e-ISSN 1984-7246
Para além do invisível de fora:
narrativas do avesso
Jéssica
França de Oliveira
Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF)
Juiz de Fora - MG, Brasil
lattes.cnpq.br/5575926850176402
Para além do invisível de fora:
narrativas do avesso
Resumo
Marcada por um passado escravocrata, a sociedade
brasileira mantém os vestígios desse sistema, alimentando o pensamento racista
que ainda se engendra nas esferas sociais, históricas e políticas, resultando
em uma estrutura social baseada em ações discriminatórias e violentas. Assim, o
corpo negro é alvo da necropolítica, em que viver na contemporaneidade é
experimentar, ainda, as vivências do medo e da dor – mesmo por órgãos públicos
que deveriam protegê-los. Na literatura brasileira, essa herança se faz
presente desde os primórdios, evidenciando-se na marginalização dos personagens
negros. Isso se manifestou tanto pela normalização de estereótipos negativos
quanto pela atribuição a esses personagens de papéis secundários, quando não os
relegando ao completo silenciamento. Nessa perspectiva, partindo da análise da
obra de Jeferson Tenório, O avesso da
pele (2020), buscamos apontar como o autor retrata esses corpos negros na
sociedade brasileira contemporânea, nas suas formas de atuarem não apenas pela
maneira como (não) são vistos, mas também pelo seus avessos e resistências. O
quadro teórico é formado por estudiosos como: Achille Mbembe (2018), Abdias do
Nascimento (2016), Chimamanda Adichie (2019), Silvio Luiz de Almeida (2019),
Célia Azevedo (1987), Luiz Cuti (2010), Lilia Schwarcz (2013) e Neusa Souza
(1983). Depreende-se que, quando o próprio corpo negro é quem se apropria da
voz literária, consciente de seu local de fala e imerso no tecido político e
social que o envolve, é capaz de romper com as correntes dos paradigmas
racistas, tecendo histórias que permitem (re)contar e (re)apresentar ao mundo
suas próprias realidades.
Palavras-chave: corpo negro;
invisibilidade; racismo; necropolítica; resistência.
Beyond the invisible from outside: narratives from the reverse
Abstract
Defined by a history of
slavery, Brazilian society still bears the remnants of this system, nurturing
the racist thinking that continues to permeate social, historical, and
political spheres, resulting in a social structure built upon discriminatory
and violent actions. Consequently, the Black body becomes a target of
necropolitics, where living in contemporary times entails experiencing the
realities of fear and pain – even at the hands of public institutions meant to
protect them. In Brazilian literature, this legacy has been present since its
beginnings, manifesting in the marginalization of Black characters. This
manifested itself through the normalization of negative stereotypes.
Additionally, Black characters were often assigned secondary roles, relegating
them to complete silence. In this perspective, by analyzing Jeferson Tenório's
work, O avesso da pele (2020), we aim to illustrate how the author portrays
these Black bodies in contemporary Brazilian society, not only in terms of how
they are (not) seen but also through their depths and resistance. The
theoretical framework draws upon scholars such as Achille Mbembe (2018), Abdias
do Nascimento (2016), Chimamanda Adichie (2019), Silvio Luiz de Almeida (2019),
Célia Azevedo (1987), Luiz Cuti (2010), Lilia Schwarcz (2013), and Neusa Souza
(1983). We can conclude that when the Black body itself appropriates the
literary voice, fully aware of its position and immersed in the political and
social fabric that surrounds it, it can break free from the chains of racist paradigms,
weaving stories that enable the (re)telling and (re)presentation of their own
realities to the world.
Keywords: black body; invisibility; racism; necropolitics;
resistance.
1 Introdução
Como sujeitos que
se inserem em um mundo por meio de representações simbólicas, nossos corpos
falam como forma primeira, uma vez que são lidos e interpretados por meio de
instâncias políticas, culturais, de classe, de gênero e de raça. Considerando,
nesse sentido, o corpo negro na sociedade brasileira contemporânea, percebemos
que os vestígios do colonialismo ainda se mantêm nas estruturas que os limitam.
Se, então, o corpo branco é só um corpo, o corpo negro não é só um corpo. É
também negro.
Isso nos conduz à
profunda constatação de que as esferas sociais, históricas e políticas se
erguem como muralhas interconectadas alimentadas pelo racismo, as quais
sustentam uma estrutura social fundamentada em práticas discriminatórias. Nesse
intricado contexto, emerge a cruel sombra da necropolítica, a qual, de maneira
inexorável, delineia a divisão entre quais vidas devem perdurar e quais estão
destinadas à morte. Para aqueles corpos que são alvo desse cruel aparato, a
vivência na contemporaneidade se traduz invariavelmente em uma incessante
travessia marcada pelos abismos do medo e da dor.
Além disso, a luta
pela sobrevivência em um sistema permeado pelo racismo impõe uma carga
emocional avassaladora aos corpos negros. O medo, a tensão e a vigilância
constantes podem gradualmente minar a saúde mental e emocional desses indivíduos,
deixando cicatrizes profundas e duradouras. Portanto, o desafio transcende não
apenas a questão da sobrevivência física, mas também se estende à preservação
das profundezas da alma em meio a esse ambiente hostil.
Em se tratando da
literatura brasileira, houve um longo período em que a experiência negra foi
relegada à margem, perpetuando estereótipos. Isso ocorreu tanto pela conivência
tácita com imagens negativas quanto pela atribuição de papéis secundários e, em
algumas ocasiões, pela completa ausência de representação.
Luiz Silva Cuti (2010) oferece uma visão crítica sobre esse tema, ao afirmar
que, nos primeiros quatro séculos, os escritores brasileiros direcionavam sua
produção literária para a metrópole, o que resultava na representação inferiorizada
da população negra na literatura.
Em concordância a esse pensamento, Luiza Lobo
(2007) salienta que nossa literatura foi escrita, majoritariamente, por autores
brancos. Sendo esses autores parte da classe dominante, “começaram a imprimir
uma imagem pejorativa e destrutiva do escravo e posteriormente do negro livre
que lhes eram inferiores socialmente” (Lobo, 2007, p. 261). A autora cita, por
exemplo, obras de Monteiro Lobato (Jeca
Tatu) e José de Alencar (A Mãe),
em que o negro é visto como ser inferior.
Por outro lado, ao reconhecermos esse vínculo entre literatura e
sociedade, podemos compreender que se trata de uma relação bidirecional. Isso
ocorre porque a literatura não apenas reflete o mundo, mas também o refrata e o
reimagina. Antonio Candido (2006)
discute essa simbiose entre a obra literária e seu contexto social, destacando
que, nos estudos mais recentes, entende-se que a literatura se trata
não apenas de um espelho da sociedade, mas também de um espaço de construção de
sentidos, valores e identidades, podendo tanto legitimar como contestar as
relações de poder vigentes. Como afirma o
teórico, “sabemos, ainda, que o externo
(no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como
elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura,
tornando-se, portanto, interno
(Candido, 2006, p. 13). Isso implica dizer que os elementos sociais são
incorporados na construção estética da obra, atuando como componentes
fundamentais de sua estrutura e significado.
Partindo dessa
perspectiva, direcionamos nossa lente analítica à obra O avesso da pele (2020), de Jeferson Tenório, com o objetivo de
desvelar como o autor retrata essas vivências negras na sociedade brasileira
contemporânea. Vamos além da simples questão da visibilidade ou invisibilidade,
adentrando no âmago de sua existência, em seu avesso, onde as identidades são esculpidas e a resiliência encontra
raízes profundas. É imperativo reconhecer as formas de resistência, pois a
capacidade de desafiar as narrativas preconceituosas representa uma resposta
poderosa ao sistema que tenta negar a existência e a humanidade desses
indivíduos. Nesse contexto, a arte se revela uma ferramenta essencial,
fortalecendo suas identidades, capacitando-os a enfrentar a opressão e
estabelecendo espaços de representatividade em um mundo que, frequentemente,
parece indiferente às suas lutas.
2.1 O passado escravocrata e a mente colonialista contemporânea
O processo de
colonização, que se consolidou no Brasil entre os séculos XVI e XIX, moldou a
estrutura política, econômica e social do país, especialmente por meio da
escravidão, a qual atravessou, a princípio, os corpos autóctones para,
posteriormente, atravessar os corpos negros. Segundo Silvio Luiz de Almeida
(2019), as referências à “bestialidade” ou à “ferocidade” direcionadas a
determinados povos e culturas, é uma arma potente para a desumanização, gerando
práticas discriminatórias ou mesmo culminando em genocídios. Para Frantz Fanon
(2008), a partir do momento em que a dominação colonial considera o negro como
o não humano, ele é despojado de sua cultura e civilidade.
No século XIX, o
homem passou a ser visto como objeto científico, sob influência das correntes
europeias, como o Darwinismo Social e
o Positivismo, de August Comte. Lilia
Schwarcz (2013) e Almeida (2019) argumentam que, nesse sentido, as
características biológicas e geográficas serviram para explicar as diferenças
morais, psicológicas e intelectuais entre as pessoas. Além disso, defendia-se a
existência de raças superiores e inferiores, em que a supremacia de uma raça
(neste caso, a branca) se tornava primordial para o desenvolvimento de um país.
Desse modo, a raça se transforma em uma peça importante para que o
colonialismo, pautado na ideia de classificação dos seres humanos, continuasse
a subjugar e a destruir populações inteiras. Como ressalta Neusa Santos Souza
(1983), era necessário reforçar essas características negativas ao negro, de
modo a mantê-lo nos limites estreitos de uma participação social.
Considerando que a
sociedade brasileira era formada, especialmente, por indígenas, negros e
mestiços, este seria um problema ao futuro promissor do país. Schwarcz (2013)
esclarece, contudo, que a miscigenação teve seu viés positivo: tornaria o
brasileiro cada vez mais branco. É nesse momento que tem início a imigração de
europeus, marcada pela política de branqueamento no país. Célia Maria Azevedo
(1987) discute a respeito da situação marginal do negro em relação aos
imigrantes, a nova força motriz para as indústrias brasileiras. Para ela,
muitos estudos, sob uma mentalidade colonialista, acreditam que o negro se
inseria nesse status em decorrência de uma suposta influência deformadora da
escravidão e consequente incapacidade para o trabalho não coercitivo.
Entretanto, o que se tem são, na verdade, interesses de uma classe dominante
que, sob o viés racista, encontrou uma justificativa aceitável para a
importação de europeus.
A partir dos anos
1930, Almeida (2019) salienta que o racismo cientificista é substituído pela
ideologia da democracia racial, que
consiste em afirmar a miscigenação como uma das características básicas da
identidade nacional. Essa ideologia abre brechas para que o racismo seja um
assunto velado e, segundo Schwarcz (2013), acaba por se tornar naturalizado.
Como consequência, resulta na negação do preconceito e das injustiças
propagados contra a população negra. O surgimento desse discurso coincide,
segundo Almeida (2019), com o início do projeto do Estado brasileiro ao
capitalismo industrial. Dessa forma, a negligência do Estado em efetivamente
integrar essa população na vida cotidiana tem sido um fator contribuinte para a
manutenção da mentalidade colonialista.
Nos dizeres de
Abdias do Nascimento (2016), a democracia
racial nada mais é do que uma falsa justiça social, uma vez que todos são
brasileiros, ainda que sejam negros, brancos, indígenas ou mestiços.
Entretanto, todos os poderes, políticos, sociais e econômicos, concentram-se
nas mãos de uma única classe: a branca. Para o estudioso, ser uma sociedade
plurirracial é ser democrática para todas as raças, de modo a proporcionar
igualdade econômica, social e cultural. Do contrário, não se pode falar em
sociedade plurirracial, tampouco em sociedade democrática.
Nesse contexto de
desigualdade racial e estrutura de poder concentrada, a ideologia nacionalista, segundo Almeida (2019), é central para
preencher as enormes fissuras da sociedade capitalista, afastando a percepção
acerca dos conflitos de classe, de grupos e, em particular, da violência
sistemática do processo produtivo. Reforçando esse raciocínio, Schwrazc (2013)
esclarece que a criação de símbolos nacionais brasileiros surge no momento em
que os interesses privados assumem sentidos públicos, quando se idealiza um
“povo” a partir da supressão das pluralidades, resultando em práticas de poder
e de dominação convertidas em discursos de normalização da divisão social.
No que diz
respeito às ocupações dos negros no espaço urbano, Abdias do Nascimento (2016)
ressalta que a libertação dos escravizados idosos, inválidos e enfermos
incuráveis, além da implementação da Lei Áurea, não resultou, efetivamente, na
conquista por liberdade. O que houve, na verdade, foi um episódio de
assassinato em massa, uma vez que os negros foram “[...] condenados à periferia
da sociedade de classes, como se não pertencesse à ordem legal” (Nascimento,
2016). Em concomitância, Azevedo (1987) ressalta que, com o fim da relação
senhor-escravo, os negros estavam sujeitos a numerosas restrições na cidade
dominada por uma diminuta elite branca, entregues à probabilidade de serem
tratados com desprezo e violência. Assim, a população negra perdia o status de
escrava, mas permanecia tolhida de direitos civis e sem condições básicas para
viver.
À medida que o
país avançava em seu desenvolvimento, as políticas públicas continuaram a
negligenciar a população negra, tornando-se cada vez mais evidente a relação
entre a escravidão e o capitalismo. Nesse sentido, o racismo “atinge,
sobretudo, a sua configuração interna, estipulando padrões hierárquicos, naturalizando
formas históricas de dominação e justificando a intervenção estatal sobre
grupos sociais discriminados” (Almeida, 2019). Para o referido autor, o racismo
não é apenas uma questão de preconceito individual ou cultural, mas sim uma
estrutura sistêmica enraizada nas bases econômicas e sociais do capitalismo. Em
outras palavras, o racismo é uma manifestação das estruturas do capitalismo,
que foram forjadas pela escravidão. Dessa forma, a desigualdade racial se
configura como um componente inerente às relações mercantis e de classe,
permitindo que haja a exploração de mão de obra barata e a concentração de
riqueza nas mãos de uma elite dominante.
Em suma, o teórico
argumenta que o racismo e o capitalismo estão intrinsecamente ligados, e que a
luta contra o racismo não pode ser dissociada da luta contra o capitalismo.
Nesse contexto, é imperativo considerar a fala de Fanon (2008), quando este
afirma que, além de uma revolução cultural, deve haver, também, uma revolução
social, de modo a transformar as estruturas do sistema político e econômico.
Trata-se, portanto, de uma luta anticapitalista e contra todas as formas de
opressão.
Contudo, como
destaca Almeida (2019), parte da sociedade não verá como incoerente ou anormal
o fato de uma maioria negra ocupar os subempregos, receber baixos salários, não
frequentar universidades importantes, residir nas áreas periféricas das cidades
ou ser assassinada com frequência pelas forças do Estado capitalista. Esse
fenômeno, identificado por Almeida (2019) como racismo institucional, persiste muitas vezes camuflado aos olhos da
sociedade.
Segundo o teórico,
trata-se de uma forma de racismo “menos evidente, muito mais sutil, menos
identificável”, uma vez que “a imposição de regra e padrões racistas por parte
da instituição [está] vinculada à ordem social que visa resguardar” (Almeida,
2019). Nesse sentido, as instituições são apenas uma forma de materializar essa
estrutura, já que o racismo é estrutural, ou seja, provém da organização
econômica e política da sociedade.
Nesse sentido, a
maneira como a população negra foi tradicionalmente retratada igualmente se
reflete nas produções literárias, uma vez que a literatura acaba sendo
influenciada por um determinado período e contexto. Cuti (2010) argumenta que,
no Brasil, durante os quatro primeiros séculos, os escritores escreviam para a
metrópole e, como consequência, a população negra era inserida na literatura
sob o viés do preconceito e da compaixão. Assim, se a escravidão coisificou o
negro, “a literatura, como reflexo e reforço das relações tanto sociais quanto
de poder, atuará no mesmo sentido ao caracterizar as personagens negras,
negando-lhes complexidade e, portanto, humanidade” (Cuti, 2010). Para Lobo
(2007), os estereótipos construídos em torno da população negra sofrem,
principalmente, a influência do Naturalismo, em que se vincula o negro a uma
ideia única e genérica.
Essa prática
efetivamente sustenta na consciência da sociedade brasileira um estereótipo que
simplifica e generaliza a população negra como um todo, algo que Chimamanda
Adichie (2019) denomina de história única.
Essa abordagem contribui para a criação de uma única narrativa sobre um grupo
diverso de pessoas, obscurecendo suas histórias individuais e complexidades.
Segundo a autora, falar em histórica única é, na verdade, falar sobre poder. Ela ilustra isso usando a palavra
em igbo, nkali, que significa “ser
maior do que outro”. Em meio às influências das questões econômicas, jurídicas,
sociais e políticas, as histórias também acabam sendo moldadas pelo princípio
de nkali, cujo poder influencia na
forma como elas são contadas e por quem são contadas. Desse modo, a
história única rouba a dignidade das pessoas e, como consequência, “torna
difícil o reconhecimento da nossa humanidade em comum. Enfatiza como somos
diferentes, e não como somos parecidos” (Adichie, 2019).
A mudança na forma
como o negro é retratado na literatura brasileira ocorre, principalmente,
quando os próprios autores vivenciam as situações que estão descrevendo,
segundo Cuti (2010). Além disso, o surgimento de leitores negros será
fundamental para que a vertente negra da literatura brasileira se torne
evidente. Um marco importante para isso se deu, em especial, no ano de 1978, em
São Paulo, quando nascia, como destaca o teórico, o Movimento Negro Unificado contra Discriminação Racial, reduzido
posteriormente para Movimento Negro
Unificado. Ademais, nesse mesmo ano, em meio à movimentação social, foi
lançada a série Cadernos Negros.
Trata-se de produção literária contendo contos e poemas escritos pela própria
população negra. A partir desse momento, o negro deixa de ser objeto e passa a
ocupar o papel de sujeito na literatura e na própria história. Essa forma
literária, definida fundamentalmente como literatura afro-brasileira por Lobo
(2007), se diferencia das produções de autores brancos sobre o negro, seja
enquanto objeto, tema ou personagem estereotipado, tais como a mulata lasciva,
a mãe preta servil ou mesmo o escravo dócil ou dominado.
2.2 A violência e o corpo negro
Uma pessoa não
nasce branca ou negra, mas se torna, uma vez que “seu corpo e sua mente são
conectados a toda uma rede de sentidos compartilhados coletivamente, cuja
existência antecede a formação de sua consciência e de seus afetos” (Almeida,
2019). Influenciado pelas teorias foucaultianas, Almeida (2019) traça um
paralelo entre o racismo e o poder. Para o estudioso, as mudanças
socioeconômicas ocorridas a partir do século XIX impõem uma mudança
significativa na concepção de soberania, que deixa de ser o poder de tirar a
vida para ser o poder de controlá-la e mantê-la.
A perspectiva do
teórico se justifica pelo fato de o surgimento e a consolidação do capitalismo
estarem estreitamente entrelaçados ao racismo, uma conexão que permeia tanto os
aspectos econômicos quanto os sociais. Isso porque o racismo não é apenas uma
consequência casual do capitalismo, mas sim uma característica intrínseca que
moldou sua ascensão ao longo da história. Mesmo após o fim da escravidão, o
racismo continuou a ser a força motriz no sistema capitalista, manifestando-se
na discriminação no mercado de trabalho, na segregação urbana e na negação de
direitos básicos às populações negras e indígenas. Em outras palavras, o
racismo não é apenas uma questão social, mas também econômica, fundamental para
manter a estrutura de exploração do capitalismo, resultando na perpetuação das
desigualdades sociais e econômicas. De acordo com Almeida (2019), por meio de
políticas de austeridade e privatização, o neoliberalismo tende a aumentar a
disparidade de riqueza e a marginalização econômica das comunidades racialmente
discriminadas. Como consequência, o neoliberalismo muitas vezes promove uma
narrativa de mérito individual, ignorando as estruturas sistêmicas de opressão
que perpetuam a desigualdade racial.
Dessa forma, o
racismo se torna o mecanismo fundamental de controle do Estado capitalista e
neoliberal. Isso ocorre porque, segundo o teórico, há uma hierarquização e
classificação do ser de forma biológica, de modo a considerar quais vidas devem
ser mantidas e quais merecem perecer[1]. A morte
desses indivíduos é vista como positiva, uma vez que eliminá-los é interpretado
como uma medida que visa a garantir a segurança e a consequente manutenção do
desenvolvimento e da ordem social. No contexto apresentado, o racismo desempenha
um papel interligado e simbiótico com o biopoder,
o qual dita quem é considerado relevante e quem não é, quem é categorizado como
“descartável” e quem escapa a essa categorização. Essa abordagem reflete a
essência da teoria da necropolítica
defendida Achille Mbembe (2018).
No contexto
brasileiro, essa teoria lança luz sobre as práticas que perpetuam a morte de
corpos negros. Por meio da violência policial, encarceramento em massa,
negligência em serviços públicos, falta de acesso à educação de qualidade e
exclusão econômica sistemática, o Estado atua como um agente que contribui para
a precariedade das vidas negras. Além disso, a necropolítica também se
manifesta na criminalização da população negra, muitas vezes retratada como uma
ameaça à segurança pública, justificando, assim, a violência estatal. A
militarização de áreas marginalizadas, majoritariamente habitadas por negros, é
uma prática que se alinha com essa lógica, resultando em mortes e sofrimento
desproporcional entre os negros. Assim, ao considerarmos a necropolítica,
entendemos que a violência contra corpos negros não é um acidente, mas uma
estratégia deliberada de controle e opressão.
Essa perspectiva
se entrelaça com a visão de Marielle Franco (2014) sobre as práticas políticas
brasileiras. Segundo a estudiosa, o reforço de uma política pautada no controle
e na repressão surge no Brasil como tentativa de implementação do chamado
modelo de bem-estar social, que
perdurou até o final da década de 1970. Entretanto, novas mudanças ocorreram em
1990, influenciadas pelo neoliberalismo. Essa transição foi marcada por
profundas reformulações, sendo a pobreza o elemento de maior preocupação. Nesse
sentido, surge uma política que fortalece o Estado Penal como um meio de conter
os que se encontram à margem, formados, significativamente, por pobres e
negros.
Ademais, os
mecanismos de aniquilação dessas vidas não se limitam estritamente a questões
penais, mas também abrangem a negligência do Estado em fornecer condições
básicas e dignas para a existência. Assim, a desigualdade econômica e a
marginalização social resultantes das políticas neoliberais afetam
desproporcionalmente as comunidades racialmente discriminadas, exacerbando a
pobreza, o desemprego e a falta de acesso a recursos e oportunidades. Nas
palavras de Almeida (2019), a predominância da política neoliberal se consolida
por políticas de desamparo e desesperança.
Como assegura
Franco (2014), é fundamental convencer a população de que o que está em jogo é
a garantia da segurança de cada cidadão. Dessa forma, aqueles que estão à
margem, como os negros e pobres, são tratados como potenciais inimigos.
Privá-los de direitos básicos ou, pior, executá-los, é uma forma de incutir no
imaginário da população que o que ocorre, é na verdade, uma forma de manter o
bem-estar e a segurança da sociedade.
Desse modo,
conclui-se que a necropolítica não se limita apenas à violência física, mas
também engloba a violência simbólica e psicológica que perpetua estereótipos
prejudiciais sobre a população negra, reforçados, especialmente, pela
mentalidade capitalista e neoliberal. Esses estereótipos, como a associação
entre negritude e criminalidade, servem para justificar ações violentas e
discriminação racial. Assim sendo, normaliza-se a violência extrema imposta à população
negra, fazendo com que se naturalize a morte de crianças, que seja aceito o
sucateamento de necessidades básicas a populações inteiras ou mesmo que se
exterminem jovens pretos e pobres todos os dias. A necropolítica, portanto,
instaura-se como um instrumento necessário para a manutenção da sociedade
capitalista.
Considerando as
questões apresentadas, percebemos como esses mecanismos de poder não apenas
moldam as condições materiais na vida dos indivíduos negros, como também podem
influenciar profundamente em sua subjetividade e autoimagem. Esse pensamento
teve início com o racismo científico, que buscou justificar a inferioridade dos
negros em relação aos brancos, vistos como menos capazes em termos de
inteligência, habilidades e civilidade. Essa perspectiva se estendeu, também,
para as características físicas. Segundo Lélia Gonzalez (2020), as pessoas
negras são vistas de forma inferiorizada e pejorativa: cabelo ruim, nariz
chato, beiços ao invés de lábios. Assim, o próprio indivíduo negro acredita que
é feio, repugnante e inferior. Por outro lado, como reforça a teórica, o modelo
estético ocidental (branco) é imposto como o ideal a ser atingido. Como afirma
Souza (1983),
A violência
racista do branco exerce-se, antes de mais nada, pela impiedosa tendência a
destruir a identidade do sujeito negro. Este, através da internalização
compulsória e brutal de um Ideal de Ego branco, é obrigado a formular para si
um projeto incompatível com as propriedades biológicas do seu corpo. Entre o
Ego e seu Ideal cria-se, então, um fosso que o sujeito negro tenta transpor, às
custas de sua possibilidade de felicidade, quando não de seu equilíbrio
psíquico (Souza, 1983, p. 1-2).
Frantz Fanon
(2008) faz profundas reflexões sobre essa condição do negro em uma sociedade
dominada pela mentalidade colonialista mediante a imposição de uma negação
constante de sua humanidade e identidade, de “não-ser”. Essa negação gera uma
neurose que permeia a psique do indivíduo negro, levando-o a internalizar os
estereótipos e preconceitos que o cercam. Ao explorar a complexidade do trauma
psicológico imposto pelo colonialismo, o teórico sugere que o sujeito negro se
encontra em uma condição na qual precisa adotar múltiplas máscaras brancas para
se sentir reconhecido. Ao usar tantas máscaras, ele perde a capacidade de se
ver com autenticidade. A desumanização do negro, alimentada pelo deslocamento
de sua identidade e corporeidade, o leva a buscar a validação através da
assimilação aos padrões brancos, resultando em um ciclo de dependência social.
Para Souza, “o negro tomou o branco como modelo de identificação, como única
possibilidade de tornar-se gente”
(Souza, 1983, p. 18).
2.3 Para além do invisível de fora
Para iniciar a análise da obra de Jeferson
Tenório, O avesso da pele (2020), trago à luz a frase de Achille Mbembe
(2008, p. 66): “se é livre para viver a própria vida somente quando se é livre
para morrer a própria morte”. Isso porque o romance é marcado pelo assassinato
de um professor, Henrique, por meio de uma abordagem policial pautada na
necropolítica. Assim, em seu fazer literário, Tenório (2020) retrata as várias
instâncias em que o racismo se apresenta estruturalmente: na vida social, no
trabalho, na escola, no ambiente familiar e nas relações amorosas.
Embora a família retratada na obra desfrute
de posições de privilégio, geralmente reservadas a pessoas brancas, a violência
no romance persiste em atingir o corpo negro, “porque não demora muito, e a cor
da pele atravessa nosso corpo. E determina nosso lugar de estar no mundo”
(Tenório, 2020, p. 61). Assim, a questão da cor da pele persiste como um
marcador de inferioridade social, refletida nas experiências dos personagens ao
longo da narrativa. Como destacam Almeida (2019) e Mbembe (2018), o racismo e a
necropolítica são mecanismos intrínsecos ao poder estabelecido pelo capitalismo
e pelo neoliberalismo. O racismo não apenas perpetua as desigualdades sociais e
econômicas, mas também é usado como justificativa para a violência estatal,
especialmente como forma de “ordem social”. Desse modo, a cor da pele se torna
um marcador crucial na determinação do valor da vida, em que a sombria mão da
necropolítica se ergue quando um homem inocente se transforma em alvo apenas
por um único motivo: o fato de ser negro.
Por outro lado, a crítica de Tenório (2020)
não se restringe ao indivíduo que puxou o gatilho, oferecendo um vislumbre da
humanidade do policial, revelando-nos seu mundo interior e seus medos. Isso
talvez seja uma tentativa de evitar atribuir a culpa exclusivamente a um único indivíduo,
e sim direcioná-la a toda uma estrutura racista enraizada na sociedade, que
influencia as ações da população, inclusive dos policiais (mesmo que, em
teoria, eles estejam encarregados de proteger todas as vidas, sem distinções).
Para melhor compreender as ações do policial,
a narrativa nos apresenta o fato de ele ter tido sonhos recorrentes nos quais
homens negros invadiam sua casa e ameaçavam sua família. Esse medo se
intensificou, especialmente, após a morte de um amigo policial, assassinado por
um homem negro. A partir desse ponto, o policial passa a enxergar a população
negra não como indivíduos únicos, mas como uma entidade coletiva homogênea, uma construção recorrente no imaginário brasileiro
racista, “em que se tenta ligar, de forma um tanto esquemática, o sujeito a um
grupo, a um comportamento, e até mesmo a uma classe social” (Lobo, 2007, p.
261).
Isso implica em tratar um único indivíduo como representante do caráter e
comportamento de todas as outras pessoas negras, um fenômeno que ressoa o
conceito do perigo da história única,
conforme proposto por Chimamanda Adichie.
Contudo, a cena fatal é apenas uma entre
muitas ocasiões em que Henrique passou por experiências próximas à morte. O
filho, Pedro, de vinte e dois anos, que também é o narrador, rememora as muitas
ocasiões em que o pai foi abordado pela polícia. Esse homem, ceifado pelo
racismo, vivera uma vida de sobrevivências, em que “suportar a pobreza, o
racismo e a ausência paterna foi uma espécie de sinônimo da vida” (Tenório,
2020, p. 69).
A primeira abordagem a Henrique não apenas
evidencia a brutalidade com que policiais se dirigem à população negra, mas
também destaca como a sociedade restringe os espaços que esses indivíduos podem
ocupar. Há uma clara ênfase na segregação dos negros, confinando-os nas
periferias, nas favelas e nos guetos da cidade, excluindo-os dos bairros
nobres. Henrique era apenas um menino de treze anos jogando futebol com os
amigos. Todavia, era uma zona nobre de Porto Alegre. Por isso, foram informados
pelos policiais: “a gente tá de olho em vocês, aqui nesse bairro é lugar de
gente direita, se a gente souber que vocês fizeram alguma coisa errada por
aqui, a gente vai atrás de vocês, entenderam?” (Tenório, 2020, p. 144). Essa
exclusão do espaço também se repetiu em outras ocasiões, como quando o
personagem, parado em frente a um edifício luxuoso, aguardando um amigo de
escola, despertou a atenção da polícia, que o obrigou a sair daquele local,
“que ali não era lugar para pedir coisas” (Tenório, 2020, p. 145).
Outra abordagem que ilustra a maneira como os
agentes frequentemente identificam indivíduos negros como alvos é exemplificada
por um incidente em que buscavam um suspeito de um assalto, sendo que “[...] a
única referência que eles tinham era que o assaltante estava usando uma jaqueta
preta” (Tenório, 2020, p. 152). Apenas essa informação isolada foi o suficiente
para apontarem o singular homem negro presente como potencial suspeito,
ignorando completamente a presença de outras pessoas vestindo jaquetas pretas.
É importante ressaltar que a questão
transcende a cor da pele e se estende à escolha de vestuário. Após o ocorrido,
o rapaz se sente compelido a se desfazer de sua roupa ordinária, apesar de
tê-la adquirido recentemente, devido à injusta sensação de culpa que pairava
sobre ele. “No dia seguinte, [...] foi a
uma loja esportiva e comprou, em dez prestações, uma japona do Chicago Bulls e
um boné importado de seis linhas”. (Tenório, 2020, p. 152). Assim, vestir-se
com roupas caras passou a ser uma maneira de exigir respeito, como se estivesse
encobrindo sua pele por uma outra que fosse capaz de mitigar as profundas
injustiças que marcavam a existência da sua cor.
Ainda que as narrativas de Pedro se centrem
mais na figura paterna, também somos apresentados às situações vividas pela
mãe. Órfã aos dez anos, Martha e seus irmãos passam a viver amontoados na casa
de uma tia que trabalha como empregada doméstica. Aos doze, é adotada por uma
professora de sociologia, Madalena, mãe solo de Flora. A mulher acreditava que
Martha poderia ser uma grande companhia para sua filha biológica. A princípio,
as garotas não se davam bem, mas progressivamente foram aceitando a presença
uma da outra. Contudo, Martha sofre um grande impacto existencial quando sua
irmã questiona o motivo de sua pele ser mais escura que a dela. Martha recorre,
então, à mãe:
Madalena [...] completou dizendo que a
cor dela não significava nada. Que cada pessoa é uma pessoa e nunca [a
diminuíssem] porque [...] é negra [...] Passou dias pensando naquela palavra:
‘negra’. Antes, ela era Martha ou Marthinha. Agora, depois de uma simples
pergunta, ela passara a ser Martha e negra. A pele fora nomeada, a existência
ganhara sobrenome (Tenório, 2020, p. 54).
Todavia, a família de Martha, por ser branca,
irá moldá-la sob a perspectiva de que “o racismo se fortalecia justamente
quando começávamos a falar sobre ele, que isso era uma coisa que já deveria ser
superada” (Tenório, 2020, p. 75-76). Ademais, para ela “o movimento negro acha
que tudo se resume à cor da pele. Se esquecem que ser um homem negro é muito
diferente de ser uma mulher negra” (Tenório, 2020, p. 76).
Essa visão de Martha, contrária aos
movimentos negros, pode, a princípio, soar radical, considerando que não há
como individualizar um problema estrutural como o racismo. Entretanto, ela toca
em um ponto importante. Afinal, as mulheres negras vivem situações
completamente diferentes a respeito do racismo, posto que são exploradas sob
duas vias: a da raça e a do gênero.
Ainda criança, Martha sentia os olhares
masculinos que a sexualizavam, reforçando o imaginário criado a respeito da
moça/mulher negra, caracterizada como lasciva. Portanto, na percepção de
Martha, o problema do movimento reside em colocar “todos nós no mesmo balão. Os
negros são diferentes. Nós não somos iguais” (Tenório, 2020, p. 76). Nesse
sentido, Tenório (2020) salienta que, embora a cor da pele seja uma experiência
compartilhada, ela não afeta a todos de maneira uniforme.
Lélia Gonzalez (2020) defende que, se nos
últimos anos as mudanças na sociedade brasileira têm sido favoráveis às
mulheres, é
importante destacar que essa ideia de universalização esconde a dura realidade
enfrentada pela mulher negra. Por isso, as mulheres negras se organizaram
dentro do movimento negro e não do movimento de mulheres. Entretanto, Gonzalez
(2020) não deixa de salientar um aspecto frequentemente negligenciado até mesmo
pelo próprio movimento negro: a participação ativa das mulheres negras. As
vivências dessas mulheres “eram marcadas pela discriminação racial e pelo
machismo não apenas dos homens brancos, mas também dos homens negros”
(Gonzalez, 2020, p. 103). Nesse sentido, é significativo, como salienta a
estudiosa, o fato de as mulheres negras se afirmarem enquanto coletividade como
forma de destacarem suas vivências, para que não apenas as questões sobre raça,
classe e cultura sejam evidenciadas, mas também para abordar os variados papéis
e representações sociais que enfrentam.
Embora a perspectiva de Martha seja
significativa ao questionar a interseção do gênero e da individualidade, sua
recusa em abordar a questão do racismo revela uma problemática persistente e
comum na sociedade brasileira. Com efeito, a dissimulação do racismo
frequentemente emerge como uma forma cômoda de preservar o status quo. Em uma sociedade em que a comunidade negra coexiste com
estruturas profundamente enraizadas de racismo, é frequente que suas ações
também sejam, em muitos casos, influenciadas por preconceitos raciais. Nesse
sentido, podemos dizer que
ser negro é ser violentado de forma
constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de
encarnar o corpo e as ideias de Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e
anular a presença do corpo negro (Souza, 1983, p. 2).
Essa atitude de destruir o corpo negro e tudo
que possa se remeter a ele é especialmente alimentada pela avó paterna de
Pedro: “Sua mãe [...] ficou olhando para aquela moça muito branca e já
vislumbrando um neto mais clarinho, como o cabelo bom e traços mais finos.
Livre de preconceitos, ela pensava.” (Tenório, 2020, p. 32). Uma vez mais,
Souza (1983) nos mostra que “as uniões sexuais com o branco [...] representam
uma louca vingança, suicida e homicida, contra um corpo e uma raça que, obstinadamente, recusam o
ideal branco assumido pelo sujeito negro” (Souza, 1983, p. 7). Reforçar as
características negativas sobre o negro é, segundo a teórica, uma forma de
fazer com a que a população negra se identifique com o fetiche da brancura.
Para Gonzalez (2020),
a ideologia do branqueamento, tão bem
analisada pelos cientistas brasileiros [...], reproduz e perpetua a crença de
que as classificações e valores da cultura ocidental branca são os únicos
verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca
prova sua eficácia pelos efeitos da violenta desintegração e fragmentação da
identidade étnica produzida por ele; o desejo de se tornar branco (“limpar o
sangue”, como se diz no Brasil) é internalizado com a consequente negação da
própria raça, da própria cultura (Gonzalez, 2020, p. 143).
Com isso, a intelectual argumenta que a
violência racista do branco é impiedosa em destruir a identidade do sujeito
negro. Assim, às custas de sua própria felicidade e equilíbrio psíquico, tenta
se inserir em um mundo em que a referência é sempre branca. De acordo com bell
hooks (2019), enquanto as pessoas negras forem ensinadas a rejeitar a
negritude, sempre haverá uma crise de suas identidades, levando-as à
autonegação e, consequentemente, ao auto-ódio profundo e à angústia intensa.
Fanon (2008) realizou um profundo trabalho
que explora esse fenômeno da alienação cultural e da busca por aceitação
através da assimilação da cultura branca por parte de pessoas negras. Nas
palavras do teórico, a inserção em um mundo composto predominantemente por
brancos apresenta consideráveis desafios para o negro. Nesse contexto, “vestir
a máscara branca” se torna uma metáfora que abrange a complexa dinâmica das
relações raciais e da identidade pessoal, revelando as tensões e desafios que
os indivíduos negros enfrentam ao tentar se encaixar em um mundo que muitas
vezes nega sua própria identidade. Na introdução de seu livro, Fanon sintetiza
essa discussão ao declarar que “por mais dolorosa que possa ser esta
constatação, somos obrigados a fazê-la: para o negro, há apenas um destino. E
ele é branco” (Fanon, 2008, p. 28).
No romance de Tenório, as relações amorosas
entre brancos e negros são amplamente exploradas por meio do exemplo do pai de
Pedro. Essa união de raças o fez
desconfiar da sua situação como homem
negro no sul do país. Foi caminhando de mãos dadas com [Juliana], pela rua da
Praia, no centro de Porto Alegre, que você começou a notar os olhares, às vezes
acompanhados de piadas racistas. [...] no começo, você e a Juliana não falavam
sobre isso. [...] o afeto transcende a cor da pele, vocês pensavam (Tenório,
2020, p. 28-29).
Assim, “quando o tio dela [...] te chamou de
negão, você não se importou. Não se importou porque aquilo significava algum
tipo de intimidade e você, enfim, estava sendo aceito pela família branca da
sua namorada” (Tenório, 2020, p. 29). Entretanto, “você conheceu o professor
Oliveira. Será com ele que você tomará consciência de si e do mundo branco em
que está inserido” (Tenório, 2020, p. 28-29).
Desse modo, a obra nos revela
que, dentro do contexto de um racismo estrutural, muitas vezes mascarado, a
sociedade tende a interpretar o corpo negro através de estereótipos que
perpetuam um imaginário coletivo, frequentemente inferiorizando e simplificando
esse corpo com base unicamente na cor da pele. O ser humano presente, suas
individualidades, se esvaem. Tornam-se invisíveis, restando-lhe apenas a pele,
o que é externo e aparente. É irônico que, embora a pele sirva como demarcação,
revelando características à vista, por sua vez, é a própria pele negra que
permanece oculta aos olhos da sociedade brasileira.
Por outro lado, como o próprio título nos
sugere, Tenório (2020) não aborda apenas a leitura que se faz de fora, ou seja,
a forma como os corpos negros são vistos na sociedade. O autor retrata a
essência de cada personagem; sua humanidade. Assim, perpassando pelas questões
do racismo, há a preservação do indivíduo, do homem, da mulher que se estende
para além do invisível de fora.
Você sempre dizia que os negros tinham
de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o
que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar
aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso
corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja
medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse
domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso,
entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e
único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm
vivos (Tenório, 2020, p. 61).
Como nos diz Fanon (2008), a luta do negro
contra o racismo e o colonialismo é pela conquista do reconhecimento de sua
essência humana, e não de uma suposta essência negra: o branco deve reconhecer
a humanidade do negro. Imergindo, portanto, nas profundezas da subjetividade
humana, o avesso, Tenório (2020) esmiúça o interior de cada um dos personagens
que, de uma forma ou de outra, acabam sendo atravessados pela questão da pele.
Todavia, a resiliência desses personagens é uma forma de se mostrarem vivos.
Como descobrirá Pedro sobre o pai, existir é uma forma de não dar ao Estado o
gosto da vitória, é não abandonar o barco, é ser “aquele que resolve, ou por
ingenuidade ou por imbecilidade, pegar o touro à unha, permanecer na linha de
frente” (Tenório, 2020, p. 154).
Assim, Pedro se encarregará de revisitar o
passado da família, sobretudo do pai, e nos contar quem era aquele homem que
sentia um frio que “estava dentro”. Aliás, a solidão, o isolamento e o abandono
são fantasmas que rondam a vida de todos os personagens, especialmente
Henrique: “então você vai evitar. Vai chorar para dentro. Você e sua mãe
viverão numa espécie de solidão mútua” (Tenório, 2020, p. 69). Além disso, o
silenciamento emerge como uma característica distintiva da figura paterna, que
foi forçado ao silêncio em um estágio precoce da vida. Ele experimentou
profundamente o peso de viver em uma sociedade na qual a um jovem negro
raramente é dado o espaço para se expressar livremente, como se fosse “um ser
esquecido entre o quadro e o giz” (Tenório, 2020, p. 155). Essa imagem
evocativa ressalta a marginalização e a falta de voz que são frequentemente
impostas aos indivíduos negros na sociedade brasileira.
Entretanto, é por meio do filho, estabelecendo
uma poderosa conexão entre passado e presente, que esse silenciamento é
rompido, pois Pedro o retira das profundezas, permitindo-nos conhecer os
pensamentos de seu pai por meio de lembranças. Inicialmente, é no interior do
apartamento do pai falecido que o filho converte os objetos em presença e
pertencimento, construindo uma herança que remonta não apenas à história do
pai, mas também reafirmando suas próprias narrativas pessoais. Dessa maneira,
ele resgata um passado que, habilmente ressignificado no contexto presente,
adquire uma nova e profunda significância.
Encontrar esse pai é também encontrar-se, ao
que diz: “não estou reconstruindo esta história para você nem para minha mãe,
estou reconstruindo esta história para mim. Preciso arrancar a tua ausência do
meu corpo e transformá-la em vida” (Tenório, 2020, p. 183). Isso se dá não
apenas nessa casa onde o pai será sempre aquele que se recusa a partir para
esse filho, mas por todos os espaços em seu percurso, pois que seu pai é “um
corpo que não vai parar de morrer”.
[...] hoje, prefiro pensar que você
partiu para regressar a mim. Eu não queria apenas a sua ausência como legado.
Eu queria um tipo de presença, ainda que dolorida e triste. E apesar de tudo,
nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de
morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir. [...] há nos objetos memórias
de você, mas parece que tudo o que restou deles me agride ou me conforta,
porque são sobras de afeto. Em silêncio, esses mesmos objetos me contam sobre
você. É com eles que te invento e te recupero [...] (Tenório, 2020, p. 13-14).
Nesse cenário, a voz narrativa de Pedro, que
insiste em utilizar o pronome você ao
se referir ao pai, vai além de uma mera escolha estilística. Ela se revela como
uma profunda forma de se aproximar desse pai que já não está fisicamente
presente. Essa opção linguística confere à narrativa uma sensação de diálogo
perene e atemporal, como se Pedro estivesse mantendo uma conversa viva e
constante com seu pai, transcendendo as barreiras do tempo e do espaço.
Essa conexão persistente entre Pedro e seu
pai se entrelaça com a questão da interioridade, do avesso, também simbolizada
pelo nome. Henrique, por exemplo, não tem seu nome revelado de início. Somente
quando reconhece seu espaço no mundo, ao contrariar a forma como as pessoas
negras são lidas na sociedade brasileira, é que finalmente se apresenta: “Não
sou teu negro. Não sou teu preto. Meu nome é Henrique” (Tenório, 2020, p. 35).
Ele deixa de ser apenas um corpo negro e passa a ter um nome, ao tomar
consciência de sua própria existência, a se reconhecer enquanto indivíduo.
Essa transformação é simbólica, refletindo não apenas a resistência do
personagem, mas também a ressignificação de sua identidade em um contexto de
discriminação racial arraigada.
A relação com o nome também é pertinente ao
capítulo De volta a São Petersburgo, estabelecendo uma dimensão
intertextual tanto com a cidade russa quanto com a obra de Dostoievski. O nome
do protagonista-narrador, Pedro, pode ser interpretado como uma alusão à cidade
onde ocorre grande parte da trama do romance russo: Saint Petersburg,
informalmente conhecida como Peter (Pedro, em inglês). Ademais, Crime e Castigo é uma das obras
favoritas de Henrique e bastante significativa para o personagem. Dentro da
narrativa, há uma passagem em que o professor, após compartilhar a leitura do
romance de Dostoievski com seus alunos, afirma que estava caminhando em Porto
Alegre, mas que poderia, facilmente, estar em São Petersburgo. Dessa forma, as
cidades parecem entrelaçadas de maneira intrínseca na narrativa.
Essa ligação estende-se também a Pedro, não
apenas através da relação com o pai, mas também por meio da referência
implícita em seu nome. Assim, tanto as cidades quanto os personagens adquirem
uma dimensão interconectada na trama. Essa associação entre o nome do
personagem e a cidade evoca uma atmosfera simbólica, uma vez que a cidade
transcende sua função como mero cenário, desempenhando um papel expressivo na
narrativa. Ela molda e resgata significados e memórias do pai de Pedro, pois,
enquanto percorre as ruas de Porto Alegre, Pedro parece seguir os mesmos
caminhos do pai, sobretudo em suas reminiscências, ao mesmo tempo em que traça
seu próprio destino.
A tenacidade de seu pai, mesmo que ele não se
sentisse completamente integrado àquela cidade, serviu como um exemplo, algo
que Pedro compreende plenamente na seguinte passagem do romance: “Mas sei que
durante a vida você passou por essas tentativas de fuzilamento. A sua grande
obra foi continuar levantando, dia após dia. Apesar de tudo, você continuou
desafiando a possibilidade de morrer” (Tenório, 2020, p. 184). Desse modo,
Pedro percebe a importância da persistência para (re)existir diante das
complexidades da vida e da herança familiar, seguindo assim os passos de seu
pai e criando uma ponte sólida entre o passado e o presente.
Por fim, quando então Jeferson Tenório inicia
com a epígrafe “Quem está aí?”, talvez seja uma forma de retratar a busca de
Pedro ou mesmo da representação do fantasma do pai, em referência à obra
shakespeariana. Por outro lado, também nos serve como questionamento a respeito
do indivíduo negro na sociedade brasileira contemporânea. Quem está aí: o
avesso ou a pele?
Considerações finais
O discurso
pseudocientífico do Darwinismo Social,
que afirmava a superioridade natural do homem branco, foi elemento legitimador
para que o racismo alimentasse as estruturas sociais, políticas, econômicas e
jurídicas. Em se tratando da população negra, a libertação dos escravizados foi
apenas uma forma alternativa de continuar a escravizá-los, uma vez que, em um
Brasil urbanizado, o Estado, mais uma vez, se calou, perpetuando em suas ações
a marginalidade sujeitada ao negro brasileiro. Desamparados, muitos negros
acabaram ocupando espaços desprivilegiados, reforçando a ideia de que deveriam
ser eliminados em nome de uma suposta ordem social. A discriminação racial se
tornou sistêmica, naturalizando a desigualdade e a violência contra os corpos
negros. A morte se tornou um negócio, e a necropolítica, a regra da ordem
social.
Sendo a literatura
uma ferramenta capaz de representar a sociedade, torna-se perigosa quando
insiste em contar uma única história sobre um povo. Isso aconteceu durante
muito tempo com a população negra, que foi estigmatizada sob estereótipos que a
inferiorizavam e a desumanizavam, reduzindo-a a uma condição de animalização,
silenciamento e inferioridade cultural, intelectual e psicológica. Contudo, a
arte também pode servir para questionar esses estigmas.
Tenório, ao ocupar
o espaço literário enquanto homem negro, não apenas aborda de maneira
contundente questões raciais e a necropolítica, como nos instiga a reconhecer o
corpo negro para além “do invisível de fora”. Ao fazê-lo, ele nos conduz a uma
exploração mais profunda da interioridade dos personagens e de suas vivências.
Jeferson Tenório nos lembra de que esses corpos são, antes de tudo, habitados
por pessoas, cada uma com sua própria narrativa, experiências e humanidade.
Portanto, ao persistir em sua existência e na expressão de suas vivências, o
corpo negro não apenas se torna uma ferramenta de resistência contra o Estado
racista, mas também uma janela pela qual podemos contemplar as complexidades e
profundezas da condição humana.
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[1] Aqui, a morte
pode ser tanto a execução direta, quanto a falta de amparo do Estado e
consequente exposição da vida a riscos.