e-ISSN 1984-7246  

Contribuições do marxismo-leninismo na constituição da educação socialista de Nadezhda Krupskaya[i]

 

Fernanda Maria Caldeira Azevedo[ii]

Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Curitiba, PR – Brasil  

 lattes.cnpq.br/2240701218669224

 orcid.org/0000-0002-7086-6016

fmariacaldeira@gmail.com

 

 

Lucas Barbosa Pelissari[iii]

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Campinas, SP – Brasil

lattes.cnpq.br/8723394397607851

orcid.org/0000-0003-3659-5424

lucasbp@unicamp.br

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Contribuições do marxismo-leninismo na constituição da educação socialista de Nadezhda Krupskaya

 

Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar a concepção socialista de educação presente na obra de Nadezhda Krupskaya, situando-a no âmbito da corrente leninista do marxismo. A perspectiva pedagógica da Revolução Russa, leito no qual se insere o pensamento de Krupskaya, privilegiou a tomada de consciência da totalidade social e ficou sintetizada no conceito de politecnia, que possui particularidades quando trabalhado pela teoria marxista. Partindo desse pressuposto, foram examinadas 25 publicações da intelectual e dirigente comunista. Para isso, foi utilizada a metodologia da análise de conteúdo e tomada por base uma matriz categorial composta pelas seguintes noções teóricas: politecnia, trabalho, sistema de complexos, mulher e democracia. Foram, então, identificadas articulações entre essas noções, das quais emergem as dimensões da educação socialista de Krupskaya: a) o caráter ideológico da educação, o trabalho e a questão das mulheres; b) o papel e a natureza do Estado. Em relação ao primeiro aspecto, a autora evidencia a centralidade da questão da mulher nas relações educativas. No que se refere ao segundo, concluímos que sua concepção é influenciada diretamente pelo debate leninista sobre o Estado.

 

 

Palavras-chave: Krupskaya; educação socialista; marxismo-leninismo.

 

 

 

 

Contributions of Marxism-Leninism in the constitution of socialist education by Nadezhda Krupskaya

 

 

Abstract

The objective of this paper is to analyze the socialist conception of education present in Nadezhda Krupskaya's work, situating it within the framework of the Leninist current of Marxism. The pedagogical perspective of the Russian Revolution, in which Krupskaya's thought is embedded, privileged the awareness of the social totality and was synthesized in the concept of polytechnics, which has particularities when worked through Marxist theory. Based on this assumption, 25 publications by the intellectual and communist leader were examined. For this purpose, the methodology of content analysis was used, and a categorical matrix composed of the following theoretical notions was taken as the basis: polytechnics, labor, system of complexes, women, and democracy. Articulations between these notions were then identified, from which the dimensions of Krupskaya's socialist education emerge: a) the ideological character of education, labor, and the women's question; b) the role and nature of the State. Regarding the first aspect, the author highlights the centrality of the women's question in educational relations. As for the second, we conclude that her conception is directly influenced by the Leninist debate on the State.

 

 

Keywords: Krupskaya; socialist education; marxism-leninism.

 

 

 

1 Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar a concepção socialista de educação presente na obra de Nadezhda Krupskaya, situando-a no âmbito da corrente leninista do marxismo. Especificamente, buscamos compreender a influência teórica do leninismo na elaboração político-pedagógica de Krupskaya, à luz dos desafios políticos com os quais se depararam os bolcheviques no processo revolucionário de 1917.

A Revolução Russa trouxe possibilidades e perspectivas para uma nova organização da escola, abrindo grandes contribuições teóricas para o debate pedagógico. O período imediato após a revolução contou com uma profunda transformação de métodos, centrada na capacidade de contemplar os conhecimentos de alto nível da ciência, formando estudantes para o trabalho produtivo pautado na consciência de classe e na edificação de um Estado socialista.

A proposta desenvolvida pelo Comissariado do Povo para a Educação (Narkompros), do qual Krupskaya foi figura nuclear, consistia na educação multilateral, na qual os estudantes se aprofundariam na produção, nas técnicas e na ciência, e não apenas obteriam conhecimentos fragmentados para a escolha profissional individual. A concepção revolucionária privilegiou a tomada de consciência da totalidade social e sua compreensão como processo articulado, sintetizada na perspectiva politécnica.

Partimos do pressuposto de que há, na teoria científica marxista, uma concepção particular da politecnia. Tal concepção é produto do próprio desenvolvimento do marxismo como teoria, mas, principalmente, das experiências de luta travadas pelos trabalhadores no bojo das revoluções dos séculos XIX e XX. Esses contextos possibilitaram a crítica profunda aos modos de pensar até então hegemônicos nas sociedades burguesas e, consequentemente, produziram rupturas no âmbito da Pedagogia. É interessante perceber, nesse sentido, que o desenvolvimento da noção marxista de politecnia tem como fio condutor a construção da crítica ao Estado capitalista, fundamentalmente nas seguintes obras: A Ideologia Alemã (1846), Manifesto Comunista (1848), O Capital – Livro 1 (1867), Crítica do Programa de Gotha (1875) e Instruções aos Delegados do Conselho Central Provisório da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) (1886) (Dias, 2015; Machado, 1989; Moura; Lima Filho; Silva, 2014; Quintaneiro et al., 2003; Rodrigues, 1998).

A educação politécnica, no entanto, encontra-se, nos textos citados, ainda em estado prático[1] e com a função de confrontar conteúdos oriundos de pedagogias liberais. O mesmo termo era mobilizado, no século XIX, para atribuir sentido a diversas outras concepções pedagógicas, como, por exemplo, a unificação escolar burguesa de base durkheimiana; o tecnicismo produtivista, de corte liberal; e a anarquista, orientada pelas experiências de Paul Robin e Sébastien Faure. Análises dessas concepções podem ser encontradas, respectivamente, em Machado (1989), Frigotto (1984) e Gallo (1993). O alçamento da noção de politecnia, apresentada nos textos políticos de Marx do século XIX, a status de conceito passou por um longo e detalhado trabalho teórico, que envolveu as contribuições de Lenin e Gramsci e as experiências educacionais postas em prática pelas diversas revoluções do século XX.

Mas de que forma, o marxismo-leninismo, gestado no seio da luta revolucionária bolchevique das décadas de 1900 a 1920, contribuiu para esse trabalho teórico? Mais especificamente, qual a influência de Krupskaya nessa tarefa, visto ser uma das principais dirigentes comunistas e dada sua vasta contribuição escrita a respeito da Pedagogia? Vale salientar que Krupskaya ocupou a cadeira de presidente da Seção Científico Pedagógica da Comissão Estatal Científica, órgão responsável por criar os programas escolares para o sistema único de educação da União Soviética. Seu papel articulou intensa atividade prática com formulação teórica, originando elaborações ainda pouco conhecidas e, principalmente, analisadas e debatidas no campo pedagógico brasileiro (FREITAS, 2017).

Buscamos, então, cumprir o objetivo proposto examinando o lugar da obra de Krupskaya no desenvolvimento do conceito marxista de educação politécnica. O artigo inicia com uma discussão geral sobre a politecnia na acepção leninista. Em seguida, com base na análise de conteúdo (Franco, 2008) de 25 publicações da autora, identificamos duas dimensões de sua educação socialista: a) o caráter ideológico da educação, o trabalho e a questão das mulheres; b) o papel e a natureza do Estado. Concluímos com considerações finais.

 

2 A politecnia como eixo da educação leninista

A discussão metodológica de Althusser (2017) a respeito do trabalho teórico nos permite compreender o movimento complexo que caracteriza a elaboração de conceitos no âmbito de uma teoria em formação. O autor discute criteriosamente as duas operações que, articuladas, permitem dar forma adequada a um conteúdo teórico existente em estado prático: “a retificação crítica da antiga forma e a produção da nova” (Althusser, 2017, p. 105). No caso do marxismo, esse processo fundou uma disciplina filosófica do conhecimento, caracterizada pelo Materialismo Dialético, que ampliou o campo de abrangência das Ciências Sociais e arrancou das concepções burguesas a ideologia operária propriamente revolucionária.

A base para esse desenvolvimento teórico reside em textos fundadores do próprio marxismo, escritos por Marx. Mas não haveria outra fonte que teria permitido prolongar os efeitos de uma elaboração inicial sobre a educação politécnica ou sobre qualquer conceito marxista? Althusser responde da seguinte forma:

 

A prática dos partidos políticos comunistas pode, com efeito, conter, no estado prático, determinados princípios marxistas ou algumas das suas consequências teóricas que não se encontraram nas análises teóricas existentes. Do ponto de vista do próprio conteúdo teórico, a prática política organizada da luta de classes pode encontrar-se, em determinados casos e em determinados pontos, e por vezes profundamente, em avanço em relação à teoria existente. Podemos, portanto, ‘extrair’ da prática política elementos teóricos que ela contém, e que estão em avanço relativamente ao estado da teoria existente (Althusser, 2017, p. 107-8).

 

Esse é o caso não só do conceito de politecnia, mas, de modo geral, de uma Pedagogia marxista gestada no seio das experiências revolucionárias dos séculos XIX e XX. Mostramos, em outra oportunidade (Pelissari, 2020), que duas obras de Lenin cumprem papel decisivo para o início de um trabalho teórico no campo pedagógico, ambas anteriores à Revolução Russa. Em Materialismo e Empiriocriticismo (1908-09), Lenin demarca com o revisionismo esboçando o caráter científico da educação do proletariado e reforçando a dialética marxista como método de superação do idealismo, que dissocia o plano cultural da realidade concreta. Já em Marxismo e Revisionismo (1908), apresenta o nexo fundamental entre o processo educativo das massas operárias e a elevação dos níveis de consciência direcionada à tomada do poder; o pano de fundo dessa discussão é justamente o conceito marxista-leninista de Estado, definido como instância organizadora do poder das classes dominantes.

Alguns anos depois, mas ainda antes da revolução, a principal discussão sobre educação focava a relação entre a teoria e a prática. Para Machado (2020), esse debate aprofundou em Lenin a importância dos saberes científicos em relação orgânica com o trabalho produtivo. Ou seja, “esse vínculo subentende a subordinação da atividade de trabalho às necessidades e desafios da aprendizagem” (Machado, 2020, p. 24).

A preocupação dos revolucionários russos com temas como a erradicação do analfabetismo, ampliação do parque industrial-produtivo e elevação dos índices de escolarização permitia produzir um vínculo orgânico entre educação e política, que transpunha em muito um debate formal sobre a didática. Nessa perspectiva, a educação está inserida na luta de classes: se as ideias dominantes são as ideias da classe dominante, os interesses do proletariado são antagônicos aos da burguesia. Oyama (2014) resgata um discurso de Lenin em 1919, em que disserta sobre a não neutralidade da escola:

 

Uma das hipocrisias da burguesia é a crença segundo a qual a escola pode ser apartada da política. Vocês sabem tão bem quão falsa essa crença é. A própria burguesia, a qual advoga esse princípio, faz sua própria política burguesa a pedra angular do sistema escolar, e tenta reduzir a escola ao treino de servos dóceis e eficientes à burguesia, reduzir a educação universal para o fim de treinar servos dóceis e eficientes para a burguesia, ou escravos e instrumentos do capital. A burguesia nunca pensou em dar à escola o sentido de desenvolver a personalidade humana (Lenin, 2002, p. 1. apud Oyama, 2014, p. 53).

 

Já nesse período que segue a Revolução Russa, algumas questões precisavam ser resolvidas com urgência. As condições da Rússia eram de pobreza e devastação em consequência da guerra. Um dia após a derrubada do governo provisório de Kerensky, foi realizado o II Congresso dos Soviets de toda a Rússia e instituído o Conselho dos Comissários do Povo, seguido da criação do Narkompros. Daí em diante, abriu-se um profundo debate sobre as questões pedagógicas, levando em consideração as concepções do regime anterior e os pontos de vista liberais, postos em análise crítica.

Com base nesse ponto de partida, o governo dos sovietes implementou dois conjuntos de ações fundamentais que ficaram consubstanciadas no Programa do Partido para a educação de 1919: 1) Iniciativas de erradicação da pobreza; 2) Participação da educação no plano de reconstrução econômica após o fim da guerra civil (Oyama, 2014).

Quanto à erradicação da pobreza, era necessário um investimento no combate ao analfabetismo, elevando o nível cultural e técnico da população para uma reconstrução econômica da sociedade. Portanto, uma das primeiras medidas foi um decreto no final de 1918, que mobilizou a população que sabia ler e escrever a se comprometer com o trabalho de alfabetização. Em 1919, foi emitido outro decreto, com o objetivo de incentivar toda a população entre oito e cinquenta anos de idade a se alfabetizar em russo e/ou sua língua materna. Foram fornecidas condições estruturais: redução da jornada de trabalho em duas horas, com salário integral; vários espaços foram transformados em sala de aula como salões, clubes, fábricas etc.; além da disponibilização de centenas de títulos da literatura clássica nacional (Oyama, 2014).

Já no que se refere especificamente à participação da educação no plano de reconstrução econômica, o debate era atravessado pela exigência de impulsionar a indústria e a agricultura em bases tecnológicas mais avançadas. O principal ponto propulsor foi a articulação entre educação e trabalho diante da construção de relações de produção socialistas, com um programa capaz de oferecer conhecimentos científicos e organicidade com a vida e a sociedade. Nesse sentido, “o programa pedagógico revolucionário propugnava criar vínculos relacionais entre educação geral, de cunho humanístico, e trabalho socialmente útil, isto é, defendia a ligação orgânica da teoria com a prática” (Bittar; Ferreira Jr., 2015, p. 7). A educação deveria unir as atividades pedagógicas com uma nova organização social, buscando romper a cisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, considerada o núcleo da divisão técnica do trabalho capitalista.

Tais questões ficam evidentes no discurso de Lenin durante o III Congresso de toda a Rússia da União da Juventude Comunista em 1920 (Lenin, 1920, p. 1):

 

Só transformando radicalmente o ensino, a organização e a educação da juventude conseguiremos que os esforços da jovem geração tenham como resultado a criação duma sociedade que não se pareça com a antiga, isto é, da sociedade comunista. Por isso precisamos de nos deter pormenorizadamente naquilo que devemos ensinar e como deve aprender a juventude se quiser realmente justificar o nome de juventude comunista, e como prepará-la para que seja capaz de acabar de construir e completar aquilo que nós começamos.

 

Três anos depois, já bastante debilitado e próximo da morte, Lenin recoloca essa questão, agora buscando resolver o problema dos baixos níveis educacionais entre os camponeses: “Como desenvolver a instrução pública e desencadear no campo uma ‘revolução cultural’? Como lutar contra a monstruosidade burocrática herdada do aparelho de Estado czarista?” (Lenin, 2023 apud Linhart, 1976, p. 62).

Para Lenin, a resposta a esses problemas indicaria as possibilidades de se apropriar dos métodos tayloristas subordinando-os aos princípios do socialismo[2]. Segundo Linhart (1983, p. 64), o que se propõe no detalhe é: “promover o corpo de professores primários, desenvolver a educação primária, organizar o ‘apadrinhamento da população do campo pelos operários das cidades’, organizar instituições cooperativas e servir dos laços comerciais para estabelecer relações culturais etc.”

Esses pontos permearam o debate posto pelo Narkompros, possibilitando o aprofundamento das elaborações sobre a pedagogia socialista. O Narkompros foi presidido por Anatoli Lunatcharsky e teve como uma das primeiras medidas reunir o corpo que iria formar o Comissariado. Foram nomeados nessa ocasião Krupskaya, Pokrovsky[3] (1868–1932) e Lepshinsky[4] (1868–1944) que, em 1917, elaboraram o documento Princípios Fundamentais da Escola Única do Trabalho, base da Declaração sobre a Escola Única do Trabalho aprovada pelo Comitê Central do Partido no ano seguinte.

Posteriormente, participaram do Comissariado Blonsky[5] (1884–1941), Menzhínskaia[6] (s.d), Shatskiy[7] (1878–1934), Pinkevich[8] (1883–1937) e Pistrak (1888-1940). Após 1931, destaca-se Makarenko que, embora estivesse desde o início dos processos revolucionários trabalhando com as questões da educação, se encontrava na Ucrânia e não na Rússia. Lunatcharsky apontou Krupskaya como a essência do Comissariado, tendo uma participação fundamental na organização da educação soviética. Nesse contexto, a Escola Única do Trabalho foi desenvolvida pelo conceito de educação politécnica amparada pelo princípio da coletividade (Felicio, 2016).

De acordo com Freitas (2009), o Narkompros em 1918 instituiu como experiência principal as Escolas Experimentais-Demonstrativas, sendo uma delas as Escolas-Comunas do tipo internato. Essas instituições tinham a tarefa de promover inovações nas escolas regulares, a partir dos princípios básicos da Escola Única do Trabalho. Pistrak foi responsável por conduzir uma dessas escolas, tendo oportunidade de criar novas formas e conteúdos educacionais na perspectiva socialista. Para o intelectual, a escola para o trabalho deveria ser orientada pelo conhecimento do mundo natural e social sob a perspectiva dialética, havendo uma dimensão política nas concepções pedagógicas para uma prática revolucionária.

O Narkompros criou, então, a Comissão Estatal Científica, incumbida de elaborar os novos programas educacionais. Dentro da comissão se encontrava a seção científico-pedagógica presidida por Krupskaya. Pistrak assumiu a presidência da subcomissão para elaboração dos programas para a escola de segundo nível (Freitas, 2009).

Nadezhda Krupskaya defendia centralmente uma escola politécnica que visasse a compreender a realidade em suas múltiplas determinações e relações, pelo estudo e pelo trabalho. Ela se aprofundou nos problemas do ensino politécnico a partir do método de complexos, definido como

 

[...] a compreensão, o estudo e a vivência dos princípios e dos vários ramos da produção, posto que a produção é altamente integrada e organizada. Para ilustrar o que seria o ensino politécnico, Krupskaia (Krupskaia 27 [publicado em 21 de março de 1925], s.d.a.) deu o exemplo do processo de aprendizagem que ocorreria na indústria têxtil. Assim, numa sociedade com a produção integrada, é preciso que haja alunos que tenham o conhecimento do conjunto da produção; que compreendam os princípios e a natureza do processo técnico; que possuam um conhecimento generalizado dos mecanismos técnicos envolvidos; da integração do trabalho em sua totalidade. Isto é, tenham um conhecimento politécnico (Oyama, 2014, p. 62).

 

Pistrak (2018) desenvolve essa perspectiva e a enriquece, defendendo a escola como um centro cultural baseado no trabalho social e permeado pelas novas relações sociais do período de transição. A fórmula de uma escola como “superestrutura cultural edificada sobre um determinado modo de produção” (Pistrak, 2018, p. 149) colocava, agora, essa instituição sob a direção política do proletariado. Esse radical processo de transformação impôs a inclusão do trabalho intelectual como instrumento de manutenção das conquistas da revolução e da tomada do poder. Na educação burguesa, segundo a visão de Pistrak (2018), essa função não é negada, mas serve a uma classe específica e, por isso, é tão difícil de ser compreendida, mesmo entre os professores progressistas. O papel cultural da escola é, no novo cenário, incomparavelmente maior, de onde surge uma diferença prática: para o marxismo-leninismo, é impossível de se efetivar sem a ligação com o trabalho e a construção socialista.

Embora a educação politécnica não tenha sido plenamente aplicada na União Soviética, foi a base de seu sistema escolar, avançando para o fim do analfabetismo, que era preponderante nos primeiros anos após a revolução. Esse cenário tornou a educação universal, contribuindo para os avanços econômicos e influenciando o debate sobre educação politécnica entre educadores daquele contexto.

3 Construção teórica da educação em Krupskaya

Ainda há poucos esforços de análise do trabalho de Krupskaya no meio intelectual brasileiro, sejam eles focados no tema da educação ou com abrangência geral.[9] As sínteses de Oyama (2014), Corrêa-Lodi (2016) e Freitas (2019) nos indicaram sensíveis transformações na concepção educativa da autora a partir da Revolução Russa de 1917. Além disso, foi possível observar dois grandes grupos de textos escritos por ela que, de alguma forma, tratam de educação. O primeiro grupo apresenta elaborações mais gerais, que dialogam com diversas outras temáticas. Já o segundo é composto por teorizações sistematizadas do conceito de politecnia. Com isso, selecionamos para exame 25 textos de Krupskaya, divididos conforme o quadro 1.

O procedimento de investigação teve por base a Análise de Conteúdo orientada por Franco (2008). A própria etapa de pré-análise, calcada em conclusões já obtidas pelas pesquisas que citamos anteriormente, indicou uma matriz categorial composta por cinco noções teóricas: politecnia, trabalho, sistema de complexos, mulher e democracia. Tais noções estruturam, em linhas gerais, o pensamento pedagógico de Krupskaya e a permitem fundamentar uma concepção geral de educação socialista.

 

Quadro 1 - Elaborações analisadas nas obras da Krupskaya

 

Escritos até 1916

 

Escritos de 1917 em diante

 

 

 

 

 

Grupo 1: elaborações gerais

 

 

A mulher e a educação das crianças (1899)

Deve-se ensinar “coisas de mulher” aos meninos? (1909-1910)

Ao congresso dos professores  públicos (1913)

Materiais para a revisão do programa do partido (1917)

Proclamação do Comissário do Povo para a Educação (1917)

Deliberação do comitê executiva central de toda a Rússia (1918)

Declaração sobre os princípios fundamentais da Escola Única do Trabalho (1918)

Guerra e Maternidade (1920)

A trabalhadora e a religião (1922)

O Partido Comunista e a trabalhadora (1924)

Uma palavra sobre educação de classe (1926)

A religião e a mulher (1927)

As operárias e camponesas nos conselhos (1927)

Sobre o congresso das operárias e camponesas (1927)

Caminhos para a emancipação da mulher oriental (1928)

Apenas no país dos sovietes a mulher é livre e tem direitos iguais (1935)

 

 

 

 

 

 

Grupo 2: teorização sobre politecnia

 

 

 

 

 

 

 

 

Educação pública e democracia (1915)

 

Tareas de la instrucción professional (1918)

Tesis sobre laescuela politécnica (1920)

As tarefas da escola do primeiro grau (1922)

Sobre a questão do trabalho socialmente necessário da escola (1926)

Instrucción Politécnica (1929)

Sobre o politecnismo (1929)

A escola politécnica e a organização dos pioneiros (1932)

O papel de Lenin na luta pela escola politécnica (1932)

Fonte: Elaborado pelos autores, 2023.

 

Abordaremos, aqui, duas articulações entre essas categorias, sem esgotar as possibilidades de análise e de vínculos entre os eixos gerais da concepção da autora, que, como mostram Bittar e Ferreira Jr. (2015), Corrêa-Lodi (2016) e Pelissari (2021), é tributária do marxismo-leninismo. As relações entre, de um lado, as cinco categorias identificadas na pré-análise e, de outro, a educação leninista tal como discutida na seção anterior constituem, portanto, o movimento analítico-metodológico aplicado na investigação.

3.1 Educação, trabalho e a questão das mulheres

Em primeiro lugar, partimos da constatação, relativamente bem conhecida, de que Krupskaya tem uma relevante contribuição sobre o tema das desigualdades das mulheres no capitalismo. Queremos demonstrar, entretanto, que esse não é um tema paralelo ao da educação e não é um fragmento setorial nos debates da época. Ao contrário, faz parte da compreensão de uma conjuntura econômica, política e social da luta bolchevique, situando a relação de opressão e exploração das mulheres no modo de produção.

Krupskaya escreveu, formulou e debateu sobre a condição das mulheres na sociedade de classes, abordando o tema de maneira direta e também transversal (Azevedo, 2023). Essa perspectiva teve impacto no sistema educacional soviético, criando condições para avançar em um projeto de emancipação das mulheres, a partir de uma sociedade fundamentada em valores e estruturas diferentes do sistema capitalista (Pereira; Oliveira, 2021).

Em 1905, o principal instrumento de propaganda bolchevique, o jornal Iskra, começa a publicar artigos sobre as condições das operárias (Gonzáles, 2010). Um dos primeiros números a conter textos dessa natureza apresenta um capítulo destinado ao debate da educação, As mulheres e a educação das crianças. O artigo é escrito por Kruspkaya e aborda a continuidade da reflexão sobre a condição das mulheres russas. A autora enfatiza que a relação entre os pais e as crianças era vista apenas como uma condição de manter a vida, pois as mulheres, responsáveis pelas crianças, não recebiam apoio adequado para a educação de seus filhos. Devido às necessidades econômicas, as mulheres trabalhavam fora de casa, resultando na responsabilidade de deixar as crianças pequenas sob cuidados dos idosos da família ou dos irmãos mais velhos.

Na avaliação da autora, mesmo quando as crianças camponesas tinham oportunidade de frequentar uma escola, enfrentavam dificuldades em continuar seus estudos devido à necessidade de trabalhar e assumir responsabilidade pelo cuidado dos irmãos mais novos. As mulheres tinham limitações significativas em relação ao que podiam ensinar aos seus filhos, contribuindo assim para a perpetuação do analfabetismo.  De acordo com Krupskaya (2017a), devido às condições da época, essas mulheres eram caracterizadas como impotentes e oprimidas. Isso enfatiza que a educação realizada no seio da família era inadequada.

Sob a perspectiva pedagógica, as escassas escolas que estavam disponíveis focavam no ensino do básico, concentrando-se principalmente no domínio da leitura, da escrita e de conceitos iniciais da matemática. Nas palavras da autora:

 

É preferível para o governo manter o povo na ignorância e, de certa forma, nas escolas é proibido falar às crianças e dar-lhes livros para ler sobre como outros povos conquistaram a sua liberdade, quais são suas leis e regulamentos; proíbem explicar porque algumas nações têm determinadas leis, e outras nações leis diferentes, e porque algumas pessoas são pobres e outras ricas. Em poucas palavras, nas escolas é proibido dizer a verdade, os professores só devem ensinar as crianças a reverenciar a Deus e aos czares. Para evitar que algum professor mencione alguma verdade, há monitoramento severo das autoridades e, para ocupar o cargo de professor, colocam-se aquelas pessoas que não sabem de muita coisa (Krupskaya, 2017a, p. 23).

 

Nesse contexto, destaca-se a função ideológica da escola, que atua como uma instituição que impede os educandos de desenvolverem uma consciência de classe dentro das estruturas sociais burguesas. Como resultado, a escola acaba por reproduzir as relações de dominação e exploração características do sistema capitalista.

Krupskaya examinou a situação em que as crianças de cinco a oito anos estavam envolvidas com o trabalho industrial, apesar de a legislação permitir que isso ocorresse apenas a partir dos 12 anos. A autora expõe as condições prejudiciais à saúde das crianças e os impactos negativos para o seu desenvolvimento intelectual, físico e moral.

A intelectual também aborda a sobrecarga de trabalho enfrentada pelas mulheres, que após uma jornada exaustiva no trabalho fabril ainda eram responsáveis por todas as tarefas domésticas, incluindo o cuidado com as crianças. Naquela época, as mulheres recorriam à papoula (uma substância que contém ópio) para acalmar as crianças, possibilitando-lhes um breve alívio nas obrigações domésticas ou um curto período de descanso. Essas situações são descritas pela autora em um texto publicado entre 1909 e 1910, intitulado Deve-se ensinar “coisas de mulher” aos meninos? (Krupskaya, 2017b).

No mesmo texto, a autora analisa um relatório sobre o ensino de bordado em uma escola mista. No parecer, o especialista observa que os meninos se saíam bem nos trabalhos com costura. Diante isso, Krupskaya levantou a seguinte questão: “Deve-se ensinar aos meninos aqueles trabalhos que até então eram considerados exclusivamente femininos, como costurar, cozinhar, lavar, cuidar de crianças etc.?” A partir desse questionamento, chegou-se à conclusão de que é fundamental que todas as pessoas devem ter a capacidade de executar esses trabalhos, uma vez que contribuem para a formação integral para ser um adulto independente, pois estão intrinsecamente ligados à sustentação da vida (Krupskaya, 2017b, p. 88).

As condições enfrentadas pelas mulheres e crianças eram extremamente precárias. É por essa razão que Krupskaya questiona a necessidade de condições materiais e formação específica para que educação ocorra. A mera provisão de cuidado ou a subsistência das crianças no seio da família não equivale a uma educação adequada. Para a autora, a educação socialista é dever público e coletivo, e esse é o tema central do texto de 1918 intitulado Sobre a questão da escola socialista, no qual advoga que:

 

A situação doméstica da maioria da população não é tal que possa contribuir para o desenvolvimento dos sentidos externos e da criatividade da criança. Por isso, é necessário um determinado número de jardins de infância, de modo que se possa acomodar todas as crianças (Krupskaya, 2017c, p. 71).

 

Como consequência, Krupskaya defende que o sistema educacional deveria oferecer os recursos básicos para a manutenção da vida, mas sobretudo deverá garantir “que a criança tenha todo o necessário para que ela possa ter um desenvolvimento pleno e multilateral” (Krupskaya, 2017a, p. 28). Nesse contexto, a autora aborda questões como alimentação adequada, instalações escolares bem equipadas, uniformes, e a presença de profissionais altamente qualificados, entre outros aspectos.

Krupskaya defende que é responsabilidade do governo socialista criar as condições efetivas para o desenvolvimento do sistema educacional. Nesse quadro, a luta social pelo direito à educação se torna uma luta pela igualdade de direitos, pois implica que o Estado assuma o dever de dispor a educação para as crianças, em vez de deixar essa incumbência exclusivamente às mulheres na esfera privada.

Por essa visão, todas as políticas estruturais dos bolcheviques tinham como meta a criação de creches e escolas infantis, o sistema educacional soviético buscava estabelecer uma educação que não fosse segregada por sexo[10]. O objetivo era proporcionar aos meninos e meninas as mesmas oportunidades, garantindo, assim, condições materiais necessárias para que pudessem desenvolver plenamente suas capacidades.

O rigoroso trabalho com esses temas, também presentes em A mulher e a educação das crianças (1899), Ao congresso dos professores públicos (1913) e Guerra e maternidade (1920), permite a Krupskaya, mesmo que de forma indireta, levantar uma questão crucial do debate sobre o trabalho reprodutivo. É importante frisar que esse conceito não foi elaborado por Marx ou por Lenin, mas pela epistemologia feminista na década de 1980. A fundamentação que surge é: “Se a força de trabalho produz valor, como a força de trabalho é, ela mesma, produzida?” (Bhattacharya, 2013, p. 102).

A questão é reforçada, de maneira ainda mais complexa, nos textos escritos ao longo das décadas de 1920 e 1930, agora já no contexto dos desafios da construção do socialismo na União Soviética. Insere, assim, a superação das desigualdades e da divisão do trabalho no centro de seu projeto educacional, imputando ao Estado a responsabilização por todo tipo de trabalho, inclusive aqueles até então desempenhados apenas pelas mulheres no âmbito familiar.

Esse ponto destaca a dimensão de classe da educação, uma vez que as políticas do Estado garantem uma parte do trabalho reprodutivo e, assim, tornam viável a participação do proletariado no trabalho produtivo. O objetivo é oportunizar que todos possam se desenvolver, conforme suas capacidades, sem hierarquizar a educação ou dividi-la por sexo e reproduzir a exploração capitalista do trabalho: “o trabalho conjunto e em iguais condições desenvolve a compreensão intelectual e garante relações de igualdade entre homens e mulheres" (Krupskaya, 1986, p. 142).

Em síntese, até aqui, compreendemos que as categorias mulher e trabalho se encontram em unidade dialética na gênese das reflexões pedagógicas de Krupskaya. A autora faz críticas ao modelo de escola dividida por sexo que exclui as mulheres do âmbito formal de produção do conhecimento e revela as condições de exploração vividas pelas mulheres no modo de produção capitalista.

A crítica nos levou a interpretar além da desvalorização do salário no mercado de trabalho. As questões que envolvem a jornada doméstica e a inserção das mulheres no trabalho produtivo são importantes na luta de classes e na concretização de uma educação socialista, pois essas contradições influenciam inclusive o fato de as mulheres se enxergarem como classe trabalhadora e, a partir disso, despertarem a consciência.

Além disso, nos permite compreender a importância do reconhecimento do trabalho reprodutivo como também componente da engrenagem do sistema capitalista. Embora não produza capital e historicamente seja desempenhado gratuitamente pelas mulheres na esfera privada, é essencial para a reprodução da classe trabalhadora. Esse ponto é fundamental para elucidar a proposta politécnica de uma divisão racional e não social do trabalho e a não hierarquia entre trabalho manual e trabalho intelectual.

3.2 A educação e o Estado

Ao aprofundar a análise dos elementos até aqui dispostos, observamos que a inserção da formulação educacional de Krupskaya no marxismo-leninismo tem um pano de fundo. Trata-se do conceito de Estado, formulado a partir de sua função reprodutora das relações sociais, da direção política de classe e da correspondência entre sua estrutura e o modo de produção hegemônico.

Com efeito, o leito teórico leninista apresenta uma elaboração genuína a respeito, submetendo teses clássicas de Marx e Engels à prova do processo revolucionário. A principal síntese está presente n’O Estado e a revolução (Lenin, 1987), que é produto da efervescência política e social pela qual passa a Rússia já a partir da I Guerra Mundial.

No interior desse debate, em 1915, Krupskaya escreveu a obra Educação Pública e Democracia (Krupskaya, 2017d), fruto de uma investigação sobre a conexão entre o ensino e o trabalho reprodutivo em nações com industrialização avançada. Essa obra é de tal importância que teve um papel crucial na formulação de diretrizes educacioanais presentes no programa dos bolcheviques, sob a direção de Lenin, em 1917 (Krupskaya, 2017e, p. 36).

Krupskaya examinou a qualificação da mão de obra no capitalismo e revelou que, n’O Capital, Marx ilustra como o avanço da tecnologia em si mesmo gera a demanda por operários altamente capacitados, com habilidades multilaterais (Krupskaya, 2017e, p. 36). Com o aprofundamento desse estudo, a autora faz críticas à Escola Nova e aos internatos rurais dos Estados Unidos, argumentando que essas abordagens não estão alinhadas com o propósito de uma escola politécnica. Tais métodos estariam fundamentados em valores burgueses que separam o trabalho manual do trabalho intelectual, promovendo assim uma hierarquia da produção.

Essa questão é crucial para entender a divergência de Krupskaya em relação às teses da Escola Nova. Muitas vezes aparece como uma questão controversa, uma vez que, em certos casos, outros pedagogos russos apresentaram certa afinidade com elementos do escolanovismo, então em expansão no ocidente. A característica central dessas conexões era, precisamente, a abordagem da educação a partir do trabalho.

De fato, alguns pedagogos liberais influenciados pelas ideias estadunidenses levaram para a Rússia o princípio do trabalho produtivo como fundamental para estimular a atividade autoeducativa, embora essas experiências tenham ocorrido de maneira privada. Seguindo essa perspectiva, o trabalho promove mudanças na psique durante o processo de aprendizado e estabelece uma conexão entre a escola e a vida social. Essas influências, em conjunto com as experiências educadoras de Tolstói, tiveram um papel proeminente nos anos iniciais da revolução russa e emergiram como tópicos significativos nas discussões educacionais (Dewey, 2016).

Entretanto, após o término da guerra civil e a implementação da Nova Política Econômica, as críticas de natureza marxista passaram a influenciar de maneira mais notável o papel da educação socialista na União Soviética. Nesse contexto, a ênfase no trabalho continuou, porém, os meios de produção não eram mais de propriedade privada, estando sob o controle da classe trabalhadora, que buscava estabelecer sua hegemonia na construção de um novo aparelho estatal. Essa transformação teve profundo impacto nas relações materiais e ideológicas do trabalho e, como resultado, desencadeou debate intelectual e prático significativo sobre a inclusão do processo de trabalho na escola.

Os alicerces políticos e sociais da escola soviética, de acordo com a proposta de Krupskaya, adotam características distintas daquelas defendidas pela Escola Nova. O cerne da educação socialista está no trabalho socialmente necessário, produzindo valores de uso em benefício de toda a sociedade e comprometido com o avanço tecnológico em prol do bem-estar dos que produzem o trabalho. Isso se baseia em uma divisão racional do trabalho, que é diferente da abordagem da Escola Nova. Krupskaya argumenta que, embora a Escola Nova possa ampliar a criatividade e a intelectualidade dos educandos, não rompe com a lógica subjacente à exploração e à divisão social.

Aqui se encontra a passagem do mesmo texto de 1915, que revela a perspectiva da autora em relação às escolas estadunidenses:

 

A aplicação prática dos princípios, sem os quais é impossível o desenvolvimento livre da personalidade do estudante, concretiza-se mais ou menos plenamente só com um regime democrático. É por isso que, entre outras coisas, esses princípios criaram rapidamente raízes na escola americana e com grande dificuldade se incorporam à escola alemã. Nos Estados Unidos, na escola, à mesma mesa senta-se o filho de Roosevelt e o filho de um operário braçal (Krupskaya, 2017e, p. 51-52).

 

Essa perspectiva foi desenvolvida à medida que Krupskaya analisou o período mais consolidado da educação soviética após a revolução. Onze anos após, como nos mostra Bittar e Ferreira (2015), a autora expressou uma visão notavelmente diferente sobre o assunto. O trecho a seguir faz parte de uma carta escrita por Krupskaya para a delegação de líderes sindicais britânicos da National Union ofWomenTeachers (NUWT) que visitaram a União Soviética para aprender sobre as políticas estatais em relação à vida das mulheres e ao sistema educacional.

No texto Sobre a educação de classe, escrito em 1926, a autora destaca a diferença entre a perspectiva da escola soviética e os países capitalistas, ao reconhecer essa instituição como um meio de reprodução das relações sociais:

 

A escola americana, por exemplo, é muitas vezes elogiada pelo fato de ser extremamente democrática apenas porque, da mesma forma, lá o filho de um operário diarista senta-se com o filho do presidente dos EUA em uma certa escola ‘ali’. Eles se esquecem apenas de dizer que toda a educação é organizada sob a perspectiva mais vantajosa e necessária para o filho do Presidente e não no espírito necessário para o filho do trabalhador (Krupskaya, 1926, p. 51-52 apud Bittar; Ferreira Jr., 2021, p. 10).

 

Essa demonstração revela que a autora aprofundou sua análise sobre a natureza de classe da escola, incorporando-a como um componente essencial da nova estrutura estatal a ser construída pelo proletariado. Conforme sua compreensão atualizada, as instituições educacionais nas sociedades capitalistas, mesmo quando são de caráter público, proporcionam uma formação voltada para a perpetuação da classe dominante, tendo como principais fundamentos o conservadorismo, a ênfase na liberdade individual e a promoção de uma mentalidade chauvinista.

No contexto soviético, a principal prioridade seria estabelecer um sistema educacional que valorize a coletividade e o internacionalismo da classe trabalhadora, fundamentado nos princípios da ditadura do proletariado e na democracia operária (Krupskaya, 1926 pudFerreira Jr.; Bittar 2021, p. 16).

Ainda antes da Revolução Russa, Krupskaya intervém no debate programático e sistematiza, no texto Ao congresso dos professores públicos (1913), as cinco exigências da classe operária para a escola:

 

1) educação geral, gratuita e obrigatória para todas as crianças de ambos os sexos, até os 16 anos de idade [...];

2) escola laica [...];

3) organização democrática e não burocrática do trabalho [...];

4) garantia plena de liberdade de opinião e direito de associação dos professores;

5) direito da população de receber educação em língua nativa, sem qualquer privilégio para uma dada língua em detrimento às outras (Krupskaya, 2017d, p. 33-34).

 

O primeiro ponto é assim detalhado:

 

a escola deve propiciar às crianças o desenvolvimento físico mais amplo e multilateral (requisito obrigatório para isso é o fornecimento de alimentação saudável, roupas para as crianças); do trabalho (da base do qual está a participação das crianças no trabalho produtivo, desde idade precoce, em ligação com ampla educação politécnica, com início no jardim de infância, durante até a escola superior); mental, que prepara as crianças para o trabalho intelectual independente; social (que visa o desenvolvimento das predisposições sociais, hábitos para o trabalho coletivo, hábitos de auto organização e assim por diante) (Krupskaya, 2017d, p. 33).

 

A posição é reforçada em 1926, agora no contexto dos desafios de construção do Estado socialista e no âmago do desenvolvimento da noção leninista de Estado. Novamente, a sensível diferença aparece, deixando nítida a influência das inovações teóricas sobre a evolução de sua concepção educativa. Data desse ano seu discurso realizado no II Congresso da União da Juventude Comunista:

 

É preciso saber que a construção do socialismo não é apenas para criar uma nova base econômica e para implementar e fortalecer o governo soviético, mas também na educação de um novo homem para tratar de uma nova forma, o comunista, o socialista, todas as questões e cujos costumes e relações com outros homens são completamente diferentes das que existiam sob o capitalismo. A construção do socialismo não é apenas desenvolver a nossa indústria, criar cooperativas e fortalecer o poder soviético, ainda que tudo seja isso absolutamente necessário, mas também para transformar a nossa psicologia e nossos relacionamentos (Krupskaya, [20--], p. 82 apud Silva, 2015, p. 75).

 

O trecho sintetiza a discussão desse tópico ao demonstrar que a educação socialista, para Krupskaya, não diz respeito somente a criar condições para nova base econômica. A educação deve estar intrinsecamente ligada à totalidade social e à estrutura política e institucional sob a direção da classe trabalhadora. A escola, portanto, deve possibilitar a efetivação de novos valores que sejam coletivos, democráticos e igualitários, com o potencial de promover mudanças nas mentalidades e nas relações sociais.

 

4 Considerações finais

Duas foram as dimensões abordadas neste trabalho para analisar a concepção socialista de educação presente na obra de Nadezhda Krupskaya. Em primeiro lugar, identificamos a forma como a autora analisa o caráter ideológico da educação e sua relação com o processo de trabalho. Ao fazê-lo, Krupskaya evidencia a centralidade da questão da mulher nas relações educativas e mobiliza uma discussão sobre a família burguesa nas formações sociais capitalistas. A partir daí, observa a necessidade de se localizar a educação na totalidade social a que pertence, considerando a materialidade das divisões social e sexual do trabalho. Para ela, a superação dessas contradições, no novo modo de produção resultante da luta contra o capitalismo, implica conceber a educação em bases políticas distintas daquelas que reproduzem a exploração.

É nessa perspectiva que se afirma a segunda dimensão da concepção educativa de Krupskaya. Influenciada diretamente pelo debate leninista sobre o Estado, a autora discute a natureza burguesa da escola capitalista, a partir de um rigoroso exame do escolanovismo e das pedagogias ocidentais. A Revolução Russa é decisiva nessa elaboração – assim como na formulação de Lenin sobre o Estado –, na medida em que ilumina a necessidade da construção de uma escola correspondente à hegemonia dirigente do Estado socialista.

Esses aspectos, no entanto, não esgotam as possibilidades de análise do pensamento pedagógico de Krupskaya. Concluímos que a originalidade dessa perspectiva está justamente em articular cinco grandes categorias teóricas e, com isso, lançar as bases de uma corrente pedagógica própria. As noções de politecnia, trabalho, sistema de complexos, mulher e democracia relacionam-se de modo a resultar nas duas dimensões que aqui discutimos e em outras que devem ser analisadas.

 A lente teórico-metodológica que propomos para essa análise é a localização da Pedagogia de Krupskaya no seio do marxismo-leninismo, dado que as inovações teóricas trazidas por essa corrente permitem ao materialismo histórico um salto de qualidade até então não observado. De maneira análoga, a Pedagogia criada por Krupskaya desenvolve princípios conceituais presentes ainda em estado prático nas obras de seus precursores, sejam Marx e Engels, sejam pedagogos marxistas.

No calor do processo revolucionário e dos desafios de administração do socialismo, a articulação entre a educação e sua análise sobre a mulher permite a Krupskaya uma criteriosa aplicação das teses sobre o Estado desenvolvidas por Lenin. Essa relação, como pudemos observar em levantamento prévio da literatura, ainda não foi abordada no Brasil e pode, a partir dos elementos aqui expostos, ser aprofundada.

O debate sobre a reprodução da força de trabalho, por exemplo, bastante atual no âmbito do feminismo marxista, pode encontrar aportes fundamentais nos escritos de Krupskaya. Tal contribuição, aliás, não se restringe ao campo educacional, mas pode influenciar a própria análise das articulações entre exploração capitalista, gênero e patriarcado.

Além disso, cabe lembrar que dois temas são centrais na discussão sobre a potencialidade revolucionária da educação politécnica: a atualidade e a auto-organização dos estudantes como dimensões fundamentais da escola socialista. Esses temas, em alguma medida, já estão presentes nos escritos de Marx e Engels e são constituintes da noção marxista de politecnia. No entanto, quando mobilizados por Krupskaya no debate com a Escola Nova e na análise das experiências da Escola Única do Trabalho soviética, permitem avanços teóricos no sentido de uma noção mais integral de educação socialista. Dão sentido à própria tese do Estado como instituição organizadora da ditadura da classe dominante em uma formação social dividida em classes.

Enfim, nossa análise, antes de encerrar as possibilidades de investigação do pensamento pedagógico de Krupskaya, deixa canais abertos para o aprofundamento em trabalhos futuros. O que se pode assumir como pressuposto nessas iniciativas de pesquisa é a originalidade da concepção da autora, sobretudo na forma de colocar e examinar problemas educativos inseridos em cenários de transição histórica.

 

 

Referências

ALTHUSSER, L. Sobre o trabalho teórico: dificuldades e recursos. In: BARISON, T. (org.) Teoria marxista e análise concreta: textos escolhidos de Luis Althusser e Étienne Balibar. São Paulo: Expressão Popular, 2017. p. 83-114.

 

BITTAR, M; FERREIRA JR., A. Ativismo pedagógico e princípios da escola do trabalho nos primeiros tempos da educação soviética. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 20, n. 61, p. 433-456, 2015.

 

BHATTACHARYA, T. O que é a teoria da reprodução social? West Lafayette,2013. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2019/09/04_Bhattacharya.pdf. Acesso em: 25 jun. 2023.

 

CALDEIRA, Fernanda Maria. Krupskaya e a pedagogia soviética: a elaboração do conceito de politecnia. 2023. Dissertação (Mestrado em Ciência, Tecnologia e Sociedade) – Instituto Federal do Paraná, Curitiba, 2023.

 

CORRÊA-LODI, S. Entre a pena e a baioneta: Louise Michel e NadezhdaKrupskaia, educadoras em contextos revolucionários. 2016. Tese (Doutorado em educação) –Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016.

 

DEWEY, J. Impressões sobre a Rússia Soviética e o mundo revolucionário. Uberlândia: Navegando Publicações, 2016.

 

DIAS, V. A educação integrada e a profissionalização no ensino médio. 2015. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015.

 

FELICIO, P. Anatoli Vassilievitch Lunatcharski: a educação na Russia Revolucionária (1917-1929). 2016. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2016.

 

FERREIRA JR., A. BITTAR, M. Krupskaya nos arquivos do National Union of Women Teachers: uma palavra sobre a educação de classe. Revista HISTEDBR on-line, Campinas, v.21, 2021, p. 1-21. FRANCO, M. Análise de conteúdo. 3. ed. Brasília: Líber Livro, 2008.

 

FREITAS, L. A luta por uma pedagogia do meio. In: PISTRAK, M. A escola comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 09-98.

 

FREITAS, L. A pedagogia socialista: devolvendo a voz aos pioneiros da educação russa. In: CALDART, R.; VILLAS BÔAS, R. Pedagogia socialista: legado da revolução de 1917 e desafios atuais. São Paulo: Expressão Popular, 2017. p. 233-260.

 

FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva: um (re)exame das relações entre educação e estrutura econômico-social e capitalista. 2. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1984.

 

GALLO, S. Politecnia e educação: a contribuição anarquista. ProPosições, Campinas, v. 4, n. 3, p. 34-46, 1993

 

GONZALES, A. As origens e a comemoração do dia internacional das mulheres. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

 

KRUPSKAYA, N. La educación laboral y laenseñanza. Moscú: Editorial Progreso, 1986.

 

KRUPSKAYA, N. A mulher e a educação das crianças In: A CONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA SOCIALISTA: escritos. São Paulo: Expressão Popular, 2017a. p. 31-30.

 

KRUPSKAYA, N. Deve-se ensinar “coisa de mulher” aos meninos? In: SCHNEIDER, G. (org.). A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2017b. p.88-31.

 

KRUPSKAYA, N. Sobre a questão da escola socialista. In: A CONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA SOCIALISTA: escritos. São Paulo: Expressão Popular, 2017c. p. 65-80.

 

KRUPSKAYA, N. O papel de Lenin na luta pela escola politécnica. In: A CONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA SOCIALISTA. São Paulo: Expressão Popular, 2017d. p. 173-180.

 

KRUPSKAYA, N. Educação pública e democracia. In: A CONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA SOCIALISTA. São Paulo: Expressão Popular, 2017e. p. 33-60.

 

LENIN, V. O Estado e a revolução. São Paulo: Hucitec, 1987.

 

LINHART, R. Lenin, os camponeses, Taylor: ensaio de análise baseada no materialismo histórico sobre a origem do sistema produtivo soviético. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1983.

 

MACHADO, L. Politecnia, escola unitária e trabalho. São Paulo: Cortez & Autores Associados, 1989.

 

MOURA, D.; LIMA FILHO, D.; SILVA, M. Politecnia e formação integrada: confrontos conceituais, projetos políticos e contradições históricas da educação brasileira. Revista Brasileira De Educação, [Rio de Janeiro], v. 20, n. 63, p. 1057-1080, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-24782015206313. Acesso em: 15 set. 2023.

 

OYAMA, E. A perspectiva da educação socialista em Lenin e Krupskaia. Marx e o Marxismo, [Niterói], v. 2, n. 2, p. 41-70, 2014.

 

PELISSARI, L. A educação politécnica em Lenin e a questão do poder. Germinal: Marxismo e Educação Em Debate, Salvador, v. 12, n. 2, p. 335–346, 2020.

 

 

 

PEREIRA, A.; OLIVEIRA, E. Krupskaya e A. Kollontai: diálogos acerca da autonomia da mulher trabalhadora. Germinal:Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 13, n. 1, p. 504-522, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.9771/gmed.v13i1.38650. Acesso em: 02 set. 2023.

 

QUINTANEIRO, T. et al. Um toque de clássicos. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

 

RODRIGUES, J. A educação politécnica no Brasil. Niterói: EdUFF, 1998.

 



[1] O conceito de “estado prático” é emprestado de Althusser e se refere a um elemento do processo teórico ainda não teorizado, apesar de existente como conteúdo e como parte da teoria. Tal elemento sofre desenvolvimentos antes de se tornar conceito dentro de um sistema teórico.

[2] Não é nosso objetivo desenvolver o problema complexo da apropriação do taylorismo pela planificação econômica da União Soviética. Tal debate, aliás, carece de fontes históricas e pesquisas historiográficas mais robustas no âmbito do marxismo brasileiro, aclarando as diversas posições contrapostas no seio do Partido Bolchevique à época, inclusive e principalmente após a morte de Lenin. Para um aprofundamento do tema, indicamos a leitura de Linhart (1983). Para uma análise dos efeitos produzidos pela apropriação do taylorismo no campo da educação, especialmente em termos de uma análoga incorporação de métodos da Escola Nova ocidental à educação soviética, ver Bittar e Ferreira (2015).

[3] Mikhail Pokrovsky se organizou com os bolcheviques e é considerado um dos historiadores mais influentes da década de 1920.

[4] Foi um educador soviético responsável por elaborar o documento Princípios Fundamentais da Escola Única do Trabalho, ao lado de Krupskaya.

[5] Foi um psicólogo russo responsável por introduzir a abordagem marxista objetiva na pedagogia soviética.

[6] Ludmila Menzhínskaia foi uma professora filiada à União dos Professores que contabilizava 70 mil filiados. Posteriormente foi expulsa, durante o governo provisório de Kerensky, acusada de golpismo por defender as posições dos bolcheviques.

[7] Foi um educador soviético responsável por uma colônia educacional na área rural.

[8] Albert Pinkevich foi um educador soviético responsável por contribuir com as elaborações sobre o sistema de complexos.

[9] Efetuamos buscas simples por trabalhos acadêmicos que contenham o termo “Krupskaya”, nas plataformas Sucupira, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Obtivemos, respectivamente, 11 e dez resultados (21 no total), divididos em 13 dissertações de mestrado e oito teses de doutorado.

[10] Optamos por adotar o termo sexo em detrimento de gênero por duas razões. Primeiro, por respeitar o termo utilizado por Krupskaya, cujos textos datam do início do século XX. Segundo, por compreendermos que gênero é uma categoria que não imprime em si as relações de dominação e exploração. Ao referirmos gênero, estamos nos referindo à crítica de Heleieth Saffioti, que situa historicamente o patriarcado nessas relações.



[i] Artigo recebido em: 06/10/23

 Artigo aprovado em: 31/07/24

 Fonte de fomento: Bolsa Pib-Pós Instituto Federal do Paraná (IFPR).

[ii] Contribuições da autora: conceituação; curadoria de dados; aquisição de financiamento; metodologia; administração do projeto; recursos; supervisão; validação; visualização; escrita – rascunho original e escrita – análise e edição.

[iii] Contribuições do autor: conceituação; análise formal ; aquisição de financiamento; investigação;
metodologia; administração do projeto; recursos; validação; visualização; escrita – rascunho original e escrita – análise e edição.