Caixa de Texto:  e-ISSN 1984-7246   Dualidade econômica brasileira e o gás natural catarinense pela Via Prussiana[i]

 

Leonardo Mosimann Estrella[ii]

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

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José Messias Bastos[iii]

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

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Isa de Oliveira Rocha[iv]

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

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Pedro Henrique Jacoby Cureau[v]

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

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Dualidade econômica brasileira e o gás natural catarinense pela Via Prussiana

 

Resumo

A partir do entendimento de Marx e Lenin sobre as formas de desenvolvimento, este artigo apresenta as bases da formação socioeconômica do Brasil e de Santa Catarina e considerações sobre o setor catarinense de infraestrutura de distribuição de gás natural. Utilizam-se os pensadores Ignacio Rangel e Armen Mamigonian como alicerces principais para analisar a realidade desses processos de formação nacional e estadual, incluindo o papel desempenhado pelo centro do sistema econômico mundial que influi nos ciclos brasileiros. O estudo também inclui a composição histórica da política regional e municipal do estado de Santa Catarina e a consequente indicação de lideranças para comandar um serviço público que opera em sistema de concessão. Como resultado, evidencia o protagonismo do papel dos pactos de poder articulados entre a junção das classes política e econômica como unidade direcionadora das vias de desenvolvimento no Brasil pós-Revolução de 1930, igualmente cumprindo sua influência sobre um setor estratégico de infraestrutura como no caso do gás natural.

 

 

Palavras-chave: Via Prussiana; dualidade econômica; industrialização; gás natural.

 

 

 

 

Brazilian economic duality and natural gas from Santa Catarina the Prussian Way

 

 

Abstract

Based on Marx's and Lenin's understanding of the forms of development, this article presents the foundations of the socio-economic formation of Brazil and Santa Catarina and considerations about Santa Catarina's natural gas distribution infrastructure sector. It uses the Brazilian thinkers Ignacio Rangel (economist) and Armen Mamigonian (geographer) as the main foundations for analyzing the reality of these processes of national and state formation, including the role played by the center of the world economic system that influences Brazilian cycles. The study also includes the historical composition of regional and municipal politics in the state of Santa Catarina and the consequent appointment of leaders to run a public service that operates under a concession system. As a result, it highlights the role of the power pacts articulated between the political and economic classes as a steering unit for development in Brazil after the 1930 Revolution, also having an influence on a strategic infrastructure sector, as in the case of natural gas.

 

 

Keywords: Prussian Passage; economic duality; industrialization; natural gas.

 

 

 

 

1 Introdução

O presente estudo objetiva decifrar a formação sócio-espacial (FSE) brasileira, fundamentos considerados por Ignacio Rangel (1914-1994) e Armen Mamigonian (1935) em suas pesquisas. Para isso, considera as congruências teórico-metodológicas existentes entre Vladimir Ilyich Ulianov (Lenin, 1870-1924) e Antonio Gramsci (1891-1937). Nesse ínterim, o marxismo de Lenin assume-se como uma ciência social que não deixa de ser ao mesmo tempo filosófica, geográfica, econômica e política numa sociedade em transformação, ou seja, em luta de classes (Lenin, 1923) integrada a uma realidade concreta. Já em Gramsci (Coutinho, 2002), observa-se a busca por um novo modelo (revolucionário e via partido político) que avançasse na distinção da transição para o capitalismo entre as sociedades ocidentais e orientais, para que o marxismo-leninismo pudesse impor-se na Europa. Descartam-se, aqui, eventuais diferenças entre os dois pensamentos, centrando-se nas proximidades das suas ideias sobre a temática FSE.

Dentro desses pensamentos, o estudo também analisa o desenvolvimento brasileiro nas realidades regionais de Santa Catarina (SC), discorrendo sobre a sucessão na formação de pactos de poder que influem na implantação das redes de gás natural no território, modelo também identificado como recente na maior parte dos espaços brasileiros que contam com essa infraestrutura como técnica “novíssima”. Assim sendo, a pesquisa tem como objetivo verificar o processo de industrialização brasileiro e catarinense e sua relação com a introdução do gás natural canalizado, como fonte de energia e serviço de utilidade pública considerado essencial. Igualmente, demonstram-se as razões dos gargalos de desenvolvimento e as causas para sua estagnação e retração econômica no período compreendido entre o último quartel do século XX e o primeiro do século XXI.

Rangel e Mamigonian ensinam que as colônias/periferias de certa maneira “dependem” do centro do sistema capitalista dando causa a acordos entre poderes (dentro e fora dos países) das áreas política e econômica. Por isso, considera-se que a Via Prussiana (Lenin)/Revolução Passiva (Gramsci) passa a ser “disciplina” importante para compreender o mundo e que o avanço e a operação da (nova) técnica se subordinam à FSE[1]. O método inclui também a aplicação desses conceitos sobre a realidade verificada em SC na consolidação de suas forças políticas (1930-1980) e na implantação da rede de gasodutos em seu território (1994-2022), considerando o foco de atendimento aos ramos industriais termointensivos. Por isso, o artigo traz conexões entre as formas de desenvolvimento no país, com recorte no território catarinense.

Além dessa Introdução, que contextualiza a pesquisa e seu objetivo e método, o segundo tópico (Via Prussiana: uma Revolução Passiva) conceitua as vias de desenvolvimento com base em realidades identificadas em alguns países, como sinergia existente entre as interpretações e categorizações de Marx/Lenin e Gramsci; em Dualidade: os pactos de poder no Brasil demonstra-se o processo de desenvolvimento nacional pela compreensão dos tipos de vias de desenvolvimento; na sequência (Vias combinadas em Santa Catarina), identifica-se o forte caráter de especificidade regional catarinense e uma via combinada na sua formação; em Considerações sobre o pacto de poder no gás natural catarinense, disserta-se sobre o arranjo político-econômico que fomentou a implantação da infraestrutura de gás natural no estado e as razões atuais que podem levar a uma ruptura desse “acordo”; e a última seção (Discussões finais) apresenta as conclusões que sintetizam os achados da pesquisa e que sugerem avanço nos estudos.

 

2 Via Prussiana no Brasil

A Via Prussiana é evidente na formação industrial do Brasil[2] a partir da Revolução de 1930[3] liderada por Getúlio Vargas, modelo descrito por Lenin (1985) como latifúndios formados por laços de servidão que se conservam e se transformam lentamente em capitalismo em estado puro, sem deixar de absorver as combinações diversas e próprias do processo capitalista. Observa-se também que, para Santos (1977)[4], a FSE é a estrutura técnico-produtiva da sociedade (circulação, distribuição e consumo) expressa no espaço, enquanto as diferenças de lugares são resultantes dos arranjos espaciais dos modos de produção particulares, em transição. Nesse sentido, os níveis qualitativos e quantitativos dos modos de produção e suas combinações orientam o valor local. Assume-se que a adoção desses referenciais permite esclarecer os processos econômicos, históricos e geográficos como categorias de modo de produção e de formação social nas diversas escalas, conforme bem destacado por Vieira (1992).

Marx[5] (2017a) apontou esse caminho de análise ao discorrer sobre Formação Social (FS) como as relações de produção em sociedades concretas – trata-se de fundamento marxista que ainda encontra resistência entre intelectuais, até mesmo de países socialistas, como aponta Mamigonian (2019). Com Lenin (2022), a formação social passa a ser categoria fundamental no materialismo histórico, por representar a conjugação de esferas da vida em sociedade na sua amplitude (econômica, política, social e cultural) e expressar sua unidade no processo histórico. Gramsci e Lenin avaliam a sociedade civil como dirigida pela burguesia adjetivada como hegemônica, em processos nos quais predominam o individualismo econômico desdobrado na acumulação de capital que gesta a divisão do trabalho e, por conseguinte, a distinção de classes – a classe burguesa cumpre destacado papel nas vias de desenvolvimento de diversos tipos.

Na implantação do modo de produção capitalista, Lenin (1913) expõe que a superação feudal não aconteceu sem embate de classes na sociedade capitalista em formação. A partir dessa evidência é universalizada a conclusão de que há a luta de classes, o que não diminui a complexidade concreta e particular de como se deu a formação do capitalismo nos países cêntricos e periféricos. Essas perspectivas teórico-metodológicas são também consideradas para compreender a “categoria” Via Prussiana (leninista) e/ou Revolução Passiva (gramsciana).

Essa via de transição (feudalismo-capitalismo) foi antes destacada por Marx[6] (2017a), que assume a Via Revolucionária (identificada na França, na Inglaterra[7] e nos Estados Unidos - EUA) como derivada da acumulação de capital dos produtores (camponeses) que se tornam comerciantes (meio-manufatureiro e meio-mercador – Marx, 2017b) e organizam a produção em base capitalista substituindo o meio artesanal (Dobb, 1978).

Mamigonian (2019) lembra, além de tudo, que Lenin comparou esses dois caminhos de transição – processos longos e não uniformes[8] (DOBB, 1978) – verificados na “economia rural”, chamando-os de: Via Americana (estadunidense) e Via Prussiana. A primeira se estrutura de “baixo para cima”, e a segunda, de “cima para baixo”. Em síntese, a Via Americana (Revolucionária), assim denominada por caracterizar também a industrialização do nordeste dos Estados Unidos, foi um processo produtivo revolucionário da burguesia inglesa[9] que levou à superação do feudalismo, culminando na Revolução Industrial (RI); já a Via Prussiana atinge o mesmo objetivo, mas sob a liderança de senhores feudais que se tornaram capitalistas, promovendo transições lentas, seguras e graduais[10] para o novo modo de produção.

A Via Revolucionária, por sua vez, é intrínseca ao processo de industrialização dos novos capitalistas que exercem força econômica sobre territórios periféricos, como no caso da aquisição de insumos fabris e bens de baixo custo e da comercialização de seus produtos industrializados. Por outro lado, colônias[11] e semicolônias impelidas ao protecionismo promovem o desenvolvimento econômico com aval e parceria do Estado – a Via Prussiana – como consequência da Via Revolucionária. Essa realidade gera certa subordinação, pois o processo de desenvolvimento da periferia é financiado pelo centro do sistema e faz dos países colonizados o proletariado mundial, enquanto o nacionalismo das nações imperialistas assume caráter reacionário, como conclui Mamigonian (2023) com base nas ideias de Lenin.

Para Gramsci (2002), a unificação italiana do século XIX parte de uma classe que ascende ao poder sem romper o tecido social e adapta-se à realidade socioeconômica, promovendo mudanças graduais. Nesse processo, firma-se a aliança entre a burguesia industrial do Norte e os senhores feudais do Sul da Itália, preservando o poder regional (Gramsci, 1987). Esse acordo é validado pelo Estado (na forma “democrática”), que oferta sua força militar, política e diplomática a serviço das classes dirigentes e dominantes (Gramsci, 2002). Na estrutura econômica, são implantados elementos de sustentação ao novo modelo produtivo (industrialização), pela hegemonia das forças moderadas e “democráticas” (Gramsci, 1976) e sem iniciativa nem participação popular (Souza, 2010), caracterizando um tipo de revolução definida como passiva.

Na Via Revolucionária, a burguesia ascende ao poder e assume como classe economicamente dominante e com hegemonia política, processo que Dobb (1978) resume como transição da renda-trabalho para renda-produto. Já no caso da Via Prussiana, ocorre a ascensão de uma nova classe (burguesia), sem deslocar as classes sociais representantes do antigo regime (feudalismo) que se posicionam como classe política dirigente do novo modo de produção (capitalismo).

Com isso, alinham-se os conceitos de Revolução Passiva de Gramsci (Itália) e Via Prussiana de Lenin (Alemanha), com um modelo “não clássico” de transição. Ou seja, modelo de FS que as forças produtivas são constantemente revolucionadas, enquanto se conservam as relações sociais de produção. Com isso, sacramenta-se o acordo político de classes sociais (Souza; Gomes, 2020) entre a burguesia em ascensão e os proprietários de terra no comando do Estado numa formação nacional emergente.

 

 

 

3 Dualidade: os pactos de poder no Brasil

Rangel (2012) assinala que o desenvolvimento brasileiro é fruto de uma “insistente” dualidade, cujos integrantes em união dialética (combinações de modos de produção) representam os modos de produção fundamentais vivenciados pela humanidade desde suas origens. Destaca também que o Brasil, como formação periférica, percorreu um caminho original em sua trajetória histórica.

Ao analisarmos os pactos de poder no Brasil, a primeira questão a se considerar é que as classes sociais que compõem o polo interno da dualidade brasileira sempre representam o modo de produção mais atrasado do que aquele vigente no centro do sistema econômico mundial. Com isso, desde a Independência (1822), a FS brasileira passou por “meias-revoluções”, rompendo alternadamente ora com o polo interno (lideranças econômicas nacional), ora com o polo externo (centro do sistema); e, inversamente mantém ativo o outro polo da dualidade básica da economia e sociedade.

É importante lembrar que a ruptura (passagem de uma dualidade para outra) ocorre nas fases depressivas dos ciclos longos (Kondratieff[12]), quando as forças vinculadas ao polo externo perdem dinamismo econômico e, consequentemente, político. Nessa conjuntura há a necessidade de colocar em funcionamento as capacidades ociosas (mão de obra, capital e terras) num amplo esforço de substituir importações. As fases descendentes são os períodos em que as taxas médias de lucro estão em baixa e estimulam esforços por novas invenções tecnológicas. Conforme Marx (2017b), uma nova técnica que possui caráter objetivo, decorrente da concorrência e que não se confunde com a superação da própria técnica, pois seu avanço e operação se subordinam necessariamente à FSE como explica Mamigonian (1999).

No Brasil, que possui formações periféricas, como já se viu aqui, as rupturas dos pactos de poder se constituem nas fases depressivas e, especialmente, nas fases ascendentes dos Ciclos Juglarianos quando se identifica a formação de pactos de poder (Quadro 1). Na fase descendente do Quarto Ciclo, a dualidade é rompida[13] com a formação do modo de produção capitalista de feições comerciais e, especialmente, industriais (polo interno) e financeiras; esta última imposta pelo centro do sistema (polo externo).

Destaca-se ainda que a industrialização brasileira ocorreu sem Reforma Agrária e com acelerado processo de urbanização. Em resumo, períodos descendentes da economia mundial marcam na economia nacional um destacado processo de substituição de importações como forma de enfrentar a crise externa. Contudo, nos anos 1990, com a forçada abertura de estatais ao capital estrangeiro, o fortalecimento da moeda nacional e a privatização de diversos setores rentáveis, é acelerado o processo de desindustrialização desencadeado na década de 1980[14].

 

Quadro 1 - Ciclos econômicos longos e dualidade brasileira

Revolução Industrial

Ciclos longos

Períodos

Fase

Dualidade Brasileira

Primeira

(1760-1840)

I

1789-1815

Ascendente (a)

- x -

1815-1848

Descendente (b)

Primeira

(1822-1889)

Segunda

(1850-1945)

II

1848-1873

Ascendente (a)

1873-1896

Descendente (b)

Segunda

(1889-1930)

III

1896-1921

Ascendente (a)

1921-1948

Descendente(b)

Terceira

(provável ou incompleta)

IV

1948-1973

Ascendente (a)

Terceira (1929-1973)

1973-(…)

Descendente (b)

- x -

Fonte: Rangel (1999; 2012); Mamigonian (1987).

Nas fases descendentes dos ciclos longos ocorrem as grandes mudanças na divisão interna do trabalho, denominadas por Rangel (2012) como substituição estrutural das importações. Assim, na primeira fase (1789-1848) ocorre a “gestação” definitiva do complexo rural brasileiro. Nesse período, as fazendas de escravos buscaram a autossuficiência desenvolvendo a produção agrícola para o autoconsumo e, acoplada a esta, a produção artesanal. Já na segunda fase (1921-1948), a divisão do trabalho ocorre entre a cidade e o campo. A produção artesanal tende a migrar para o meio urbano originando os sobrados e os mocambos, como demonstrado no caso de Recife por Freyre (1961). Na terceira fase depressiva (1914-1918), a economia brasileira ingressa em nova conjuntura, estimulando o crescimento interno que aprofunda a divisão social e territorial do trabalho, por meio do processo de industrialização.

No período ascendente do Quarto Ciclo Longo se completa o edifício industrial brasileiro, iniciado pelo Departamento II com a produção de bens não duráveis. Durante a Fase B do mesmo ciclo (1979 até a atualidade), a intervenção externa é a “mola mestra” que impôs limites ao desenvolvimento nacional quando a taxa de juros da dívida, o câmbio e a desregulamentação comercial e financeira condicionam a dinâmica das atividades internas nacionais. Com essa realidade, emerge um elemento importante de “fomento” à promoção das Vias Prussianas: o imperialismo[15], destacado por Lenin (2012) como fase superior do capitalismo e o mais enfático movimento verificado para a motivação do desenvolvimento através da Revolução Passiva.

Na Fase B do Quarto Ciclo Longo, a ausência de reação brasileira é explicada pela intervenção imposta a partir do centro do sistema, logo depois que o país cresceu extraordinariamente, de 1930 a 1980, com a mesma intensidade de potências (URSS e Japão) que lideravam os ritmos de desenvolvimento na época (Mamigonian, 2018). A crise de acumulação nacional se intensifica na década de 1980, quando os EUA, em movimento do seu típico imperialismo[16], dão fim aos financiamentos externos e seus bancos passam a cobrar severamente as amortizações da dívida contraída. Estava decretada a “falência” do Estado brasileiro, profetizada por Rangel ainda na década de 1950.

Observa-se que, no conceito de Via Prussiana aplicado ao caso brasileiro, tem-se um certo fortalecimento do Estado que, capturado por forças políticas numa verdadeira apostasia gestada por meio de um pacto de poder liberal, acabou por dilapidar o projeto nacional de desenvolvimento inaugurado por Getúlio Vargas. A partir de então, debilitado pelo déficit em suas contas, o Estado se ressente de parcerias com o setor privado para promover novas infraestruturas através dos serviços de utilidade pública. Lembra-se que em 1930, setores ligados ao mercado interno assumiram a hegemonia: a unidade das oligarquias agrárias regionais se voltou para o mercado interno e os industriais lideraram o processo de desenvolvimento (Mamigonian, 1990).

No Brasil, durante o Quarto Ciclo, a Quarta Dualidade não se completa[17]. Souza (2010) enfatiza que a revolução burguesa também não se consolida (trabalhadores rurais e urbanos não se associam ao processo); o latifúndio se transforma em empresa agrária, cuja relação com o capital financeiro engendra o processo de desindustrialização. Para Rangel (2012), a constituição do capitalismo brasileiro é fruto de acordo entre frações de classes econômicas dominantes e hegemônicas.

Na realidade catarinense, a exemplo do Brasil, ocorre a associação de “colonos-imigrantes” capitalizados com senhores feudais sob a liderança de Vargas para edificar as bases socioeconômicas de uma Via Prussiana com tipicidade específica (Ramos; Bastos, 2021). Santa Catarina também teve seu principal processo de industrialização e desenvolvimento formado por essa via. Porém, a análise das regionalidades revela vias combinadas, assinaladas por Mamigonian (2019) com base na reflexão sobre os exemplos mundiais.

 

 

4 Vias combinadas em Santa Catarina

Em SC identificam-se vias combinadas de desenvolvimento na transição feudalismo-capitalismo, assim como os casos da URSS, da China, do Vietnã e da Coreia do Norte. Mamigonian (2019) assinala que as Revoluções Socialistas[18] do século XX[19] também combinaram vias de desenvolvimento. Considerados pelo autor como os “mais radicais de todos” (Mamigonian, 2019, p. 33) e nascidos pela Via Revolucionária, os movimentos citados adotam também a Via Prussiana em razão da resistência imperialista ao socialismo, exemplificados por  invasões, destruições e imposição de atraso econômico – a opção pela combinação se coloca pela crise cíclica do capitalismo (Mamigonian, 2011). O autor lembra ainda que, para Gramsci, a Via Prussiana (Revolução Passiva) Socialista seria liderada pelo “Príncipe Moderno” (Moderno Príncipe no original), personalizado no Partido Revolucionário preparado e qualificado em posição dialética (mediação dos intelectuais da classe ascendente) intermediária (Neres, 2012) – na China, essa realidade se viabiliza com o Partido Comunista Chinês (PCCh).

No segmento industrial, Mamigonian (1966) assinalou três zonas em SC: Colonização Alemã[20] (Blumenau, Joinville e Brusque, com as indústrias têxtil e mecânica); Carvoeira[21] (Sul catarinense); e Pioneira do Oeste (pequenos agricultores de origem alemã e italiana que produziam trigo e criavam porcos). A organização interna urbana do estado se dividia em três categorias e áreas: alemãs industrializadas, com policultura comercial, vida regional equilibrada e hierarquização de relações; as áreas de colonização luso-brasileiras, com desequilíbrio regional, urbanização concentrada e hierarquização de rede urbana incompleta; e as demais áreas em situação intermediária, com anomalias no vale do Rio do Peixe, na Região Sul e no Planalto Norte.

Quanto à formação social, Mamigonian (1966) regionaliza cinco porções: litoral açoriano de povoamento antigo, destacando Florianópolis; a criação extensiva de bovinos e a economia madeireira no Planalto; áreas de colonização alemã[22] recente (a partir de 1850) no Vale do Itajaí e em Joinville; a área carbonífera no Sul, de colonização italiana; e o vale do Rio do Peixe e o Oeste de colonização italiana (século XX). Esse tipo de formação revelou um nascimento precoce e com grande esforço de industriais têxteis (1880) e outros ramos fabris, com expansão acima da média nacional no período de 1930 a 1980; na década de 1980, ganham destaque as indústrias eletro-metal-mecânicas (Joinville e Jaraguá do Sul) e de bens de consumo simples (Blumenau) das regiões alemãs (Mamigonian, 2011). A industrialização foi desencadeada pela Pequena Produção Mercantil (PPM), com forte regionalização dos setores produtivos, consolidando a entrada definitiva da região meridional do país no centro dinâmico nacional.

Alicerçado em Mamigonian, Bastos (2021) resume a formação industrial catarinense como: (i) ausência de tradição escravista e menor papel latifundiário; (ii) distanciamento do mercado consumidor e das matérias-primas; (iii) relevo movimentado que isolou as regiões (poucas relações inter-regionais) com fundamental papel dos portos locais e das estradas de ferro; (iV) movimento próprio com menor influência do capital comercial agroexportador, como em cidades portuárias brasileiras de outros estados; (v) estrutura com baixa resistência para sua constituição e forte papel da livre iniciativa local; e (vi) uma colonização baseada na PPM diversificada e no sistema colônia-venda.

Esse desenvolvimento do capitalismo em SC, a partir da PPM que se molda na indústria mecanizada, encontra convergência com os estudos leninistas sobre o próprio desenvolvimento da Rússia (Lenin, 1985), quando se identificou que vários grandes produtores nasceram pequenos. Em algumas localidades, o desenvolvimento capitalista provoca redução das oficinas artesanais e aumento das fábricas, uma fase superior da indústria que origina uma cooperação capitalista simples e concentração da oferta de trabalho a partir da PPM. Rocha et al. (2015) atestaram essa questão ao comparar o desenvolvimento catarinense com o estado de Massachusetts, no Nordeste dos Estados Unidos. Esse espaço estadunidense apresenta igualmente a influência da sua colonização e está localizado também na fachada Atlântica do território. Para Rangel (1993), essa região estadunidense faz transição direta para as relações de produção mais avançadas existentes na Europa, realidade identificada também no território catarinense.

Mamigonian (1986) reforça essa semelhança entre o Sul do Brasil e o Nordeste estadunidense ao constatar a importante Divisão Social do Trabalho com milhares de pequenos agricultores, artesãos, operários e comerciantes (Rocha; Vieira, 2021). Em virtude de características climáticas do Sul do Brasil, SC não apresentava condições para desenvolver cultivos tropicais, atrativos à agroexportação, e, portanto, foi conquistada pelos portugueses tardiamente (Pereira; Vieira, 2019). Os primeiros núcleos urbanos se formaram pela expansão “vicentista” em São Francisco do Sul, Florianópolis (Desterro) e Laguna no século XVII, e com açorianos e madeirenses em meados do século XVIII, sem atividades fabris relevantes (Bastos, 2021).

Nesse contexto de formação, ao analisar os desdobramentos da Revolução de 1930[23] em SC, identifica-se que há o “comando prussiano” do Estado atestando uma união dialética dos proprietários de terra do planalto com os capitalistas oriundos das PPM da fachada Atlântica, destacados regionalmente para assumirem o comando político estadual e o regional/municipal/local. O estancieiro Getúlio Vargas comanda o fim da República Velha e assume o poder da federação nomeando interventores para comandar os estados subnacionais. A família Ramos, grande liderança latifundiária de Lages, é a protagonista no caso catarinense.

O grau de especificidade, diversidade e “isolamento” regional catarinense, estado que tinha 2/3 do território ocupado por PPMs e 1/3 por latifúndios, impõe aos Ramos a busca por forças econômicas locais para instalar o comando político, pois necessitavam de pares em outras regiões onde não detinham o mesmo grau de protagonismo econômico. No quadro 2[24], o papel histórico de comando pela família Ramos[25] (Silva, 2008) e líderes regionais[26] destacados como forças econômicas locais que compuseram a união dialética com lideranças políticas, o que dá forma histórica aos pactos de poder no âmbito estadual em consequência da representatividade econômica regional.

 

Quadro 2 - Composição de governos e prefeituras de Santa Catarina (1930-1980)

Período

Governador

Tipo de eleição

Líderes empresariais

no governo

Prefeitos

Municipais

 

1930-1932

Ptolomeu de Assis Brasil

Interventor

Candido de Oliveira Ramos

Associação Rural de Lages

Rodolpho Tietzmann Tricot (Brusque)

 

1932-1933

Ruiz Zobaran

Interventor

José da Costa Moellmann

Lojas Moellmann (Blumenau)

Plácido O. de Oliveira

Eletricidade Schlemm (Joinville)

 

1933-1935

Aristiliano Ramos

Interventor

Celso Fausto de Souza

Instituto Politécnico (Florianópolis)

Victor Ademar Gevaerd

Joalheira Gevaerd  (Brusque)

 

1935-1937

Nereu Ramos

Indireta

(ALESC)

Rodolfo Vitor Tietzmann

Fábrica de Tecido de Malha Brusquense

Max Colin

Indústrias Colin (Joinville)

 

1937-1945

 

Interventor

Ivo d'Aquino Fonseca

Jornais O Dia e A República (Florianópolis)

Arnaldo Douat

Douat & Cia (Joinville)

1945-1946

Luís Galotti

Interventor

Udo Deeke

Machinary Company (Jaraguá do Sul)

Frederico Busch Jr.

Artex (Blumenau)

 

1946-1947

Udo Deeke

Interventor

João Davi Ferreira Lima

Transportes Aéreos Catarinense (Tubarão)

Serafin Enoss Bertaso

Bertaso (Chapecó)

 

1947-1951

Aderbal R. da Silva

Sufrágio universal

Armando Simone Pereira

Roxo Loureiro Banqueiros (Florianópolis)

Frederico Busch Júnior

Fósforos Dominó (Blumenau)

 

1951-1956

Irineu Bornhausen

Sufrágio universal

Heriberto Hülse

Cia Brasileira Carbonífera (Araranguá)

Mário Olinger

Malharia Olinger (Brusque )

 

1956-1958

Jorge Lacerda

Sufrágio universal

Hercílio Artur Oscar Deeke

Banco Agrícola (Blumenau)

Plínio Arlindo de Nês

Chapecó Alimentos

 

1958-1960

Heriberto Hülse

Vice-governador

Clodorico Moreira

Associações Rurais (Indaial)

Ruy Klein Homrich
Romano Massignan (Joaçaba)

 

1961-1965

Celso Ramos

Sufrágio universal

Geraldo Wetzel

Cia. Wetzel Industrial (Joinville)

Nilson Bender

Tupy (Joinville)

 

1966-1971

Ivo Silveira

Sufrágio universal

Sérgio Uchôa Rezende

Hansen Industrial (Joinville)

Carlos Curt Zadrozny

Artex (Blumenau)

 

1971-1975

Colombo M. Sales

Indireta

(ALESC)

Atílio Fontana

 Sadia (Concórdia)

Juarez Furtado

Emcapel  (Lages)

 

1975-1979

Antônio C.

Konder Reis

Indireta

(ALESC)

Marcos Büechler

Altona (Blumenau)

Félix Theiss

Rigesa (Blumenau)

 

1979-1982

Jorge K. Bornhausen

Indireta

(ALESC)

Ivan Orestes Bonato

Perdigão (Videira)

Cláudio Ávila da Silva

Usati (Tijucas)

 

Fonte: ALESC (2024).

 

O quadro revela a realidade de um estado que cresceu industrialmente acima da média nacional[27], de 1940 a 1980, através da formação desses grupos empresariais, incluindo parcerias como no caso da fundação da indústria de papel e celulose Olinkraft (Hering e família Bornhausen[28]) em Otacílio Costa. Esses grupos (cerca dos 15 maiores) formaram a Santivest[29] para buscar controlar a Sidersul[30] (em razão da resistência da Siderbrás) e impedir que capitais de outros estados (como a Gerdau) explorassem as oportunidades catarinenses (Mamigonian, 1984). Antes, as sociedades entre importantes marcas empresariais já eram realidade: Hering e Renaux compraram a empresa Força e Luz de Blumenau (1927) e formaram acordo (1934) para explorar madeira em Rio do Sul; em 1935 as famílias Konder, Bornhausen e Hering fundaram o primeiro banco de crédito (Banco Indústria e Comércio de Santa Catarina) do estado e eram sócios na Pátria Companhia de Seguros e na Moinho Reunidas (May, 1998).

Outro exemplo foi a nomeação de Atílio Fontana do Grupo Sadia (hoje BRF) para prefeito de Concórdia (1950) com apoio dos Ramos, formando uma nova associação entre o capital comercial e o industrial. O empresário viria a ser Senador por Santa Catarina em 1962, depois de ser secretário da agricultura no governo de Celso Ramos e, em 1970, por voto indireto foi eleito vice-governador na chapa encabeçada por Colombo Machado Salles. Em 1954 e 1958, foi eleito também Deputado Federal.

Para o comando político, unem-se proprietários de terra do Planalto, PPMs e comerciantes do litoral e encostas. O poder local catarinense tinha agentes econômicos principais (Renaux, Hering, Hoepcke e Konder) ligados por laços de parentesco, amizade e solidariedade nos negócios, numa estrutura que formou as suas redes empresariais. A participação de empresários na política catarinense é evidente desde o início do Período Republicano e se fortalece com o pacto de poder no Estado Novo, dando suporte às classes de comerciantes, banqueiros e industriais que eram ligadas entre si (May, 1998).

Com isso, são verificadas vias combinadas de desenvolvimento em SC dirigidas pelo comando estatal (prussiano) num território sem uma identidade comum, que se realiza através da unidade política e econômica (capital industrial) na sua regionalidade e diversificação (Mamigonian, 1984). Trata-se da Terceira Dualidade de Rangel (1999), que acontece com a chegada ao poder de camadas sociais nacionalistas formadas pela aliança de latifundiários (acumulação primitiva) e da burguesia industrial nascente (Bastos, 2000). Tais processos também se impõem na implantação de infraestruturas, como o caso das estradas de ferro no Vale do Itajaí e no Nordeste catarinense, a formação da indústria de eletricidade nas décadas de 1950 e 1960 (Mamigonian, 1974) e, mais recentemente, das próprias redes de gás natural no território catarinense (Estrella, 2023).

 

5 Reflexos do pacto de poder no gás natural catarinense

O crescimento socioeconômico dos municípios catarinenses está associado ao desenvolvimento dos diversos tipos de infraestruturas existentes, com a diversidade da colonização e dos ramos produtivos (Mamigonian, 2011) que formam as capitais regionais estaduais determinando desigualdades urbanas menos evidenciadas do que nos territórios de grandes metrópoles brasileiras. A dinâmica econômica catarinense se distribui na fachada Atlântica do território, onde há maior acesso e proximidade das infraestruturas.

Como ferramenta de desenvolvimento, o gás natural se associa a essa realidade para entrar em operação no início dos anos 2000, após a formação industrial catarinense, com a indústria têxtil Döhler de Joinville sendo o primeiro cliente abastecido. A fachada Atlântica concentra maior demanda pelo energético e por isso foi priorizada no abastecimento. Exemplos no mundo também constatam o foco da oferta do insumo em espaços de maior consumo potencial (especialmente industrial), como nas regiões Norte da Itália, Sul da Grécia e Sul de Portugal (Estrella, 2023).

Logo, esse serviço essencial e de utilidade pública impulsiona as regiões abastecidas em detrimento das desabastecidas. Por exemplo: indústrias de telhas cerâmicas esmaltadas da cidade de Sombrio (Sul) deixaram de operar ou se deslocaram para Araranguá (também Sul), município localizado a menos de 30 quilômetros de distância e com acesso à rede de gás natural; a Cebrace, líder brasileira na produção de vidro plano, não se instalou no município de Lages (Planalto) pela ausência do insumo e opera até hoje em Barra Velha (Litoral Norte); e a fábrica de automóveis da BMW (Litoral Norte) escolheu a também abastecida Araquari, promovendo intenso crescimento urbano e do PIB/IDHM do município em índices acima da média estadual e nacional (Estrella, 2023).

Mesmo que a disponibilidade de energia não seja um único fator que leva à concentração industrial, Perlotti et al. (2016) identificam o mesmo fenômeno em São Paulo. Demonstram que a oferta de gás natural teve importância na localização das indústrias paulistas, com efeito maior nas de caráter termointensivo: a presença de gasodutos de distribuição revela uma correlação positiva e significativa com o volume de emprego e renda enquanto, ao mesmo tempo, o aumento do custo de transporte e logística inibe a localização produtiva. Ou seja, a “concentração” dos gasodutos leva também à concentração industrial. De forma sinérgica, os ganhos decorrentes da redução de custo com o transporte e a produção de derivados pelo uso do energético gera aglomeração, conforme estudos sobre fatores que influem na localização industrial realizados por Piquet e Miranda (2009).

Análise de Mamigonian (1976, p. 84) sobre a localização industrial nacional demonstrou que há também o fenômeno denominado “bola de neve”, em que a “indústria atrai nova indústria”. No caso catarinense, o advento da BMW, em 2014, confirma essa tendência, pois em 2022 somavam 14 unidades fabris em Araquari abastecidas com gás natural, que se constituíram justamente para atender às demandas da nova fábrica. As indústrias cerâmicas também originalmente se localizaram perto da matéria-prima por sua característica termointensiva produtiva. No início, consumiam carvão, passando depois ao gás liquefeito do petróleo (GLP). Quando passou a ser ofertado, o gás natural[31] tornou-se o segmento de insumo mais demandado no estado ao longo de sua história (Estrella, 2023).

Moser et al. (2021) também confirmam essa realidade ao avaliarem a evolução (em 2002, 2009 e 2016) de índice municipal-industrial em SC, concluindo não ser aleatória a distribuição das indústrias nos espaços catarinenses. Identificaram uma autocorrelação espacial, em que os municípios com setores industriais relevantes para sua economia são vizinhos de cidades com características produtivas similares. As regiões do Vale do Itajaí e do Nordeste catarinense se destacam nessa evidência, configurando-se como as que mais centralizam os setores industriais.

Essa submissão à infraestrutura pela especialização industrial ajuda a explicar os pactos de poder que surgiram para formar esse sistema. Primeiro destaca-se que SC é o único estado brasileiro em que representantes do setor de consumo figuram entre os sócios da distribuidora de gás estadual (SCGÁS). A Infragás, formada originalmente por mais de 100 indústrias (a maioria do ramo cerâmico), detém capital da concessionária do serviço e integra o conselho de administração da empresa estatal. Foi ela a entidade que, em conjunto com a FIESC, coordenou as atividades[32] que mobilizaram o governo federal a rever o traçado do Gasbol[33] (Petrobras), infraestrutura de rede de transporte que antes atenderia apenas o estado de São Paulo.

Essa necessidade de rever o projeto do principal gasoduto de transporte nacional exigiu o primeiro pacto de poder entre os consumidores ávidos pelo gás natural[34]: a Petrobras (via Gaspetro), o Governo de Santa Catarina e o investidor estadunidense (Gaspart do falido Grupo Enron) constituíram a nova empresa (1994). O quadro 3 expõe essa correlação entre o principal setor de consumo e o poder concedente do serviço (estado subnacional), na escolha dos presidentes pelo governo para liderar a empresa.

Dos presidentes da SCGÁS nomeados pelos governos estaduais, Roberto Makiolke Wolowsk (Tec-Cer de São José), Luiz Gomes (Portobello de Tijucas), Otair Becker[35] (Oxford de São Bento do Sul) e Otmar Müller (Eliane de Cocal do Sul) representam o setor de consumo. Já o período de 2007 a 2019 é marcado por gestões políticas de três dirigentes do Planalto Catarinense[36] que fomentaram a implantação da infraestrutura de rede de Indaial (Vale do Itajaí) a Lages (Planalto), pela BR-470. Foram administrações que se associaram às demandas dos industriais, incorporando as pautas competitividade tarifária e maior interiorização da oferta do gás.

 

Quadro 3 - Presidentes da SCGÁS (1994-2023)

Período

 

Governador de SC

 

Presidentes da SCGÁS

 

1994-1995

Antônio Carlos Konder Reis

Roberto Makiolke Wolowsk

1995-1999

Paulo Afonso Evangelista Vieira

Arno Bolmann

1999-2003

Esperidião Amin

Luiz Gomes

2003-2006

Luiz Henrique da Silveira

Otair Becker

2006-2007

Eduardo Pinho Moreira

2007-2010

Luiz Henrique da Silveira

Ivan César Ranzolin

2010-2011

Leonel Pavan

2011-2015

Raimundo Colombo

Altamir Paes (2011)

2015-2018

Cósme Polêse (2011-2019)

2018-2019

Eduardo Pinho Moreira

2019-2022

Carlos Moisés

Willian Anderson Lehmkuhl

2023-2026

Jorginho Mello

Otmar Josef Müller

Fonte: Vision Gas (2024).

 

Duas administrações se distanciaram dessas duas regras: a de Arno Bollmann e a de Willian Lehmkuhl. O primeiro, embora ligado ao PMDB (partido que governava o estado), era técnico da UFSC[37] e administrou a empresa em período pré-operacional, contribuindo com projetos de eficiência energética, por sua experiência na universidade e atuação no mercado profissional como colaborador na própria companhia. O segundo, funcionário de carreira da empresa, incorporou as ideias da episódica gestão estadual[38] junto com a controladora Celesc[39] que o nomeou, período em que se forma uma ruptura com as pautas principais do principal mercado de consumo.

De 2019 a 2022 a opção foi por praticar uma das tarifas mais onerosas do Brasil (mudança na política de preços para acelerar novos investimentos em segmentos de mercado de baixo consumo), impactando demasiadamente o sistema produtivo e inviabilizando o desenvolvimento do segmento automotivo, que perdeu mercado (Estrella; Rocha 2023). A empresa se reposicionou, passando a focar o atendimento no segmento residencial[40] (de maior custo e complexidade operacional, realidade típica do varejo) e sofre, ainda atualmente, destacado processo de empresarização e financeirização com foco voltado ao rentismo.

O reposicionamento da última administração, que se deu associado às duas alterações acionárias[41] e ao desinvestimento da Petrobras, sugere potencial rompimento do pacto de poder com a tendência de isolamento do mercado termointensivo de consumo e do próprio Estado como poder concedente e entidade de regulação e fiscalização. No Brasil, os dois atores presentes na concessionária (Compass e Mitsui) dominam[42] 69,5% do volume consumido, 64,7% dos clientes, 64,3% dos municípios atendidos e 44,6% da rede implantada, considerando toda a operação do elo de distribuição de gás natural do país.

Pautado pelo setor de consumo, o atual Governo Estadual (2023-2026) traz de volta um industrial para gerir a empresa a partir de 2023. Para nomear Otmar Müller, a Infragás (Cláudio Ávila da Silva e Edson Gaidzinski) e a FIESC (Mário César Aguiar) fecharam acordo sob o comando dos dois principais e maiores consumidores históricos de gás natural em SC: as cerâmicas Portobello (Tijucas) e Eliane (Cocal do Sul), revelando-se nesse caso o papel das frações de classes econômicas dominantes que contam com o suporte do Estado. As tarifas onerosas e a insistência em privilegiar o setor residencial poderão ser causa para a ruptura da relação entre essas duas empresa cerâmicas que, historicamente, disputam a hegemonia do gás no estado.

Entende-se ainda que essa unidade dialética, formada historicamente entre o principal mercado de consumo e o estado, pode ser afetada pelo fato de que o Governo Federal anterior (2019-2022) incentivou a venda do ativo Gaspetro da Petrobras ao Grupo Cosan e, que o atual governo estadual catarinense (2023-2026), de mesma linha ideológica e pauta pública, terá de lidar com o conflito entre os sócios privados da SCGÁS e as necessidades e pautas colocadas pelos industriais. Uma escolha que deverá ser tomada entre o rentismo empresarial de uma concessionária de serviço público e o desenvolvimento do estado, através do incentivo à produtividade. Assume-se, por fim, que se a herdada política tarifária da SCGÁS não for revista, poderá o cluster cerâmico catarinense deslocar-se para os estados do Nordeste e São Paulo, e até mesmo para o exterior, como acontece com a cerâmica Portobello, que inaugurou fábrica nos EUA em 2023. Essa realidade se materializa com a forte queda no consumo de gás natural pelas indústrias verificada no período de 2021 a 2024 (Vision Gas, 2024).

 

6 Discussões finais

Com base nas teorias apresentadas acima, que consideraram os aspectos nacionais e regionalizados, identificou-se que os líderes do processo de FSE catarinense ocuparam espaços de liderança política e empresarial de forma simultânea, absorvidos na área política em razão do desempenho econômico regional como consequência da Revolução de 1930 no Brasil. Ou seja, evidenciam-se em SC os pactos de poder (junção dos latifundiários com as PPMs) formados para implantar o modo de produção capitalista, como bem identificado por Rangel e analisado por Mamigonian. Ação essa derivada da via de desenvolvimento que comanda o processo de industrialização nacional/estadual, ou seja: a Via Prussiana ou a Revolução Passiva. A Via Combinada em SC se forma por ser o comando político dirigido pela classe representante dos latifúndios (voltada ao mercado interno) que se associa à burguesia industrial, esta como coadjuvante da transição. Em SC, assume-se que essas vias são mais desenvolvimentistas do que no Estado-nação, o que ajuda a compreender a especificidade da formação do seu sistema industrial diverso e seu processo de desindustrialização mais tênue.

Essa realidade se reflete também no processo de surgimento e desenvolvimento da infraestrutura de gás natural em SC. O atendimento aos setores termointensivos dentro da regionalidade catarinense (cerâmico no Sul, têxtil no Vale do Itajaí e metal-mecânico no Nordeste) e a posterior interiorização da oferta do gás para o Planalto Leste confirmam esse ponto. Atualmente, com o potencial direcionamento da rede (isolada) para o Oeste, para atender à demanda da fábrica da Kellogg’s (Parati Alimentos) de São Lourenço do Oeste, essa tese poderá ser reafirmada. Com isso, atesta-se a necessidade de ofertar o insumo com tarifa competitiva para o setor produtivo. Como apresentado, esse último fator se dissolve quando a gestão da concessionária do serviço se afasta dos dois lados dos pactos de poder (político-econômico e proprietários de terra-PPM, que atualmente formam grandes marcas empresariais que competem internacionalmente).

Esse ponto merece atenção porque, como se viu aqui, o Brasil vivenciou um período de desindustrialização importante, exigindo novas políticas industriais. Especialmente em razão dos gargalos de desenvolvimento que se formam pela ausência de nova infraestrutura e pelo processo de dolarização das commodities, aspectos que atrasam e oneram o sistema produtivo nacional. Deve-se também focar o processo de regulação e fiscalização de concessionárias de serviços de utilidade pública ou essenciais, para garantir que os modelos de concessão ao setor privado não sejam contaminados pela empresarização nem pelo rentismo descabido sob o comando de investidores (dos polos interno e externo) sem compromisso com o desenvolvimento regional nem com as necessidades locais. Desafio que se potencializa em SC, pois os ramos produtivos do estado são bem diversificados e têm características locais bem definidas que exigem soluções específicas para os serviços de utilidade pública que contam com a pressão das classes de poder (especialmente as frações de classes) formadas da política para o setor econômico e do setor econômico para a política.

Em estudos futuros pode ser analisado o caráter da formação histórica dos partidos políticos de Santa Catarina e suas associações com os setores produtivos, no intuito de evitar que seja assumido, sem análise mais acurada, que os pactos se igualam, na linha do tempo, em características e composições. Como essas alianças duais se constituem com frações do poder econômico e no revezamento do comando político, as potenciais diferenças nos aspectos desses acordos poderiam aprofundar a compreensão sobre a FSE catarinense.

Pode-se ainda verificar se a aliança de poder que atrai a infraestrutura de gás natural em SC seria revelada também nos demais estados subnacionais, considerando a forte concentração desse mercado em dois agentes (Compass e Mitsui). Sabe-se que os contratos de concessão do serviço de distribuição de gás natural guardam muitas similitudes geradas quando a Constituição de 1988 determina que os estados subnacionais ofertem a exploração do serviço (a partir de 1990), revelando a participação prevalente na aquisição das concessões pelo capital estadunidense no primeiro momento (1994-2005) e pelo japonês (2005-2022) no segundo momento, ato concomitante com os sucessivos processos de enfraquecimento da Petrobras (1995, 2015 e 2022) nesse elo do setor e o consequente fortalecimento do Grupo Cosan (família Ometto), empresa do agronegócio nacional.

 

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VIEIRA, Maria Graciana Espellet. Formação social brasileira e geografia: reflexões sobre um debate interrompido. 144 f. 1992. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Departamento de Geociências do Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1992.

VISION GAS - Núcleo de Estudo, Pesquisa e Observatório de Gás Natural. Repositório. Florianópolis: NEPO, 2024.



[1] Mesmo considerando que o processo de transição do feudalismo para o capitalismo encontra controvérsias entre os marxistas e ditos marxistas em pesquisas e estudos sobre o Brasil, os autores entendem que: (i) as ideias de Marx, avançadas em Lenin, são teórico-metodologicamente insuperáveis; (ii) Rangel e Mamigonian, em suas extensas obras, revelam fidelidade e aplicam o pensamento marxista-leninista clássico; e (iii) conforme Armen Mamigonian, o marxismo se desvirtua da sua pauta (luta de classes e imperialismo), que reconhece a força do papel do modo de produção na dinâmica sócio-espacial, através do denominado “marxismo de salão” ao assumir questões não fundamentais para enfrentar a desigualdade social e a disputa geopolítica na periferia, em um mundo de destacado protecionismo inserido no falso conceito de globalização. Noutros termos, o caminho para o Socialismo pede atitudes anti-imperialistas.

[2] Casos também do Japão, Alemanha, Itália e Rússia (União da República Socialista Soviética – URSS).

[3] “senhores feudais nacionalistas assumiram um certo grau de soberania frente ao imperialismo e lideraram o processo de industrialização capitalista, […] com a Revolução de 1930” (Mamigonian, 2019, p. 33).

[4] Concorda-se com Ramos; Bastos (2021) que Milton Santos aproximou a teoria marxista da disciplina geografia com a “eleição” da FSE numa necessária e fundamental categoria de pesquisa.

[5] “…filho da filosofia clássica alemã, enxergou o fim do capitalismo em decorrência de revoluções proletárias vitoriosas na Inglaterra, França e Alemanha, criando uma força gravitacional no mundo inteiro.” (Mamigonian, 2020, p. 307). Como o marxismo na prática aplicado há 70 anos pelo singular modelo chinês de desenvolvimento (Jinping, 2019).

[6]Aliás, Marx no citado capítulo da acumulação primitiva e em alguns outros analisou a transição do feudalismo ao capitalismo, um exemplo de como o marxismo pode ajudar a geografia a aplicar o paradigma de formação social ou sócio-espacial como queria M. Santos, para entender o mundo, as nações e as regiões.” (Mamigonian, 2019, p. 22) – Dobb (1978), citando Marx no mesmo Capital III (Capítulo 20), concorda que essa transição foi suportada por meio da acumulação de capital.

[7] Hobsbawn (1995) destaca que a Inglaterra não era um estado burguês, mas sim uma oligarquia de aristocratas proprietários de terras liderada por um núcleo da nobreza que se autoperpetua em torno de cerca de 200 pessoas, em um modelo de ligações matrimoniais com o respaldo de duques.

[8] “É daí que Dobb (1977, p.60) acerta em privilegiar ‘as contradições internas’ como motor da dissolução do feudalismo na Europa, embora no caso brasileiro, caberia considerar a tese do capitalismo comercial de Sweezy, já que ‘na origem de nossa economia está um ato de comércio exterior em estado puro, por assim dizer’. (Rangel, 1957, p. 71) que depois daria origem a via prussiana brasileira com a Revolução de 1930.” (Ramos; Bastos, 2021, p. 2).

[9] Revolução Puritana Inglesa do século XVII e Revolução Francesa do século XVIII (Mamigonian, 2019).

[10] Assim qualificado por Prado Júnior (1970) em seu estudo sobre a FS do Brasil.

[11] Economias periféricas do capitalismo ou países atrasados social e economicamente, como identificou Lenin na Turquia e nos impérios austro-húngaro e russo.

[12] Ritmos industriais mundiais, de durações variadas, inaugurados no final do século XVIII com a Primeira RI. Contempla períodos ascendentes (a) e descendentes (b), apresentam ciclos decenais ou médios (Ciclos Juglarianos) e ciclos longos, estes últimos de mais ou menos 50 anos de duração. Os ciclos decenais foram constatados por Karl Marx e Fiedrich Engels entre 1848 e 1857, sistematizados pelo francês Joseph-Clément Juglar (Juglar, 2022) e teorizados por John Maynard Keynes como passíveis de administrar por meio do papel estatal. Os ciclos longos, percebidos por Engels durante a longa depressão do século XIX, foram “desenhados” entre 1918 e 1921 pelo russo Nikolai Dimitrievitch Kondratieff (Mamigonian, 1999).

[13] O capitalista (comercial, industrial e financeiro) se torna o sócio-maior nos dois polos, deslocando o feudalismo.

[14] Década em que a inflação equivocadamente se torna a inimiga número um e período em que o país sofre uma crise de demanda pela estagnação da infraestrutura resultante da escassez de recursos externos, imposta pela dinâmica imperialista estadunidense e, também, associada à crise econômica global.

[15] O referencial de Lenin (2012) coloca o imperialismo como determinante para reação dos países periféricos com base na realidade socioeconômica de cada um. Para Lenin, “a luta anti-imperialista deveria ganhar prioridade em comparação aos conflitos entre operários e patrões nos países coloniais e semi-coloniais.” (Mamigonian, 2019, p. 31). Com isso, avança-se no conceito de luta de classes, com o monopólio sendo produto do capital, e a livre-concorrência, ferramenta de concentração econômica e de domínio politico.

[16] “O governo Reagan conseguiu impor resultados brilhantes ao forçar a supervalorização do yen, ao ameaçar a URSS com a Guerra nas Estrelas e ao impor ao Brasil o combate à inflação, resultando no plano Cruzado, que provocou um longo processo de desindustrialização, que dura até hoje.” (Mamigonian, 2022, p. 13).

[17] A ideia Cepalina assumida por Celso Furtado de que a periferia do sistema seria pré-capitalista não se sustenta (Mamigonian, 1990). O Brasil forma seu edifício industrial completo de 1930 a 1980.

[18] Embora não contemplado nesta pesquisa, convém lembrar que Trotski (1985) desenvolveu sua própria ideia de Revolução Socialista. A teoria da “Revolução Permanente” considera que em países burgueses atrasados (coloniais e semicoloniais) o caminho para a democracia se daria por meio de uma indissolúvel “ditadura do proletariado” em aliança com o campesinato, de caráter contínuo devido à complexidade social e à utópica capacidade de alcance do estado de equilíbrio socioeconômico.

[19] Com a vitória da Revolução Bolchevique de 1917 na Rússia, o Mundo vivencia um período de transição do capitalismo ao socialismo (Mamigonian, 2018).

[20] “imigrantes que ‘vieram com o capitalismo em seus ossos’ e eram 'capitalistas sem capital’” (Bastos, 2000, p. 132).

[21] Extração de carvão que ganhou incentivo estatal para ampliar o consumo interno da produção nacional (Bastos, 2000).

[22] Rocha (1994) menciona também efeitos da tardia industrialização da Alemanha na FSE catarinense. Como a industrialização inicia de forma atrasada e enfraquecendo a estrutura feudal, gera-se excedente de mão de obra que imigra para o Brasil fundando núcleos coloniais em Joinville (1850) e Blumenau (1851).

[23] Em SC, Júlio Prestes (Konder-Bornhausen) foi mais votado que Vargas (Ramos). Com isso, a Revolução de 1930 altera a configuração de poder no Estado (May, 1998).

[24] Na análise tomam-se dois dados: empresários que ocuparam cargos (vice-governança ou secretarias de destaque) nos governos estaduais; e empresários de municípios (Blumenau, Brusque, Chapecó, Cruzeiro do Sul [depois Joaçaba], Florianópolis, Joinville, Lages e Tubarão) que foram prefeitos. O resultado demonstra que há o destacamento histórico de forças econômicas regionais para formação dos pactos de poder; a ligação dessas lideranças se associa em equilíbrio tanto aos partidos de pauta liberal/conservadora (PLC, UDN [contrária ao Estado Novo, como o caso dos Konder], Arena e PDS) quanto aos partidos (ditos) progressistas (PSD [moderado e getulista], PTB e MDB).

[25] Os Ramos ocuparam de forma direta a prefeitura de Lages por 25 anos no período de 1930 a 1980. E, mesmo antes do Estado Novo (desde 1850), a família já dominava o poder municipal (May, 1998). Ainda em 1935, a família se divide politicamente: os primos Nereu Ramos e Aristiliano Ramos passam a ocupar campos políticos opostos: Aristiliano se une a Adolfo Konder e Henrique Raupp Jr. para formar a UDN em 1945, enquanto Nereu militou no PSD (Tancredo, 2011).

[26] Os cargos verificados foram: secretários da administração, da educação, da segurança pública e da fazenda. Identificou-se a prevalência de industriais e comerciantes em cargos da secretaria da fazenda, (Quadro 2, líderes empresariais no governo). Há diversos casos em que empresários-prefeitos assumiram a função de secretário e, da mesma forma, empresários-secretários que lideraram prefeituras municipais.

[27] Em 1940, o estado foi responsável por 1,8% da produção industrial com 2,9% da população e, em 1980, atingiu 4% da produção industrial e 3% da população (Mamigonian, 2011). Segundo dados da CNI, em 2020, esses indicadores avançaram: a produção industrial representou 5,3% na relação ao total nacional e, pela estimativa do IBGE, a população representava 3,5%.

[28] May (1998) identificou que o Vale do Itajaí (Konder-Bornhausen) e o Planalto Serrano (Ramos), mesmo durante a Primeira República (1889-1929), já coordenavam a vida política de Santa Catarina.

[29] Organização formada sob coordenação de Jorge Konder Bornhausen para atender demandas por recursos de fração do setor empresarial catarinense e formar sociedade com empresas de infraestrutura e de insumos (Goularti Filho, 2001; Silva, 1996).

[30] O objetivo era ter uma empresa de siderurgia no Sul do país para dar suporte ao processo de desenvolvimento industrial e limitar a entrada de capital de outros estados subnacionais brasileiros.

[31] As propriedades físico-químicas do gás natural e do GLP são distintas: o GLP é formado majoritariamente por butano, e o gás natural, por metano, o que torna o processo de queima deste último mais limpo e constante, favorecendo setores produtivos termointensivos.

[32] Um dos líderes do processo foi Cláudio Ávila da Silva, atual vice-presidente do Grupo Portobello (onde já havia atuado na Usina de Açúcar de Tijucas) e personalidade ligada politicamente tanto aos Ramos como aos Bornhausen. As famílias Ramos (Lages) e Konder/Bornhausen (Itajaí) foram adversárias políticas entre 1920 e 1960; após, formaram coalizão de forças. Foi também deputado constituinte, federal e estadual e prefeito de Florianópolis por voto indireto; ocupou outros cargos públicos, como a presidência da Eletrosul e da Eletrobrás.

[33] O Gasoduto de Transporte Bolívia-Brasil, infraestrutura que é fruto de sociedade entre as estatais Petrobras e a boliviana YPFB, importa o gás boliviano e atualmente atende parte de SP, a Região Sul do país e o Mato Grosso do Sul. É o maior gasoduto de transporte da América Latina em extensão, com total de 3.150 km (557 km implantados no território da Bolívia e 2.593 km no espaço brasileiro).

[34] Insumo fundamental para o ramo cerâmico catarinense competir com o polo de Santa Gertrudes em SP e, inclusive, internacionalmente, com mercados como o italiano e o chinês. Seu custo e forma de aplicação (despesas com operação logística) são mais competitivos que carvão e GLP, e seu processo de queima melhora a qualidade final dos produtos.

[35] Embora tenha sido também prefeito de São Bento do Sul (1966-1970), senador da república (assumiu como suplente de Antônio Carlos Konder Reis de 1975 a 1979) e deputado estadual (1983-1987), Becker chegou à política através da sua atividade produtiva e como dirigente de associação empresarial, realidade correlata à catarinense exposta no tópico 4.

[36] Ivan César Ranzolin foi prefeito de Lages e deputado estadual; Cósme Polêse foi vice-prefeito e vereador pela mesma cidade, além de deputado suplente; e Altamir Paes foi prefeito de Otacílio Costa. Este último teve um mandato curto na SCGÁS quando decidiu afastar-se das pautas do mercado industrial.

[37] UFSC e SCGÁS fecharam parcerias para formar seu quadro técnico a partir da constituição da empresa em 1994. Inicialmente, foram trazidos engenheiros por meio de convênio, mas depois, por exigência do Ministério Público do Trabalho, com a realização de concurso público (2006).

[38] Em boa parte de sua gestão, o governo Carlos Moisés se pautou pelo distanciamento das forças produtivas e políticas do estado, o que quase lhe custou o mandato em dois processos de impeachment, comandado pela ALESC.

[39] Em 2006, a Celesc passa a controlar a SCGÁS (com 51% das ações ordinárias) ao adquirir 17% do capital social da empresa que pertencia desde a fundação da empresa ao Governo de Santa Catarina.

[40] As cidades com urbanismo predatório e destacada aglomeração urbana e forte verticalização viram alvo de atendimento da empresa. Se antes focava-se no atendimento residencial em capitais regionais como Florianópolis e Criciúma, agora investimentos são direcionados aos setores de forte especulação imobiliária como os balneários de Balneário Camboriú e Itapema e, também, a cidade de Itajaí.

[41] Em 2005 e 2015, a Mitsui compra a Gaspart do Grupo Enron e 49% da Gaspetro e, em 2022, o Grupo Cosan, através da sua subsidiária Compass, compra 51% da Gaspetro e passa a formar, com a Mitsui, a Commit Gas.

[42] Considerando o capital social pertencente aos diversos acionistas desse elo do setor por Estado e concessionária (distribuidora de gás) no país e aplicando a proporcionalidade desse capital aos indicadores de atendimento realizados em 2021, conforme dados da ABEGÁS. O objetivo foi demonstrar o grau de presença do capital de cada sócio nos índices e nos resultados das distribuidoras que operam nos estados subnacionais e, em especial, o grau de concentração do negócio evidenciado em apenas dois dos seus diversos investidores.



[i] Artigo recebido em: 29/09/23

 Artigo aprovado em: 25/10/24

[ii] Contribuições do autor: conceituação; curadoria de dados; investigação; metodologia; administração do projeto; validação; visualização; escrita – rascunho original e escrita – análise edição.

[iii] Contribuições do autor: conceituação; metodologia; supervisão e escrita – análise e edição.

[iv] Contribuições da autora: conceituação; metodologia; recursos; supervisão e escrita – análise e edição.

[v] Contribuições do autor: curadoria de dados; investigação e escrita – anális e edição.