e-ISSN 1984-7246  

 


A estratégia narrativa em Insubmissas lágrimas de mulheres: uma leitura interseccional[i]*

 

 

Albânia Celi Morais de Brito Lira

Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT)

Araguaína- TO, Brasil

lattes.cnpq.br/0543527615750378

orcid.org/0000-0001-8816-7638

albanimorais@gmail.com

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A estratégia narrativa em Insubmissas lágrimas de mulheres: uma leitura interseccional

 

Resumo

Personagens e escritoras negras têm sido marcadas por ausências e estereótipos dentro do sistema literário nacional. Conceição Evaristo tem, ao longo de décadas como escritora negra, feito o enfrentamento a essas marcações. A escrevivência, escrita marcada pela condição de mulher negra proposta por Evaristo (2005), para sua prática como escritora, é a estratégia narrativa de enfrentamento ao cânone, na medida em que descortina processos de violência e silenciamento de personagens femininas.  Dessa forma, este artigo tem por objetivo analisar como se estabelece esse enfrentamento na obra Insubmissas lágrimas de mulheres (2011). Como a narradora interliga as narrativas e personagens a partir de seus relatos de violência e de como subverteram tais violências para contar suas experiências. Pretende-se, portanto, a partir da perspectiva de Cândido (2011) acerca da literatura como direito humano, estabelecer diálogo com a narrativa de Evaristo, a fim de se apontar como a autora constrói uma teia de resistência de personagens femininas negras dando-lhes a voz e o lugar nas narrativas. Para fundamentar tal objetivo, o presente artigo toma por base pesquisadoras do feminismo negro, cujos debates apontam para a interseccionalidade, como Gonzalez (1984), Akotirene (2019), Collins (2016), Crenshaw (2002), a partir das quais se realiza a revisão bibliográfica. Com essa leitura da obra, resta demonstrada a intencionalidade da escrevivência, como estratégia narrativa para dar voz e visibilidade a personagens femininas tradicionalmente silenciadas e estereotipadas pelo cânone.

 

Palavras-chave: escrevivência; interseccionalidade; Conceição Evaristo; feminismo negro.

 

The narrative strategy Insubmissas lágrimas de mulheres: an intersectional reading

 

Abstract

Black characters and writers have been marked by absences and stereotypes within the nacional literary sistem. Conceção Evaristo has, over decades as a blck writer, confronted these markings. The slavery proposed by Evaristo for her practice as a write is the narrative  strategy for confronting the canon, as it reveals processes of violence  and silencing of female characters. In this way, this article aims to analyse how this  confrontation is established in the wor  Insubmissas Lágrimas de mulheres (2011). How the narrator  interconnects the narratives and characters based on their  reports of violence and how they  subverted  such violence to tell their experiences. It is intended, therefore, from the perspective of Cândido (2011) regarding literature as a human right, to establish a dialogue with Evaristo’s narrative, in order to point out how the author builds a web of resistance of black female characters by giving them voice and place in narratives. TO support this objective, this article is based on black feminist researchers, whose debates point to intersectionality, such as Gonzalez (1984), Akotirene (2018), Collins (2016), Crenshaw (2002), from which they  if the bibliographic review. With this reading of the work , the intentionality of writing remains demonstrated, as a narrative strategy to give voice and visibility to female characters traditionally silenced and stereotyped by the canon.

 

Keywords: writing; intersectionality; Conceição Evaristo; black feminism.

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* O presente artigo resulta da adaptação de parte da dissertação “Insubmissas lágrimas de mulheres: narrativas de resistência e enfrentamento em Conceição Evaristo”, apresentada por esta autora ao Programa de pós-graduação em Letras - PPG - Letras UFT. Disponível em http://hdl.handle.net/11612/2815  

 

A obra Vários escritos, publicada pela Duas Cidades em 1970, reúne ensaios do professor, pesquisador, sociólogo e crítico literário Antônio Candido. Dividida em duas partes, na primeira realiza um exercício de crítica em ensaios sobre escritores que compõem parte do cânone literário, entre os quais Machado de Assis, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Na segunda parte da obra, as temáticas se ampliam para o debate a respeito do nacionalismo, das classes e dos direitos humanos.

No primeiro ensaio desta segunda parte da obra, Cândido (2011) discorre acerca do acesso à literatura como direito humano. Nas reflexões iniciais sobre o direito à literatura, ao falar de como a humanidade é contraditória, sendo capaz de conviver com a possiblidade de criar e destruir, a de usufruir e excluir, a de congregar e segregar, nos lança o questionamento em relação à necessidade da literatura.

Para fundamentar essa tese, o autor considera o termo literatura em suas mais diversas manifestações, presentes nas mais variadas sociedades e, portanto, englobando todas as culturas. A literatura, para Cândido, se apresenta como uma manifestação universal, no sentido de englobar a humanidade em sua capacidade de fabular, inventar, se desligar da realidade e se religar a ela mesma a partir de desejos, sonhos, expectativas. Para o autor:

 

Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as 24 horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável deste universo, independentemente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola samba carnavalesco ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a intenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance (Cândido, 2011, p. 176-177).

 

Cândido (2011) segue afirmando a indispensabilidade da literatura, não só como componente do cotidiano humano, mas como engrenagem do processo de humanização, sendo, em suas palavras, uma ferramenta para confirmar o homem em sua humanidade, pela capacidade que tem de atuar nos níveis consciente e subconsciente. Longe de ser algo ingênua,

 

a literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do Estado de coisas predominantes (Cândido, 2011, p. 178).

 

Tais reflexões de Cândido (2011) dialogam com Conceição Evaristo em seu deliberado projeto de construir uma escrevivência, que “em sua concepção inicial se realiza, como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado…” (Evaristo, 2020, p. 30). Seja pela necessidade de fabulação que leva a autora a afirmar que esse projeto literário parte de experiências suas e de suas iguais, ficcionalizadas nas mais diversas narrativas. Seja pela denúncia do silenciamento ao qual são submetidas as personagens negras dentro do sistema literário, bem como pelos desdobramentos responsáveis por criação e manutenção de estereótipos que transitam do contexto social para o texto ficcional alicerçados pela violência.

O presente artigo se propõe à análise de como se estabelece o enfrentamento à violência na construção de personagens femininas da obra Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), em diálogo com vozes das teorias literária e feminista. Esse livro é o quarto publicado pela autora, em 2011, sendo o primeiro de contos. Composto por treze narrativas, cujos títulos são os nomes das treze personagens centrais de cada texto, a presente análise parte da construção narrativa da narradora em seu exercício de escuta das histórias de violência de cada uma das personagens. Interessa ao presente artigo, o recorte em torno de como a narradora constrói uma teia de histórias e resistências às formas de violência experimentadas pelas personagens femininas, subvertendo, assim a perspectiva canônica na qual personagens femininas negras estereotipadas sucumbem aos processos de violência, silenciamento e invisibilidade.

Para fundamentar tal recorte, a leitura parte dos diálogos da obra analisada com estudos de Dalcastangnè (2008) alinhados às discussões acerca do feminismo propostas  por Gonzalez (1984), Crenshaw (2002), Akotirene (2018), Collins (2016), observando a necessidade de literatura como direito humano.

 

1 A escrevivência e seus diálogos: uma teia de resistência 

Em entrevista concedida à BBC-Brasil, prestes a participar do Salão do Livro, em Paris-2018, onde lançaria a edição francesa de Insubmissas lágrimas de mulheres, Conceição Evaristo questiona as dinâmicas que estruturam dificuldades por que passam as mulheres negras no Brasil, sobretudo no campo literário. Ao ser perguntada acerca de que regras são a base para que uma escritora negra seja considerada expoente aos 71 anos, aponta para questões de racismo estrutural que alcançam os corpos de mulheres negras, forçando-as ao silenciamento e à invisibilização.

Ao longo da entrevista, Evaristo destaca como sua primeira obra, Becos da memória, ficou à espera de publicação por vinte anos. Mesmo a tendo encaminhado para várias editoras. Nas palavras da autora:

 

O texto literário, no caso da autoria negra, carrega a nossa subjetividade na própria narrativa. A temática negra, principalmente quando trabalha com identidade negra, não é muito bem aceita. Quando a temática negra trata do folclore, ou não é tão reivindicativa, aí interessa. Mas quando questiona as próprias relações raciais no Brasil, é quase um tema interdito. Principalmente se isso é colocado pela própria autoria negra (Evaristo, 2018).

 

A autora segue afirmando a presença da subjetividade presente do discurso entrecortado pelos marcadores de gênero, raça e classe, como marcadores de uma violência estrutural, que busca manter silenciadas tais subjetividades.

Em Insubmissas lágrimas[1], Evaristo traz uma narrativa de enfrentamento à violência contra personagens femininas negras, que traduz o cotidiano de opressões por que passam essas mulheres/personagens invisíveis à sociedade e ao sistema literário. A construção narrativa da obra se traduz em um exercício de enfrentamento das manifestações de violência, não como casos isolados, mas como reflexo de um racismo que interseccionaliza as opressões de gênero, raça e classe.

No livro, personagens negras enfrentam a violência e sobrevivem para contá-la, transformando-a na matéria necessária para a narradora construir uma teia de resistência, que conecta cada uma delas à realidade de violência na qual se encontra inserida a mulher negra brasileira. O exercício da narradora se constitui em dar voz a essa população de personagens, periféricas e invisibilizadas pelo cânone. Delcastangné (2008, p. 1), ao tratar das relações raciais na literatura brasileira contemporânea, afirma que “séculos de racismo estrutural afastam dos espaços de poder e de produção de discurso”, tanto personagens quanto narradores negros. Aqui, acrescentamos as autoras negras a esse rol de excluídos do sistema literário.

No sentido de ampliar as possibilidades de debate, vozes feministas e literárias se encontram tanto em Conceição Evaristo como em seu livro de contos Insubmissas lágrimas (2011). A partir da leitura de narrativas desta obra, analisaremos como se estabelece o enfrentamento à violência na construção de personagens femininas.

Lélia Gonzalez, no artigo Racismo e sexismo na cultura brasileira (1984), trata do racismo como sintoma da neurose cultural do país, que se ampara, entre outras bases, no discurso da democracia racial. Nessa obra, ao discorrer sobre como os negros são silenciados, uma vez que havia sempre quem falasse por eles, tratando-os como incapazes, nos adverte sobre o racismo disseminado no cotidiano brasileiro, manifestado pela naturalização das opressões, produzindo entre outros resultados, a inferiorização dos negros:

 

Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.

A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo é que todo mundo acha que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por que? Ora, porque ele tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual, criancice, etc. e tal (Gonzalez, 1984, p. 3).

 

A pesquisadora chama a atenção para estereótipos impostos à população negra, classificando seus membros como incapazes, preguiçosos ou violentos. Enfatiza o modo a partir do qual a sociedade naturaliza a favela como sendo o lugar do negro, tornando lugar natural aquilo que socialmente se apresenta como local de exclusão.

Ao tratar especificamente da mulher negra, Gonzalez (1984) observa que, ao longo do processo histórico, desde a escravidão até a atualidade, a construção do estereótipo da mulher negra passa de escrava à doméstica, lavadeira ou à prostituta. Silenciada em sua existência social, segundo a pesquisadora, a mulher negra surge apenas como um corpo desejado, ora nas casas, para as experimentações sexuais dos patrões, ora no carnaval, quando autorizada a ser a rainha.

Em sua prática, Gonzalez antecipa o debate acerca da interseccionalidade ao questionar o modo como o racismo se encontra interceptado pelas dimensões de gênero, de classe e orientação sexual, como índices responsáveis por condições opressoras na vida da população negra.

Ainda na década de 1980, Lélia Gonzalez criticava o monoculturalismo epistêmico dos Estados Unidos. Para a pesquisadora, ao monopolizar os discursos, tentavam impor o ideal de unidade do pensamento estadunidense, o que representava o silenciamento do debate ao sul da América nas comunidades tidas como periféricas. Como forma de resistência a esse pensamento colonial ao sul das Américas, Gonzalez se propõe a debater uma epistemologia que abarcasse a realidade próxima, dedicando-se aos estudos sobre África e América. Critica a postura missionária das civilizações ocidentais ao norte global, cujas bases eurocêntricas foram responsáveis por longos processo históricos de violência e expropriação. Ainda na década de 1980, Gonzalez se propõe a fazer o debate sobre estruturas de raça, gênero, sexualidade e classe a partir da perspectiva latinoamericana, portanto em confronto tanto com a hegemonia epistêmica do norte global, quanto com o colonialismo e o imperialismo.

Ao debater o feminismo, a pesquisadora questiona a invisibilidade das mulheres negras dentro do movimento feminista. Enfatiza como o feminismo se baseia em teorias eurocêntricas, excluindo, assim, a realidade latinoamericana e a experiência de mulheres negras. Ao propor o debate partindo da experiência dessas mulheres latinoamericanas, as mulheres negras deixam de ser faladas a partir de e passam a falar por si.

 Percebe-se assim um diálogo entre Gonzalez (1984) e Evaristo (2011), já que em ambas reside a necessidade de enfrentamento a mecanismos de opressão à mulher negra. Ao longo de sua trajetória como pesquisadora, Gonzalez se debruça sobre a crítica a uma epistemologia de bases eurocêntricas que desconsidera toda uma população americana, silenciando vozes necessárias à construção de identidades múltiplas. Já Evaristo, em seu projeto de escrevivência faz o enfrentamento ao sistema literário nacional, cujas bases eurocêntricas e patriarcais criam e mantêm estereótipos de personagens femininas negras.

No texto introdutório de Insubmissas lágrimas, escrito em primeira pessoa, há uma afirmação de que as histórias contadas no livro se confundem com as histórias de quem escreve. “Da voz outra, faço a minha, as histórias também (Evaristo, 2011, p. 9)”. Já nos contos, a narradora, que parte em busca de histórias, ao se encontrar com Líbia Moirã e ser interpelada sobre o interesse em escrever histórias de mulheres, responde: “Eu invento, Líbia, eu invento! Fale-me algo de você, me dê um mote que eu invento uma história como sendo a sua […]” (Evaristo, 2011, p. 74). Nos relatos de violência feitos pelas personagens, percebe-se o entrecruzamento de opressões, ao confrontarmos os marcadores gênero - raça - classe das mulheres insubmissas ao destino.

Chegamos, assim, à “articulação metodológica proposta pelas feministas negras e atualmente chamada de interseccionalidade”, nas palavras de Akotirene (2018, p. 36). O termo interseccionalidade chega ao meio acadêmico, na década de 1990, vindo da crítica às leis antidiscriminação, proposta por Kimberlé Crenshaw, intelectual afroestadunidense, atuante na área do Direito. No entanto, feministas negras como Sojourner Truth, bell hooks, Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro já trabalhavam com os seus fundamentos ao discutirem como diversas formas de opressão agiam sobre a mulher negra de forma a mantê-la silenciada, invisibilizada ou objetificada.           

Ao tratar da mulher negra como a “forasteira de dentro” do movimento feminista, Collins (2016) aponta como um dos temas-chave para o feminismo negro o que chama de natureza interligada de opressão. Trata de como se encontram as pesquisadoras negras como forasteiras de dentro, nas pesquisas sociológicas e de como podiam se beneficiar dessa condição perante a academia. Em relação a esse tema, afirma que:

 

A atenção dispensada por feministas negras à natureza interligada da opressão é significante por duas razões. Em primeiro lugar, esse ponto de vista muda todo o foco da investigação, partindo de uma abordagem que tinha como objetivo explicar os elementos de raça, gênero ou opressão de classe, para outra que pretende determinar quais são os elos entre esses sistemas. A primeira abordagem prioriza comumente um tipo de opressão como sendo primária e, em seguida, trata das opressões restantes como variáveis que fazem parte do sistema que é visto como o mais importante. [...] em contrapartida, a abordagem mais holística implícita no pensamento feminista negro trata da interação entre múltiplos sistemas como o objeto de estudo. Em vez de acrescentar às teorias existentes variáveis anteriormente excluídas, feministas negras têm como objetivo desenvolver interpretações teóricas da própria interação em si (Collins, 2016, p. 108).

 

Nessa perspectiva, não se estabelece a hierarquia entre as opressões pelas quais passa a mulher negra. Não interessa saber que opressão é a inicial e quais outras surgem como variáveis desta. Identificadas as opressões, a partir do lugar social ocupado por essas mulheres, interessa ao feminismo negro estabelecer as interações entre os sistemas de opressão, a fim de que possam ser enfrentados.

Acerca da impossibilidade de hierarquização de opressões, Akotirene afirma, corroborando o pensamento de Collins (2016) que:

 

Em vez de somar identidades, analisam-se quais condições estruturais atravessam corpos, quais posicionalidades reorientam significados subjetivos desses corpos por serem experiências modeladas por e durante a interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas, estabilizadas pela matriz de opressão, sob a forma de identidade (Akotirene, 2018, p. 39).

 

Ao trazer tais considerações para a narrativa analisada, observa-se a impossibilidade de se somarem marcações de identidade de cada uma das personagens – mulher, negra, favelada, doméstica, professora, lésbica – no sentido de hierarquizá-las, mas de buscar as condições estruturais nas quais esses sujeitos se encontram interseccionados pelas matrizes de opressão.

 

Portanto, na heterogeneidade de opressões conectadas pela modernidade, afasta-se a perspectiva de hierarquizar sofrimento, visto como todo sofrimento estar interceptado pelas estruturas.

Identidades sobressaltam aos olhos ocidentais, mas a interseccionalidade se refere ao que faremos politicamente com a matriz de opressão responsável por produzir diferenças, depois enxergá-las como identidades (Akotirene, 2018, p. 14).

 

 Insubmissas lágrimas pode ser lido como a possibilidade de resposta de Evaristo (2011) ao questionamento fundante da interseccionalidade sobre o que fazer politicamente com a matriz opressora que, no sistema literário nacional, é a responsável por criar e manter estereótipos de personagens femininas negras. O livro é a materialização do projeto premeditado de enfrentamento das matrizes de opressão de corpos femininos, que dentro do sistema literário nacional silencia e invisibiliza não somente personagens femininas negras, mas suas autoras, não possibilitando, assim, que as subjetividades desses sujeitos possam compor de forma presente e positiva suas próprias identidades.

Numa descrição das personagens centrais de cada um dos contos, todas mulheres, estão presentes as marcações de gênero, raça e classe como vetores da proposta de enfrentamento do sistema literário e da própria narrativa de nação, responsáveis pela manutenção de estereótipos da mulher negra na literatura.

Ao afirmar que premeditou a escrita de Insubmissas lágrimas e criou mulheres insubmissas ao destino, Conceição Evaristo realiza o exercício de enfrentamento à matriz de opressão materializada pela violência vivida por cada personagem. A insubmissão ao destino agiu de modo que essas narrativas não tivessem como desfecho o estupro, o abandono ou a agressão física. Elas partem dessas manifestações da violência para estabelecer o contradiscurso.

De personagens silenciadas, invisibilizadas e periféricas assim tratadas pelo sistema literário, as personagens femininas que compõem o corpus deste artigo são reorientadas das margens para o centro da narrativa. Assumem, dessa maneira, as posicionalidades necessárias à reorientação de significados subjetivos de seus corpos femininos atravessados pela violência, mas não definidos por ela.

Em Insubmissas lágrimas estabelece-se uma conexão entre as personagens, mediada pela narradora, que parte dos relatos de violência experimentados e relatados por cada uma das mulheres, para estabelecer uma teia de narrativas de insubmissão. São palavras dessa narradora:

 

Enquanto Lia Gabriel me narrava a história dela, a lembrança de Aramides Florença se intrometeu entre nós duas. Não só a de Aramides, mas as de várias outras mulheres se confundiram em minha mente. [...] outras deusas, mulheres salvadoras, procurando se desvencilhar da cruz, avultaram a minha memória. Aramides, Lia, Shirley, Isaltina, Daluz e mais outras que desfiavam as contas de um infinito rosário de dor (Evaristo, 2011, p. 81).

 

Lia, Aramides, Isaltina, Shirley e Daluz são personagens centrais dos contos aos quais emprestam seus nomes como títulos. Não há entre elas qualquer relação narrativa, já que são personagens de unidades narrativas distintas. A teia narrativa é construída pela narradora que, ao transpor o limite da estrutura do conto, aproximando personagens em suas experiências, estabelece conexões para o contradiscurso responsável por atacar a subalternização dos corpos femininos. Nas palavras dessa narradora, as personagens, “elas mesmas, a partir de seus corpos mulheres, concebem a sua própria ressurreição e persistem vivendo” (Evaristo, 2011, p. 81).

Desafiando o processo de invisibilidade que se utiliza do espaço literário e o extrapola para alcançar a narrativa de nação e manter os corpos femininos invisíveis nos espaços sociais, essas mulheres tomam de volta a narrativa de seus próprios corpos, ao desfiar o rosário de dor. A ressurreição concebida a partir dos corpos-mulheres responde ao questionamento de Akotirene (2018) acerca da reorientação de significados dos corpos femininos segundo as novas posicionalidades ocupadas por esses corpos.

 

 

 

2 As insubmissas narrativas: resistir para existir

Assim, temos as seguintes narrativas: “Aramides Florença” – estuprada diante do filho e abandonada pelo marido; “Natalina Soledad” – segregada pela família por ser mulher; “Shirley Paixão” – cumpre pena por salvar a enteada do abuso sexual praticado pelo pai; “Adelha Santana Limoeiro” – convive com o marido que não aceita o fim da virilidade; “Maria do Rosário Imaculado dos Santos” – sequestrada e escravizada quando criança; “Isaltina Campo Belo” – sofre estupro corretivo por ser lésbica; “Mary Benedita” – se  automutila para criar sua arte; “Mirtes Aparecida Daluz” – cega, convive com a dor pelo companheiro ter se suicidado; “Líbia Moirã” – atormentada por pesadelos da infância; “Lia Gabriel” – espancada pelo marido para proteger os filhos; “Rose Dusreis” – preterida como bailarina por ser negra; “Saura Amarantino” – condenada por ter entregado a filha ao pai; “Regina Anastácia” – segregada por ser negra e ter se casado com homem branco.

Em cada uma dessas narrativas se encontram mulheres que se predispõem a relatar uma dentre tantas experiências de sofrimento. São mulheres comuns – mães, esposas, professoras, autônomas – que se distanciam do estereótipo da mulher negra sobre o qual nos fala Evaristo (2005), ao tratar da representação da mulher negra na literatura.

 

A representação literária da mulher negra ainda surge ancorada nas imagens de seu passado escravo, de corpo-procriação e/ou corpo-objeto de prazer do macho senhor. Interessante observar que determinados estereótipos de negros/as, veiculados no discurso literário brasileiro, são encontrados desde o período da literatura colonial (Evaristo, 2005, p. 52).

 

Em Insubmissas lágrimas, a narradora estabelece a marcação de raça de modo que fique claro o grupo social ao qual pertencem as personagens. Tal marcação se apresenta para estabelecer o lugar de fala e o enfrentamento, como dito por Evaristo, ao passado escravo, ao corpo-procriação e ao corpo-objeto.

hooks, no ensaio Intelectuais negras(1995), dirigido às intelectuais negras estadunidenses, elabora uma perspectiva crítica ao modo como mulheres negras seriam recepcionadas na academia. Ao longo do texto, destaca o que chama de suposições sexistas sobre os papéis ditos femininos e como tais suposições colaboram para a manutenção de estereótipos.

 

Suposições sexistas sobre papeis femininos informam expectativas das comunidades negras em relação às negras. Muita gente negra compartilha dessa ideia defendida por diversos grupos nesta sociedade de que as mulheres são inerentemente destinadas a servir aos outros com abnegação. Coletivamente, muitas negras internalizam a ideia de que devem servir e estar sempre prontas para atender quer queiram quer não a necessidade de outra pessoa (hooks, 1995, p. 470).

 

Trata de papéis secundários sobre estigmatização quanto à capacidade intelectual e de construção teórica e como os papéis femininos em casa, com filhos e para a família fundamentam essas suposições sexistas.

Dalcastangnè (2017), ao fazer o recorte de como a mulher é percebida na literatura brasileira, abordando especificamente o tema maternidade, afirma:

 

[...] um dos discursos mais recorrentes sobre as mulheres é aquele que lhes atribui o papel de mãe, já normatizado e fixado em torno da noção do instinto materno, que serve para a naturalização dos papéis de gênero e elimina a ideia do amor como algo a ser construído em uma relação (Dalcastagnè, 2017, p. 132).

 

No conto “Saura Amarantino”, percebe-se que tais suposições sexistas se aplicam também a essa mulher interceptada, tal qual as intelectuais negras estadunidenses, por estruturas de opressão de gênero, raça e classe. Viúva ainda jovem, após um relacionamento breve, engravida e decide por entregar a terceira filha ao pai.

Saura inicia sua conversa com a narradora, afirmando que todos gritavam ou sussurravam algo a seu respeito por ter entregado a terceira filha ao pai. Segue seu relato afirmando que tanto entende do amor, quanto do desprezo que uma mãe é capaz de oferecer a um filho. A decisão de não permanecer com a filha é tida pela família e pelo grupo social próximo como algo abominável à condição materna. Com base no relato da personagem, nota-se que não é aceito como natural a criança ter sido entregue ao pai. A partir daí, cria-se o discurso de que a criança fora abandonada física e emocionalmente pela mãe, que deixara de cumprir seu papel materno. Estabelece, assim, uma contranarrativa diversa daquela social hegemônica para a qual o amor e a maternidade partem, respectivamente, de concepções essencialista e compulsória.

Kimberlé Crenshaw, ativista dos direitos civis estadunidense, é referência nos estudos da teoria interseccional, a partir da qual as identidades sociais sobrepostas se relacionam com as estruturas de opressão e discriminação. Como parte de suas pesquisas, o feminismo interseccional faz o recorte acerca de como esses sistemas se sobrepõem para alcançar e sujeitar mulheres. Segundo a autora:

 

A interseccionalidade [...] trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (Crenshaw, 2002, p. 177).

 

Nesse sentido, segundo Crenshaw (2002), variados eixos de poder, como gênero, raça e classe configuram as avenidas estruturantes do discurso social e político, a partir do qual mulheres como Saura Amarantino são interceptadas por distintas formas de opressão.

No conto, as escolhas feitas por Saura desconstroem a narrativa patriarcal burguesa em torno da vida amorosa e sexual da mulher na condição de viúva. Ao afirmar que não aceita ser julgada como uma mulher sem sentimentos, porque não foi capaz de inventar amor pela terceira filha, Saura rasura um discurso opressor, fundado na naturalização do amor materno. “Não consigo inventar um sentimento em mim, só pra me salvar de julgamentos alheios” (Evaristo, 2011, p. 104). Em sua fala fica clara sua posição de enfrentamento à visão essencialista relativa ao modo como deveria agir diante da maternidade.

Segundo Akotirene (2018, p. 43), “A interseccionalidade é sobre a identidade da qual participa o racismo interceptado por outras estruturas.” Estruturas que dão o suporte a que permaneça como verdadeiro o discurso essencialista do amor materno. A pesquisadora ainda acrescenta que a interseccionalidade se trata de uma experiência racializada, no sentido de exigir que os preconceitos, a quem chama de caixinhas particulares, que criam os obstáculos às lutas de modo global, sejam abandonados. Segue afirmando que “A interseccionalidade nos mostra mulheres negras posicionadas em avenidas longe da cisgeneridade branca heteropatriarcal” (Akotirene, 2018, p. 25), que reforça a naturalização do papel da mulher nascida para viver a maternidade compulsória. Mulheres negras que, segundo a pesquisadora, se encontram interceptadas pelos trânsitos das diferenciações, sempre prontos para excluir dessas mulheres suas identidades e subjetividades complexificadas. A exemplo de Saura, que confronta as estruturas do heteropatriarcado, passando-lhe a responsabilidade de cuidar da filha.

Tanto a família, como os demais membros do grupo social próximo à Saura, nomeiam o ato de entrega da criança ao pai como abandono. Reafirmam, assim, a naturalização dos papéis de gênero e lançam sobre a mulher o discurso opressor daquela que não fora capaz de viver o amor incondicional pela filha. Definem como deve ser a relação de Saura com a maternidade e com amor, como inerente à condição materna. Em suas palavras finais, Saura Amarantino desabafa “Só eu sei do meu sentir”, o que nos remete às considerações finais de hooks sobre como o ativismo de intelectuais negras, diante do patriarcado, as aproximam de experiências dolorosas.

 

Muitas vezes o trabalho intelectual leva ao confronto com duras realidades. Pode nos lembrar que a dominação e a opressão continuam a moldar as vidas de todos, sobretudo das pessoas negras e mestiças. Esse trabalho não apenas nos arrasta mais para perto do sofrimento, como nos faz sofrer (hooks, 1995, p. 477).

 

No relato de Saura se estabelece o contra-discurso aos papéis femininos sobre os quais bell hooks (1995) nos fala. Ao afirmar sua individualidade também em relação aos sentimentos, Saura nos remete à complexidade que permeia sua decisão de entregar a filha ao pai. Quando afirma ser incapaz de inventar sentimentos para fugir do julgamento alheio, Saura enfrenta a narrativa hegemônica alicerçada no discurso heteropatriarcal. Rompe, assim, o estereótipo do amor materno incondicional e inescapável, sem, contudo, deixar de transparecer que também sofre pela decisão tomada. Enfrenta o preconceito vivido por mulheres viúvas diante do exercício de sua sexualidade. Questiona a ideia de amor como algo a ser construído numa teia de relacionamentos, que passa pela relação mãe e filho, mas não se encerra nesse modo reducionista de padronizar a maternidade. Afirma não sentir amor pela terceira filha e vive a maternidade com seus dois primeiros filhos Idália e Maurino.

Com isso, a interseccionalidade nos ajuda a perceber a complexidade dos processos sociais e de gênero que se apresentam na narrativa ora analisada. Algo possível apenas porque os relatos partem da própria Saura e revelam um lugar de fala distinto daquele das narrativas hegemônicas.

Em “Isaltina Campo Belo” enfrenta-se a percepção de corpo-objeto. Desde a infância se sentia diferente, percebia-se ocupando um corpo de menina, que não era o seu. Narra o estupro corretivo àquela que precisava experimentar do homem para descobrir que, sendo negra, nascera para gostar de sexo. Convidada para o aniversário do amigo de faculdade, a quem confidenciara sua inquietação por se sentir homem em corpo de mulher, ao chegar à casa é estuprada por ele e outros cinco amigos desconhecidos, em cumprimento à promessa feita anteriormente.

 

Afirmava que eu deveria gostar muito e muito de homem, apenas não sabia. Se eu ficasse com ele, qualquer dúvida que eu pudesse ter sobre o sexo entre um homem e uma mulher acabaria. Ele iria me ensinar, me despertar, me fazer mulher [...] eu não sabia o que responder para ele. Em mim, eu achava a resposta, mas só pra mim (Evaristo, 2011, p. 55).

 

De Isaltina, o amigo só queria seu corpo, objeto de desejo e de ensinamento de como ser mulher, sobretudo ela, uma mulher negra. Percebe-se, assim, o corpo de Isaltina sendo atravessado pela heterossexualidade compulsória. Uma necessidade externa à sua vontade, imposta pela experiência do estupro como remédio para o componente que faltava àquela mulher, o de experimentar o sexo heterossexual.

O discurso e a prática desse homem perante Isaltina representam o reforço da heterossexualidade compulsória de que fala Adrienne Rich (2012). Para a pesquisadora estadunidense, a heterossexualidade deve ser vista como uma instituição política que retira poderes das mulheres. Ao discutir a heterossexualidade compulsória, Rich (2012) chama a atenção ao modo como a sociedade, por meio das instituições de controle se fortalecem cada vez mais, no sentido de estabelecer o padrão heterossexual.

Acerca de como essas instituições se dirigem às mulheres, Rich afirma que:

 

As mensagens dirigidas às mulheres têm sido, precisamente, as de que nós somos parte da propriedade emocional e sexual dos homens e que a autonomia e a igualdade das mulheres ameaçam a família, a religião e o Estado. As instituições nas quais as mulheres são tradicionalmente controladas - a maternidade em contexto patriarcal, a exploração econômica, a família nuclear, a heterossexualidade compulsória - têm sido fortalecidas através da legislação, com um fiat religioso, pelas mensagens midiáticas e por esforços de censura (Rich, 2012, p. 19).

 

Aquele homem que pouco sabia sobre Isaltina, já que a conhecia da faculdade, arrogava para si o direito masculino de invadir o corpo de uma mulher e de subjugá-la pelo estupro: “E afirmava, com veemência, que tinha certeza de meu fogo, pois, afinal, eu era uma mulher negra, uma mulher negra” (Evaristo, 2011, p. 55). A autorização para o estupro se materializa na certeza que o homem tem sobre o “fogo” da mulher negra. Algo construído socialmente pelo racismo, pelo patriarcado, pela heteronormatividade e pelo eurocentrismo, que se encontra sedimentado em parte do sistema literário, em narrativas que subalternizam e silenciam corpos femininos negros.

Corroborando o pensamento de Rich (2012) sobre o modo como as mulheres são tomadas por propriedade emocional e sexual dos homens, o que lhes daria o acesso aos corpos dessas mulheres, Akotirene (2018) nos lembra de que o androcentrismo da ciência moderna impôs às mulheres um lugar social descrito como machos castrados, bem como os estereótipos de fracas e mães compulsórias. A heterossexualidde compulsória autoriza a invasão de corpos e os mantêm estereotipados em padrões de fragilidade e submissão:

 

[...] a interseccionalidade permite [...] criticidade política a fim de compreenderem a fluidez das identidades subalternas impostas a preconceitos, subordinações de gênero, de classe e raça e às opressões estruturantes da matriz colonial moderna de onde saem (Akotirene, 2018, p. 33).

 

O corpo-objeto, a quem foi imposto o estereótipo da sensualidade a serviço do homem, desde o período de escravização, passa da negra da senzala à mulata tornada rainha por um dia para a exploração do corpo sensual. A representação do corpo da mulher negra como objeto para o usufruto do homem é atravessada pelo racismo e pelo sexismo, que remonta às relações coloniais nas quais as escravas, tidas como objetos, ora serviam aos trabalhos braçais no campo, ora eram violentadas por seus senhores e capatazes. Tais imagens da mulher negra extrapolaram os relatos históricos do período de escravização e passaram a figurar os estereótipos literários de um sistema que insiste em reproduzir modelos do patriarcado europeu.

Ratts (2007), no capítulo “Eu sou Atlântica: transmigração, mulher negra e auto-estima”, parte de seu trabalho sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento, para nos remeter a como, ao longo da história brasileira, a imagem das mulheres negras foi construída em torno da maternidade e da submissão.

O autor destaca a atuação de Beatriz Nascimento no enfrentamento e na desmistificação do amor e da submissão amorosa, a fim de que mulheres não reproduzissem o comportamento masculino autoritário. Ainda na década de 1980, os estudos de Nascimento apontavam para a necessidade de enfrentamento das imagens de controle sobre o corpo feminino. Ratts (2007) chama a atenção para a sobrecarga de estereótipos que recaem sobre mulheres negras que, como Beatriz Nascimento, fazem o enfrentamento dessas relações raciais e de gênero.

 

[...] na literatura sobre relações raciais e de gênero é notório que o enfrentamento diário de micro-mecanismos do racismo e do sexismo atingem sobremaneira a saúde mental de mulheres negras.

[...] devem parecer fortes e não demonstrar sentimentos, e suportar por toda uma vida lugares subalternos de opressão, de trabalho e de existência sem ousar questioná-los sob o preço de ver recair sobre si mesmas cargas a mais de estereótipos ou “imagens de controle” (Ratts, 2007, p. 78).

 

Do sentimento de vergonha e impotência ao alheamento quanto à gravidez, e ao profundo sentimento de culpa, ao narrar sua dor, Isaltina entende, anos mais tarde, que não havia nenhum homem dentro de si, mas uma mulher que podia se “encantar por alguém e esse alguém podia ser uma mulher” (Evaristo, 2011, p. 57).

Estereotipada no corpo-desejo, afinal era mulher negra; presa à imagem de controle por não entender seu desejo por outra mulher. Em seu relato, trinta e cinco anos depois de ocorrido o estupro, fica evidente como Isaltina fora percebida e se percebia a partir da imagem de corpo-objeto, a ponto de se questionar se não fora ela mesma a culpada e, portanto, merecedora do estupro. Questionamento suplantado tão somente porque a narrativa parte da própria personagem, que fala por si, a partir de si, expondo suas experiências e apropriada de seu discurso e de sua história.

É por isso que Evaristo (2018) adverte sobre as interdições do texto literário e da autoria negra, que a fizeram ser considerada expoente da literatura aos 71 anos, em 2018, mesmo tendo percorrido o caminho editorial desde a década de 1980. Porque como escritora, busca criar narrativas a partir da fala de personagens historicamente silenciadas ou estereotipadas, para assim enfrentar tais mecanismos e estabelecer lugares de fala tanto às personagens femininas, quanto a ela mesma como escritora negra.

 

3 Considerações finais

De acordo com Cândido, a literatura como fabulação está presente em cada um de nós como um componente do cotidiano.  É capaz de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo, como também pode ser instrumento de desmascaramentos sociais, éticos, históricos. Nesse sentido, a literatura pode ser instrumento para negar espaço a mulheres e personagens negros no sistema literário por mascarar direitos em favor de um projeto alinhado com estruturas de opressão que visam criar e manter estereótipos.

 A escrevivência como prática narrativa da trajetória literária de Conceição Evaristo, representa, assim, a estratégia narrativa, por meio da qual se estabelece o premeditado enfrentamento a esse sistema literário. Escritora, narradora e personagens se unem em torno da escrevivência para enfrentar mecanismos opressores que criaram e mantiveram personagens femininas presas a estereótipos e a processos narrativos de silenciamento e invisibilidade.

Em Insubmissas lágrimas, as narrativas centradas em personagens femininas interceptadas por violências, que insistem em seguir suas vidas e falar a partir de suas subjetividades, subvertem a lógica das opressões por resistirem a elas e por seguirem suas vidas e narrativas. Nesse sentido, Evaristo (2011) dialoga com Cândido (2018) fazendo da escrevevivência sua estratégia capaz de possibilitar fruição de narrativas a partir de subjetividades femininas negras e do enfrentamento a estereótipos.

 A escrevivência se configura, para as narrativas analisadas, como instrumento consciente de desmascaramento de padrões opressores de gênero, raça, classe e sexualidade dos quais se utiliza o sistema literário para manter, tanto escritoras quanto personagem negras, silenciadas e invisibilizadas.

Na construção da imagem dos corpos mulheres que ressurgem e persistem, há a síntese da proposta de narrativa de enfrentamento ao cânone. Primeiramente, por não se conformarem, entre outros, aos estereótipos de corpos negros objetificados. Depois, por ressurgirem a partir desses mesmos corpos, para persistir vivendo. Suas histórias não se encerram com a manifestação de violência física ou psicológica, seja do estupro, do abandono afetivo, do espancamento, da agressão verbal. As experiências com a violência foram determinantes para as novas posicionalidades dessas personagens, que se insurgem diante das opressões e que não sucumbem às estruturas opressoras.

No ato premeditado de traçar uma escrevivência, Evaristo (2011) reafirma Cândido (2011) em sua defesa da literatura como direito humano e, portanto, direito que abarca a diversidade da humanidade. Nas narrativas analisadas, ressurgir e persistir representam a resposta política das mulheres diante da matriz de opressão gravada em seus corpos negros.

 

Referências

 

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EVARISTO, Conceição. É preciso questionar as regras que me fizeram ser reconhecida apenas aos 71 anos. [Entrevista concedida a] Júlia Dias Carneiro. Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43324948. Acesso em: 10 mar. 2020.

 

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[1] Ao longo deste artigo, usaremos Insubmissas lágrimas para nos referirmos à obra Insubmissas lágrimas de mulheres (2011).



[i] Artigo recebido em 24/09/2023

 Artigo aprovado em 15/05/2024