Caixa de Texto:  e-ISSN 1984-7246    A construção de consensos em torno do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares a partir de seu manual e diretrizes orientadoras: em busca da formação ético-moral perdida[i]

 

Giulia Pagani Galvão[ii]

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)

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Fabiano Antonio dos Santos[iii]

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)

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A construção de consensos em torno do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares a partir de seu manual e diretrizes orientadoras: em busca da formação ético-moral perdida

 

Resumo

O presente texto discute a centralidade que o discurso da formação ético-moral tem na construção de consensos em torno do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares. Para tanto, analisa os dois principais documentos que orientam a implementação do programa e que indicam os princípios por ele defendidos: o Manual das Escolas Cívico-militares e as Diretrizes das Escolas Cívico-militares. A análise é realizada à luz das categorias gramscianas de consenso, vontade coletiva, formação ético-moral e hegemonia. Os resultados mostram que os documentos destacam a importância da retomada de valores cívicos que, supostamente, teriam perdido centralidade na formação dos estudantes. Defendem, portanto, a formação de bons comportamentos e atitudes, procurando construir uma nova racionalidade formativa nas escolas.

 

 

Palavras-chave: programa nacional de escolas cívico-militares; consenso; formação ético-moral.

 

 

 

 

Looking for the lost ethical and moral formation: building consensus around the National Program of Civic-Military Schools

 

 

Abstract

This article discusses the centrality of the the discourse of ethical-moral training in building consensus around the National Program of Civic-Military Schools. To do this, it analyzes the two main documents that guide the implementation of the program and indicate the principles it defends: the Manual of Civic-Military Schools and the Guidelines of Civic-Military Schools. The analysis is carried out in the light of the Gramscian categories of consensus, collective will, ethical-moral formation and hegemony. The results show that the documents emphasize the importance of reviving civic values that have supposedly lost their centrality in the education of students. They therefore advocate the formation of good behavior and attitudes, seeking to build a new formative rationality in schools.

 

Keywords: national civic-military schools program; consensus; ethical-moral formation.

 

 

 

 

 

1 Introdução

A criação do Programa Nacional de Escolas Cívico-militares (Pecim) traz à tona a discussão sobre a função da escola como espaço para a formação ético-moral neoliberal ultraconservadora. Quando Gramsci indaga sobre o papel da escola na formação ético-moral, critica a dualidade da escola destinada às classes subalternas e às classes dirigentes porque, para ele, tal dualidade perpetua as desigualdades sociais. O autor sardo tem muito a nos dizer em tempos que a instituição escolar é usada como ferramenta de formação/controle moral e intelectual da vida dos estudantes. Gramsci alerta que a escola deveria ser unificada, servir à formação de todos, sem distinção de classes sociais. Em sua proposta de escola unitária, não seria suficiente que o objetivo fosse a formação para atuação no mundo do trabalho, era preciso garantir que essa mesma formação oferecesse condições para que todos os cidadãos se tornassem governantes.

Nos Cadernos do Cárcere, a educação aparece como importante estratégia de formação moral e intelectual das classes subalternas, que estaria ligada à perspectiva filosófica e política da filosofia da práxis que seria, para nosso autor, o ponto mais completo do processo de reformas intelectuais e morais (como a Reforma Protestante e a Revolução Francesa), justamente porque estaria relacionada à luta pela construção de uma perspectiva intelectual e moral coletiva. Em sentido oposto aos preceitos gramscianos de formação intelectual e moral, mas próximos àqueles que o autor sardo teceu críticas quando o conservadorismo avançou na Itália através do movimento facista, temos a proposta de formação escolar pautada em preceitos éticos e morais conservadores, colocada em ação através da criação das escolas cívico-militares. O presente texto apresenta, assim, resultados de uma pesquisa que analisou os dois principais documentos que orientam a implementação do programa e que indicam os princípios por ele defendidos: o Manual das Escolas Cívico-militares (Brasil, 2020) e as Diretrizes das Escolas Cívico-militares (Brasil, 2021). A análise é realizada à luz das categorias gramscianas de consenso, vontade coletiva, formação ético-moral e, por consequência, hegemonia.

Em um contexto de ampliação das forças neoliberais no Brasil, iniciada com o golpe de 2016, que destituiu do poder a presidente Dilma Rousseff, foi possível acompanhar um verdadeiro desmonte dos direitos sociais, dando lugar a um projeto autoritário (Araújo e Carvalho, 2021) e extremamente conservador. Com o governo de Jair Bolsonaro (2018-2022), a proposição ultraconservadora ganhou espaço e inúmeras políticas foram construídas tendo como objetivo a consolidação dos princípios ético-morais conservadores. No campo educacional, a principal política daquele governo foi a criação das escolas cívico-militares que ocupou, em 2022, um dos dez principais orçamentos discricionários da educação básica (R$ 64 milhões de reais), ainda que essas escolas tenham representado apenas 0,1% das escolas básicas brasileiras (Alfano, 2022).

Considerando a centralidade desse programa durante o governo Bolsonaro, considerando, ainda, sua permanência em muitos municípios brasileiros mesmo com a extinção do programa em nível federal, temos como hipótese que a disseminação de preceitos éticos e morais ultraconservadores foram fundamentais para que sua proposta se mantivesse mesmo não sendo mais um programa federal.

A partir dos fundamentos do materialismo histórico-dialético, especialmente considerando as contribuições de Antônio Gramsci, pretendemos discutir, neste artigo, portanto, como vão se construindo consensos em torno do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares, tomando como material de análise seu manual e diretrizes orientadoras.

 

2 Consenso e vontade geral: consolidando a formação ético-moral capitalista

Gramsci (2011a) busca desenvolver suas reflexões mais maduras, presentes nos Cadernos do Cárcere, tomando como fundo analítico a concepção de estado integral (estrutura + superestrutura). Essa concepção supera aquelas que, por um lado, consideram apenas a estrutura como determinante da realidade social e, por outro, consideram a superestrutura como responsável pela determinação da realidade social. É com essa visão de totalidade e indissociabilidade entre estrutura e superestrutura que sua construção sobre hegemonia vai oferecer importantes chaves de análise para a realidade (que apresentava crescente complexificação da política). 

A visão integral de Gramsci (2011a)lhe permite desenvolver estruturas de análise da realidade que se articulam. No caso da formação da vontade coletiva, o autor vai se indagar sobre os meios que permitem a formação da vontade coletiva permanente e a formação da vontade coletiva momentânea e inesperada. A formação de vontades coletivas permanentes sugere, segundo o autor, linhas de ação coletivas que envolvem processos de desenvolvimento mais ou menos longos e que dificilmente se constituem em processos inesperados.

Em uma das possíveis explicações sobre como se constrói a vontade coletiva, Gramsci (2011a) destaca o consenso como estratégia sempre associada à produção e conservação da hegemonia. Para o autor italiano, temos duas formas de produzir o consenso: um de cima para baixo (passivo) e outro de baixo para cima (ativo). Nessa perspectiva, Gramsci conseguiu identificar como a participação da sociedade civil é fundamental para produzir consensos. Mais do que a imposição de princípios, costumes e formas de fazer política, é preciso envolver os subalternos, para que o sentimento de tais necessidades partam deles. “[...] para outros organismos, é questão vital não o consenso passivo e indireto, mas o consenso ativo e direto, ou seja, a participação dos indivíduos, ainda que isso provoque uma aparência de desagregação e de tumulto” (Gramsci, 2011a, p. 333).

Tomando nosso caso de análise neste artigo, a proposição ultraconservadora, quando se associa aos discursos de livre mercado, procura garantir que sua proposição seja duradoura justamente porque se articula à formação da vontade coletiva permanente (proposição capitalista), por meio do consenso.

Gramsci (2011a) destaca, considerando a produção de consenso, que a vontade coletiva não se produz autonomamente, ela é dirigida. Segundo o autor, o “homem ativo de massa” não possui clara consciência de sua ação estando, em alguns momentos, em oposição ao seu agir. A consciência seria formada sob dois aspectos: um implícito em sua ação, capaz de gerar união de classe em busca de transformações e outro superficialmente explícito, ou verbal, que teria herdado do passado sem refletir criticamente sobre ele. Sobre esse segundo aspecto de formação da consciência, Gramsci (2011a) afirma que não seria totalmente inconsequente, pois estaria ligado “a um grupo social determinado, influi[ndo] sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de uma maneira mais ou menos intensa [...]” (Gramsci, 2011a, p. 103).

Em nosso caso de análise, a associação entre ultraconservadores e neoliberais é capaz de influenciar na conduta moral dos indivíduos, tornando-se complementares em uma sociedade de mercado que, supostamente, precisaria resgatar valores como respeito a hierarquias e civismo.

Analisando a associação mais de perto, podemos afirmar que quase não há incompatibilidades entre os interesses neoliberais e os valores e princípios ultraconservadores, que têm tomado grande espaço no cenário político atual. Considerando os pressupostos da filosofia da práxis, como se referia Gramsci  ao materialismo histórico dialético, a aproximação entre ultraconservadores e neoliberais vai se mostrando cada vez mais evidente na medida em que se complementam em favor da ampliação do capital. Freitas (2019a) analisa, no interior da relação entre ultraconservadores e neoliberais, que a educação vai assumir um papel importante na configuração de uma “nova geocultura meritocrática excludente”. Essa nova geocultura ocupa o lugar de uma geocultura da inclusão social, atrelada ao liberalismo centrista, datado do século XIX e continuado por Keynes e o Estado de Bem-estar social, que previa a combinação de inclusão social e desenvolvimento econômico num livre mercado regulado. Após a Primeira Guerra Mundial, começa a ser delineado por Ludwig von Mises, que se baseia em ideais liberais radicais, o que passaria a ser chamado de neoliberalismo (Freitas, 2019b).

Para Freitas (2019b), há uma função para os conservadores dentro desse projeto neoliberal que, apesar de não compartilharem o mesmo objetivo, se complementam na medida em que os conservadores “organizam” e os liberais cuidam do “progresso”. É nesse contexto, segundo o autor, que a educação é requisitada sob esse novo molde de geocultura.

Nesse modelo, se pretende ter como legítimas as desigualdades sociais como forma de diferenças de mérito (Freitas, 2019b). A educação passa a incorporar o modelo empresarial a fim de vivenciar a concorrência, para a qual os jovens precisam ser preparados, uma vez que a conquista – concedida pelo Mercado – do lugar que ocupam será decidida pelo mérito que tiverem (Freitas, 2019b).

As influências do liberalismo já são conhecidas, uma vez que datam do século XIX, mas o elemento novo, como destaca o referido autor, é o ajustamento dessa proposta de educação ao espectro político da direita, por meio, por exemplo, da articulação entre os liberais radicais e os populistas conservadores, gerando a aliança “conservadora-liberal” que

 

faz com que o processo educativo seja pensado a partir destas duas filosofias sociais. Pelo lado neoliberal, a partir da meritocracia excludente e individualista e, pelo lado conservador, a partir da militarização da escola, endurecimento das regras disciplinares e escola sem partido (Freitas, 2019b, p. 4).

 

Segundo Lagoa (2019), com exceção da visão de Estado, neoliberais e conservadores atuam, lado a lado, em franca oposição a qualquer forma de políticas sociais planificadas, promovidas pelo poder público. A união, baseada em interesses econômicos, entre neoliberais e ultraconservadores, tem demonstrado amplo sucesso na constituição de uma vontade coletiva arbitrária, para usar as palavras de Gramsci (2011a). Em outros termos, ao se unirem em torno da conservação da hegemonia burguesa, neoliberais e conservadores constroem os fundamentos para a manutenção da formação ético-moral capitalista, destacando a necessidade de construir consensos sociais amplos. O autor sardo alerta, ainda, que a formação da vontade coletiva deveria se configurar “como consciência operosa da necessidade histórica”.

Dessa forma, Gramsci está convocando uma análise materialista da vontade coletiva e chamando a atenção de que as vontades são concretamente determinadas. Como acompanharemos na sequência deste artigo, as escolas cívico-militares constroem uma visão de si que objetiva a formação de uma vontade coletiva que não supera os interesses econômico-corporativos (Gramsci, 2011a).

O apelo para estratégias de convencimento é fundamental para garantir a formação do senso comum coletivo. A articulação entre neoliberais e ultraconservadores busca estabelecer possibilidades para que a produção de consensos garanta não apenas a sua legitimidade, mas também a legitimidade do projeto hegemônico de sociedade. São estratégias muito próximas àquelas que Gramsci (2011a) observou em sua época, quando percebeu a necessidade que a classe dominante tinha de formar um determinado tipo de consenso ativo, articulado de cima para baixo. 

 

Deve-se pensar que, como para a Igreja Católica, tal conceito [o consentimento] não é só útil, mas necessário e indispensável: qualquer forma de intervenção a partir de baixo desagregaria de fato a Igreja (é o que se vê nas igrejas protestantes); mas, para os outros organismos, é a questão vital não o consenso passivo e indireto, mas o consenso ativo e direto, ou seja, a participação dos indivíduos, ainda que isso provoque uma aparência de desagregação e de tumulto (Gramsci, 2011a, p. 333).

 

A articulação entre as formações da vontade coletiva e do consenso ativo são, portanto, fundamentais para que a formação ético-moral capitalista se mantenha inabalável. Tendo essa compreensão, o discurso em torno das escolas cívico-militares objetiva a formação daquela consciência duradoura, ampla, capaz de gerar união de classe em busca de adaptações.

O Discurso presente nos principais documentos do Pecim (o Manual e as Diretrizes), como veremos adiante, transforma as escolas cívico-militares em chave para o sucesso de um projeto conservador de escola. Para isso, tratam de difundir uma realidade apaziguada, em que os conflitos sociais seriam superados com disciplina, patriotismo e respeito aos valores cívicos.

Sobre as estratégias de apaziguamento, Gramsci (2011a), ao analisar o avanço do fascismo sobre a Itália no início do século XX, alertava para os riscos da construção de um discurso antirregime e antissistema que só interessaria à classe dominante e diretiva. O discurso usado, em um primeiro momento, pelos conservadores brasileiros, para formar a vontade coletiva, foi justamente de negar, na aparência, apoio às medidas de austeridade econômica e se colocar ao lado da neutralidade política. Entretanto, essa estratégia foi se mostrando ineficiente na medida em que o empresariado capitalista passava a cobrar posicionamentos mais duros do então presidente Jair Bolsonaro.

Em uma entrevista concedida pelo então ministro da economia, Paulo Guedes, quando perguntado se via incompatibilidades entre o discurso neoliberal e governos ultraconservadores sua resposta foi imediata: tanto não há incompatibilidade como sugere complementariedade, pois os neoliberais atuariam para o “progresso” da sociedade de mercado e os ultraconservadores garantiriam a ordem desse progresso. A associação, portanto, entre o discurso de livre mercado e o ultraconservadorismo não vê qualquer problema na defesa da perda de liberdades individuais e censura, desde que os interesses econômicos não sofram interferências.

 

3 A “inevitabilidade” das mudanças como argumento para a formação de consensos

O Decreto 10.004/2019 define o Pecim como um “conjunto de ações direcionadas ao fomento e ao fortalecimento das Escolas Cívico-militares (ECIMs) a partir de modelo de gestão de excelência nas áreas educacional, didático-pedagógica e administrativa”, sendo o “fomento” e “fortalecimento”, respectivamente, o apoio técnico e financeiro prestados às escolas públicas estaduais, municipais e distritais que aderirem ao Programa e, no segundo caso, às escolas públicas que já adotam o modelo de gestão colaborativa cívico-militar e queiram padronizá-la ao modelo do Pecim (Brasil, 2019, art. 1, II).

O termo “militarização das escolas” tem sido utilizado por autores para definir, de forma abrangente, diferentes processos que culminam numa configuração de escola militarizada – diferenciando-se dos colégios militares do Exército –, na qual há interferência direta de militares na administração. Esse processo teve início em diversos estados do país, num momento anterior à criação do Pecim, como no Acre, Amapá, Amazonas, Ceará, Mato Grosso, Pará, Paraná, Rondônia, Roraima e Tocantins (Reis, 2019), sendo que alguns foram objeto de pesquisa, como Goiás.

Desde a criação do Programa, pelo Decreto 10.004, de 5 de setembro de 2019 (Brasil, 2019), foram elaborados dois documentos que versavam sobre as características, a implementação e a apresentação geral do Programa. São eles: o Manual das Escolas Cívico-militares e as Diretrizes das Escolas Cívico-militares.

O Manual foi desenvolvido pelo Ministério da Educação com a participação de representantes estaduais e municipais da educação de todos os estados e Distrito Federal, exceto Roraima, Piauí, Alagoas, Sergipe, Espírito Santo e Santa Catarina, caracterizando a ideia de participação massiva na elaboração do documento, segmentando o consenso em torno dos documentos. A região Norte contou com a maioria dos representantes (41), seguida pelo Centro-Oeste (24), Sul (23), Sudeste e Nordeste (19) e Distrito Federal (16). Teve como finalidade trazer orientações sobre o Pecim durante o ano de 2020, admitindo a possibilidade de serem feitas revisões conforme fosse apontada a necessidade por gestores das diferentes regiões do país (Brasil, 2020, p. 3).

Um ano mais tarde, em 2021, foi substituído pelo documento “Diretrizes das Escolas Cívico-militares” (Brasil, 2021), com 190 páginas, tendo sido suprimidas, ou alteradas, diversas partes do texto do Manual, o que foi feito, segundo o Diretor de Políticas para Escolas Cívico-Militares, Gilson Passos de Oliveira, a fim de atender algumas necessidades observadas a partir da implementação do Programa, a saber, de simplificação e adequação das Diretrizes (Brasil, 2021). Em nossa compreensão, o que parece ser simplificação vai se constituir em adequação da linguagem para garantir, ainda mais, a ampliação do consenso em torno da suposta importância dos documentos.

Analisamos esses documentos considerando-os como “produto e produtores de orientações políticas no campo da educação” (Shiroma; Campos; Garcia, 2005, p. 433) e compreendendo que sua divulgação gera mudanças ou inovações que podem ser percebidas no campo das práticas educativas, mas não de forma automatizada e integral, isto é, esses textos estão sujeitos à interpretação e recriação, por vezes até mesmo a não compreensão e a má interpretação.

De acordo com o Manual (Brasil, 2020), o documento foi apresentado e discutido durante a 1ª Capacitação dos Profissionais Participantes do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, que ocorreu em dezembro de 2019, em Brasília, capital federal. A sua elaboração teria sido aperfeiçoada por sugestões feitas durante e após o evento, até a versão final.

Onze documentos compõem o Manual, a saber: Regulamento das Escolas Cívico-militares; Projeto Político-pedagógico; Projeto Valores; Normas de Apoio Pedagógico; Normas de Avaliação Educacional; Normas de Psicopedagogia Escolar; Normas de Supervisão Escolar; Normas de Gestão Administrativa; Normas de Conduta e Atitudes; Normas de uso de uniformes e de apresentação pessoal dos alunos. A amplitude e diversidade desses documentos demonstram que o Manual se torna o documento mais importante do Pecim na medida em que trata desde normas, valores e princípios até a proposição do projeto político pedagógico da escola.

O texto analisado possibilita a compreensão de que o Programa, de forma geral, se apresenta como solução para um problema relativo às escolas públicas, especificamente àquelas que atendem às classes subalternas. A própria proposição de um Programa como esse parece deixar evidente que se parte do pressuposto de que “algo vai mal” e isso é demonstrado, tanto pela ênfase no baixo desempenho no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) (que se torna critério de escolha para implementação do Programa), como através de diferentes descrições da realidade atual, seja da sociedade como um todo, seja da escola pública no Brasil.

 

Analisando o contexto da sociedade atual, é possível perceber manifestações de violência, intolerância, discriminação, preconceito, corrupção, entre outros, e um interesse em se acumular bens materiais em detrimento do ser solidário, que procura ajudar o próximo. A inversão de valores aflora em muitos aspectos, e as instituições escolares, participantes desta sociedade, precisam, constantemente, educar os seus alunos para mudar esse cenário e não permitir que o incorreto passe a ser visto com normalidade. Nesse sentido, é importante pensar em estratégias que permitam incentivar a participação dos jovens cidadãos no processo de melhoria constante da sociedade na qual eles estão inseridos. Um caminho possível é a sensibilização dos estudantes para a preocupação e atenção com o outro, com a família, com os companheiros de escola, com a comunidade e com o meio ambiente (Brasil, 2020, p. 168).

 

Para retratar a realidade dos alunos brasileiros da atualidade, a fim de contribuir para o conhecimento do contexto socioeconômico, cultural e familiar dos jovens e adolescentes das Escolas Cívico-militares (Ecim), o documento apresenta alguns dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (IBGE, 2016) cujos participantes eram do nono ano do ensino fundamental de todo o país. Destaca-se a falta de acesso a pias em banheiros de escola (45,0% não têm acesso) e a infraestrutura direcionada ao esporte (17,7% frequentam escolas que têm quadras de esporte, material esportivo e outros), o não acompanhamento dos alunos por parte dos responsáveis (44,4% afirmaram que seus pais não têm o hábito de verificar as tarefas escolares), o consumo de bebidas alcóolicas (55,5% disseram já ter ingerido alguma bebida alcoólica) e drogas ilícitas (9% disseram já ter feito uso de alguma droga ilícita), o ingresso na vida sexualmente ativa (27,5% afirmaram ter tido relação sexual alguma vez).

A solução, isto é, o Pecim, constitui-se também de uma nova proposta de gestão, que consiste, principalmente, na inserção de militares nas diferentes esferas de atuação na escola. O Oficial de Gestão Escolar, que é um militar, deve estar ao lado do(a) diretor(a), e ser seu “assessor [...] nos assuntos referentes às áreas educacional, didático-pedagógica e administrativa” (Brasil, 2020, p. 13), tendo lugar de destaque na tomada de decisões e no planejamento das ações da escola. Subordinado a ele, e a toda a direção, está a gestão educacional, chefiada pelo Oficial de Gestão Educacional, que é o coordenador do Corpo de Monitores, também composto por militares.

O Oficial de Gestão Escolar deve estar em paridade de posição hierárquica com o(a) diretor(a) da escola, o que pode suscitar a pergunta: no que um militar pode contribuir para uma escola, ocupando esse lugar? O documento vai responder a essa questão à medida que se volta aos valores (e, no senso comum, a vida militar está associada a valores de prestígio) como o elemento principal dessa nova escola, que é exigida por essa realidade descrita no documento.

Dentro da gestão educacional se inserem outros militares: o Oficial de Gestão Educacional e os monitores, que são subordinados ao primeiro. O papel dos monitores é particularmente relevante porque acompanham, no dia a dia, os alunos na Ecim, sendo os militares de maior proximidade dos discentes. Segundo o documento, o papel deles é:

 

atuar na promoção de atividades que visem à difusão de valores humanos e cívicos que estimulem o desenvolvimento de bons comportamentos e atitudes do aluno e a sua formação integral como cidadão em ambiente escolar externo à sala de aula (Brasil, 2020, p. 37).

 

Os deveres dos monitores são bastante extensos e têm relação com a garantia da manutenção da boa convivência dos diferentes agentes no ambiente escolar, mas também com o constante acompanhamento dos alunos, o que sempre envolve os valores:

 

[...] II – melhorar o ambiente educativo, promovendo a convivência sadia entre os integrantes da comunidade escolar contribuindo assim na melhoria do processo de ensino e aprendizagem;

III – colaborar no desenvolvimento humano global dos alunos, particularmente nos aspectos afetivo, ético, moral, social e simbólico;

IV – desenvolver suas atividades sempre em prol da educação dos alunos, buscando um convívio harmônico e cooperativo com os demais profissionais da escola;

V – estimular a solidariedade entre o corpo discente e a satisfação e a alegria de se estar na escola; [...]

VII – assegurar o cumprimento das Normas de Conduta e Atitudes e desenvolver o espírito cívico, estimulando a prática dos valores e o culto aos símbolos nacionais, de maneira compatível com a idade dos alunos; [...] XII –promover a sensação de segurança no ambiente escolar;

XIII – contribuir para a diminuição dos índices de violência na escola, física, verbal ou contra o patrimônio;

XIV –coibir os casos de bullying e outras formas de discriminação no ambiente escolar;

XV – tratar os alunos com respeito e contribuir para a elevação de sua autoestima;

XVI – planejar e conduzir as formaturas e outros eventos cívicos na escola;

[...] XX – contribuir para a formação integral do aluno, ensinando-os a respeitar direitos e a cumprir deveres, necessários ao convívio sadio e agradável entre as pessoas e a vida em sociedade (Brasil, 2020, p. 37-38).

 

Procurando dirigir determinada formação ético-moral, associada a valores considerados adequados e esperados, um dos programas que compõe o documento é o  “Projeto Valores”, que consiste num conjunto de atividades que devem ser desenvolvidas pela Seção Psicopedagógica, com a participação de todos, e cuja aplicação deve ocorrer de forma transversal por professores, monitores e em diferentes espaços da escola, ficando a critério da mesma eleger um período e local para realizar as atividades. De acordo com Brasil (2020, p. 177), o Projeto Valores “tem como referência o conceito de Projeto Valores do Sistema Colégio Militar do Brasil”, mas as escolas podem adequar a elaboração de seus Projetos tendo em vista as demandas encontradas.

Apesar de deixar em aberto a forma como cada escola deve conduzir o Projeto Valores, sua função fica clara por meio da sua definição e do conjunto de prescrições do documento. Assim, a abertura de possibilidades favorece o incremento de conteúdos dos mais diversos, sejam eles voltados a ideais de inclusão, respeito à diversidade, sejam conteúdos que atendam a interesses de grupos específicos, como dos monitores, que são militares, e devem também participar da execução do Projeto.

A formação voltada aos valores tem uma frente, prevista pelo documento, bastante relevante, que diz respeito a posturas e ritos dentro da escola, característicos das Ecim e que advêm da tradição militar. Dá-se ênfase ao uso do uniforme, ao canto do Hino Nacional e à execução da ordem unida (formação e deslocamento em filas característica de agrupamentos militares, que obedecem a comandos e entoam canções):

 

Usar corretamente o uniforme da escola significa respeitar um dos símbolos que representam aquela instituição e que ajudam a identificá-la. Por isso, o aluno deve se orgulhar de usar o seu uniforme e se sentir como um divulgador da imagem da escola.

Cantar o Hino Nacional e reverenciar a Bandeira do Brasil são demonstrações de amor à pátria e contribuem para produzir um sentimento de pertencimento a um país que todos nós devemos nos sentir responsáveis por ajudar a construir. Se esse sentimento não começar na escola, dificilmente será despertado na fase adulta.

Cabe destacar que essas pequenas manifestações de civismo, patriotismo e respeito não são observadas apenas em organizações militares, mas nas diferentes áreas de uma sociedade organizada (Brasil, 2020, p. 129).

A ordem unida estimula no aluno a disciplina e o espírito de corpo, além de desenvolver a coordenação motora, a postura e a resistência (Brasil, 2020, p. 43).

 

Dessa forma, a formação ético-moral proposta, baseada em valores, se materializa também nos corpos dos alunos, educando suas posturas de forma a serem obedientes, responderem apenas ao que forem questionados, agirem de modo ensaiado, não havendo, portanto, espaço para a crítica. Gramsci (2011b), em americanismo e fordismo, apresenta que a formação moral dos cidadãos norte-americanos foi decisiva para a criação de um novo trabalhador, adaptado às mudanças impostas no sistema de produção fordista. Com isso, o autor sardo aponta como a formação moral é usada em favor do desenvolvimento do capitalismo, fato que pode ser observado na proposição do Pecim com a formação de valores como civismo, patriotismo e respeito (formar um cidadão resiliente às intempéries do capital).

A concepção de Educação para as Ecim, que engloba essa formação, está fundamentada na ideia de que as transformações do mundo deram origem à destruição de valores e a escola, como instituição formadora, deve responder a essas mudanças investindo, não apenas no ensino dos conteúdos científicos, que seriam insuficientes, mas, principalmente, no ensino dos valores. Diante disso, é delineada a concepção de educação para o Programa:

 

Na concepção de educação das Ecim, o ser humano deve ser formado para ser ativo, solidário, crítico, autônomo, construtor de sua cultura, de sua história e da sociedade em que vive. Para ele, é imprescindível o acesso a uma escola que, além de conhecimentos e habilidades, desenvolva valores e atitudes próprias ao cidadão, formando alunos responsáveis, criativos, atuantes e transformadores, que conheçam e lutem por seus direitos, mas que sejam determinados a cumprir os seus deveres. É nessa visão de aluno e de sociedade que se inserem as Ecim, tendo como referência os Colégios Militares, cujos fundamentos e educação, fortemente ancorados em valores éticos e morais, vem sendo trabalhados por mais de um século (Brasil, 2020, p. 98).        

 

Fica evidente, seja a partir da organização da escola, pela função dos monitores, pela fundamentação apresentada no documento ou pela adoção de ritos militares, que o Programa está alicerçado na ideia de que a instituição precisa se adequar a um novo aluno, que está inserido num contexto de muitas novidades tecnológicas e informacionais, mas também de destruição de valores, que poderá, no entanto, com a contribuição dos militares, em primeiro lugar, mas também a partir das mudanças prescritas pelo Programa, em relação à gestão, ser corrigido.

Assim, estabelece-se a ideia de que, na realidade atual e, principalmente, no contexto de vulnerabilidade social em que se encontram os alunos das Ecim, não bastam os conteúdos didático-pedagógicos, é preciso ensinar valores morais e deveres cívicos, e a melhor forma de se alcançar isso é se basear num modelo, apresentado como exitoso, que é o dos Colégios Militares, cuja disciplina e padronização são ligadas a um conjunto de práticas pautadas na gestão gerencial.

 

4 Pressupostos gerencialistas: a garantia do sucesso da empresa-escola

Harvey (2008) analisa a radicalização do neoliberalismo a partir dos anos 2000 com a ampliação da retirada de direitos dos trabalhadores, o que tem provocado um verdadeiro caos social. Para ele, esse caos configurou-se como cenário perfeito para o crescimento de discursos e práticas neoconservadoras promovidos por determinados setores do capital que buscam regular a sociedade tanto do ponto de vista econômico quanto ético-moral. Como resposta ao caos econômico provocado por políticas neoliberais, o neoliberalismo apresenta o diagnóstico de que o problema estaria no Estado e o mercado seria a resposta para a resolução desse problema, passando a ser parâmetro de qualidade.

O Estado gerencial (Newman; Clarke, 2012), iniciado com a exacerbação das políticas neoliberais na Inglaterra de Thatcher, anuncia que as políticas econômicas e sociais deveriam seguir a lógica privada, considerando o mercado como o modelo de eficiência a ser seguido. Newman e Clarke (2012) consideram que não existiu uma convergência única em torno da adesão dessa política gerencial para todos os países. No entanto, o que pareceu ser comum foi a tentativa de implementação de projetos políticos cujo objetivos foram realinhar ações de poder com relações econômicas e sociais.

O gerencialismo passa a ser muito mais do que uma política de gestão pública, ela vai se incorporar como um processo ideológico capaz de movimentar concepções, crenças e valores. A ideia de boas práticas de negócio regulada pelo mercado ganha força e assume, no Brasil, centralidade na reforma do Estado brasileiro promovida nos anos 1990. Nogueira (2005), no entanto, afirma que o sucesso dessa reforma não estaria na implentação de um Estado gerencial efetivo, mas nos princípios inerentes a ele e que passam a “povoar” as práticas e imaginário sociais. 

O impacto deste Estado gerencial sobre a escola é sentido especialmente no campo da gestão por resultados. A qualidade educacional só seria validada se houvesse adoção de ferramentas que mensurassem sua efetividade na prática escolar. Descentralização, autonomia e responsabilização se tornarão princípios muito caros ao gerencialismo nas escolas, e as avaliações externas a principal ferramenta de controle do sucesso dessas ações. Os documentos analisados do Pecim indicam que o discurso de que as escolas precisariam mudar para acolher novos valores passa pela adoção de práticas gerenciais, especialmente adoção de avaliações externas como métrica da qualidade educacional.

O Pecim vai defender, portanto, o uso da avaliação da qualidade da educação para sustentar a ideia da necessidade de implementação do Programa, produzindo, assim, consenso sobre sua relevância. O bom rendimento no Ideb configura, dessa forma, o sucesso da escola na qual o Programa foi desenvolvido.

 

As Escolas Cívico-Militares se fortaleceram no país em decorrência do anseio social por um ensino de qualidade, com melhores resultados do Ideb e no Enem, e pelo desejo da sociedade por mais oportunidades aos estudantes das redes estaduais e municipais, como ocorre com os alunos oriundos dos Colégios Militares (Brasil, 2020, p. 92).

 

O trabalho com metas, objetivos, iniciativas estratégicas são pressupostos gerencialistas, que fazem com que a escola se assemelhe a uma organização empresarial, que possa obter resultados, em que tudo deve ser mensurado e avaliado para que se atinja a melhoria do desempenho da instituição. Por esse motivo, o Ideb é enfatizado na justificativa do Programa, tornando-se um balizador da qualidade do ensino e atendendo às requisições por avaliação da aprendizagem. A avaliação deve permear o dia a dia na escola, como enfatiza a seção Normas de avaliação educacional:

 

A avaliação educacional deve ser entendida em três níveis: do discente, das práticas docentes e institucional. Nesse entendimento, permite-se observar, continuamente, a eficácia ou não das práticas e ações pedagógicas nas Ecim, promovendo intervenções de correção e melhorias das atividades e dos resultados. [...] por isso, os gestores e os professores das Ecim devem procurar implementar uma cultura de avaliação que tenha, na sua essência, a intenção de utilizar o processo avaliativo a favor da aprendizagem e não da simples verificação, que se encerra na divulgação da nota ao aluno. Isto é, um sistema de avaliação que tenha, como principal objetivo, ser um regulador e balizador do processo educacional (Brasil, 2020, p. 214).

 

A orientação para o desenvolvimento do Projeto político-pedagógico das Ecim consiste na elaboração de três Marcos:

 

a) Marco Desejado: expressa a opção e os fundamentos teórico-metodológicos para as Ecim, ou seja, aquilo que a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares (Secim) entende como sendo seu ideal de aluno, escola, sociedade, prática educativa, recursos diversos (humanos, materiais e simbólicos), entre outros.

b) Marco Atual: identifica, explicita e analisa a situação atual da escola, os seus problemas, as necessidades e as potencialidades presentes em sua realidade escolar, comparativamente ao conjunto de ideais apresentados no Marco Desejado.

c) Marco Estratégico: apresenta as propostas, as linhas de ação, os enfrentamentos e a organização da escola para avançar do Marco Atual para o ideal proposto pelo Marco Desejado (Brasil, 2020, p. 90).

 

Como última etapa do Marco Desejado, tem-se a definição de iniciativas estratégicas que atendam a cada um dos objetivos estratégicos, que são:

 

a) Melhorar a Gestão Escolar.

b) Melhorar o Ambiente Escolar.

c) Melhorar as Práticas Pedagógicas da escola.

d) Melhorar o Aprendizado e o Desempenho Escolar dos alunos (Brasil, 2020, p. 148).

 

Cada iniciativa estratégica, por sua vez, deve ter uma meta e uma proposta para o seu atingimento. O documento aponta uma sugestão de iniciativas segundo os objetivos já estabelecidos. Em relação ao objetivo estratégico “Melhorar a gestão escolar”, sugerem-se três iniciativas estratégicas:

 

1- Implantar as seções de Supervisão Escolar e Psicopedagógica com seus efetivos completos e qualificados; 2- Constituir, normatizar, capacitar os conselheiros e zelar pelo funcionamento regular do Conselho Escolar; 3- Possuir quantidade suficiente de professores, gestores e funcionários (Brasil, 2020, p. 148).

 

Além disso, tem-se o Plano de Ação, que compõe o Marco Estratégico, como resultante das iniciativas elaboradas no Marco Desejado. O documento apresenta um fluxograma para mostrar como deve ser o processo de realização do Plano de ação na escola, que consiste em oito passos, cuja interligação é representada por setas, sendo eles (Brasil, 2020, p. 158):

 

1- Sensibilizar os agentes educacionais;

2- Realizar o diagnóstico da escola;

3- Analisar os pontos fortes e oportunidades de melhoria;

4- Definir as metas;

5- Levantar ações para o atingimento das metas;

6- Definir prazos e responsáveis pelas ações;

7- Definir o rito de monitoramento;

8- Executar o rito de monitoramento.

      

A partir disso, observa-se grande ênfase no direcionamento de ações no dia a dia da escola. Ao sugerir o envolvimento de diversos agentes na elaboração do plano de ação, o documento evidencia que se trata de uma iniciativa plural e, por isso, que vai beneficiar a todos; no entanto, há um problema central nesse tipo de estratégia de definição de metas a perseguir: há um direcionamento de responsáveis e uma eleição de problemas a resolver, de modo que tudo que esteja fora desse escopo não tenha a mesma possibilidade de receber a devida atenção da escola, isto é, os problemas do dia a dia estão fadados a continuarem sendo desconsiderados, uma vez que existem metas pré-estabelecidas a serem atingidas, cuja prioridade é considerada máxima. Isso engessa o funcionamento da escola, embora o que se tente demonstrar é que vai colaborar para o melhor desempenho da instituição.

A lógica gerencialista presente no Programa se evidencia, principalmente, no item que trata da Gestão Administrativa, quando se fala em termos de “otimização de processos e gestão do tempo”. Para lidar melhor e de forma mais eficaz com as tarefas, o documento aponta que já foram desenvolvidos inúmeros aplicativos que ajudam o gestor a organizar as tarefas on-line, sendo possível compartilhá-las com a equipe:

 

As tecnologias e as diversas ferramentas disponibilizadas pelo desenvolvimento da administração de empresas e organizações colocaram à disposição dos gestores e de suas equipes métodos para gerenciar o tempo no ambiente profissional e otimizar os processos e as tarefas administrativas (Brasil, 2020, p. 52).

 

Na seção dedicada a tratar dos recursos, também é possível observar o emprego da lógica gerencialista, por meio da ideia, entre outras, de que é preciso alcançar metas, melhorando o desempenho da escola, mas sem que isso implique em aumento de gastos por parte do Estado:

 

A economia de recursos na execução dos processos administrativos, humanos ou materiais, deve ser observado sem que haja comprometimento na qualidade dos serviços prestados. Por isso, três conceitos devem ser considerados:

I - Eficiência: eficiência é entendida como a racionalização dos recursos, portanto, prestar o serviço com qualidade e menor custo. Pode-se considerar aqui, também, que o tempo é um recurso precioso que necessita ser bem aproveitado.

II - Eficácia: eficácia é uma medida que procura interpretar até que ponto os resultados foram alcançados. Tem o propósito de analisar as ações para resultados tanto em termos quantitativos quanto qualitativos e, dessa forma, seus indicadores correspondem a esses dois lados.

III - Efetividade: efetividade são os impactos produzidos pelos produtos ou pelos serviços prestados pelas organizações que atendem às necessidades e expectativas da sociedade (Brasil, 2020, p. 137-138).

 

Esses conceitos, explícitos no documento, são centrais no modelo de gestão gerencial e demonstram o que está por trás da forma de organização de uma escola que se adequa a ele. O tempo também aparece como recurso a ser submetido ao uso otimizado. Essas características compõem um conjunto de escolas chamadas eficazes, cujos estudos iniciais, que impulsionaram a conquista de espaços na agenda educacional num contexto de desgaste do Estado de bem-estar social, tiveram como precursor Coleman, através do chamado “movimentos das escolas eficazes”, nos Estados Unidos, no final da década de 1960 (Santos, 2012).

No documento, a sustentabilidade é evocada para ratificar a necessidade da economia de recursos da escola, de modo a alinhar uma iniciativa que está em destaque e é muito bem-vista pelo interesse público, a defesa dos ideais gerencialistas: “A escola deverá adotar medidas de sustentabilidade como forma de economizar recursos, evitar desperdícios e conscientizar a comunidade escolar a contribuir para minimizar os impactos ambientais” (Brasil, 2020, p. 138).

Assim se delineia a gestão da escola cívico-militar que, segundo o Programa, garante seu sucesso, isto é, permite atingir melhores resultados nas avaliações e melhora a qualidade da educação no Brasil. Como procuramos demonstrar, esse modelo de gestão é baseado em pressupostos gerencialistas, que aproximam o funcionamento das escolas ao de empresas, seja no estabelecimento de metas a serem atingidas, no uso de avaliações para medir resultados, na economia de recursos, seja no enfoque do desempenho.

 

5 Diretrizes da Escola Cívico-militar: a versão mais “consensual” do manual

Como já afirmamos, as Diretrizes são publicadas um ano após o Manual, tendo como novidade a formatação, o menor número de páginas e a substituição de alguns itens, bem como a mudança de termos, o que resultou num documento com conteúdo menos taxativo, mais consensual quando comparado ao Manual, que foi a primeira criação do Pecim. Ao observarmos essas mudanças, nos recordamos de Gramsci (2011), quando analisa o papel do consenso ativo na formação da diretividade da classe dominante. Para o autor, o consenso faz parte das estratégias das classes dominantes se tornarem, também, classe dirigente.

Em outras palavras, a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos: como domínio (coerção) e como “direção intelectual e moral” (consentimento ativo). O Estado, pois, nunca é pura força nem a transformação pode ser pura violência. Logo, um grupo dominante não é, só por isso, dirigente e um grupo dominado não está fadado à subalternidade. Considerando a importância do consenso para a construção da hegemonia, as mudanças que resultam nas Diretrizes tornam-se fundamentais para a introdução de perspectiva capaz de envolver professores, equipe pedagógica e pais em torno de um único projeto.

Inicialmente, cabe destacar as supressões de maior relevância quanto ao impacto na proposta do Programa, o que deverá ser apresentado em contraste com o que consta no Manual, a fim de que se tenha a percepção do processo por trás da elaboração do segundo documento.

Embora nenhum dos documentos dedique muitas páginas ao trabalho docente, que deveria ter centralidade num Programa que busca melhorar a qualidade da educação, as Diretrizes suprimem um artigo relativo a itens pelos quais o corpo docente deveria primar. No Manual, lia-se:

 

Art. 25. O Corpo Docente da escola deve primar pelo (a):

I – pontualidade e assiduidade;

II – capacitação profissional;

III – apresentação pessoal;

IV – dedicação;

V – equilíbrio emocional;

VI – responsabilidade; e

VII – respeito às diferenças (Brasil, 2020, p. 34-35).

 

Lembrando os pressupostos gerencialistas anteriormente mencionados, o docente, no Manual, era cobrado por sua pontualidade e assiduidade, bem como por sua apresentação pessoal e equilíbrio emocional. Esse artigo expressa, mais claramente, a tentativa de “normatização e controle do comportamento dos professores” (Accioly; Lamosa, 2021, p. 722).

Nas Diretrizes, porém, o item “equilíbrio emocional” é suprimido. Além disso, as 43 atribuições ao corpo docente anteriormente elencadas de forma detalhada no Manual, dão espaço para a possibilidade de que as Secretarias de Educação definam essas atribuições, das quais o documento participa apenas dando sugestões:

 

Art. 20. As atribuições do Corpo Docente são definidas, conforme estatutos e legislações das Secretarias de Educação dos entes federativos partícipes do Pecim. Sugere-se que os professores:

I – executem o planejamento de ensino sob sua responsabilidade;

II – mantenham permanente diálogo com o Corpo de Monitores, visando à formação integral dos alunos;

III – participem da escolha dos livros do Programa Nacional do Livro e do Material Didático para a sua disciplina; e

IV – participem dos Conselhos de Classe da escola e dos Projeto Valores, Apêndice C, e Projeto Momento Cívico, Apêndice D, sob a orientação da Supervisão Escolar (Coordenação Pedagógica) (Brasil, 2021, p. 16-17).

 

Sendo uma ação marcadamente militar, a ordem unida era prevista pelo Manual, tendo uma seção dedicada especialmente a ela. Nas Diretrizes, no entanto, essa seção deixa de existir, permanecendo apenas as formaturas. Isso representa uma mudança significativa porque retira uma atividade essencialmente militar do rol de atividades previstas pela Ecim, tornando-a menos “militar” e mais “cívica”, ao menos nesse aspecto.

O número máximo de alunos por sala também foi alterado. No Manual, prescrevia-se que, sempre que possível, a escola mantivesse o número máximo de 30 alunos por sala de aula (Brasil, 2020). Nas Diretrizes, a decisão sobre o número de alunos fica a cargo da Secretaria de Educação, que deve adequá-lo conforme as suas normas (Brasil, 2021, p. 25).

Outra supressão bastante significativa consistiu nos itens dedicados aos responsáveis de alunos. No Manual, 30 itens, relativamente extensos, foram dedicados aos deveres e direitos dos responsáveis. Nas diretrizes, porém, há apenas um artigo:

 

Art. 57. Recomenda-se que cada Ecim elabore o documento referente às condutas e às atitudes, de forma democrática, com a participação de todos os segmentos da unidade escolar. Para ajudar nessa tarefa, diversos subsídios de interesse são apresentados nas Orientações sobre Condutas e Atitudes dos Alunos (Brasil, 2021, p. 26).

 

Passando, portanto, de prescrições engessadas e numerosas, para a alternativa abrangente de que as condutas e atitudes dos responsáveis sejam elaboradas de forma democrática pelos diferentes segmentos da escola. Essa alteração modifica a forma como o Programa prevê a participação dos responsáveis na escola, uma vez que isso passa a ser decisão de cada Secretaria e, portanto, pode variar significativamente de escola para escola.

Nesse mesmo movimento, várias disposições sobre o regime escolar e os currículos foram excluídas das Diretrizes, se tornando um único artigo que recomenda o acompanhamento das legislações educacionais para o seu desenvolvimento:

 

Art. 59. O regime escolar e os currículos, a frequência, o acompanhamento da condução do ensino, a avaliação da aprendizagem, a recuperação, o apoio pedagógico, a educação especial e a habilitação ao ano seguinte serão definidos por cada escola, respeitando as legislações educacionais (Brasil, 2021, p. 27).                

 

Assim, renunciando a qualquer direcionamento sobre cada um desses itens, o que, no Manual, ocupava o total de oito páginas, o Programa deixa em aberto, nas Diretrizes, para que cada escola elabore as suas regras da melhor forma possível.

Há uma outra supressão bastante expressiva, em relação à forma como o comportamento do aluno deve ser considerado nas escolas. Consta, no Manual, um sistema de punições e recompensas, disposto no capítulo “Comportamento do aluno”, que apresenta uma classificação do comportamento em graus numéricos que começaria no Grau 8, com o ingresso do aluno na Ecim e o acompanharia por todo o curso, sendo diminuído conforme as repreensões, atividades de orientação educacional e suspensões que fossem sendo atribuídas a ele ou aumentado, conforme os fatores de melhoria de comportamento.

 

1) O comportamento dos alunos é classificado por grau numérico, de acordo com o seguinte critério:

a) Grau 10...............................................................EXCEPCIONAL

b) Grau 9 a 9,99...................................................................ÓTIMO

c) Grau 6 a 8,99.......................................................................BOM

d) Grau 5 a 5,99..............................................................REGULAR

e) Grau 3 a 4,99.......................................................INSUFICIENTE

f) Grau 0 a 2,99.......................................MAU (Brasil, 2020, p. 278).

2) Constituem fatores de melhoria de comportamento e recebem valores que irão influir no cômputo do grau do comportamento, consoante tabela abaixo:

a) Elogio coletivo.......................................................................0,10

b) Elogio individual ...................................................................0,30

c) Aluno aprovado.....................................................................0,50

d) Aluno aprovado com recuperação final................................0,20

e) Transcurso de tempo sem receber medida educativa:

Será acrescido 0,01 (um centésimo) ponto por dia no grau de comportamento do aluno que não tenha sofrido medida educativa no período de 30 (trinta) dias a contar da última medida educativa aplicada, até que alcance o grau numérico 10, exceto nos períodos de férias/recesso escolar (Brasil, 2020, p. 279).

 

Todo esse sistema de pontos foi retirado das Diretrizes, mantendo-se o chamamento à Secretaria de Educação, para a qual deve ficar a tarefa de supervisionar e coordenar as normas de condutas e atitudes desejáveis dos alunos, segundo as “Orientações sobre Condutas e Atitudes dos Alunos” contidas nas Diretrizes. No entanto, foi mantida uma breve orientação sobre recompensas, que ressalta a importância delas para reforçar os comportamentos desejados dos alunos e incentivar que eles internalizem os valores propostos pelo Pecim.

Ainda sobre comportamento e forma de se portar dos alunos, as regras sobre os cortes de cabelos, masculinos e femininos, também foram suprimidas nas Diretrizes. Se, antes, eram impostas regras muito semelhantes àquelas adotadas pelos colégios militares, agora não há nem menção ao termo “cabelo”, no documento.

Tratando de acréscimo, as Diretrizes passam a contar com um capítulo dedicado exclusivamente ao tema “Civismo na Ecim”. Nesse capítulo, o civismo é definido de três formas 1- “respeito aos valores de uma sociedade, a suas instituições e às responsabilidades e aos deveres do cidadão” (Brasil, 2021, p. 37); 2- “dedicação pelo interesse público ou pela causa da pátria, civilismo ou patriotismo” (idem) e 3:

 

atitudes e comportamentos que, no dia a dia, manifestam os cidadãos, na defesa de certos valores e práticas, assumidos como os deveres fundamentais para a vida coletiva, visando preservar a sua harmonia e melhorar o bem-estar de todos. O civismo é uma questão de cultura política e de filosofia política (Brasil, 2021, p. 37).

 

O trecho acima manifesta a intenção de manter uma proposta de formação ético-moral pautada em princípios como civismo e deveres do didadão. Quando Gramsci analisou as estratégias de formação ético-moral, percebeu que o capitalismo vai assumindo discursos que encontram no senso comum grande aceitação. As diretrizes, ainda que tenham suprimido alguns pontos considerados polêmicos (o que poderia abalar a formação de consensos), não abrem mão desses princípios ético-morais que vão justificar a própria existência do programa, como já vimos anteriormente.          

De forma geral, as supressões apresentadas, bem como algumas mudanças em termos utilizados, parecem ter uma característica em comum: as prescrições, que antes eram taxativas, engessadas, passam a ser “personalizáveis” conforme cada escola. Isso previne discordâncias, auxilia na formação de uma vontade coletiva em torno dessas escolas, já que abrange maiores possibilidades da forma como se pode delinear o Programa e, consequentemente, constitui-se numa estratégia consensual.

Nesse sentido, torna-se relevante pensar sobre os elementos que foram mantidos no documento. Isso talvez tenha ocorrido em razão destes não ameaçarem o consenso em torno do Programa, e comprometerem a constituição da vontade coletiva, como é o caso do Projeto Valores e dos ideais em torno do Civismo. Este primeiro não foi alterado, tendo sido mantido integralmente e, esse último, foi ampliado, apresentando maiores detalhes sobre qual é a interpretação desse valor para o Programa. O mesmo se aplica ao conteúdo apresentado nos itens anteriores, que dizem respeito, respectivamente, à inevitabilidade da mudança da escola em função das mudanças da sociedade e a gestão cujas bases são pressupostos gerencialistas.

 

6 Considerações finais

Ao analisar o papel da formação ético-moral na construção do consenso em torno do Programa das Escolas Cívico-militares, por meio da análise do Manual e das Diretrizes das Escolas Cívico-militares, observamos forte apelo à retomada de valores que supostamente teriam deixado de compor a centralidade do processo formativo escolar. Nesse contexto, a escola deveria ser o lócus de formação, mais voltada para o resgate desses valores do que para a produção e transmissão de conhecimentos científicos. Os documentos apresentam a ideia de que a escola estaria inserida numa nova era informacional, cobrando das instituições escolares a responsabilidade em adaptar-se para garantir a formação de um aluno de novo tipo.

Como solução ao problema, os documentos propõem um conjunto de prescrições que impactam diretamente a gestão da escola, através de pressupostos gerencialistas. As respostas oferecidas também incorporam o resgate de valores cívicos e morais, constituindo uma nova racionalidade formativa, que associa gerencialismo e formação ético-moral ultraconservadora e neoliberal.

Sob perspectivas neoliberais e ultraconservadoras – como vimos nas duas categorias levantadas a partir dos documentos analisados –, com ênfase na formação ético-moral, as escolas cívico-militares objetivam a criação de uma vontade coletiva que não supera os interesses econômico-corporativos e, assim, procuram construir o consenso em torno do Programa das Escolas Cívico-militares.

O Pecim, portanto, não oferece ferramentas para a melhoria da qualidade da educação, a despeito do que se tenta, num âmbito mais superficial, demonstrar por meio dos documentos. O mesmo pode-se afirmar em relação aos problemas históricos que fundamentam os desafios contemporâneos na área educacional do país.

O que se pode concluir é que os objetivos gerenciais e ético-morais ultraconservadores e neoliberais contribuem para a manutenção da formação ético-moral capitalista e que os discursos neoliberais e conservadores se complementam neste sentido.

Foi também possível observar que os documentos buscam construir consenso em torno do resgate de valores ético-morais, consolidando uma proposição de formação ético-moral neoliberal e ultraconservadora.

 

Referências

 

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[i]  O presente artigo é uma adaptação da dissertação intutulada “Escolas cívico-militares e os fundamentos para a construção do consenso: entre o discurso da avaliação como ferramenta de mensuração da qualidade educacional e da formação moral”, elaborada por Giulia Pagani Galvão e orientada por Fabiano Antonio dos Santos, apresentada em 2023 ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul para obtenção do Título de Mestre.

 

   Artigo recebido em: 21/10/23

   Artigo aprovado em: 14/08/24

[ii] Contribuições da autora: conceituação; curadoria de dados; análise formal; investigação; metodologia; administração do projeto; escrita - rascunho original e escrita análise e edição.

[iii] Contribuições do autor: conceituação; curadoria de dados; análise formal; investigação; metodologia; administração do projeto; escrita - rascunho original e escrita análise e edição.