ele atribui ao mundo, ser o princípio educativo. Ao mesmo tempo, tornava-se necessária e
oportuna a crítica gramsciana à maneira como o trabalho era visto nas escolas,
como a formação para o trabalho era tratada nos currículos escolares.
Nessa lógica, contrária à cisão imposta pela relação com o
trabalho, Gramsci opunha-se à maneira como as escolas profissionalizantes eram
organizadas, como podemos verificar na passagem do Caderno 4, parágrafo 55:
Na escola atual, em função da crise profunda da tradição cultural
e da concepção de vida e do homem, verifica-se um processo de progressiva
degenerescência: as escolas de tipo profissional, isto é, preocupadas em
satisfazer interesses práticos imediatos, predominam sobre a escola formativa,
imediatamente desinteressada. O aspecto mais paradoxal reside em que este novo
tipo de escola aparece e é louvada como “democrática”, quando, na realidade, só
é destinado a perpetuar as diferenças sociais. Como se explica esse paradoxo?
Me parece, a partir de um erro de perspectiva histórica entre quantidade e
qualidade. A escola tradicional era “oligárquica”, já que destinada à nova
geração dos grupos dirigentes, destinada por sua vez a tornar-se dirigente: mas
não oligárquica pelo seu modo de ensino. Não é a aquisição de capacidades de
direção, não é a tendência a formar homens superiores que dá a marca social de
um tipo de escola. A marca social é dada pelo fato de que cada grupo social tem
um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar nestes estratos uma
determinada função tradicional, dirigente ou instrumental. Se se quer destruir
esta trama, portanto, deve-se não multiplicar e hierarquizar os tipos de escola
profissional, mas criar um tipo único de escola preparatória (primária-média)
que conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o, durante
este meio tempo, como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de
controlar quem dirige.
A multiplicação de tipos de escola profissional, portanto, tende a
eternizar as diferenças tradicionais; mas, dado que tende, nestas diferenças, a
criar estratificações internas, faz nascer a impressão de ter uma tendência
democrática. Operário manual e qualificado, por exemplo; camponês e agrimensor
ou pequeno agrônomo, etc. Mas a tendência democrática, intrinsecamente, não
pode significar apenas que um operário manual se torne qualificado, mas que
cada “cidadão” possa tornar-se “governante” e que a sociedade o ponha, ainda
que “abstratamente”, nas condições gerais de poder fazê-lo: a democracia
política tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido de
governo com o consentimento dos governados), assegurando a cada governado o
aprendizado gratuito das capacidades e da preparação técnica geral necessárias
a essa finalidade (Gramsci, 2007, p. 501).
Gramsci enfatiza que sua desaprovação se deve à perpetuação das
diferenças sociais, apesar da aparente “democracia” dessas escolas. Os sujeitos
podem se tornar capacitados para exercerem certas atividades, mas continuarão
sendo meros executores, serão sempre os “governados”, não sairão da condição
subalterna se não tiverem a chance de ter uma formação ampla, integral, séria,
que reúna todas as dimensões: intelectual, manual e técnica, eis a sua
demarcação da relevância de se efetivar um projeto de escola única.
A escola profissionalizante da reforma
fascista preservava a divisão de trabalho e, além de restringir a formação dos
trabalhadores à execução de tarefas para determinados postos de emprego,
antecipava a oferta e fragmentava ainda mais esse tipo de ensino destinado a
jovens trabalhadores. Para Gramsci, era preciso que a formação não se
restringisse a uma capacitação técnica aligeirada, com a dimensão intelectual
subjugada e passiva, mas que fosse exatamente o oposto. O ensino deveria
alicerçar-se sempre na prevalência da mais alta formação do sujeito,
possibilitando aos alunos pensar, refletir, investigar, debater, construir,
para que se tornassem capazes de ser verdadeiramente dirigentes e não apenas
dirigidos.
Gramsci
no Caderno 12, parágrafo 2, ao fazer observações sobre a importância do
trabalho como princípio educativo, mobiliza elementos relevantes para a crítica
da escola capitalista:
Com seu ensino, a escola luta contra o folclore, contra todas as
sedimentações tradicionais de concepções do mundo, a fim de difundir uma
concepção mais moderna, cujos elementos primitivos e fundamentais são dados
pela aprendizagem da existência de leis naturais como algo objetivo e rebelde,
às quais é preciso adaptar-se para dominá-las, e de leis civis e estatais,
produto de uma atividade humana, que são estabelecidas pelo homem e podem ser por
ele modificadas tendo em vista seu desenvolvimento coletivo; a lei civil e
estatal organiza os homens do modo historicamente mais adequado a dominar as
leis da natureza, isto é, a tornar mais fácil o seu trabalho, que é a forma
própria através da qual o homem participa ativamente na vida da natureza,
visando a transformá-la e a socializá-la cada vez mais profunda e extensamente.
Pode-se dizer, por isso, que o princípio educativo no qual se baseavam as
escolas primárias era o conceito de trabalho, que não pode se realizar em todo
seu poder de expansão e de produtividade sem um conhecimento exato e realista
das leis naturais e sem uma ordem legal que regule organicamente a vida dos
homens entre si, ordem que deve ser respeitada por convicção espontânea e não
apenas por imposição externa, por necessidade reconhecida e proposta a si
mesmos como liberdade e não por simples coerção. O conceito e o fato do
trabalho (da atividade teórica e prática) é o princípio educativo imanente da
escola elementar, já que a ordem social e estatal (direitos e deveres) é
introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho. O conceito do
equilíbrio entre ordem social e natural, com base no trabalho, na atividade
teórica e prática do homem, cria os primeiros elementos de uma intuição do
mundo, livres de toda a magia e bruxaria, e fornece o ponto de partida para o
posterior desenvolvimento de uma concepção histórica, dialética, do mundo, para
a compreensão do movimento e do devir, para a avaliação da soma de esforços e
de sacrifícios que o presente custou ao passado e que o futuro custa ao
presente, para a compreensão da atualidade como síntese do passado, de todas as
gerações passadas, que se projeta no futuro. É este o fundamento da escola
primária; que ele tenha dado todos os seus frutos, que no corpo de professores
tenha existido a consciência de seu dever e do conteúdo filosófico desta
tarefa, é um outro problema, ligado à crítica do grau de consciência social de
toda a nação, da qual o corpo docente era apenas uma expressão, ainda que
amesquinhada, e não certamente uma vanguarda (Gramsci, 2007, p. 1540-1541).
O longo excerto remete à cisão que a reforma Gentile introduz
entre escola primária e média, o que antes se fazia sentir de modo marcado
apenas entre as escolas médias, profissionais e superiores. As classes dominantes recebiam um ensino
clássico e humanístico, enquanto às classes subalternas restava o acesso ao
ensino técnico.
Antes
da Reforma, as escolas primárias “eram colocadas em uma espécie de limbo”. Nas
escolas elementares, o ensino abarcava noções de ciências naturais, importante
para romper com as concepções fantasiosas, as noções equivocadas e,
principalmente, auxiliar a relação com a natureza. Além disso, o ensino
abrangia direitos e deveres, entendidos como fundamentais para inserir o
sujeito na sociedade. A difusão de uma “concepção de mundo mais moderna”, do
ensino de noções tanto das ciências naturais quanto das ciências sociais, das
“leis civis e estatais”, dos direitos e deveres sociais, vistos como produtos
da atividade humana, consistia no ponto de partida para uma futura compreensão
histórica e dialética da realidade, abrindo a possibilidade de outro modo de
agir no mundo. Toda interferência humana é realizada pelo trabalho, e o
princípio educativo da escola elementar era o trabalho.
Em consonância com a própria necessidade histórica e resgatando a
proposição marxista, Gramsci defende que o educador seja também educado. Essa
defesa é expressa no seguinte fragmento apresentado no Caderno 10, parágrafo 41:
Será que a estrutura é concebida como algo imóvel e absoluto, ou,
ao contrário, como a própria realidade em movimento e a afirmação das Teses sobre Feuerbach, de que “o
educador deve ser educado”, não coloca uma relação necessária de reação ativa
do homem sobre a estrutura, afirmando a unidade do processo real? (Gramsci,
2007, p. 1300).
A síntese do projeto educativo revolucionário postulado por
Gramsci pode ser expressa pela missão de “educar o educador”. Uma vez que o
homem, enquanto “processo de seus atos” (Gramsci, 2007, Q10, §54, p. 1344), se
constitui como tal historicamente pelo trabalho e se ressignifica nas relações
sociais que edifica, é a partir de novas relações que se tornaria possível
erguer uma outra concepção de mundo. Conforme salienta Broccoli, a
“historização do homem, [...] possibilita a
continuidade da relação educativo-hegemônica” (Broccoli, 1972, p. 153).
Gramsci, apropriando-se das “Teses sobre Feuerbach”, desenvolve
sua concepção historicista do homem, posicionando a educação como elemento
essencial na vida de todos os sujeitos por tratar-se do processo primordial de
configuração de sentido à realidade e, por isso mesmo, componente-chave para a
transformação da concepção de mundo vigente.
4 A educação como direção consciente para luta revolucionária
O debruçar-se sobre a história e a análise
das situações concretas evidenciariam, para Gramsci, a relevância da temática
da educação escolar e o seu peso na teoria da hegemonia. Por esse motivo,
dedicou atenção à análise da educação durante toda a sua trajetória de vida e,
especialmente, no período carcerário. Enxergava a suma importância da tônica
formativa para a luta política cotidiana no desenvolvimento de uma nova
hegemonia capaz de por fim à condição dos grupos subalternos.
A revolução, na concepção gramsciana, constituí-se em árduo
processo que exige, como condição sine
qua non, o desenvolvimento de uma reforma intelectual e moral, elemento
essencial para a participação efetiva dos subalternos na disputa hegemônica.
Exatamente por isso, Gramsci preocupava-se com a educação das massas.
É em
oposição ao modo como era encarada a educação na sociedade burguesa italiana
que o intelectual sardo desenvolverá seu projeto educativo escolar, como uma
alternativa à escola capitalista existente na Itália e que, com a reforma
educacional orquestrada por Giovanni Gentile no regime fascista, havia
aprofundado o seu caráter dual, aumentando a cisão entre a educação destinada
às elites e aquela, designada à formação de mão de obra mais simplista para o
mercado de trabalho, destinada às classes subalternas.
A máxima defendida por Gramsci era a escola única, sem realizar
nenhum tipo de distinção entre a formação destinada para abastados e
desfavorecidos socialmente. Uma escola que empreendesse de forma integrada um
ensino geral sólido de aprimoramento intelectual com trabalho manual e
tecnológico, sem distinção de classe. Efetivamente, uma escola pública,
gratuita, laica e de qualidade. Defende:
[...] escola única inicial de cultura geral, humanística,
formativa, que equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de
trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das
capacidades do trabalho intelectual. Deste tipo de escola única, através de
experiências repetidas de orientação profissional, passar-se-á a uma das
escolas especializadas ou ao trabalho produtivo (Gramsci, 2007, Q12, §1, p.
1531).
Suas reflexões se estenderam ao delineamento de alguns aspectos
importantes para a viabilização da escola única: desde a estrutura física e a
organização do tempo até algumas pontuações sobre o currículo. A esse respeito,
destacam-se as “primeiras noções de Estado e sociedade” e “direitos e deveres”
já no ensino elementar (Gramsci, 2007, Q12, §1, p. 1534-1535). Gramsci entendia
que a viabilização dessa perspectiva educativa exigiria “a transformação da
atividade escolar”, demandaria “uma enorme ampliação da organização prática da
escola, isto é, dos edifícios, do material científico, do corpo docente, etc.”
(Gramsci, 2007, Q12, §1, p. 1534).
Pela preocupação que apresentava com a universalização do ensino,
Gramsci chamava a atenção para que as instituições não se estruturassem a
partir do aparato que alguns recebiam da família, já que nem todos tinham esse
privilégio. A escola deveria estar preparada para atender as diferenças, suprir
lacunas, e era sua obrigação oferecer o melhor ensino para todas e todos.
Para Gramsci, a escola única estaria organizada em duas fases:
ativa e criadora. A fase ativa seria compreendida pelo ensino elementar,
seguida pela criadora, de trabalho mais autônomo e independente. Partindo da
participação real da escola ativa, chegar-se-ia a uma fase mais autoral, e, com
a viabilização de mais processos investigativos.
A
universidade sempre teve um caráter elitista, contra o qual Gramsci se
posicionava criticamente. A distinção estabelecida, que restringia determinado
saber a determinada “casta”, não permitia à maioria da população ter acesso a
um processo educativo amplo. A seu ver, a escola única mudaria esse cenário e a
universidade seria o cume desse processo, devendo estar a serviço da sociedade.
À universidade cabia proporcionar a consolidação do
hábito de prática científica investigativa e crítica diante da realidade.
O objetivo era formar sujeitos que tivessem a capacidade de
trabalhar criticamente manualmente e intelectualmente, de modo a se colocarem
diante dos problemas sabendo lidar com um método de investigação, atuando para
resolvê-los, organizando-se coletivamente, sendo, portanto, capazes de
estabelecer outras relações entre si e com o mundo.
A educação apresenta centralidade
na estratégia revolucionária gramsciana pelo papel que assume na configuração
de toda sociedade, por isso mesmo não poderia ser concebida de qualquer modo. O
conhecimento, na acepção gramsciana não é inato e não é adquirido de modo
espontâneo. Exige um aparato e uma formação intencional e integral.
A respeito da organização escolar, Gramsci pontua, no Caderno 12,
parágrafo 1:
O problema didático a resolver é o de abrandar e fecundar a
orientação dogmática que não pode deixar de existir nestes primeiros anos. O
resto do curso não deveria durar mais de seis anos, de modo que aos 15-16 anos
já deveriam estar concluídos todos os graus da escola unitária (Gramsci, 2007,
p. 1535).
Gramsci sinaliza a questão do direcionamento que não pode deixar
de existir, principalmente, nos primeiros anos escolares, pois as crianças não
podem ser deixadas ao sabor fortuito dos seus interesses. É contrário ao
espontaneísmo, porque acredita que ele impossibilita uma vasta formação em
todos os sentidos, além de prejudicar ainda mais os desafortunados, os
despossuídos de um repertório cultural e de estímulos em casa que os auxilie
nesse processo educativo. Para a grande maioria da população, a escola
constitui-se na única oportunidade de educar-se, exatamente por isso, deve
haver planejamento e encaminhamentos pedagógicos para que cada um possa
usufruir a mais ampla formação.
A oposição gramsciana ao espontaneísmo
pedagógico deve-se também à sua concepção de que a “pura” espontaneidade era
absolutamente incompatível com a história. É
importante dilucidar que a crítica gramsciana ao espontaneísmo não significa,
de modo algum, o desprezo à espontaneidade, inclusive porque, dentro da
vertente marxista, nenhum autor destinou tanta atenção ao espírito popular
quanto Gramsci. Ele salientava a importância da espontaneidade dos sujeitos
para entender a história que os constitui e como elemento de partida para o
desenvolvimento de uma consciência superior, de outro modo de vida, de um novo
conformismo. De acordo com Broccoli:
A concepção educativa gramsciana, tendo em vista o seu
desenvolvimento, não exclui a espontaneidade; mas visa acabar com o mito da
espontaneidade, que é desobrigação moral e pedagógica [...]
Conhecer a espontaneidade popular e individual significa verificar
de que tipo é essa espontaneidade, isto é, determinar as condições das massas
como dos indivíduos, o grau de maior ou menor desagregação cultural e política,
do qual depende a composição concreta da intervenção educativa, isto é,
hegemônica (Broccoli, 1972, p. 93).
É a proposição gramsciana sobre a hegemonia que determinará em seu
pensamento a fragilidade da espontaneidade e o papel crucial da direção e,
consequentemente, da educação. Não se trata de menosprezo à espontaneidade, mas
da demarcação da importância de ela ser educada. O espontaneísmo representa uma
degeneração dessa dialética educativa, assim como o autoritarismo arbitrário.
Gramsci elucida sua visão de
disciplina nessa passagem, expressa no parágrafo 48, Caderno 14:
A disciplina, portanto, não anula a personalidade em sentido
orgânico, mas apenas limita o arbítrio e a impulsividade irresponsável, para
não falar da fátua vaidade de sobressair [...] a disciplina, portanto, não
anula a personalidade e a liberdade. A questão “personalidade e liberdade” se
apresenta não em razão da disciplina, mas da “origem do poder que ordena a
disciplina”. Se esta origem for “democrática”, isto é, se a autoridade for uma
função técnica especializada e não “arbítrio” ou uma imposição extrínseca e
exterior, a disciplina é um elemento necessário de ordem democrática, de
liberdade (Gramsci, 2007, p. 1706-1707).
Em sua acepção, valora a disciplina não como cerceadora, mas, ao
contrário do sentido usual que lhe é atribuído, como possibilitadora da vida em
sociedade e da construção da autonomia. Todo sujeito, enquanto ser social, se
torna humano exatamente na convivência em sociedade, e essa convivência não
pode se realizar sem normas e regras, caso contrário, não se viabilizaria. Não
há possibilidade de construção de nenhum tipo de relação com o outro, se não há
nenhum tipo de normatização estabelecendo a coletividade. Não se trata de
limitação, mas de possibilidade. “Disciplinar-se é tornar-se independente e
livre”[1] (Gramsci, 2004, p. 87).
É
nesse contexto que Gramsci defende a importância da diretividade no processo
educativo e rechaça o mecanicismo e o dogmatismo, afirmando a significância e o
lugar da responsabilidade e da disciplina na sua pedagogia.
À luz da dialética entre espontaneidade e direção consciente
dentro de cada indivíduo, por exemplo, a advertência gramsciana é a de educar
para uma nova forma de conformismo, social propriamente, que seja capaz de
exprimir as necessidades de uma sociedade, a democrática, em que todos são
potencialmente governantes, portanto, necessariamente devem adquirir hábitos e
comportamentos capazes de disciplinar seus impulsos individualistas (Meta,
2012, p. 36).
A docência assume um papel
insubstituível e irrenunciável dentro dessa proposta educativa, pois é a
materialidade da direção consciente, realiza-se por intelectual que
estabelecerá o nexo entre os mais distintos assuntos e conhecimentos
historicamente acumulados e o presente, o passado e as inter-relações com o
futuro que se deseja construir, com a vida cotidiana e com a realidade. Não
deveria ser encarada com apenas o ministrar de aulas, apresentando temáticas de
maneira descontextualizada, sem relação com o que se passa, sente, vive e se constrói.
Inevitavelmente, todo docente é um sujeito histórico que está a serviço do
combate ou da manutenção de uma visão de mundo.
Para Gramsci, é preciso cuidar não somente do conteúdo, mas também
da forma. No excerto do Caderno 12, parágrafo 2, ao externar a veemente
oposição contra “rebaixamentos” e facilitações no processo de ensino, Gramsci
faz importantes considerações sobre a questão da forma e do conteúdo:
A participação de massas
mais amplas na escola média traz consigo a tendência a afrouxar a disciplina do
estudo, a provocar “facilidades”. Muitos pensam mesmo que as dificuldades são
artificiais, já que estão habituados a só considerar como trabalho e fadiga, o
trabalho manual. A questão é complexa. Decerto, a criança de uma família
tradicional de intelectuais supera mais facilmente o processo de adaptação
psicofísico; quando entra na sala de aula pela primeira vez, já tem vários
pontos de vantagem sobre seus colegas, possui uma orientação já adquirida por
hábitos familiares: concentra a atenção com mais facilidade, pois tem o hábito
da contenção física, etc. Do mesmo modo, o filho de um operário urbano sofre
menos quando entra na fábrica do que um filho de camponeses ou do que um jovem
camponês já desenvolvido para a vida rural. Também o regime alimentar tem
importância, etc. Eis por que muitas pessoas do povo pensam que, nas
dificuldades do estudo, exista um “truque” contra elas (quando não pensam que
são estúpidos por natureza): veem o senhor (e para muitos, especialmente no
campo, senhor quer dizer intelectual) realizar com desenvoltura e aparente
facilidade o trabalho que custa aos seus filhos lágrimas e sangue, e pensam que
exista algum “truque”. Numa nova situação, estas questões podem tornar-se muito
ásperas e será preciso resistir à tendência a facilitar o que não pode sê-lo
sob a pena de ser desnaturado. Se se quiser criar uma nova camada de
intelectuais, chegando às mais altas especializações, a partir de um grupo
social que tradicionalmente não desenvolveu as aptidões adequadas, será preciso
superar enormes dificuldades (Gramsci, 2007, p. 1549-1550).
Por isso se preocupava com o método e não apenas com o que seria
ministrado na escola. Estava convicto que “se existe no mundo qualquer coisa
que tenha valor em si mesma, todos são dignos e capazes de desfrutá-la”
(Gramsci, 1987, p. 380). Defendia uma educação integral humanista que agregasse
saberes intelectuais, manuais e técnicos, sem objeções aos simples. Mas
criticava o culto ao trabalho pedagógico de conteúdos como máximas, fins em si
mesmos, a inculcação vazia de conteúdos, sem articulação com a realidade, com a
história, com os problemas concretos, sem reflexão, problematizações, não
traria os frutos que a educação poderia e deveria trazer, para tornar possível
o projeto revolucionário, que começaria a ser esboçado pelo delineamento de um
novo ser humano que, conforme expressou em uma carta para sua mulher Giulia, em
1 de agosto de 1932, seria “o tipo moderno de Leonardo da Vinci transformado em
homem-massa ou homem-coletivo mantendo, todavia, a sua forte personalidade e
originalidade individual” (Gramsci, 2013, p. 599).
5 Considerações finais
Para Gramsci, o processo
educativo não se restringia à difusão de conteúdos, transmissão de
conhecimentos e capacitação para postos de trabalho, constituía-se como uma
arena imprescindível de luta política e social, para numerosos extratos da
classe trabalhadora, a única de direito de alcance por meio da escola pública.
Exatamente por isso, a escola é um terreno fundamental de luta em disputa.
Em consonância com a sua
perspectiva historicista absoluta de ser humano, compreendia que a luta
de classes é o terreno em que se pisa e se constrói caminhos de atuar na
sociedade, transpondo lugares pré-determinados pela hegemonia dominante
operando coletivamente, constituindo real campo de disputa para transgressões
substanciais e revolucionárias a depender da luta que ousarmos travar. E essa
batalha só poderia ser de longo fôlego, estabelecendo a necessidade de
construção de uma outra cultura alicerce de novas formas de fazer política e
tecer a sociedade.
As práticas sociais não existem sem
concepções que as fundamentem; desse modo, não é possível pensar uma estratégia
política de transformação social sem a formação e alargamento de concepções que
alicercem a edificação da hegemonia popular. Eis o lugar irrenunciável da
educação e da cultura como pilares de ações políticas capazes de influir na
tessitura social.
O cuidado com a educação das
massas ganha contornos de urgência nessa proposição revolucionária gramsciana.
Sem uma reforma intelectual e moral não se erigiria um novo ser humano, capaz
de estabelecer outras relações e com elas, um novo conformismo e um novo senso
comum, que adviriam na expressão da eficácia histórica de um projeto de
sociedade emancipada.
Nesse sentido, a escola e o
processo educativo não poderiam se eximir de intencionalidade e diretividade
para a mais ampla formação humanística, integral, que equilibrasse a capacidade
crítica de trabalho intelectual, manual e tecnológico. A disciplina, nessa
perspectiva, tem a função de preparar o sujeito para a conquista da autonomia,
o que nos remete ao papel docente, enquanto intelectual que assume
indispensável função organizativa na instituição com viés formativo de maior
importância na sociedade: a escola.
Gramsci
já chamava a atenção para a equidade na escola, que exigirá na prática ação
discriminatória positiva frente às desigualdades sociais de origem para
possibilitar a mais ampla formação, sem rebaixamentos aos subalternos. O
trabalho, em seu sentido alargado, meio pelo qual se faz humano por dar sentido
em estar e agir no mundo e nas relações, é o princípio educativo da proposta
político-pedagógica de Gramsci, o elemento fundante das leituras e construções
críticas e complexas capazes de dar resposta aos dilemas coletivos cotidianos.
A educação é instrumento político
irrefutável e, na acepção gramsciana, deve assumir uma função catártica na
constituição de sujeitos críticos, conscientes da realidade histórica e
dialética, aptos a atuar para a transformação da ordem social e superação da
subalternidade.
Referências
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GRAMSCI, Antonio. Lettere dal carcere 1926-1937. A cura
de Antonio A. Santucci. 2. ed. Palermo: Sellerio, 2013.
MARX,
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META, Chiara. La “formazione dell´uomo” e il pragmatismo
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presente: studi su Gramsci. Roma: Carocci, 2012. p.27-38.
NARDONE, Giorgio. Politica e cultura in Gramsci. In: BADALONI, Nicola et al. Attualità di Gramsci: l´egemonia, lo Stato, la cultura, il metodi,
il partito. Milano: Il Saggitore, 1977.
p.73-101.
[1] Extraído do texto
“Disciplina e liberdade”, publicado inicialmente na edição única do jornal La città futura em 11 de fevereiro de
1917.
[i] Artigo recebido em 29/10/2023
Artigo aprovado em 27/05/2024
Fonte de fomento:
parte de
uma pesquisa que recebeu apoio financeiro de bolsa PDSE Capes.
Este artigo é uma adaptação da Tese intulada “Hegemonia
e educação: proposta gramsciana de superação da subalternidade”, apresentada em
2016 pela autora desse artigo, Sra. Deise Rosalio Silva, à Univerdade de São Paulo
(USP).