Problematizando “o perigo de uma história única” na formação universitária: contribuições das intelectualidades negras[i]
Ivone Maria Mendes Silva
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Belo Horizonte, MG - Brasil
lattes.cnpq.br/4239723760023529
Problematizando “o perigo de uma história única” na formação universitária: contribuições das intelectualidades negras
Resumo
No Brasil, a população negra representa um dos grupos mais atingidos pela vulnerabilidade socioeconômica e por diversas formas de violência perpetradas institucional e culturalmente, muitas das quais com conivência do Estado. Parte desse contexto, a inclusão-excludente e a exclusão educacionais que atingem milhões de negros/as brasileiros/as são processos que precisam ser mais bem compreendidos e combatidos. No presente artigo, entende-se que as intelectualidades negras podem contribuir nesse sentido de diferentes maneiras. O enfoque analítico aqui privilegiado volta-se à problematização das possíveis causas e efeitos da ausência/presença, no currículo das disciplinas de graduação e pós-graduação das universidades brasileiras, de produções de intelectuais negras como Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, bell hooks, Conceição Evaristo, Nilma Lino Gomes, Chimamanda Adichie, entre tantas outras. O estudo descrito alicerçou sua fundamentação teórica principalmente na epistemologia feminista negra, tendo sido utilizadas, como parte do desenho metodológico, estratégias de natureza etnográfica (observação participante e registro de narrativas orais produzidas por estudantes no contexto de sala de aula), além de pesquisa bibliográfica. Foi possível constatar a importância de a universidade assumir, no presente e no futuro, um papel ativo no combate aos mecanismos que, em seu interior e na sociedade mais ampla, deslegitimam os/as negros/as como sujeitos de conhecimento.
Palavras-chave: intelectuais negras; universidade; formação de professores/as; decolonialidade; currículo.
Problematizing “the danger of a single history” in university education: contributions from black intelligentsia
Abstract
In Brazil, the black population represents one of the groups most affected by socioeconomic vulnerability and by various forms of violence perpetrated institutionally and culturally, many of which with the collusion of the State. Part of this context, the educational exclusion and educational inclusion-exclusion that affects millions of black brazilians are processes that need to be better understood and combated. In this article, understand that black intellectuals can contribute in so many different ways. The analytical approach that is privileged focuses on problematizing the possible causes and causes of the absence/presence of productions by black intellectuals such as Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, bell hooks, Conceição Evaristo, Nilma Lino Gomes, Chimamanda Adichie, among many others, in the curriculum of undergraduate and postgraduate disciplines at Brazilian universities. This study is described by its theoretical foundation mainly in black feminist epistemology, tends to use, as part of the methodological design, ethnographic strategies (participant observation and recording of narratives or products produced by students in the classroom context), in addition to bibliographical research. It was possible to verify the importance of the university assuming, in the present and in the future, an active role in combating the mechanisms that, within itself and in broader society, delegitimize black people as subjects of knowledge.
Keywords: black intellectuals; university; Teachers' education; decoloniality; curriculum.
1 Introdução
Atuando há quinze anos no Ensino Superior em cursos de formação de professores/as em universidades públicas situadas em diferentes regiões do Brasil, pude acompanhar de perto algumas das mudanças recentes ocorridas na universidade enquanto instituição e no público que a frequenta. Uma das mais significativas refere-se à crescente presença de estudantes negros/as na Educação Superior pública e o aperfeiçoamento das políticas[1] e mecanismos voltados à sua inclusão educacional.
Desde que iniciei essa etapa de minha carreira docente – período que coincidiu com a consecução do meu mestrado em educação –, tornou-se um foco de interesse problematizar as experiências que os sujeitos pertencentes a minorias[2] sociais, e étnico-raciais principalmente, têm podido acessar e construir no/a partir do contexto universitário e o quadro político e sócio-histórico mais amplo no qual se inserem suas trajetórias. É no âmbito de pesquisas como a aqui apresentada e partindo da observação, registro e descrição densa[3] de cenas e/ou narrativas[4] que compõem o universo acadêmico (cotidiano da sala de aula na Educação Superior), que tenho produzido reflexões sobre o tema, ao mesmo tempo em que busco construir conhecimentos com os/as estudantes, na medida em que me interesso pela forma como esses atores sociais interrogam e refletem, eles próprios, sobre suas experiências.
Em relação ao quadro sócio-histórico e político no qual se insere essa discussão, cabe assinalar que as iniciativas voltadas à efetivação do ingresso e permanência de estudantes afrodescendentes nas universidades de nosso país começaram a ser, de fato, implementadas apenas recentemente (últimas décadas). Com a expansão do autorreconhecimento[5] da população negra brasileira e as mobilizações políticas agenciadas por diversos setores da sociedade atuantes na luta contra as desigualdades raciais e socioeconômicas, especialmente o Movimento Negro[6], houve a aceitação da legitimidade, pelo ordenamento jurídico brasileiro, de demandas e reivindicações que resultaram em conquistas no campo dos direitos coletivos.
Importa frisar, como propõem Gomes (2017) e Gomes, Silva e Brito (2021), que as políticas de ações afirmativas de promoção da igualdade racial na educação não existiriam, no Brasil, sem a ação do movimento negro com seu “perfil político educador e força reivindicativa/propositiva” (Gomes; Silva; Brito, 2021, p. 2). Força essa intensificada a partir dos anos 2000, levando a questão racial a ser tratada como uma política de Estado. Entre os marcos desse processo, no âmbito nacional, podemos citar a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003, seguida da aprovação da Lei 10.639/2003 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de “história e cultura afro-brasileira e africana” em todas as escolas, do ensino fundamental ao médio; a adoção, em 2004, das Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações étnico-raciais, estendendo esse trabalho e orientando sua implementação; a criação, no mesmo ano (2004), da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) (Gomes; Silva; Brito, 2021).
Outro acontecimento significativo na luta pela promoção da igualdade racial na educação foi a promulgação da Lei Federal n° 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, que prevê a reserva obrigatória de vagas, nas instituições federais de ensino superior e técnico, para alunos/as egressos/as de escolas públicas, de baixa renda e autodeclarados/as negros/as ou indígenas (Brasil, 2012).
Ademais, ao longo dos últimos anos, iniciativas regionais e locais também catalisaram mudanças em prol da igualdade racial na educação, podendo ser lembrado o fato de que algumas instituições de ensino superior discutiram e promoveram a incorporação da temática em seus currículos de graduação. Dessa maneira, diversos são os passos que têm sido dados no sentido de criar e consolidar ações e políticas públicas afirmativas que resultem na expansão da presença negra nas universidades brasileiras.
Não obstante os importantes avanços e conquistas efetivados, parcela considerável dessa população segue sendo alvo, na atualidade, de exclusão social e educacional ou, o que tem sido muitas vezes subestimado em seus impactos, de “inclusão-excludente”, no âmbito da qual diferenças étnico-raciais, mas também sociais, culturais, econômicas, geracionais, de gênero etc. são sistematicamente ignoradas ou silenciadas (Veiga-Neto; Lopes, 2007, p. 949). É para esse último processo que lançamos luz no presente texto, buscando discutir como as produções de intelectuais[7] negras podem contribuir para sua compreensão e transformação. Focalizarei, em especial, as repercussões ocasionadas pela ausência ou presença dessas produções nos currículos de formação de professores, abordando, no exemplo analisado na sequência, o caso do curso de Licenciatura em Pedagogia ofertado por uma instituição pública federal[8] (campus situado numa cidade de médio porte do Sul do Brasil), marcada, desde sua criação, pela diversidade/heterogeneidade do corpo discente.
A definição de currículo que mais se volta na direção de nosso pensamento é formulada por Caldeira e Paraíso (2017), quando expressam seu entendimento de que currículo é um discurso que produz sujeitos de determinados tipos, ao integrar ou admitir como válidos de serem ensinados-aprendidos certos conhecimentos e saberes e não outros, partindo deles para instituir as ações, sentidos e relações de poder consideradas apropriadas para tempos, espaços e grupos sociais específicos (Caldeira; Paraíso, 2017). O currículo é também, nas palavras das autoras:
[...] um espaço de ensino, de experimentações, de vivências e de práticas que estão envolvidos em relações de poder-saber. Consideramos que nesse espaço operam dispositivos, tecnologias e técnicas que, muitas vezes, evidenciam conflitos culturais, políticos e discursivos, ao mesmo tempo em que disponibilizam diferentes modos de ser, estar e viver para os(as) envolvidos(as) no processo de ensino-aprendizagem (Caldeira; Paraíso, 2017, p. 144).
Assumimos ainda o pressuposto de que o racismo é uma relação de poder que se constitui por dentro das instituições sociais, compondo um todo e recebendo dele sustentação. Desse modo, sua desconstrução não se opera à parte da transformação das instituições nas quais encontra-se enraizado (Nogueira, 2017).
O que nos leva a relacionar essa discussão com outro debate candente: as contradições e desafios que têm marcado o processo de democratização da educação superior no Brasil, tanto nas instituições de ensino públicas quanto nas privadas. Essas contradições e desafios tendem a se tornar mais evidenciados quando consideramos que o processo de democratização envolve, para além do acesso (viabilizado pelo crescimento real da oferta de vagas nas universidades), a permanência e o êxito acadêmico, baseados no usufruto de uma formação com qualidade. Não podemos perder de vista também o fato de que para os grupos desfavorecidos/subalternizados, entre os quais encontram-se os sujeitos afrodescendentes, a inclusão efetiva requer a disponibilização de formas de apoio que vão do suporte financeiro, psicossocial e pedagógico à diversificação das oportunidades de escolha para a construção de percursos acadêmicos exitosos, assim como de ações propiciadoras do respeito e valorização de sua diferença/alteridade e, consequentemente, do fortalecimento de seu sentimento de pertencimento àquela comunidade (Ancillotti; Silva, 2023; Costa De Paula, 2017; Heringer, 2018; Marques; Ribeiro, 2019).
O presente artigo se organiza em duas seções, além dessa Introdução e das Considerações finais. A seção 2 traz a discussão teórico-conceitual que fundamenta a análise dos dados descritos na seção 3.
2 Exclusão social e educacional da população negra brasileira e suas raízes históricas
A temática da diversidade social e cultural tem sido amplamente discutida nos últimos anos no mundo, em especial a partir da segunda metade do século XX. Manifestações ocorridas ao longo das décadas de 1960 e 1970, capitaneadas por grupos “minoritários” ou “marginalizados” socioeconomicamente, deram voz a reivindicações e protestos contra situações de desigualdade e injustiça vivenciadas por eles. As ações desses grupos, somadas a outros eventos históricos, contribuíram para a construção de um cenário no qual o respeito à diferença (diferentes indivíduos, grupos e culturas) e a defesa da igualdade de direitos e oportunidades passaram a ser reconhecidos como necessários à consolidação e crescimento das sociedades democráticas (Zucchetti; Klein; Sabat, 2007).
Nesse cenário, a diversidade, antes vista como um “problema”, começa a ser tematizada e abordada nos espaços de debate político e acadêmico, entre outros setores da sociedade, como “construção social constituinte dos processos históricos, culturais, políticos, econômicos e educacionais” (Gomes, 2012, p. 688). Foram principalmente os movimentos sociais de caráter identitário (feministas, indígenas, negros, LGBTQIAPN+, quilombolas, comunidades tradicionais, povos do campo, pessoas com deficiência, entre outros) que lançaram as bases para que essa visão afirmativa da diversidade despontasse no Brasil a partir da década de 1980 (Gomes, 2012).
Assim, no contexto nacional, esse processo tem encontrado respaldo em ações e políticas públicas construídas em especial no/pelo campo da Educação, que sofre apelo e pressão social para considerar a “relação entre desigualdades e diversidade” (Gomes, 2012, p. 688). Vale lembrar, a título de exemplo, algumas delas: a promulgação e as tentativas de implementação de legislações como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1991), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996), os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (Brasil, 1998a), Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (Brasil, 2001), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2004), bem como o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (Brasil, 1998b). Essas são legislações que conferem destaque à questão das diferenças (étnicas, socioeconômicas e culturais, de gênero e de gerações, necessidades educacionais especiais, entre outras) e sua necessária consideração pelos currículos escolares e políticas educativas (Zucchetti; Klein; Sabat, 2007).
Zucchetti, Klein e Sabat (2007, p. 86) chamam atenção ainda para o fato de que, apesar dos inegáveis avanços relacionados à afirmação de direitos que tais documentos defendem e conclamam a tornar realidade, podem ser localizadas neles “reiteradas definições normativas da constituição da cidadania” e “prescrições que funcionam seja no sentido de ensinar ao cidadão mecanismos de resgate dos excluídos, seja no sentido de transformar o excluído em um sujeito incluído” (Zucchetti; Klein; Sabat, 2007, p. 86-87) que precisam ser problematizadas. Essas autoras nos convidam a construir uma visão mais crítica e complexa sobre o tema da diferença/diversidade/alteridade, colocando em discussão o que é ser um/a cidadão/ã e quais são as condições que tornam possível ou limitam, para determinados indivíduos e/ou grupos, o exercício pleno da cidadania no mundo em que vivemos.
Dada a importância do tema, diversas questões despontam como relevantes de serem tomadas como objeto de reflexão para o avanço do debate, mas cabe chamarmos atenção para as repercussões (socioeconômicas, políticas, identitárias, formativas etc.) das limitações que ainda hoje incidem sobre a população negra brasileira. População que sofre, como bem frisa Silvério (2019), um “déficit de cidadania” cujas raízes históricas profundas dificultam a legitimação de suas reivindicações por direitos e o alcance da inclusão com equidade (Silvério, 2019, p. 35).
Uma das maiores contradições do Brasil contemporâneo reside justamente no fato de que a adoção de modelos liberais e democráticos para a regulamentação das esferas públicas não foi acompanhada pela universalização do respeito aos direitos de cidadania. Em outras palavras, ainda que os direitos básicos de cidadania estejam constitucionalmente garantidos, eles não estão presentes, de fato, na realidade cotidiana de muitos/as brasileiros/as. Somos parte de uma sociedade profundamente hierarquizada (em termos raciais, sociais, culturais, epistêmicos etc.), na qual não raro ideias e práticas que são heranças coloniais e da escravidão prevalecem sobre os direitos humanos fundamentais (proclamados por sucessivas declarações, algumas delas universais, e reconhecidos, em princípio, pela lei de nosso país). E, quando esses direitos não são protegidos, a cidadania - enquanto capacidade de participação na vida em sociedade - tende a ficar comprometida. Trata-se de um círculo vicioso de perpetuação da desigualdade, como sinaliza Carneiro (2011). Ao ponderar sobre a discriminação e violência reiteradamente impingidas à população negra, esta autora fornece argumentos que nos ajudam a compreender que a naturalização das hierarquias e da desigualdade de direitos está no cerne da opressão e, consequentemente, da exploração daqueles considerados “menos humanos”: “Se alguns estão consolidados no imaginário social como portadores de humanidade incompleta, torna-se natural que não participem igualitariamente do gozo pleno dos direitos humanos” (Carneiro, 2011, p. 15).
Argumentando na mesma direção, Fleuri (2006) sublinha a necessidade de se problematizar a naturalização acima referida, chamando a atenção para a responsabilidade dos contextos educativos, sobretudo escolas e universidades, nesse processo, ao lembrar o desafio de “respeitar as diferenças e de integrá-las em uma unidade que não as anule, mas que ative o potencial criativo e vital da conexão entre diferentes agentes e entre seus respectivos contextos” (p. 497). Ainda contemplando a questão do desafio, ele pondera que a escola (da educação básica ao ensino superior) é um dos espaços em que mais se constata a existência de preconceitos (socioculturais, étnicos, de gênero e geracionais). Ela é palco da reprodução de processos que podem ser também identificados em outros segmentos da sociedade, mas se destaca por recorrentemente praticar o silêncio e a omissão face a situações discriminatórias que se manifestam em seu interior, quando deveria exercer sua função social e política de problematizá-los e combatê-los. Realidade que vem sendo identificada também por outros autores (Dayrell, 2002; Henriques et al, 2007; Valério et al, 2021).
Partindo de exemplos muito contundentes relacionados à expressão da diversidade sociocultural e de gênero nos ambientes escolares, Dayrell (2002) e Henriques et al (2007) demonstram a importância (cravejada de desafios) de a escola reconhecer e respeitar os sujeitos escolares em sua alteridade e por suas culturas próprias, construídas a partir de linguagens e realidades sociais ou existenciais que muitas vezes não são as compartilhadas pelos/as profissionais da educação ou representadas nos/pelos currículos existentes. Mais recente, o estudo de Valério et al. (2021), realizado numa universidade pública do estado de Alagoas, aponta o racismo institucional presente nos contextos escolares como um grande entrave à permanência da população negra em geral e, particularmente, das mulheres negras nessas instituições. O que se evidenciaria sobretudo no ensino superior.
Buscando abordar essa problemática de forma interseccional[9], faz-se pertinente refletir, conforme propõe Crenshaw (2002), sobre como as opressões raciais podem emergir, na realidade, combinadas a outras vulnerabilidades, tornando ainda mais complexa a compreensão e intervenção sobre o problema. Na situação sublinhada anteriormente (a das mulheres negras), a opressão de raça pode se entrecruzar com a de gênero no contexto acadêmico. E não somente as mulheres que ocupam os bancos escolares ou exercem ali a docência sofrem os efeitos negativos do racismo e sexismo combinados. As mulheres que tornam públicas suas ideias fazendo ciência, produzindo literatura e cultura, as mulheres negras intelectuais, de cujas produções temos sentido falta nos currículos dos cursos de graduação e pós-graduação. Não porque suas vozes não se fizeram ecoar na sociedade brasileira ou mundo afora, mas porque elas têm sido sistematicamente invisibilizadas como sujeitos de conhecimento pela colonialidade[10] do saber/poder.
Complementando essa análise, podemos entender que às marcas deixadas pela exclusão histórica proporcionada pelo colonialismo, somam-se as limitações impostas pela colonialidade/modernidade (Quijano, 2009), ou seja, um conjunto de processos essenciais à manutenção da estrutura de poder capitalista eurocentrada, os quais têm por base a adoção de critérios racistas/etnicistas para o estabelecimento de relações de dominação, exploração e conflito entre diferentes nações, culturas, grupos sociais etc. O protótipo de seu funcionamento, segundo Quijano (2009), nasce no final do século XV, com a colonização das Américas, como forma de atender às necessidades do capitalismo, tanto no plano econômico e social, quanto no cognitivo.
No sistema de poder capitalista, a distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos entre a população mundial é justificada e tem sua perpetuação garantida graças a processos de classificação social que se alimentam de hierarquizações (de classe, de gênero, raciais, sexuais, geográficas, linguísticas, epistemológicas, entre outras) produzidas em consonância com o projeto da modernidade e afirmadas como naturais. Assentadas na lógica binária ou dicotômica, estruturada geralmente em torno de dois polos (homem/mulher; branco/não branco; civilizado/selvagem, por exemplo), essas hierarquias encaixam, no polo hegemônico, a figura do homem branco/ocidental-europeu/cristão/cis heterossexual, considerado superior; e, no lugar de subalternidade, todos aqueles tidos como diferentes e inferiores em relação ao polo hegemônico: mulheres, indígenas, afrodescendentes, orientais, não-cristãos, não-heterossexuais etc. (Lugones, 2014; Mignolo, 2020; Quijano, 2009).
Como a colonialidade “ainda está conosco” (Lugones, 2014, p. 239), sendo uma peça fundamental na engrenagem capitalista, pensar criticamente a diferença colonial implica atentar às múltiplas facetas da colonialidade, perspectivando o entrelaçamento de processos de opressão diversos (gênero, classe, raça, etnicidade, sexualidade, idade etc.), bem como suas implicações para a vida dos que se encontram neles enredados, entendendo-se que são também variadas as formas pelas quais a colonialidade (do poder, do saber e do ser ) atinge esses sujeitos (Maldonado-Torres, 2007, p. 162).
Assim, a exclusão social, entendida como “a impossibilidade de um grupo social participar plenamente das esferas social, política, cultural e econômica da sociedade” (Oakley, 2001 apud Hooker, 2006, p. 91) não pode continuar sendo naturalizada como se fosse um destino ao qual cada membro da população negra brasileira está fadado. Ainda conforme Hooker (2006, p. 92), as desigualdades socioeconômicas enfrentadas pelos afrodescendentes não derivam apenas da “exclusão histórica”[11] a qual foram submetidos no passado, mas de um “processo ativo e presente de discriminação racial”. Tal processo é alimentado por fatores que tendem a perpetuar as situações de vulnerabilidade socioeconômica que os atinge (falta de acesso a bens e serviços sociais básicos como educação, saúde etc. e de oportunidades de trabalho que lhes proporcionem uma renda digna) e de invisibilização social de seus conhecimentos culturais e científicos, assim como de suas próprias existências.
Por esse motivo, defende Crenshaw (2002), é preciso identificar os fatores que, isolada ou conjugadamente, alimentam a opressão/vulnerabilidade da população negra expressa/mantida em diferentes esferas da vida social, incluindo a educacional. Tais fatores “devem ser incluídos tanto na análise quanto nas recomendações para o tratamento do problema” (Crenshaw, 2002, p. 175).
3 O currículo que temos e o que queremos: problematizando o perigo de uma história única na formação universitária
A cena que relato a seguir e que será problematizada na sequência ocorreu em uma aula da disciplina Psicologia da Educação, componente curricular (CCR) obrigatório do curso de Licenciatura em Pedagogia, que ministrei por mais de uma década na Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Erechim/RS. O curso em questão forma anualmente pedagogas[12] para atuarem em campos diversos: sala de aula, gestão escolar, ONGs, empresas, instituições hospitalares, movimentos sociais, entre outros. Diversas também têm se mostrado as origens sociais, cores/raças/etnias, pertencimentos geográficos, formações pregressas (ensino médio ou curso normal em escolas urbanas, do campo, indígenas etc.), motivações para ingressar e permanecer na universidade das estudantes com quem pude interagir nesse longo período de atuação no curso.
Algo que constatei com o passar dos anos e que serviu de mote para a escrita do presente texto foi o incômodo que a ausência (na grade curricular do curso, mas também em outras experiências vividas na universidade) de um debate mais aprofundado acerca de temáticas como interseccionalidade (de gênero, sexualidade, raça/etnia, classe social etc.) e colonialidade gerava em algumas das alunas, em especial nas que se identificavam como negras e pardas ou com ascendência indígena e naquelas atuantes em movimentos sociais[13] (Movimentos da Via Campesina, Negro, Indígena, Feminista, Estudantil, Movimento dos Atingidos por barragens, entre outros).
Foi mais especificamente a pergunta formulada por uma dessas estudantes que me mobilizaria a repensar/ressignificar os programas das disciplinas que ministraria dali em diante, como também minha atuação na pesquisa e na extensão. Eis a pergunta: “Profe, por que não é comum encontrar autoras negras nas referências bibliográficas das disciplinas que cursamos aqui na universidade?”.
Essa pergunta, que ouvi pela primeira vez no ano de 2016, mas que ecoaria em meus ouvidos nos anos seguintes em função da força com que se fixara em minha memória, era também uma reivindicação e um posicionamento político. Talvez por associação com outras lembranças de mesmo teor provindas de minha própria infância e juventude, talvez pela confluência com meus interesses de pesquisa que vinham se encaminhando na mesma direção desde o doutoramento[14], essa pergunta presentificava-se com facilidade quando eu, a cada início de novo semestre letivo, me punha a construir os planos de ensino dos componentes curriculares que ministraria e/ou dos projetos que desenvolveria nos meses seguintes. Ela havia deixado sua marca na professora, nas colegas (como vim a descobrir posteriormente), no currículo daquela e de outras disciplinas e, consequentemente, na universidade.
Dito de outro modo, a cena da pergunta retrata um daqueles momentos de diálogo fecundo que podem ocorrer em sala de aula e são capazes de gerar contribuições não apenas para os diferentes atores envolvidos na conversação, mas para a própria prática pedagógica, uma vez incorporados nela os aprendizados que o diálogo suscitou. Em face daquela cena reagi, num primeiro momento, tecendo algumas ponderações (entre elas, destaco duas, inspiradas em textos de intelectuais feministas aos quais fiz alusão no diálogo então estabelecido em sala de aula); e, posteriormente, produzindo mudanças na(s) realidade(s) que estava(m) ao meu alcance.
A primeira ponderação foi baseada na menção à palestra proferida por Chimamanda Ngozi Adichie (“O perigo de uma história única”) no TED Talk, em 2009, a qual foi adaptada para o formato de livro e publicada em 2019, no Brasil, pela Companhia das Letras. Em O perigo de uma história única, Adichie alerta sobre como podemos ser impressionáveis e vulneráveis face a uma história (que assume a nossos olhos ares de verdade justamente por ser a única versão a qual temos acesso) e os riscos disso. Ela cita o exemplo do contato que teve, na tenra infância, com livros britânicos e americanos e como isso marcou sua forma de ver os livros e de escrever histórias naquele momento de sua vida, sendo estas influenciadas pelos tipos de história que lia (“Todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis. Eles brincavam na neve. Comiam maçãs”). Suas primeiras criações, portanto, em nada se aproximavam de quem ela era, de seu modo de vida e da Nigéria, país em que havia nascido e morava. No seu despertar para o mundo das letras, ela escrevia tomando por base as referências às quais tivera acesso nos livros lidos. Mas a “verdade” que então conhecia foi redimensionada e questionada com a descoberta dos/as escritores/as africanos/as. Em suas palavras, eles/as salvaram-na “de ter uma história única sobre o que são os livros” (Adichie, 2019, p. 14).
Ao lembrar dessa passagem e narrá-la às alunas, na aula em que a pergunta/reivindicação/posicionamento emergiu, busquei relacioná-la à ideia de que o currículo é racializado, ou seja, a ausência (ou menor presença, comparativamente aos intelectuais brancos de origem anglo-saxã e francesa) de produções de intelectuais negras (brasileiras ou não) nos referenciais dos componentes curriculares por elas cursados não deveria ser lida como fortuita ou fruto do acaso. A instituição universitária, em sintonia com a sociedade na qual se insere, possui características relacionadas ao que Florestan Fernandes (1975) chamou de “colonialismo educacional”[15]. Afinal, desde suas origens o Brasil tem sido marcado pela dependência em relação aos referenciais externos, seja na esfera epistêmica, seja nas esferas econômica, social, cultural e política. A mesma sociedade que se erigiu sobre o alicerce dos corpos negros escravizados e submetidos ao trabalho forçado é a que pratica o epistemicídio negro no país.
Não obstante, “onde há poder, há possibilidade de resistir”, como aponta Michel Foucault (2009, p. 105). O que nos permite entender porque homens e mulheres negros e negras, enquanto viviam as agruras da experiência escravista brasileira, não deixaram de opor resistência à dominação colonial. Muitos/as foram os/as que mantiveram viva a cultura africana, praticando ritos e costumes advindos de sua ancestralidade, e/ou desenvolveram “formas alternativas de organização social livre”, como lembra Gonzalez (1988) ao discutir o conceito de “amefricanidade” que, a seu ver, “[...] incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada [...]” (Gonzalez, 1988, p. 76-77).
A segunda ponderação que fiz naquela ocasião se relaciona justamente com o aprofundamento do debate em torno do conceito de epistemicídio. Para tanto, nada melhor que, segundo me pareceu então, recorrer às contribuições de uma expoente brasileira do pensamento feminista negro: a filósofa Sueli Carneiro, de cuja produção eu havia me acercado em algumas das incursões que fiz, durante o doutoramento, à Biblioteca Florestan Fernandes, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Antes de tudo, perguntei às alunas se já tinham ouvido falar dessa intelectual negra e/ou de sua produção. Tendo recebido um sonoro não, indaguei se gostariam de saber mais sobre a autora e o que ela entendia por epistemicídio.
Diante da reação positiva, comentei que Sueli Carneiro nascera em São Paulo na década de 1970 e que havia cursado Filosofia na FFLCH da USP no período da ditadura militar, momento de sua inserção nos movimentos negro e feminista. Além do ativismo político, ela se dedicava a escrever (artigos científicos, livros, colunas para periódicos jornalísticos etc.) sobre questões raciais, de gênero, classe e sexualidade, problematizando as desigualdades historicamente construídas por meio de práticas racistas e sexistas (re)produzidas na sociedade brasileira. Doutora em Educação também pela USP, Sueli produziu reflexões importantes sobre a escola como lócus de discriminação racial e, ao mesmo tempo, como espaço no qual a conscientização sobre o problema do racismo pode ocorrer. No início da aula seguinte, dando um fechamento mais bem elaborado à discussão do assunto, mostrei às alunas uma de suas obras que eu havia adquirido durante o doutoramento: “Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil” (2011), publicado pela Editora Summus, como parte do Selo Negro, mesma linha editorial que reúne obras de Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento e outros/as intelectuais negros/as brasileiros/as. Compartilhei ainda a informação de que muitos dos textos que integravam a obra haviam sido publicados por Sueli Carneiro em sua coluna de opinião quinzenal para o jornal Correio Braziliense, a qual manteve por anos. Indiquei que quem quisesse saber mais sobre essa e outras publicações poderia ter acesso a elas no site do “Geledés - Instituto da Mulher Negra”[16], fundado por Sueli Carneiro em parceria com outros/as ativistas negros/as.
Por fim, naquele dia discorri rapidamente sobre algumas das entrevistas concedidas por Sueli que estavam disponíveis em acervos online e que constituíam fontes de informação acessíveis sobre sua trajetória acadêmica e política. Destaquei uma[17], em especial, porque nela há o relato de Sueli sobre experiências de discriminação racial e de gênero que viveu no contexto escolar e familiar; sua inserção no movimento negro e feminista; bem como sua defesa, juntamente com outros ativistas negros/as, das cotas raciais na universidade, cuja constitucionalidade foi reconhecida, em 2012, pelo Supremo Tribunal Federal após anos de reivindicações dos movimentos sociais. Processo descrito pela intelectual negra brasileira, na entrevista em questão, como “um divisor de águas” na história da luta da população negra por seus direitos (Fábrica [...], 2014).
A discussão sobre o conceito de epistemicídio[18] não se delongou tanto como todas nós parecíamos querer em função do tempo exíguo de aula, mas saímos daquele encontro com a “cabeça fervilhando” (como disse uma das alunas) com as inquietações e reflexões produzidas, no coletivo, acerca dos processos que historicamente têm possibilitado a desqualificação de homens e mulheres negros e negras como sujeitos de conhecimento. Algumas das estudantes presentes neste encontro apontaram o colonialismo e a escravidão como processos deflagradores do epistemicídio negro, outras fizeram alusão ao fato de que há racismo na sociedade brasileira, mas que é um processo velado (racismo cordial), inclusive quando praticado no ambiente universitário. Uma das alunas foi criticada pelas colegas ao comentar que talvez houvesse poucas intelectuais negras incluídas nos programas curriculares das disciplinas do curso de pedagogia porque provavelmente “a produção científica negra fosse baixa ou inexistente nessa área”.
Posicionei-me afirmando que devíamos nos manter abertas ao diálogo e que essa era uma questão interessante sobre a qual poderíamos conversar mais em aulas futuras, vindo, inclusive, a constituir foco de pesquisas a serem realizadas. O que será que encontraríamos ao investigar a produção de intelectuais negras na área da Educação? – foi a primeira provocação que lancei à turma. Encontrando essa produção, não seria interessante incluir algumas delas na disciplina Psicologia da Educação em curso no semestre? – foi a proposta que fiz.
A não presença delas nos CCRs do curso (algo a ser investigado a fundo também – mas que foi pontuado na aula não como tarefa a ser concretizada por quem tivesse interesse no assunto, e sim como uma tarefa cuja importância deveria ser assumida pelo curso como um todo, na figura de seus alunos/as e profissionais da educação) denunciaria a existência de um processo de invisibilização das contribuições das intelectualidades negras para a formação dos/as pedagogos/as exclusivo do curso de pedagogia de nossa instituição? Ou se faria presente em outros cursos e outras universidades?
Se considerarmos o fato de que diversas instituições de nossa sociedade (incluindo as universidades) trazem as marcas da colonialidade (em suas formas de organização e funcionamento e em práticas como o racismo institucionalizado) e do não reconhecimento da população negra como produtora de conhecimentos, a realidade que ali debatíamos far-se-ia presente não apenas na área da Educação e não somente em nossa universidade.
Ampliando essa reflexão para além da descrição da cena ocorrida no contexto de sala de aula, à qual nos dedicamos até aqui, podemos constatar que a literatura científica aponta achados que corroboram a afirmação feita no parágrafo anterior. Diversos/as pesquisadores/as que têm se dedicado ao estudo do tema constatam, a partir da investigação de diferentes realidades, que a universidade brasileira possui, ainda na atualidade, um caráter marcadamente eurocêntrico e uma “mentalidade colonizada de origem” (Carvalho, 2020, p. 80), na qual impera “uma dinâmica monocultural, que invisibiliza, ignora e elimina outras formas de se entender o mundo, outras maneiras de se pensar e de se conceber a pessoa, outras práticas de saber e de viver” (Herbetta; Nazareno, 2020, p. 71).
Assim, desde a criação das primeiras universidades[19], instituiu-se um padrão de organização e funcionamento do sistema de ensino superior que propicia que as elites ocupem espaço nesses contextos e neles obtenham alguns dos recursos de que precisam para manter seus privilégios[20]. Exemplos disso podem ser encontrados na forma como são conduzidos os processos seletivos/exames vestibulares nacionais, estruturadas as grades curriculares dos cursos de graduação ou (des)valorizadas as experiências e saberes dos representantes dos grupos subalternizados (estudantes indígenas, negros, oriundos das camadas populares etc.) que ingressam na universidade. Estes “tem sido recorrentemente inferiorizados, desqualificados, considerados, e por que não figurados, como primitivos e improdutivos em relação a um modelo de sociedade específica que se quer prescrever” (Mayorga; Costa; Cardoso, 2010, p. 33). Questão que certamente guarda relação, num plano macrossocial, com a perpetuação de diversas hierarquias e desigualdades que integram a trama da realidade social brasileira.
Mas essa configuração do cenário do ensino superior brasileiro, a qual tem sido cada vez mais problematizada nos debates sociais e acadêmicos recentes sobre o processo de democratização da universidade, não deve ser tomada como estanque e rígida, sob pena de desacreditar a própria viabilidade da democratização, como avaliam Mayorga, Costa e Cardosos (2010, p. 33), que também enfatizam que “os poderes coloniais não determinam uma história única sobre a universidade no Brasil”.
Em apoio a essa linha argumentativa, podemos lembrar a ideia defendida por Stuart Hall de que a cultura hegemônica é fluída e porosa (Hall, 2003, 2011, 2015, 2016). Ademais, contemporaneamente, vemos emergir, em função de fenômenos como a globalização, mudanças significativas nos diálogos entre presente e passado, global e local (dinâmicas sincrônicas e diacrônicas), com repercussões inéditas sobre a própria expêriencia educativa. Avançando na análise do atual momento histórico, é preciso reconhecer ainda que as sociedades ocidentais têm sido marcadas por um intenso processo de fragmentação identitária, no seio do qual ocorre a produção de identificações plurais e híbridas, assim como a emergência de novos padrões/arranjos para a construção das trajetórias biográficas e formativas, de participação nas relações sociais e adesão ou contestação a projetos políticos mais abrangentes (Hall, 2003, 2011, 2015, 2016; Woodward, 2011). Nesse sentido, a universidade pode ser lócus de múltiplos encontros a partir dos quais fronteiras simbólicas são questionadas, borradas ou (des/re)criadas, viabilizando a emergência do novo face ao que se consolidou como hegemônico entre seus muros e para além deles.
E se, nesse contexto apontado por Hall, de disputas de narrativas e exacerbação dos conflitos resistências e negociações em torno das identidades, novas possibilidades estão sendo forjadas, cabe indagarmos: como e com que/quem se identificam os/as sujeitos negros/as que estão chegando às universidades ou que produzem conhecimento para além dos muros dessa instituição? Como podemos, enquanto sociedade brasileira, apoiá-los na luta contra o processo de “indigência cultural” (Carneiro, 2005) a que têm sido submetidos? Que imagens desses sujeitos têm sido projetadas na e para além da universidade? Qual o papel que essa instituição pode assumir, no presente e no futuro, para combater os diversos mecanismos, postos em prática em seu interior, que deslegitimam os/as negros/as como sujeitos de conhecimento?
Outra questão que se coloca é: como podemos contestar o projeto de universidade com o qual não nos identificamos (sejamos nós estudantes ou profissionais da educação) e reverter um cenário que se mostra opressivo em várias dimensões? Certamente não há fórmulas prontas ou soluções mágicas capazes de nos levar à imediata construção de respostas e saídas. Há caminhos a construir (tanto na busca de respostas quanto na concretização da transformação de realidades). A reestruturação das grades curriculares dos cursos de graduação, com a inclusão de conhecimentos e saberes produzidos por representantes dos grupos subalternizados é um deles. Outras estratégias decoloniais (epistemológicas, sociais e políticas) precisam ser pensadas para o enfrentamento do sexismo, racismo e classicismo praticados no cotidiano das salas de aula, corredores, cantinas, banheiros e outros espaços das universidades, mas também presentes nos livros estudados e na vida social a que tem acesso a população negra.
A escritora, professora e intelectual negra estadunidense bell hooks (2019) traz uma grande contribuição a esse debate ao pontuar que o poder da linguagem como instrumento/lugar de luta não pode ser subestimado quando se trata de problematizar a dominação e transformar sistemas opressivos. Em suas palavras, a linguagem pode ser entendida como uma forma de “resistência” à opressão se “o oprimido” a emprega para “recuperar a si mesmo – para reescrever, reconciliar, renovar” (2019, p. 58). E prossegue: [...] quando acabamos com nosso silêncio, quando falamos com uma voz libertadora, nossas palavras nos conectam com qualquer pessoa que viva em silêncio em qualquer lugar” (Hooks, 2019, p. 43).
Não seriam, então, as palavras disseminadas pelas intelectuais negras lembradas ao longo deste artigo um “lugar de luta” que deveríamos convidar os sujeitos da educação a (re)conhecer/visitar/compartilhar?
Ao denunciar que a universidade tende a perceber a intelectualidade das mulheres negras como suspeita ou intrusiva, reproduzindo o que ocorre na sociedade de forma geral, Hooks reforça a necessidade de resistirmos:
Na verdade, dentro do patriarcado capitalista com supremacia branca, toda a cultura atua para negar às mulheres a oportunidade de seguir uma vida da mente [...]. Como nossas ancestrais do século XIX, só através da resistência ativa exigimos nosso direito de afirmar uma presença intelectual (Hooks, 1995, p. 468).
Resta destacar que, naquele ano de 2016, no qual se passa a cena de sala de aula narrada e problematizada anteriormente nessa seção, trabalhei, como parte da disciplina Psicologia da Educação, as contribuições de J. Piaget, L. Vygotsky e H. Wallon para o pensamento e prática educacional (nos módulos sobre a história da Psicologia como ciência e as principais teorias de aprendizagem), mas também as de Sueli Carneiro, bell hooks e Nilma Lino Gomes (nos módulos referentes a temas contemporâneos em educação). Lemos obras como “O perigo de uma história única” e “Como educar crianças feministas” (Chimamanda Adichie); “A mulher negra” (Sueli Carneiro); “Intelectuais negras” e “Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade” (bell hooks); “O menino coração de tambor” (Nilma Lino Gomes). Ou seja, buscamos nos conectar com as vozes libertadoras dessas intelectuais negras, promovendo, no universo da sala de aula no Ensino Superior, revoluções moleculares que tiveram impacto significativo na vida de estudantes e professora.
4 Considerações finais
Ao contemplarmos, em nossas reflexões, a população negra brasileira como “minoria” que historicamente tem sofrido processos de exclusão/opressão e constatarmos a incidência desses processos na vida universitária e escolar, de maneira geral, cabe reconhecermos que essas instituições têm um papel a desempenhar no enfrentamento do racismo que ainda hoje é praticado contra esses grupos. Um ponto de partida possível rumo à concretização desse papel seria a problematização das representações sociais vigentes, em nosso meio, acerca da população negra e das diversas formas de etnocentrismo praticadas em relação à diferença que ela expressa.
A urgência de se empreender um processo de reflexão sobre tais questões se mostra ainda mais contundente se considerarmos, como salienta Schwarcz (1993) que, no Brasil, o racismo declarado foi substituído por um “preconceito social privado”, que parece negar a desigualdade e a exclusão, admitindo-a apenas no circuito mais íntimo e não oficial. Vivemos um racismo velado e o cotidiano se torna o reduto privilegiado no qual, a um só tempo, ele se manifesta e se esconde. Sendo múltiplas e muitas vezes invisibilizadas as formas de expressão do racismo no cotidiano, a importância de inserirmos e/ou fortalecermos o debate sobre tais temas nos cursos de formação de profesores/as é incontestável. Independentemente de quais forem as estratégias específicas adotadas pelas instituições educativas na concretização desse objetivo, urge assumirmos como norte do trabalho a ser edificado em sala de aula a potencialização de uma educação para a alteridade. Essa educação passa pela compreensão de que:
O outro não é apenas um outro eu (homem, mulher, criança, indígena...) com o qual devo criar um exercício de vizinhança baseado na filosofia do politicamente correto. O outro é tudo aquilo (humano, não-humano, visível, não-visível) que me arranca da pretensa estabilidade de uma identidade fixa (um modo padronizado de pensar, sentir, agir), provocando-me com um incessante convite para diferentes formas de ser-estar no mundo. Um desafio maior no exercício da alteridade que nos leva a um tratamento oposto mesmo às políticas de tolerância (Rolnik, 1994, p. 160).
Produzir avanços na abordagem dessa questão na educação superior é, entre outras coisas, criar condições para que nossos/as estudantes tenham acesso a uma formação capaz de levá-los/as a problematizar a realidade na qual estão inseridos/as e a desconstruir possíveis visões reducionistas instituídas ao longo de suas trajetórias pessoais e acadêmicas. Esse é também um passo necessário para que a universidade cumpra minimamente sua função social e política e, com isso, contribua para que um número crescente de pessoas venham a desenvolver, num futuro próximo, práticas profissionais potencializadoras da construção de um mundo mais digno e justo para todos/as.
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[1] Mais adiante, serão apresentados argumentos complementares sobre o assunto.
[2] As minorias são grupos que, mesmo não correspondendo a minorias em termos numéricos (ou seja, podem constituir parcela substantiva ou majoritária de uma população, como os afrodescendentes no Brasil, por exemplo), vêm a ser considerados minorias social e juridicamente (sob amparo de leis e políticas públicas voltadas à proteção de seus direitos civis, políticos e sociais) por sofrerem processos de subjugação/subalternização engendrados historicamente e, em geral, associados à vivência de preconceitos, discriminações, violação de direitos etc. (Botelho; Schwarcz, 2012; Ramacciotti; Calgaro, 2021; Siqueira; Castro, 2017).
[3] A descrição densa é uma das estratégias metodológicas que podem ser colocadas em operação sob inspiração da pesquisa de natureza etnográfica, requerendo, por parte do/a pesquisador/a, a criação de um processo de interação com outros sujeitos e seus contextos socioculturais e existências de referência. Como Geertz (1989, p. 15), entendemos que o que define a etnografia é a prática da “descrição densa” da realidade estudada e dos sujeitos nela implicados, a partir da imersão do/a pesquisador/a nessa realidade, aliada à própria interpretação da descrição.
[4] A partir do referencial ricoeuriano, tomamos a narrativa como produção discursiva que se alimenta das experiências vividas ou imaginadas que compõem a trama de existências imersas em mundos de cultura. Dessa forma, a elaboração de narrativas, assim como a construção identitária, é um processo intersubjetivo, possibilitado pelas experiências que nascem a partir do diálogo com o outro, seja no contexto de interações que tomam a forma de cooperação seja nas que se apresentam como competição ou luta (Ricoeur, 2010, p. 98).
[5] Informações divulgadas pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE, 2022), a partir dos dados do segundo trimestre de 2022 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – PNAD Contínua/IBGE, revelam que o percentual de pessoas negras e pardas, no Brasil, corresponde a 55,8% da população, ou seja, 55,8% da população se identifica como preta ou parda. Já no Rio Grande do Sul, local no qual foi realizada a pesquisa empírica descrita no presente artigo, esse número é de 20,6%. O fato é que a população negra representa uma parcela significativa de nossa sociedade, que se expandiu nas últimas décadas, como demonstram as estatísticas. Um dado revelador nesse sentido: o percentual de brasileiros/as que se identificam como negros/as dobrou no período compreendido entre a década de 1990 e o ano do último recenseamento (2022). O que se deve não apenas ao aperfeiçoamento dos levantamentos censitários realizados nesse período, mas a processos sociais vividos por essa população, relacionados especialmente à sua construção identitária, pois cresceu o número de pessoas que passaram a se reconhecer/autodeclarar negros/as e a reivindicar essa identidade racial historicamente discriminada.
[6] As bases do movimento negro contemporâneo no Brasil foram lançadas pelo Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), posteriormente renomeado Movimento Negro Unificado (MNU), que nasceu, nos anos 1970, como uma forma de crítica e combate ao racismo. De São Paulo, estado em que despontou após a ocorrência de episódios racistas que geraram repercussão e comoção pública, rapidamente disseminou-se para outras localidades, como a cidade do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre etc. Lélia Gonzalez, intelectual negra brasileira que é uma das figuras públicas de referência desse movimento, pontua de forma enfática que apesar de haver um esforço no sentido de fazer convergir a força do coletivo em torno da luta contra as desigualdades e injustiças sociais geradas pelo racismo dentro do MNU, a pluralidade de interesses e ações, os conflitos e embates, sempre se fizeram presentes no Movimento Negro, como em outros movimentos sociais (Gonzalez, 2020).
[7] Sob inspiração da intelectual negra e educadora Nilma Lino Gomes, o/a intelectual negro/a é aqui pensado/a como aquele/a “que indaga a ciência por dentro e problematiza conceitos, categorias, teorias e metodologias clássicas que, na sua produção, esvaziam a riqueza e a problemática racial ou transformam a raça em mera categoria analítica retirando-lhe o seu caráter de construção social, cultural e política. E ainda, é aquele que coloca em diálogo com a ciência moderna os conhecimentos produzidos na vivência étnico-racial da comunidade negra” (Gomes, 2010, p. 500).
[8] Além da licenciatura em Pedagogia, tive a oportunidade de atuar, nessa mesma instituição, junto aos cursos de licenciatura em História, Filosofia, Geografia, Ciências Sociais e Educação do Campo, ministrando, principalmente, componentes curriculares da área da psicologia da educação.
[9] Para a jurista estadunidense Kimberlé W. Crenshaw, “a interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras” (Crenshaw, 2002, p. 177). Importa pontuar, no entanto, que antes da interseccionalidade ser assim designada por Crenshaw, em 1989, já existiam discussões sobre o fenômeno dentro dos movimentos sociais cujas pautas problematizavam o racismo, o sexismo e as desigualdades socioeconômicas. Do mesmo modo, debates teórico-conceituais sobre a articulação entre raça e classe vinham sendo produzidos, no mesmo momento histórico, por intelectuais negros/as latino-americanos/as como Lélia Gonzalez (1983), tendo esta última autora chamado a atenção para os desafios de se pensar essa articulação num contexto como o brasileiro, no qual o racismo velado opera com repercussões perversas para a população negra e para a sociedade em geral em seus diversos âmbitos (sociocultural, econômico, político etc.).
[10] Segundo Aníbal Quijano (2009, p. 72-73), a colonialidade surge a partir do colonialismo, remetendo também a uma estrutura de dominação/exploração/opressão, mas com o diferencial de sempre basear-se em um poder racista/etnicista, ao passo que o colonialismo “nem sempre, nem necessariamente implica relações racistas de poder”. A modernidade, por sua vez, é definida pelo autor como “o novo universo de relações intersubjetivas de dominação sob hegemonia eurocentrada, configurado a partir da fusão das experiências do colonialismo e da colonialidade com as necessidades do capitalismo” (Quijano, 2009, p. 74).
[11] Laurentino Gomes, autor de “Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares” e outras duas obras sobre o tema, revela algumas das facetas dessa exclusão histórica que teve como um de seus marcos iniciais o primeiro leilão de escravos realizado em Portugal, em 1444. Segundo o autor, o tráfico de escravos perdurou por mais três séculos e meio (1500-1867), tempo no qual cerca de 12,52 milhões de sujeitos negros foram forçados a abandonar suas vidas e territórios de origem para cruzar o Atlântico em navios rumo ao Novo Mundo. O Brasil recebeu 4,9 milhões de negros escravizados, ou seja, metade do contingente que chegou vivo à América (Gomes, 2019).
[12] Usarei, ao longo do artigo, esta e outras expressões no feminino para designar as estudantes às quais farei menção, uma vez que o corpo discente da Pedagogia, nesta instituição, é composto, em sua maioria, por mulheres.
[13] Assim como Touraine, entendemos o movimento social como “o ator de um conflito, agindo com outros atores organizados, que lutam pelo uso social dos recursos culturais e materiais” (Touraine, 2006, p. 175).
[14] Doutoramento concluído em 2013, pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), no qual desenvolvi pesquisa junto a jovens negros/as favelados/as (como eles mesmos se autodeclaravam) da cidade de Belo Horizonte/MG, focalizando a relação entre aspirações e realidade vivida.
[15] A análise bastante conhecida, feita por Florestan Fernandes (1975) sobre as origens da educação superior brasileira, nos auxilia a avançar nesse debate quando expõe que esta foi erigida com base em valores, preceitos pedagógicos e modelos de gestão importados de universidades europeias, no curso de um processo que o autor nomeia de “colonialismo educacional” (Fernandes, 1975, p. 80).
[16] O portal do Instituto Geledés (https://www.geledes.org.br/) congrega vários materiais e notícias sobre luta antirracista e antissexista, além de divulgar cursos e palestras ofertados sobre tais temáticas por lideranças políticas e intelectuais negros/as, sendo um instrumento importante de difusão de informação, articulação política e preservação da memória da população negra brasileira.
[17] Refiro-me à entrevista concedida por Sueli Carneiro, em fevereiro de 2014, ao programa “Curta o Gênero”, com divulgação da ONG “Fábrica de Imagens – ações educativas em cidadania e gênero”, disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=CMWXkgDNhBk. Acesso em jan. 2016.
[18] A definição que apresentei à turma do conceito de epistemicídio é aquela formulada por Sueli Carneiro (2005, p. 97) que o compreende como um processo que vai “além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo.”
[19] A criação de universidades no Brasil se efetivou no início do século XX, mas desde o período colonial já existiam em território nacional instituições educativas (escolas profissionais e academias militares, por exemplo) cujo funcionamento viria a contribuir para fundar uma “tradição de ensino superior” no país antes das universidades propriamente ditas serem criadas (Barreto; Filgueiras, 2007, p. 1780).
[20] Conforme Rosemberg (2010, p. 10), “[...] a universidade, no Brasil, especialmente a pública, tem sido uma das vias de aceso e manutenção do poder das elites”. Afirmação que a autora faz partindo da análise de dados resultantes de pesquisas que mostram como aqueles que detêm poder econômico e político em nosso país se graduam, em sua maioria, em universidades públicas. Em contrapartida, é também sabido que os grupos mais desfavorecidos socioeconomicamente vêm, historicamente, encontrando maiores chances de acesso ao ensino superior no sistema privado de ensino, apesar das dificuldades envolvendo a permanência e conclusão dos estudos até a diplomação.