e-ISSN 1984-7246  

 


Escrevivência, lugar de fala e autoetnografia: a importância das pesquisas antirracistas[i]

 

 

Flavio Fortunato Cardoso[ii]

Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB)

Blumenau - SC, Brasil

lattes.cnpq.br/4324509813301120

orcid.org/0000-0003-2761-6983

ffc663@gmail.com

 

Lilian Blanck de Oliveira[iii]

Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB)

Blumenau - SC, Brasil

lattes.cnpq.br/2060996038464074

orcid.org/0000-0002-3755-6630

lilianbo29@gmail.com

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escrevivência: sentidos na obra evaristiana e modos de viver a pesquisa em educação

 

Resumo

Um dos aspectos da colonialidade do saber é subalternizar conhecimentos e sabedorias construindo uma hierarquização do conhecimento. Na tentativa de problematizar e socializar determinados temas em seus termos e conceitos podemos, por vezes, os generalizar e ou universalizar olvidando suas singularidades e origens, tirando de grupos historicamente subalternizados o direito ao lugar de fala e de enunciação. Isso se dá quando nossa abertura para o diverso e o diferente está alicerçada em uma perspectiva multicultural diferencialista e/ou assimilacionista. O objetivo deste ensaio é perceber como, na busca de nos tornarmos pesquisadores/as antirracistas, podemos esvaziar certos sentidos e sensações de termos e/ou conceitos os retirando dos seus contextos de origem, universalizando o específico e fortalecendo o racismo epistêmico. Utilizamos o método qualitativo com ênfase na revisão bibliográfica e buscamos identificar possíveis equívocos no entendimento e utilização de conceitos como: Escrevivência (Evaristo, 2020) e Lugar de fala (Ribeiro, 2019). A problemática na utilização desses conceitos nos encaminha a pesquisas sobre o método autoetnográfico. Situado entre os métodos de pesquisa participantes, a autoetnografia possibilita a aproximação do(a) pesquisador(a) com o sujeito/território de pesquisa auxiliando-o(a) a lidar com seus próprios impulsos, sentimentos e emoções em relação ao objeto/sujeito de pesquisa e sua própria cultura. Uma investigação de perspectiva autoetnográfica se apresenta como um lugar de fala para pesquisadores/as, que, conscientes das exigências do caminhar em áreas de fronteira cultural utilizando as contribuições de pensadores(as) imersos nas temáticas e contextos em estudo; orientação metodológica cultural; autobiográfica na interpretação dos conteúdos acessados, continuam no exercício de letramento racial.

 

Palavras-chave: escrevivência; lugar de fala; autoetnografia.

 

Writinscreening, speech position, and autoethnography: the importance of anti-racist researches

 

Abstract

One aspect of the coloniality of knowledge is the subalternation of knowledge and wisdom, constructing a hierarchy of knowledge. In attempting to problematize and socialize specific topics in their terms and concepts, we may sometimes generalize and/or universalize them, overlooking their singularities and origins, thus depriving historically subalternized groups of the right to speak and enunciate. It occurs when our openness to diversity and difference is grounded in multicultural differentials and/or assimilationist perspectives. This essay aims to understand how, in our quest to become anti-racist researchers, we can empty particular meanings and sensations from terms and/or concepts by removing them from their original contexts, thereby universalizing the specific and reinforcing epistemic racism. We employ a qualitative method with an emphasis on literature review to identify potential misconceptions in the understanding and use of concepts such as "Escrevivência" (Evaristo, 2020) and "Lugar de Fala" (Ribeiro, 2019). The challenge in using these concepts leads us to research the autoethnographic method. Situated among participatory research methods, autoethnography enables the researcher to approach the subject/territory of research, helping them deal with their impulses, feelings, and emotions regarding the object/subject of research and their culture. An investigation from an autoethnographic perspective serves as a position of speech for researchers who, aware of the demands of navigating cultural borderlands, draw on the contributions of thinkers immersed in the themes and contexts under study. This method involves cultural and autobiographical guidance in interpreting the accessed content, allowing researchers to continue their journey in racial literacy.

 

Keywords: writinscreening; speech position; autoethnography.

1 Abrindo a roda

A pesquisa científica nos coloca constantemente o desafio de pensar a realidade a partir de outros lugares (tanto objetivos, quanto subjetivos), outros olhares, outras formas de sentir, de experienciar, de saborear, de inspirar e expirar o mundo em sua grande complexidade. Por esse motivo, estamos incessantemente buscando novos conceitos e teorias que possibilitem perceber/sentir o mundo para além do sentido da visão, da observação do outro, conforme tem sido feito no projeto epistêmico ocidental (Oyĕwùmí, 2021). A busca por uma nova forma de pensar e descrever o mundo, capaz de de(s)colonizá-lo (Haesbaert, 2021), acaba em alguns momentos criando novas colonizações (hooks, 2017). Isso se dá principalmente quando a nossa abertura para o diverso, para o diferente, está ainda fortemente alicerçada em uma multiculturalidade diferencialista e assimilacionista (Candau, 2013). Acredita-se que todas as formas de percepção cosmológica devem ser conhecidas e socializadas, não tirando de alguns grupos historicamente subalternizados o direito ao lugar de fala e de enunciação. Diminuindo, ou em outras palavras, esvaziando os sentidos e sensações que envolvem a construção dessas formas outras de perceber/sentir o mundo, que circundam indivíduos-comunidades historicamente subalternizados.

Tendo em mente esse pequeno introito, buscamos enunciar o que se propõe ser o objetivo deste ensaio: perceber, como na busca de nos tornarmos pesquisadores/as antirracistas, podemos esvaziar certos sentidos e sensações de termos e/ou conceitos os retirando dos seus contextos de origem, universalizando o específico e fortalecendo o racismo epistêmico. Para isso, utilizamos o método qualitativo, com ênfase na revisão bibliográfica, buscando perceber possíveis equívocos no entendimento e na utilização de conceitos como: Escrevivência (Evaristo, 2020) e Lugar de fala (Ribeiro, 2019). 

Ao utilizar tais terminologias com o objetivo de construir um trabalho antirracista, o/a pesquisador(a) pode fragilizar trabalhos cheios de boas intenções, tendo o efeito contrário, ou seja, de perpetuar o racismo estrutural e estruturante (Almeida, 2020). A análise passa ainda pela forma como brancos, historicamente, têm analisado o negro-tema (Ramos, 1995), em vez de focar na análise de si próprios[1] enquanto sujeitos que historicamente têm produzido um olhar diferencialista (Candau, 2013) sobre a sabedoria daqueles que eles próprios racializaram.

O percurso seguido neste ensaio é o seguinte: 1) uma breve introdução que pretende abrir a roda de conversações, trocas e aprendizados que a segue; 2) na Avamunha, música/toque inicial, expomos o processo de letramento racial e de percepção dos equívocos na utilização do termo escrevivência (Evaristo, 2020), equívocos que flertam com o racismo epistêmico; 3) destacamos os marcos teóricos que levaram Conceição Evaristo (2020) a  moldar o termo Escrevivência e a sua importância como lugar de enunciação de mulheres e homens negros conscientes da luta histórica por um lugar de fala; 4) neste ponto, buscamos mais uma vez evidenciar o que é o Lugar de fala com o auxílio de Ribeiro (2019) e de Pinheiro (2023), percebendo que a Escrevivência enquanto conceito é um posicionamento, um lugar de fala específico que lhes devolve a potência de emissão com/por e para os seus e os outros; 5) finalizamos apresentando a autoetnografia como uma metodologia participante que auxilia a perceber, por meio da reflexão constante, os espaços possíveis para uma escrita “com”, que não se apropria do lugar de fala e da anunciação do Outro[2], mas que acolhe, participa e não busca dar um sentido universal à diversidade presente nos diferentes textos e contextos que formam o Outro.

Lembramos que o texto que apresentamos em forma de ensaio tem sua estrutura escritural, baseado no método da autoetnografia[3], nos aprendizados realizados durante o período em que foi desenvolvida a pesquisa de mestrado, e em leituras posteriores, referentes ao período de doutoramento em curso. Tais pesquisas (mestrado e doutorado) se encontram na encruzilhada do letramento racial, do reconhecimento das diversas colonialidades sofridas pelo povo negro com base na construção supremacista da branquitude. E, na tentativa de possibilitar a volta inversa na árvore do esquecimento[4], não só para os descendentes dos escravizados, mas para a branquitude que pretende se tornar crítica do seu lugar de privilégio e produzir verdadeiramente atitudes antirracistas em todos os campos do conhecimento.

 

2 Avamunha[5]

 

Seu xodó era com o efeito das palavras, não era um sujeito obcecado pela clareza, suspeitava que aquilo que chamam de falso pode ser um rebolado do dizer. Era um ser que buscava explicações, mas não era um racionalista; cismava com a tal da verdade absoluta desde quando, em uma macumba na praia de Cocotá, na Ilha do Governador, uma Pombagira o olhou, gargalhou e entoou a máxima “descartiana”: nada é verdadeiro até ser reconhecido como tal. O malandro batia cabeça com esse verso, desconfiava que o sopro era uma espécie de demanda (Rufino, 2020, p. 23).

 

Fico imaginando que até hoje, Seu Xodó deve estar cismando com esse sopro/ponto da Pombagira “nada é verdadeiro até ser reconhecido como tal”. A partir desse sopro, podemos pensar o contrário também “tudo é verdadeiro enquanto ninguém duvida de tal”. O que me leva a pensar em um dos grandes filósofos da modernidade (Hegel, 1995), amplamente citado por pesquisadores(as) negros(as) que utilizam uma citação feita por Cheikh Anta Diop[6]. O que Diop faz é citar um trecho de uma das aulas do curso sobre a Filosofia da História, ministrado por Georg Wilhelm Friedrich Hegel, aula publicada pela primeira vez em 1837, seis anos após a morte do autor. “Filosofia da História é a obra que representa o estágio mais elevado e desenvolvido de seu pensamento, sendo um resumo e uma conclusão de toda a sua obra anterior” (Hegel, 1995, contracapa), assim considerada pelos editores da obra no Brasil (Editora da UNB). O trecho amplamente citado a partir da leitura de Cheikh Anta Diop da Filosofia da História é o seguinte:

 

Com isso, deixamos a África. Não vamos abordá-la posteriormente pois ela não faz parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou desenvolvimento para mostrar, e o que porventura tenha acontecido nela – melhor dizendo, no Norte dela – pertence ao mundo asiático e ao europeu. Cartago foi um momento importante e passageiro; mas como colônia fenícia pertence a Ásia. O Egito será abordado como transição do espírito humano do Oriente para o Ocidente, mas ele não pertence ao espírito africano. Na verdade, o que entendemos por África é algo fechado sem história, que ainda está envolto no espírito natural, e que teve que ser apresentado aqui no limiar da história universal (Hegel, 1995, p. 88).

 

Trazer esse longo trecho do livro Filosofia da História de Hegel (1995) nos serve de pedra de toque, para observarmos como o pensamento ocidental coloniescravizador permanece vivo, consciente ou inconscientemente e como a consciência branca (branquitude) quando acrítica[7], ainda percebe as pessoas negras (somatório de pessoas pretas e pardas, segundo o IBGE) como descendentes de escravos que devem obedecer, e nunca ocupar o mesmo espaço que um branco (shoppings, escolas, universidades, aviões, carros de luxo), a menos que sejam convidadas. Isso torna o processo de construção de uma branquitude crítica uma tarefa árdua e longa, principalmente porque mexe com os brios e com a necessidade de entender-se como um ser racializado, visto que quem cria a ideia/conceito de raça, racializa-se ao mesmo tempo em que racializa o Outro.

Retirar parte considerável do continente africano da história, concebendo seus povos como atrasados em múltiplos sentidos, inclusive e talvez uma das maiores causas desse entendimento de atraso, por não ter um modelo de desenvolvimento, como o que já se desenhava há muito na Europa de Hegel. Europa que cerca de 100 anos após a morte de Hegel é assolada por uma ideologia de pureza genética e cultural que conhecemos como nazismo, em que toda a diferença deveria ser eliminada através dos mais diferentes dispositivos de ódio existentes nos campos de concentração.

Passada a Segunda Grande Guerra Mundial (quando cerca de 40 milhões de pessoas perderam suas vidas, contabilizando apenas os civis, fora o grande número de soldados das mais diferentes nações envolvidas na guerra de alguma forma), a Organização das Nações Unidas (ONU) formula a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em 1948. Essa declaração tem como um de seus principais objetivos evitar que outras grandes guerras voltem a acontecer no âmbito internacional a ponto de dizimar milhões de vidas, tal qual acontecera nas duas grandes guerras mundiais. Atualmente, 193 países que constituem a ONU, entre eles o Brasil, são signatários da DUDH, embora ela não tenha força de lei nesses países. Enquanto signatários desse acordo internacional, devem fazer o possível para cumprir os 30 artigos da DUDH. Apesar disso, de acordo com a United for Human Rights (UHR),

 

Os promotores dos direitos humanos estão de acordo em que, 60 anos depois da sua emissão, a Declaração Universal dos Direitos do Homem ainda é mais um sonho que uma realidade. Existem violações da mesma em qualquer parte do mundo. O relatório Mundial 2008 de Amnistia Internacional e outras fontes mostram que pessoas são torturadas ou maltratadas em pelo menos 81 países, que julgamentos injustos são realizados em pelo menos 54 países, e que se restringe sua liberdade de expressão em pelo menos 77 países. As mulheres e as crianças, em especial, são marginalizadas de muitas formas, a imprensa não é livre em muitos países e os dissidentes são silenciados, com frequência de forma permanente. Ainda que tenham sido conseguidas algumas vitórias em 6 décadas, as violações dos direitos humanos ainda são uma praga no nosso mundo actual (United for Human Rights, 2012, p. 40).

 

De que adianta ser signatário de uma convenção internacional se desconhecemos ou negamos nossa história? Ao impor seu início a partir do surgimento do pensamento grego ou do pensamento filosófico germânico como um dos únicos e privilegiados herdeiros do pensamento grego, não se contabilizaram as fontes milenares africanas de onde os gregos sorveram grande parte de seus conhecimentos. Para a sorte dos pensadores gregos, ainda não existia a propriedade intelectual naquela época e eles não precisavam citar os verdadeiros produtores do conhecimento por meio dos quais produziram seus entendimentos de mundo. Tampouco nós saberíamos disso se não fosse por pesquisadores como Cheikh Anta Diop. De acordo com Darch (2019, p. 29),

 

A partir da década de 1960, o paradigma de ‘afrocentrismo’ tentou superar essas contradições. Alguns proponentes do afrocentrismo argumentam que “é válido conceituar a África como um ponto de partida geográfica e cultural no estudo dos povos de ascendência africana”. Numa tal formulação, é a experiência dos povos negros, onde quer que estejam, que é objeto de estudo, e os estudos africanos em si, podem, assim, compreender a experiência negra no Brasil, em Cuba, no Caribe, e em toda a Diáspora africana. O foco geográfico no qual os estudos africanos poderiam ter preguiçosamente dependido assim se transforma no fundamento de uma espécie de ciência social menos arrumada, mas, mais caprichosa, mais ampla e mais inclusiva. Cheikh Anta Diop reconhecido como o ‘pai do afrocentrismo’ às vezes é representado como querendo mostrar meramente que os egípcios da antiguidade eram negros, procurando provas de melanina nos seus restos mortais mumificados. Mas o significado mais profundo do seu trabalho, sugiro, encontra-se numa questão muito mais larga, ou seja, como Mamdani coloca a questão, “se a história, antes da chegada dos brancos, pudesse ser entendida como uma história social, ou se os limites de nossa compreensão se definiram pelos limites da arqueologia...”

 

Cheikh Anta Diop é, com certeza, uma chave para pensar o continente africano para além daquilo que foi posto por pensadores brancos, tais como Hegel (1995). Poderíamos dizer quase inocentemente ser uma pena que até o presente não tenhamos nenhuma das grandes obras de Diop traduzidas para o português. Isso não impossibilitou que o conhecimento produzido por esse e outros pensadores relevantes anteriores e posteriores a ele chegassem até nós. Aliás, recentemente, temos tido uma crescente de textos de autores negro-africanos traduzidos e publicados em Língua Portuguesa, um exemplo disso é o livro “As almas do povo negro”[8] escrito por W. E. B. Du Bois (1868 – 1963). Publicado pela primeira vez em 1903, nos Estados Unidos, chegaram por aqui antes de Du Bois, Aimé Césaire com “Discurso sobre o colonialismo” e Frantz Fanon com obras como “Pele negra, máscaras brancas” e “Os condenados da terra”, que figuram entre os mais conhecidos e lidos. Podemos destacar ainda Achille Mbembe, e vejamos que até o momento a lista consta apenas com nomes masculinos, então lembrar pensadoras e escritoras negras e africanas é algo ainda mais recente. O meu primeiro contato com uma escritora negra foi a partir de um TED Talk em que a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie fala sobre “O perigo de uma história única”. Depois disso, o primeiro artigo de uma escritora negra que lembro ter lido foi “Visualizando o corpo: Teorias ocidentais e sujeitos africanos” de autoria da também nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, seu livro foi publicado na totalidade em 2021.

Ao refletirmos sobre o pensamento negro em nível de Brasil, talvez os nomes mais lembrados na atualidade sejam os de Alberto Guerreiro Ramos, Abdias Nascimento, Milton Santos, Muniz Sodré, Clóvis Moura, Sílvio Almeida (atual ministro dos Direitos Humanos), Lourenço Cardoso, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo. Se, ao leitor, pode parecer que no Brasil temos mais nomes de mulheres pensadoras do que de homens para lembrar, não se engane, esse é um recorte da minha memória, enquanto pesquisador, de alguns nomes que me vêm à lembrança. Cabe destacar que, dos nomes citados, muitos deles são recentes e entram na discussão acadêmica a partir de suas pesquisas situadas nas duas últimas décadas. Há os que já seguiram para a companhia de seus ancestrais, tornando-se também eles ancestres da sabedoria negra brasileira. Muitas e muitos outras(os) intelectuais negras(os) estão se construindo com referenciais afrocentrados devido a séculos de lutas de/com/pela/para a r-existência.

Embora não seja recente a pesquisa sobre a brancura, branquidade e branquitude (crítica e acrítica) e tantos outros correlatos, Cardoso (2020) perpassa a construção histórica do termo, tendo identificado William Edward Burghardt Du Bois (1977) como precursor na teorização da identidade branca, seguido de Frantz Fanon (1952). No Brasil podemos citar: Alberto Guerreiro Ramos (1995), Edith Piza (2002), César Rossatto e Verônica Gesser (2001), Maria Aparecida Bento, (2002), Liv Sovik (2005), Lucio Otávio Alves Oliveira (2007), Lourenço Cardoso (2020), Lia Vainer Schucman (2012), Ana Helena Ithamar Passos (2013), Jorge Hilton de Assis Miranda (2015) Joyce Souza Lopes (2016), Cintia Cardoso (2018), autoras e autores que têm dado continuidade à discussão sobre branquitude e branquidade no Brasil.

Em seu livro “O branco frente à rebeldia do desejo: um estudo sobre o pesquisador branco que possui o negro como objeto científico tradicional”, publicado em 2020, Cardoso (2020) tensiona o fato de que pesquisadores brancos estudando o negro na sociedade brasileira raramente pesquisam o seu lugar, mas a posição marginalizada ocupada pelo sujeito negro. Posição essa que já era há muito questionada por Guerreiro Ramos (1995) porque o negro continua sendo tema de pesquisa de brancos, qualificando-o como negro-tema, enquanto os brancos continuam fora da discussão, como seres universais não racializados.

Du Bois (1920) talvez tenha sido um dos primeiros pensadores a escrever sobre os brancos, em DARKWATER: Voices from within the Veil que tem o segundo capítulo com o seguinte título: The souls of white folk. No Brasil, Guerreiro Ramos e outros pensadores deram início à discussão no meio acadêmico que ficou congelada até que, na década de 2010, Carone e Bento (2014) passaram a discutir na Psicologia Social a questão do racismo e da construção da branquitude. Embora as tensões sobre o termo permaneçam e os estudos não sejam novos, há um caminho construído a respeito do branco-tema. A sua retomada pela academia é recente, como nos lembra a “intelectual diferentona”, Barbara Carine Soares Pinheiro (2023), a partir da notícia da morte de George Floyd, em plena pandemia causada pelo vírus do COVID-19, parte da academia passa a querer se reconhecer como antirracista e começamos a perceber livros sobre branquitude emergindo do mundo editorial.

Naquele momento, eu, Flávio, estava iniciando o curso de mestrado, advindo de um curso de licenciatura no qual tive a sorte de ter dois professores negros, um homem e uma mulher. Antes deles, a única lembrança de um professor negro foi no ensino médio. Pela especificidade do curso, acabei conhecendo alguns pensadores negros, lembro-me de ter estudado sobre “A tradição viva” (Hampaté-Bâ, 2010), sobre a “Epistemologia da Ancestralidade” (Oliveira, 2011). Houve outros autores africanos, mas esses nomes e textos ficaram gravados na memória. Foram eles os impulsionadores para, posteriormente, me questionar sobre o que queria pesquisar no mestrado. Passados quase 20 anos da minha vida como abiã[9], dentro de casas de Candomblé de nação Ketu, não via como começar minhas pesquisas sem pensar nas relações entre as religiosidades afroindígenas ou afro-brasileiras e o local em que estou inserido, o Vale do Itajaí (Cardoso, 2022).

Devido ao fato de a pesquisa estar inserida em um Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional, a primeira pergunta que queríamos poder responder é como essa religiosidade chegou até a região estudada. E aqui, talvez, caiba a pergunta de o que isso tem a ver com o tema deste ensaio? A resposta embora pareça simples, não é. O imbróglio tem início em um entendimento imaturo que se apresenta inicialmente na nota de rodapé de número 64 que se encontra na página 56 da dissertação de mestrado (Cardoso, 2022, p. 56)[10] que convida à leitura de uma única nota de fim que se encontra na página 290. Nesse ponto é possível ler o seguinte:

 

Em alguns momentos na escrita deste relatório dissertativo, me deparei na encruzilhada da paráfrase, que pega de empréstimo os meus entendimentos sobre determinada escrita, muitas dessas perdidas em um tempo/estar/lugar, do qual não fiz, e por mais que tente não faço parte. Por este e outros motivos tenho preferido trazer sempre que possível a escrita, ou melhor as escrevivências do autor na íntegra, para que possamos nos aproximar ao máximo de seus entendimentos. É justamente para entender como Conceição Evaristo constrói a ideia de escrevivências que trazemos na sequência um trecho do livro: “Escrevivência: a escrita em nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo”, organizado por Constância Lima Duarte e Isabella Rosado Nunes e publicado em 2020 (Cardoso, 2022, p. 290-291).

 

É a partir desse recorte que nos encaminhamos para a próxima seção deste ensaio. Por levar em consideração que em nossa leitura à época do texto supracitado, faltou-nos letramento racial para compreender adequadamente o que é a escrevivência e, para não a utilizar de maneira leviana, produzindo epistemicídios e racismos epistêmicos, buscamos universalizar um termo que de certa forma é específico, como veremos a seguir.

 

3 Escrevivência: o lugar de fala das mulheres negras

 

E a Mãe Preta se encaminhava para os aposentos das crianças para contar histórias, cantar, ninar os futuros senhores, que nunca abririam mão de suas heranças e de seus poderes de mando, sobre ela e sua descendência. Foi nesse gesto perene de resgate dessa imagem, que subjaz no fundo da minha memória e história, que encontrei a força motriz para conceber, pensar, falar e desejar e ampliar a semântica do termo (Evaristo, 2020, p. 30).

 

Para dar continuidade a essa discussão e aos aprendizados que o letramento racial nos proporciona, utilizamos como base para as construções realizadas nesta seção o mesmo texto que foi utilizado no mestrado: o capítulo dois da obra citada na seção anterior escrito pela própria Conceição Evaristo, “A Escrevivência e seus subtextos” (Evaristo, 2020). A epígrafe acima nos introduz no tema, e nos aponta o erro cometido. Na busca por um termo que pudesse explicar a escrita da experiência vivida e escrita dentro de um contexto que, para nós, era antirracista, decolonial e intercultural, acabamos caindo na armadilha do racismo epistêmico.

Grosfoguel (2011, p. 343) compreende a gênese do racismo epistêmico

 

Desde la redefinición y nombramiento del mundo con la cosmologia cristiana (por ejemplo, uso de nombres como Europa, África, Asia y, más tarde, América) y la caracterización de todo el conocimiento no cristiano como producto de fuerzas paganas y diabólicas, hasta la presunción en su provincialismo eurocéntrico de que es solo en la tradición grecorromana, pasando por el Renacimiento, la Ilustración y las ciencias occidentales que se alcanzan la «verdad» y la «universalidad», se normalizó el privilegio epistémico de la «política identitaria» masculina, occidental y eurocéntrica hasta el punto de la invisibilidad como «política identitaria» hegemónica. se convirtió en el conocimiento universal normalizado. De esta forma, se consideraron inferiores todas las «otras» tradiciones de pensamiento.

 

O racismo epistêmico é parte da colonialidade do saber, um tipo de colonialidade que “penetra e organiza os marcos epistemológicos, acadêmicos e disciplinares, induzindo a caracterizar como fundamentalistas, essencialistas e racistas tanto as lógicas desenvolvidas por comunidades ancestrais, quanto as novas tentativas desses povos [...]” (Fleuri et al., 2009, p. 33). Nesse sentido, compreendemos que ao buscar universalizar o termo como um conceito que pudesse ser utilizado para qualquer forma de escrita, desconsiderando as especificidades dele, recaímos na prática de racismo epistêmico. Ao utilizar o termo recaí, estou afirmando que já caí na prática de racismo, e que tornei a cair; provavelmente, recairei novamente muitas outras vezes; faz parte do aprendizado, do letramento racial. Barbara Pinheiro (2023) diz que aprender dói! E no início dói muito mais, devido a nossa fragilidade branca (Diangelo, 2018). Dói aprender que estamos dentro de uma sociedade estruturalmente racista, e que, portanto, somos racistas, não apenas pelos privilégios que nos são garantidos pela cor, ou pela ausência de cor. A ausência da cor marginalizada, uma cor que é detectada como alvo de quem deveria proteger a todos, mas que em nome de uma necropolítica (Mbembe, 2018), corremos muito menos risco de sermos mortos asfixiados ao fazer uma corrida, como aconteceu com George Floyd.

Ao pensar o termo Escrevivência, Conceição Evaristo (2020) afirma que

 

Escrevivência, em sua concepção inicial, se realiza como um ato de escrita de mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres escravizadas tinha potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças (Evaristo, 2020, p. 30).

 

Hoje, ao reler essa citação que está presente em Cardoso (2022, p. 291), ela me faz voltar para outra parte do texto, na qual há uma epígrafe do livro “Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano”, escrito por Grada Kilomba (2019). O capítulo em questão é intitulado “A máscara”; nele, a autora fala sobre a máscara de flandres, “[...] era composta por um pedaço de metal colocado no interior da boca do sujeito negro, instalado entre a língua e o maxilar e fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo e a outra em torno do nariz e da testa” (Kilomba, 2019, p. 33). Kilomba (2019) segue dizendo que a utilização da máscara tinha como primeiro objetivo impedir que homens e mulheres negros se alimentassem enquanto trabalhavam nas plantations, mas ultrapassa esse entendimento, ao afirmar que:

 

[...] sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silenciamento e de tortura. Neste sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento das/os chamadas/os “Outras/os”: Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar? (Kilomba, 2019, p. 33).

 

Ao compreendermos o diálogo entre Conceição Evaristo (2020) e Grada Kilomba (2019), perceberemos que a voz das mulheres negras, durante o período da colonização, ou era impedida pela máscara ou precisava servir a casa-grande como voz que fazia os futuros senhores dormirem. A esse respeito, Conceição Evaristo deixa ainda mais evidente em seu texto que “a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa-grande, e sim para acordá-los de seus sonos injustos” (Evaristo, 2020, p. 30). E temos que ter muito cuidado para não esvaziar o termo escrevivência com a pretensão de torná-lo universal, afirmando que uma vez que ele é criado não pertence mais ao autor, mas ao mundo das ideias. Entender o lugar de enunciação primeira da escrevivência é importante para que não cometamos esse erro, esse racismo epistêmico.

 

Escrevivência surge de uma prática literária cuja autoria é negra, feminina e pobre. Em que o agente, o sujeito da ação, assume o seu fazer, o seu pensamento, a sua reflexão, não somente como um exercício isolado, mas atravessado por grupos, por uma coletividade. Para uma melhor apreensão do conceito de Escrevivência, como aparato teórico, para melhor pensarmos o termo, trago um imaginário mítico da cosmogonia africana para contrapor a narrativa de Narciso, aplicada ao entendimento da escrita de si como uma escrita narcísica. [...] a Escrevivência não é uma escrita narcísica, pois não é uma escrita de si, que se limita a uma história de um eu sozinho, que se perde na solidão de Narciso. A Escrevivência é uma escrita que não se contempla nas águas de Narciso, pois o espelho de Narciso não reflete o nosso rosto. [...]. O nosso espelho é de Oxum e de Iemanjá. Nos apropriamos dos abebés das narrativas míticas africanas para construirmos os nossos aparatos teóricos para uma compreensão mais profunda de nossos textos (Evaristo, 2020, p. 38).

 

Dessa forma, toda e qualquer consideração de escrevivência feita na dissertação para todo e qualquer autor, que não seja uma autoria negra, feminina, pobre e com senso de coletividade, não deve ser considerada Escrevivência. É necessário compreender que por melhores que sejam suas intenções, um escritor homem, branco, ainda que homossexual, não deve se apropriar dessa forma de escrita, chamando a sua escrita de escrevivência, mesmo que este esteja analisando a escrita e/ou vivência de mulheres negras. Pois ele não é “o agente, sujeito de ação, [nem] assume o seu fazer, o seu pensamento, a sua reflexão, não somente como um exercício isolado, mas atravessado por grupos, por uma coletividade” (Evaristo, 2020, p. 38). Mais à frente, a autora reflete e aponta para o seguinte:

 

Creio que o poema em prosa “Emparedado”, de Cruz e Sousa, poderia ser lido como Escrevivência. Ao pensar em Recordações do escrivão Isaías Caminha, percebe-se que Lima Barreto, provavelmente, aproveitou da sua experiência, da sua vivência como um sujeito negro, para criar recordações de Isaías Caminha. E tanto Cruz e Sousa como Lima Barreto não estavam escrevendo só sobre o seu drama pessoal por serem negros, mas o drama, os problemas existenciais das pessoas negras da época (Evaristo, 2020, p. 39).

 

Se a escrita de alguns homens negros pode ser lida de certo modo como escrevivência, como nós, homens e mulheres brancos, podemos chamar a escrita das nossas vivências experienciadas? Respeitando o lugar de fala e de enunciação das mulheres negras? Talvez para ter uma melhor compreensão e resposta, precisemos retornar ao conceito de lugar de fala e, dessa forma, compreender como o conceito de Escrevivência se insere diretamente no lugar de fala.

 

4 Lugar de fala: o lugar que ocupo no mundo quando falo de algo

 

Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e também aguentei chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher? (Truth, 1851, apud Ribeiro, 2019, p. 19)

 

No Brasil é quase impossível pensar em lugar de fala sem se lembrar de Djamila Ribeiro (2019). Djamila não é a criadora do termo, mas pode ser considerada uma das responsáveis por trazer a discussão do tema para o Brasil. No livro “Lugar de Fala”, a autora busca explicitar o conceito que dá nome ao livro e a sua importância para mulheres negras. Como era de se esperar, alguns autores reviraram o livro em busca de falhas na forma como a autora construiu seu argumento, para então produzirem suas críticas. Penso que provavelmente ignoraram o que a autora registra na apresentação do livro, quando afirma que “O propósito aqui não é impor uma epistemologia de verdade, mas contribuir para o debate e mostrar diferentes perspectivas” (Ribeiro, 2019, p. 14). As críticas à filósofa pareceram um julgamento da Santa Inquisição das Ciências Sociais, extremamente preocupada com os conceitos sagrados da disciplina, que não foram devidamente citados pela autora, o que deixou claro o lugar de fala desses interlocutores: um lugar de sexismo, de academicismo e, podemos pensá-lo também, como um lugar de neocolonialismo.

Mas afinal, o que é lugar de fala? Para nos levar a compreender o que é esse lugar, espaço, território – inscrito na territorialidade decolonial do saber –, a autora nos alerta para o cuidado com os esvaziamentos de conceitos importantes causados pela urgência que as redes geram, podemos ler aqui redes sociais, enquanto mídias digitais que se proliferam nos nossos tempos. Antes de explorar mais profundamente o conceito com a ajuda e em diálogo com outras pensadoras como Grada Kilomba (2019), Patricia Hill Collins (1997), Linda Alcoff (2016) e Gayatri Spivak (2010), Ribeiro (2019) faz uma revisão da utilização do termo pela imprensa onde é um “instrumento teórico – metodológico que cria um ambiente explicativo para evidenciar que jornais populares ou de referência falam de lugares diferentes” (Ribeiro, 2019, p. 56). Depois de trazer a forma de introdução explicativa do entendimento de lugar de fala a partir da comunicação, Djamila passa, então, a explorar como o termo surge dentro das teorias feministas.

 

Acreditamos que este surge a partir da tradição de uma discussão sobre feminist standpoint – em uma tradução literal “ponto de vista feminista” – diversidade, teoria racial crítica e pensamento decolonial. As reflexões e trabalhos gerados nessas perspectivas, consequentemente, foram sendo moldados no seio dos movimentos sociais, [...], como forma de ferramenta política e com o intuito de se colocar contra uma autorização discursiva. Porém, é extremamente possível pensá-lo a partir de certas referências que vêm questionando quem pode falar (Ribeiro, 2019, p. 57).

 

 A autora vai construindo sua argumentação sobre o lugar de fala a partir do entendimento de ponto de vista, enquanto lugar social que ocupo quando descrevo o que vejo, ou seja, o lugar que eu me encontro objetiva e subjetivamente quando falo. Um local social, histórica e culturalmente construído. Em outra parte do texto, a escritora afirma que

 

O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas. A teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala nos faz refutar a visão universal de mulher e de negritude, e outras identidades, assim como faz com que homens brancos, que se pensam universais se racializem, entendam o que significa ser branco como metáfora do poder, como nos ensina Kilomba. Com isso pretende-se também refutar uma pretensa universalidade. Ao permitir uma multiplicidade de vozes o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se pretende universal (Ribeiro, 2019, p. 69).

 

Embora Ribeiro (2019) não deixe dúvidas sobre o que é lugar de fala, encontramos pessoas dizendo, que apenas negros podem falar sobre racismo por ser seu lugar de fala. Que brancos não podem falar de racismo porque não o sentem na pele, que só as mulheres podem discutir o feminismo e por aí vai. Surgem outras narrativas, dizendo que o lugar de fala seria um aspecto da análise do discurso, não necessariamente um lugar social. E dentre uma série de explicações acadêmicas foi Pinheiro (2023) que tornou mais didático o entendimento de o que é o lugar de fala. A professora, pesquisadora e escritora soteropolitana nos propõe que nos imaginemos em uma história mais ou menos como esta que vou descrever.

Imagine-se dentro de um ônibus, sentado(a) quando recebe o anúncio de que está sendo assaltado(a). Na sequência a mídia chega ao local para televisionar o ocorrido. Quantos lugares de fala temos? Apresentaremos alguns lugares de fala, tanto das pessoas dentro do ônibus, como fora dele. Para tornar o entendimento mais didático, Pinheiro (2023, p. 62 -63) apresenta a seguinte narrativa em que ela é a pessoa assaltada, e está sendo entrevistada pela equipe de TV para saber como tudo aconteceu: 1) ela foi entrevistada e falou do furto pela ótica de quem estava sentada tranquila no seu banco, e de repente levou um grande susto, perdeu a carteira e o celular e ouviu de perto os gritos do assaltante; 2) o assaltante falou sob o ponto de vista de quem precisava dos itens por alguma razão: entrou no ônibus e me achou mais vulnerável por eu estar com o celular na mão distraída; bem-posicionada perto da porta de saída; 3) as outras pessoas do ônibus cada uma falou com base no que viu, pois, todo mundo presenciou o assalto e tinha uma narrativa a respeito.

Poderíamos adicionar outros lugares de fala a narrativa feita por Pinheiro (2023): 4) o do policial que deteve o assaltante e que contará a história a partir do inquérito policial a ser instaurado e que deverá levar em consideração os diferentes lugares de fala acima enunciados, somando a eles o seu próprio; 5) o de um transeunte que passava pela rua naquele momento e viu o assalto acontecendo, estando fora do ônibus sem ter qualquer interferência e/ou participação na cena; 6) das pessoas que assistiram em casa as notícias transmitidas pela TV local; 7) as pessoas que apenas ouviram falar, e foram repassando a notícia aleatoriamente.

Cada um dos personagens acima tem um lugar de fala, nenhum é igual ao outro, mas cada um a partir da sua perspectiva conta a mesma história (Ribeiro, 2019; Pinheiro, 2023). Desse modo, compreendemos que a Escrevivência enquanto conceito ou como método de escrita pode ser compreendida como a escrita a partir de um lugar de fala, vivências e experiências, pelas quais mulheres negras passam com maior frequência do que mulheres brancas. Mas se a escrevivência não é um lugar a partir do qual podemos falar quando falamos de nossas vivências enquanto pessoas brancas, de que lugar devemos enunciar nossas experiências?

 

5 Autoetnografia como um método de pesquisa participante: considerações não finais

 

A ideia de escrevivência talvez possa trazer algo novo para a teoria da literatura pensar. Parece-me que o conceito de autoficção, de escrita de si, de narrativas do eu, e até de ego-história, quando o historiador resolve por meio do aparato da ciência que ele conhece, narrar a sua vida como sujeito histórico, como sujeito da história de seu tempo, [...] (Evaristo, 2020, p. 38).

 

Na defesa de dissertação, Cardoso (2022) foi indagado por um dos membros da banca quanto ao fato de a Escrevivência parecer ser o método que dava estrutura ao texto. Outro se referiu ao texto dissertativo como uma espécie de saga do autor que estava acontecendo naquele momento de letramento racial: ou seja, o início de uma saga do ir-e-vir. Nesse processo de ir e vir, nos defrontamos, então, com outra possível abordagem metodológica: a autoetnografia.

 

[...] a autoetnografia é uma abordagem centrada nas vivências do próprio sujeito em seu contexto social, e que permite a “compreensão das ambiguidades que se colocam diante de sujeitos que se inquietam, pesquisam e refletem sobre si mesmos”. O autoetnógrafo está em uma “zona de fronteira” ou “entre duas culturas” (Sousa et al., 2016, p. 29).

 

Homi Bhabha (2013) entende essa zona de fronteira como sendo um entrelugar. Esse lugar de fronteira entre duas culturas poderia ser também entendido dentro da cultura ancestral negra (territorialidades negras e/ou afroindígenas nomeadas de terreiros de Umbanda e/ou Candomblé) como um lugar da porteira[11]. Da porteira para dentro se guarda o awó – os segredos – em que apenas algumas poucas manifestações religiosas são abertas à comunidade circundante, com o intuito de a comunidade ser coparticipante do axé, que se manifesta e vibra pelos espaços e territorialidades, cujas divindades são a representação (de rios, cachoeiras, matas, caminhos, mar, ar etc.) e a manifestação.

Para sua própria sobrevivência, esses espaços, até então fechados quase que hermeticamente, foram se abrindo aos olhares externos, mas ainda conservam seus segredos, cabendo aos de dentro traduzir o que é traduzível para o lado de fora da porteira. Para isso acontecer é necessário se colocar na porteira, na fronteira, no entrelugar, na encruzilhada, aprender com Exu Onã, o Senhor da casa, quais segredos podem transpor a fronteira imposta pela porteira. Nesse contexto, ao optar pela autoetnografia, o pesquisador(a) que é interno a esse espaço/tempo compreende que há um caminho a seguir, pois,

 

A autoetnografia deve ser etnográfica em sua orientação metodológica, cultural em sua orientação interpretativa, e autobiográfica, quanto ao conteúdo. A ação concreta da escrita autobiográfica emerge da emoção que engloba a corporeidade e a expansão da consciência de si quando um enredo se descortina, enquanto a da autoetnografia parte da introspecção e de uma atenção a nossos pensamentos, emoções, sentimentos ou percepção física, que nos lança através da memória a uma experiência que vivemos (Sousa et al., 2016, p. 29).

 

Em nossa percepção, a autoetnografia quanto à sua orientação interpretativa conforme sugere Sousa et al. (2016) deve ser cultural, mas é necessário ir além. Existem múltiplas formas de pensar e analisar o cultural; pontuamos a importância de que, ao construir a autoetnografia como método de pesquisa, ela deve ser pensada de uma maneira “intercultural e crítica”. Na concepção de Walsh (2009), a interculturalidade crítica “tem suas raízes plantadas não no Estado ou na academia, mas em discussões políticas arguidas pelos movimentos sociais, o que ‘faz ressaltar seu sentido contra-hegemônico, sua orientação com relação ao problema estrutural-colonial-capitalista e sua ação de transformação e criação’” (Walsh, 2009; Cardoso, 2022, p. 85).

Neste sentido, ao nos propormos a pesquisar não só a religiosidade de matriz africana como “força vital” para a manutenção das diferentes comunidades (territorialidades afroindígenas-brasileiras), ao longo de séculos de maus tratos físico-corpo-materiais e silenciamentos metafísico-objetivo-subjetivo[12], entendemos que a autoetnografia auxilia quem está do lado de dentro da porteira a traduzir o encantamento vivido e produzido em outros mundos/territorialidades existentes dentro do território. Para além de tentar compreender como a religiosidade/ancestralidade renovou a força vital de homens e mulheres na diáspora negro-atlântica moderno-contemporânea, buscamos também entender o nosso lugar como brancos dentro dessa religiosidade que se abriu para o povo brasileiro, em busca de respeito e de paz. Esse movimento que ultrapassa o religioso em direção a uma estratégia política de sobrevivência (Sodré, 2019).

Embora o hibridismo cultural religioso não seja uma novidade para os povos africanos, que ao longo de séculos utilizaram essa estratégia (Lopes, 2021; Oliveira, 2021), no Brasil a influência da “branquitude” dentro das territorialidades afroindígenas precisa ser compreendida. De um modo ou de outro, mentes ocidentalizadas em múltiplos aspectos, somados ao insulamento dos terreiros de Umbanda e Candomblé, muitas vezes considerados primitivos em meio a uma modernidade ocidental, neocolonial, diferencialista e assimilacionista, produziram um outro cultural por um amplo espectro de encruzilhamentos. Neste sentido, é preciso perceber e identificar como se dá o processo de interação entre o particular e o cultural e, como se dá a leitura intercultural – a leitura de fronteira.

“Na experiência autoetnográfica emergem interações do particular (íntimo) com o cultural (o outro), é um olhar para dentro e para fora, que através da memória nos remete do pessoal para o cultural, formando, assim, fronteiras tênues, porém essenciais para compor o todo” (Sousa et al., 2016, p. 29). Poderíamos dizer, então, que o intento de Cardoso (2022) percebido como saga pessoal, pode ser compreendido em parte pelo perfil autobiográfico. Esse perfil autobiográfico inscrito nos métodos de investigação participante em que o pesquisador é também sujeito da pesquisa que realiza, não o tornam um escrevivente, tendo como base o conceito de Escrevivência em Evaristo (2020), mas é caminho para um método a ser desenvolvido na sequência da pesquisa iniciada no mestrado que se estende para o doutorado.

Um exercício em escrita autobiográfica se apresenta como uma preparação para uma prática investigadora de perspectiva autoetnográfica, como um lugar mais apropriado de fala de alguém que se percebendo racista, continua o seu letramento racial. Situado em uma zona de fronteiras culturais, conta com a contribuição imprescindível de diferentes e diversas/os intelectuais negras/os; de uma orientação metodológica cultural; autobiográfica enquanto orientação interpretativa em relação ao conteúdo; de atenção introspectiva a pensamentos, emoções, sentimentos e/ou percepções físicas, que o lançam através da memória a experiências em vivência e/ou vivenciadas.

 

Referências

 

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[1] Com estudos relativos ao “branco-tema” (Cardoso, 2020).

[2] “Para Lévinas, o princípio da ética da alteridade é o respeito pelo diferente [a/o Outra/o]. O rosto do outro nos convoca, nos interpela e nos convida. A ética da alteridade revela no rosto do outro o seu infinito. Esta ética quebra os paradigmas tradicionais estabelecidos por outras éticas. O que identifica o outro é o seu rosto, e é muitas vezes no rosto do outro que eu encontro a minha própria identificação. Cada rosto é diferente, mas me dá sentido do respeito, face a face, olho no olho (alteridade), eu me vejo no outro, pois há uma interpelação quando estamos diante do rosto do outro. [...]. E tudo isso começa pelo olhar no rosto do outro, prestar atenção e saber ouvir o outro olhando em seus olhos e vendo de perto o seu rosto (alteridade). Não é um olhar superficial, é um olhar de empatia, sentir o que o outro sente, sentir o que pensa e como vê a vida. Resumindo, é uma ética da alteridade empática que estabelece relações de respeito nas suas diferenças” (Wickert, 2007, p. 54).

[3] O presente ensaio ao assumir-se como uma autoetnografia, segue alguns preceitos enquanto uma autobiografia somada a uma etnografia. A respeito da autoetnografia, Ellis, Adams e Bochner (2019) afirmam: “Os autobiógrafos também podem tornar os textos artísticos e evocativos, alterando o ponto de vista do autor. Às vezes, podem usar a primeira pessoa para contar uma história, geralmente quando a observam ou vivenciam pessoalmente uma interação e participam como ‘testemunhas oculares’ de forma íntima e imediata (Cauley, 2008). Outras vezes, podem usar a segunda pessoa para trazer os leitores para a cena; testemunhar ativamente com o autor uma experiência da qual se faz parte, para que o leitor não se sinta distanciado do acontecimento relatado (por exemplo, Glave, 2005; McCauley, 1996; Pelias, 2000). Podem também utilizar a segunda pessoa para descrever momentos que parecem muito difíceis de narrar (Glave, 2005; Pelias, 2000; McCauley, 1996). Às vezes, os autobiógrafos usam a terceira pessoa para estabelecer o contexto de uma interação, relatar resultados e apresentar o que os outros fazem ou dizem (Cauley, 2008)” (Ellis, Adams e Bochner, 2019).

[4] Sobre a árvore do esquecimento, Silva (2020, p. 18) conta que, [...] antes de deixar o porto de Ouidah, na atual República do Benin, os africanos escravizados eram levados à árvore do esquecimento – plantada pelo rei Agadja em 1727. Depois de nove voltas dadas pelos homens – as mulheres davam sete – acreditava-se que origens, identidade cultural, lembranças de suas moradas e de suas localizações geográficas perdiam-se no limbo. A memória era reconhecida pelos mercadores de escravos como uma poderosa arma de resistência.

[5] Cardoso (2006, p. 260) apresenta uma série de nomes dados a esse toque, Avamunha, Ramunha, Mumunha, Avaninha entre outros. Esses toques que possuem pequenas diferenças rítmicas ou na forma de serem percursionados [...] nas diferentes casas de candomblé, a partir da nação a que pertencem (Ketu, Gege, Angola, Fon etc.). Pode ser utilizado em diferentes momentos do culto, para a entrada de filhas e filhos de santo no interior do barracão [...], bem como na saída dos mesmos deste local ao fim da cerimônia pública. Na chegada ou partida de um ou vários Orixás, Inquices ou Voduns, a depender da nação. Neste texto, vamos entender a Avamunha, como um toque que abre a roda de discussão e aprendizagem sobre saberes e fazeres outros.

[6] De acordo com Santos e Depelchin (2019) Cheikh Anta Diop foi um historiador e filósofo senegalês. “[...] Cheikh Anta Diop incomodou e abalou os alicerces da Historiografia Ocidental na segunda metade do século XX. Ele era um intelectual de sólida formação acadêmica e, instrumentalizado com um rigor metodológico, seus argumentos e teses eram difíceis de serem ignorados. Todavia isso não significa que eles tiveram ampla divulgação e pesa ainda hoje sobre seu legado a reação indignada das academias eurocêntricas – anglófona e francófona. Há um desconhecimento generalizado de sua obra em virtude de um alheamento proposital das políticas editoriais. O tom duro nas conclusões das pesquisas dificulta a conversão de seus trabalhos em produtos consumíveis de fácil acolhimento no mercado editorial e, também, por vezes, no âmbito acadêmico” (Santos, Depelchin, 2019. p. 9).

[7] Para compreender melhor a discussão entre branquitude crítica e acrítica, recomendamos a leitura de: CARDOSO, Lourenço. A branquitude acrítica revisitada e as críticas. In: MÜLLER, Tânia Mara Pedroso; CARDOSO, Lourenço (org.). Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil. Curitiba: Appris, 2017. Cap. 2. p. 33-52. (Ciências Sociais).

[8] O livro supracitado foi publicado no Brasil em 2021.

[9] De acordo com Teixeira (2017, p. 14-15), “[...] os abiãs – constituem os postulantes ao rito de passagem denominado feitura. Mas cabe destacar também que, mesmo na condição de pré-iniciandos, os abiãs já fazem parte de um grupo religioso específico, com o qual estabelecem laços morais incipientes.”

[10] Para compreender melhor o contexto exposto acima, leia a nota de rodapé de número 64 leia na integra o texto na dissertação: CARDOSO, Flavio Fortunato. O voo da Sankofa: percursos e participação de negras e negros afrodiaspóricos e desenvolvimento no alto vale do Itajaí. 2022. 293 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Desenvolvimento Regional, Departamento de Ciências Sociais e Filosofia, Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, 2022. Disponível em: https://bu.furb.br/docs/DS/2022/368230_1_1.pdf

[11] Para saber mais sobre o lugar da porteira, indicamos a leitura de: PÓVOAS, Ruy do Carmo. Da porteira para fora: mundo de preto em terra de branco. Ilhéus: EDITUS, 2007. 482 p.

[12] Pensamos aqui não apenas na utilização do corpo negro como corpo-mercadoria (Mbembe, 2018), e mercadoria no sentido amplo da palavra, mercadoria serviçal, mercadoria sexual etc., mas também nos múltiplos silenciamentos, desde o imposto pela máscara de flandres, que impede a fala, passando pelo silenciamento que impõe o que falar e a quem falar, chegando ao silenciamento que impõe a tradução do seu próprio sagrado, que impõe uma quebra no contato, que (pró)põe a separação sagrado/profano (Eliade, 1992).



[i] Fonte de fomento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

  Artigo recebido em: 15/09/23

  Artigo aprovado em: 12/06/24

 

[ii] Contribuições de autor: conceituação; investigação; metodologia; visualização; escrita – rascunho original; escrita – análise e edição.

[iii] Contribuições da autora: administração do projeto; supervisão; escrita – análise e edição.