e-ISSN 1984-7246  

 


A intelectualidade entre o terreiro e a academia no século XXI: a contribuição da Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña no Sul do Brasil[i]

 

 

Roselaine Dias da Silva

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Florianópolis - SC, Brasil

lattes.cnpq.br/0220900816546360

orcid.org/0000-0003-0872-3994

roselainediasdasilva5707@gmail.com

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A intelectualidade entre o terreiro e a academia no século XXI: a contribuição da Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña no Sul do Brasil

 

Resumo

Este artigo propõe pensar a intelectualidade a partir da produção de conhecimento que se organiza fora dos padrões ocidentais, um lócus sagrado de práticas e ritos de Matriz Africana no Brasil, compreendido como terreiro. A proposta metodológica de perspectiva etnográfica foi realizada por meio de entrevista aberta no terreiro Ilê Asé Ologbo Ogum, com colaboração da Iyalorixá do Candomblé Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum, Mulher Negra retinta — como ela se identifica — que defendeu sua tese de doutorado com oitenta anos. Observou-se por meio das provocações feitas à Iyalorixá e das respostas recebidas que há um tensionamento intelectual que perpassa o trânsito entre a academia e o terreiro. Problematizou-se o conhecimento formal institucionalizado e o conhecimento adquirido por meio das concepções vivenciadas na vertente religiosa de Matriz Africana que tem a ancestralidade como esteio de compreensão do mundo. Desse modo, as narrativas foram articuladas mediante os processos de identidade e resistência, considerando a memória como vínculo para a herança ancestral que, neste artigo, constitui-se por meio do afeto e do laço familiar. Destacou-se a oralidade que preserva, por meio da linguagem oral, a memória ancestral que move o tempo e permanência das pessoas de Tradição de Matriz Africana. Evidenciou-se que a razão epistemológica que desenvolve os processos da intelectualidade produzida no campo do saber, da filosofia e do pensamento de negras/os no Brasil se alicerça em conceitos estruturados a partir da cosmologia africana que atravessa a condição de ser e estar dos sujeitos.

 

Palavras-chave: ancestralidade; matriz africana; terreiro; intelectualidade.

 

Intellectuality between the terreiro and academia in the 21st century: the contribution from Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña in southern Brazil

 

Abstract

This article proposes a reflection on intellectuality based on knowledge production organized outside the Western standards, and that stems from a sacred locus of practices and rites in Afro-Brazilian religions, known as terreiro. The research method was based on an ethnographic approach and draws on an open interview carried out at the Ilê Asé Ologbo Ogum terreiro, with the collaboration of the Candomblé’s Iyalorixá (priestess of Candomblé religion) Dalzira Maria Aparecida Yaguña de Ogum, a very dark black woman – as she refers to herself – who defended her doctoral thesis at the age of eighty. From the provocative questions made to the Iyalorixá and her answers to these questions, an intellectual tension was observed that pervades the flow between academia and the terreiro. The formal institutionalized knowledge and the knowledge acquired through conceptions experienced in the African-derived religious practices, which has ancestry as the mainstay for understanding the world, were contrasted. Thus, the narratives were organized around the processes of identity and resistance, considering memory as a linkage to ancestral heritage that, in this article, is constituted by means of affection and family ties. Orality was highlighted as the means that preserves, through oral language, the ancestral memory that guides time and permanence of people of African-derived tradition. It emerged that the epistemological reason that develops the processes of intellectuality produced in the field of knowledge, philosophy and thought of black people in Brazil is based on concepts that stem from the African cosmology that passes through the subject's condition of being.

 

Keywords: ancestry; african-derived tradition; terreiro; intellectuality.

1 Introdução

Este artigo busca problematizar a composição da intelectualidade que se organiza a partir dos conhecimentos e saberes produzidos no trânsito entre o terreiro[1] e a academia a partir da existência e da ancestralidade da Iyalorixá do Candomblé Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum. As reflexões apresentadas neste texto surgiram a partir dos relatos feitos por meio da entrevista com Iyalorixá, aqui doravante chamada também de Yagunã — diminutivo carinhoso que se refere ao seu lugar hierárquico na religião de Matriz Africana enquanto Iyalorixá e autorizado por Ela[2]. A Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum chegou à universidade para participar do programa de doutoramento em Educação na Universidade Federal do Paraná, conforme relata, já na condição de Iyalorixá. Ou seja, naquele momento, Ela já tinha o terreiro Ilé Asé Ologbo Ogum para dar conta e, por essa obrigação, filhos/as sob sua responsabilidade, além dos compromissos como militante do Movimento de Mulheres Negras na capital do Paraná, onde vive, e nas Comunidades de terreiros e Religiões de Matriz Africana no Brasil.

A metodologia se dá a partir de um olhar etnográfico, com pesquisa realizada em campo por meio de entrevista presencial com a Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum no território de vivência dessa representante da religião de Matriz Africana, no espaço compreendido como terreiro Ilé Asé Ologbo Ogum, na cidade de Curitiba, no Bairro Alto, no estado do Paraná, no dia 20 de maio de 2023, em uma tarde de sábado.

O diálogo foi realizado sempre respeitando a condição hierárquica da Iyalorixá, de modo a preservar as falas que Ya julgou que não deveriam ser registradas devido à sensibilidade dos assuntos. Em meio aos relatos de sua trajetória acadêmica, constituída do lugar de uma mulher negra com mais de oitenta anos de idade, que passou na seleção de doutorado em uma universidade federal do país, traçou-se um caminho que buscou pontuar questões pertinentes às referências de Matriz Africana no campo da produção do conhecimento, bem como as suas implicações na vivência da cosmologia africana.

Articulou-se, de acordo com o que foi dito pela Iyalorixá, a ideia da ancestralidade como possível ordenadora da razão do conhecimento para a constituição da intelectualidade que lhe é confirmada para além e com outros critérios que destoam do crivo ocidental. Na narrativa de Dalzira Maria Aparecida Iyaguña, torna-se evidente a relação entre o afeto e a conexão familiar (tanto consanguínea quanto na constituição de terreiro) com a ancestralidade e o reconhecimento da memória como vínculo ancestral.

Nessa condição, a identidade é colocada nas percepções de Ya como fonte de luta e resistência do nosso povo. A partir dessa conjunção, para a referência do Candomblé, a Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum, que foi ao jogo de búzios para definir sua pesquisa de doutorado, a ancestralidade é fonte de conhecimento para o pensamento de negros/as no país e premissa para os enfrentamentos ao racismo epistêmico.

 

2 A ancestralidade como constituinte da intelectualidade

“A ancestralidade é muito forte para Nós!”, sustenta Dalzira Maria Aparecida Iyaguña (2023), durante a entrevista concedida, naquela tarde fria do sábado de 20 de maio de 2023, no terreiro Ilé Asé Ologbo Ogum. Ya faz referência ao compromisso ancestral que, segundo seu entendimento, carregamos como herança. Conforme Ela: “Eles estão com a gente!” (Iyaguña, 2023).

Ya faz essa afirmação com a razão de quem tem ciência de que a ancestralidade é um fato, não é uma ocorrência momentânea. A percepção, em nosso diálogo, é de que essa herança pode ser consciente ou não. Em sua compreensão, pode-se ter ciência dessa condição ancestral e lutar, buscar essa referência ou não assumir, tampouco compreender o que significa esse processo.

 Iyaguña (2023) sustenta que há uma “herança ancestral” que pressupõe, de acordo com o seu entendimento, o zelo, o cuidado e a preservação das práticas do/no terreiro, como trocar a água da quartinha.  Ela afirmou que:

 

[...] somos herdeiros de ancestrais, né, herdeiros de África, por mais que a gente não faça como faz lá na África, mas a gente sabe que tem esse dever, que tem essa herança (Iyaguña, 2023). 

Por essa prática de manutenção e perpetuação das tradições nos terreiros, Eliane Almeida (2019, p. 70-142), pesquisadora do Batuque no Rio Grande do Sul, conferiu às Iyalorixás[3]:

 

[...] o reconhecimento dos nossos religiosos de Matriz Africana[4] como guardiões e mantenedores de práticas e saberes seculares. [...] nos terreiros religiosos, as práticas se iniciam pela observação e o entendimento sobre o que, como e para que fazer. [...] há um processo pedagógico vital para a sobrevivência desta religiosidade.

 

Para Nadja Antonia Coelho dos Santos (2013, p. 44-45), que produziu conhecimento sobre a representação da Iyalorixá no Candomblé, a Mãe de Santo é “[...] uma liderança religiosa, cultural e social [caracterizada também como] sacerdotisa que serve de canal energético para que o Orixá se torne parte definitiva da vida de uma pessoa”. Sob esse aspecto, a Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum (2023) afirma que a busca pela ancestralidade em sua tese de doutorado a levou à pesquisa sobre a identidade da Iyalorixá. Nesse exame, o entendimento que a Iyalorixá tem é de que é preciso ter conhecimentos diversos: “[...] saber de folha, das folhas, o ritmo, o canto, do que tá certo ou não no ritual. [...] tem que entender um pouco [...] da vida e da morte, porque faz parte saber como que você recebe e como você conduz” (Iyaguña, 2023).

Por terem essa sabedoria, Nadja Antonia Coelho dos Santos (2013) defende que Iyalorixás são líderes religiosas que precisam manter e atualizar a cultura afro-brasileira, preservando a identidade africana, que segundo a autora “[...] é idealizada e vivenciada pelas pessoas no cotidiano” (dos Santos, 2013, p. 43-44). Nossa interlocutora, Ya, entende que nossa herança ancestral também depende do nosso zelo e do nosso compromisso, Ao que declarou: “Ela [a ancestralidade] responde em Nós!” (Iyaguña, 2023).

Seguindo esse pensamento, a Professora Leda Maria Martins assegura que

 

[...] o princípio filosófico da ancestralidade é motriz do corpo individualizado, do corpo coletivo e do corpus cultural, de todo o pensamento sobre a condição humana, de toda a plumagem ética e estética, de toda a produção de conhecimento, em todos os âmbitos em que a mesma acontece, dos mais técnicos aos mais transcendentais ou rotineiros (Martins, 2023, p. 59).

 

De acordo com essa percepção, Ya acredita que a produção de conhecimento pode ser por meio da escrita de um livro ou da própria vivência de cada pessoa com sua ancestralidade. Mas, ratifica que essa “herança ancestral” conduz ao compromisso que a relação com a espiritualidade e a religião pressupõe (Iyaguña, 2023). De acordo com sua representação hierárquica, Ya tem preocupação com a herança ancestral que se vincula ao terreiro dirigido por Ela. Isso porque, segundo seu aprendizado e ensinamento [aqui reverberado], as pessoas iniciadas com a sua mão no Ori[5] também fazem parte da herança ancestral Dela (Iyaguña, 2023).

Segue dizendo: “Você não inicia ninguém por brincadeira. Inicia porque faz parte… É uma coisa bonita! Você passa a ser parte da família ancestral” (Iyaguña, 2023). Nesse caso, por sua análise, aquele/a que se inicia, vincula-se à ancestralidade da Mãe de Santo que lhe iniciou na religião de Matriz Africana. Por essa condição ancestral, como visto nas contribuições da Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña (2023), pode-se relacionar religião e afeto no trânsito da identidade de Matriz Africana.

Para Iraildes Andrade Nascimento (2013), que dialoga sobre o assunto em seu texto “A Reconstrução das Famílias Negras no Tempo”, as Mães de Santo buscaram a reconstituição familiar perdida durante o período de escravidão por meio dos laços afetivos dentro dos terreiros. Conforme a autora: “[...] homens e mulheres negros/as, como brancos/as, restituem seus afetos, as suas dignidades e os sentidos de pertencimento no seio dos terreiros” (Nascimento, 2013, p. 47).

Ao discutir sobre afeto e poder no espaço do terreiro, Salete Maria da Silva (2013) suscita que a Mãe de Santo tem a sua relação com o Sagrado, com a família, que segundo a autora, pode ser biológica ou não, mas que se coloca principalmente como família espiritual. Silva (2013) argumenta que o afeto firmado pela legitimidade espiritual

 

da Mãe de Santo, que tem a autoridade religiosa dentro dos terreiros, rompe com a lógica estrutural da sociedade patriarcal porque implica a maternidade para além dos condicionantes biológicos e retrata a autoridade constituída por meio da afetividade. A pesquisadora considera que as Mães de Santo:

 

[...] compartilham sentimentos de pertença, em termos de raça e fé, e professam sua crença, preservando sua cultura [...] contribuindo para a transformação da vida de filhos e filhas de Santo, através de uma relação profundamente afetiva [...] (da Silva, 2013, p. 37).

 

A Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum assegura ser a primeira a firmar compromisso com o Sagrado dentre os membros da sétima geração de sua constituição familiar a chegarem aqui [referindo-se à religião]. Contou: “[...] rompi praticamente com a família toda, pra você encarar a sua ancestralidade. Todo mundo dizendo não, não” (Iyaguña, 2023). Por meio dessa fala, Ya expressa o rompimento com parte de sua família de origem para assumir o compromisso com o Sagrado.

A professora Leda Maria Martins (2023, p. 63) enfatiza a ancestralidade como razão ontológica que se caracteriza em movimentos simultâneos, distintos e amplos em um tempo passado, presente e futuro. Ao lembrar da sua avó, Ya nos diz: “[...] em qualquer memória ancestral, ela vem muito forte, os Nossos!” (Iyaguña, 2023). A entrevistada proferiu: “[...] mas pra mim, foi porque eu fui buscar, tem que buscar a gente mesmo, buscar os Nossos! E pensar o que foi a identidade, né, lá no passado. Que existiu a identidade, até para a resistência, né. A identidade e uma ancestralidade!” (Iyaguña, 2023).

A força ancestral materializa a memória por meio dos afetos como vínculo secular na relação de vida dos terreiros e mantém a materialidade da filosofia africana como um eco de pensamento que reverbera na produção de conhecimento.

 

 

3 Trânsito entre terreiro e a academia

 

Aí foi difícil! Essa hora eu pensei em desistir, mas aí eu pensei não. A gente não está aqui sozinha né. Primeiro chora, enxuga as lágrimas e depois vai de novo.

(Iyaguña, 2023)

 

Inicio essa parte do texto com a fala da Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum, que se formou no curso de Relações Internacionais, fez mestrado na área da Tecnologia da Educação e doutorado na área da Educação. No mestrado, Ya pesquisou as vivências em três terreiros: Ketu, de Salvador; Bantu, de Cachoeira; e Jeje, de São José dos Pinhais, na área rural. Ao relatar sobre a organização da sua tese de doutorado, expôs suas dificuldades, principalmente o enfrentamento ao racismo epistêmico.

Ao ser questionada sobre o reconhecimento que a universidade deu à entrada de uma Iyalorixá em sua instituição, Iyaguña (2023) disse que “não sentiu assim… um reconhecimento dessa luta toda, mas era o reconhecimento por uma pessoa que tá entrando, não enquanto uma Iyalorixá” (Iyaguña, 2023). Ela apontou também que, se havia supostamente esse reconhecimento, ele não era publicizado. Essa invisibilidade da Iyalorixá na universidade também pode nos indicar o silenciamento da Tradição de Matriz Africana no contexto da academia, que pode ser relacionado com o que foi reportado por Spivak em sua obra Pode o Subalterno Falar? (2010).

Seguindo essa análise, está posto o secular epistemicídio do pensamento negro no Brasil, que se alicerçou desde o período colonial em um discurso que, de acordo, com Mogobe Ramose (2011), estruturou o racismo no mundo ocidental, determinando quem são os signatários da razão e extinguindo a racionalidade do povo negro. A organização escravocrata europeia no período colonial provocou a morte do conhecimento africano — o epistemicídio, entendido pelo filósofo Ramose da seguinte maneira:

 

O epistemicídio não nivelou e nem eliminou totalmente as maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados, mas introduziu, entretanto, e numa dimensão muito sustentada através de meios ilícitos e “justos” a tensão subsequente na relação entre as filosofias africana e ocidental na África (Ramose, 2011, p. 9).

 

Sueli Carneiro (2005), em sua tese acerca do dispositivo da racialidade, transcorre sobre como esse dispositivo funciona para a exclusão escolar e pressuposição de uma suposta incapacidade intelectual atribuída à população negra. Em suas palavras:

 

O epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc. (Carneiro, 2005, p. 97).

 

Nesse sentido, em sua fala, Iyaguña (2023) nos remete ao racismo acadêmico que, por consequência, interfere na produção de conhecimento negro no país. Esse racismo é retratado na sua experiência nesse espaço institucional; Ya diz: “Eu entrei crua na academia... Não sabia nada da academia e também não encontrei apoio ali... negócio era mais gente que me puxasse pra fora do que para dentro” (Iyaguña, 2023). Nesse registro, tem-se descrita a condição encontrada no processo de formação de uma intelectual preta e líder de religião de Matriz Africana em uma instituição universitária do Brasil.

Voltemos ao texto de Spivak, Pode o Subalterno Falar? (2010). A subalternidade em exercício se relaciona com condicionantes que vão para além do Estado exercendo poder, como advogou Foucault (1998); mas, como defende Spivak (2010), a subalternidade na práxis lida com outros sujeitos que também exercem esse poder.  Conforme se percebe no exercício da vida aqui exposto, na trajetória acadêmica de uma Iyalorixá do Candomblé há um tensionamento intelectual quando a universidade declara que essa subalterna não pode e não tem autorização para falar, entendendo “falar” aqui como a utilização de seu trânsito entre a academia e o terreiro como fonte de conhecimento científico.

Também questionei a Iyalorixá (Iyaguña, 2023) quanto às relações dentro do próprio terreiro, buscando captar as percepções do terreiro sobre a academia, conforme segue:

 

Eu – Para o Seu Povo aqui, do portão para dentro a Senhora entende que muda?

Ya– Para alguns muda, para outros parece que fica mais difícil, porque também há a crítica da Iyalorixá acadêmica. Parece que você está voltada só para a academia. Você se volta para a para a academia e esquece…

Eu– Mas os que são seus Filhos, que a Senhora tem a mão no Ori, como que a Senhora viu essa relação?

Ya– Alguns não estando na academia também apoiaram, mas houve uns que Eu percebi que sempre estão dando uma ‘alfinetada’ na academia (Iyaguña, 2023).

 

Nesse registro, Ya explicita também o conflito deflagrado entre os saberes acadêmicos e os saberes tradicionais, sendo estes materializados em símbolos, ritos e práticas perpetrados por nações que são transmitidos dentro do espaço Sagrado do terreiro. De acordo com Janine Cunha (2020, p. 218), os saberes tradicionais são “[...] um complexo memorial ancestral [que] preserva vivas as relações materiais e imateriais de uma África deixada abruptamente no passado”. Conforme a autora, nesse lugar do Sagrado se entrelaçam os campos da filosofia, da política e da cultura.

A exposição da Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum (2023) suscita-me a reflexão sobre o não-lugar. Penso, quais seriam esses questionamentos dos Filhos/as terreiro? Não seria o lugar da Ya na academia? E me permito responder: os processos de "branquificação", para usar um termo cunhado por Sueli Carneiro (2005, p. 117), que sustenta esse sistema colonial universitário contribuem para o epistemicídio do pensamento negro no Brasil.

Para Luis Rufino (2019, p. 87), o tensionamento aportado no trânsito entre a academia e o terreiro, está colocado na:

 

[...] reivindicação de uma transformação radical no que tange às relações de saber/poder [segundo seu construto] o ebó epistemológico, como um saber praticado [que] opera no alargamento da noção de conhecimento (Rufino, 2019, p. 87).

 

No campo da produção de conhecimento filosófico dentro dos terreiros há um ethos em que a expansão desse “cruzo” entre o terreiro e a academia constrói mecanismos de resistência ao apagamento desse conhecimento por meio do movimento da Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum. O “cruzo” é definido por Luis Rufino, como:

 

[...] perspectiva teórico-metodológica da Pedagogia das Encruzilhadas, fundamenta-se nos atravessamentos, na localização das zonas fronteiriças, nos inacabamentos, na mobilidade contínua entre saberes, acentuando os conflitos e a diversidade como elementos necessários a todo e qualquer processo de produção de conhecimento (Rufino, 2019, p. 88).

 

A Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum (2023), ao contextualizar os caminhos de resistência para percorrer sua trajetória em meio acadêmico, afirmou relembrando sobre o posicionamento de seus Filhos de terreiro:

 

[...] que a academia não é tudo! [...] mas Eu entendo assim, que a academia só vai mudar através de Nós, né, só através de Nós, porque se a gente não for lá fazer a mudança, tá confortável, tá confortável, o lugar de poder sempre foi deles, sempre foi... O conhecimento fica dissociado do saber (Iyaguña, 2023).

 

Por esse diálogo, a implicação da ancestralidade na cosmologia africana retorna à entrevista. Eliane Almeida (2019, p. 101), apresenta a “[...] hermenêutica dos saberes não reconhecidos” para argumentar que a linguagem é um fator desse reconhecimento. A autora destaca que os conhecimentos são transmitidos na Matriz Africana por meio da ancestralidade e da tradição.

A ancestralidade é vista pela Tradição Yorubá[6] na perspectiva de que a vida não acaba com a morte. A Tradição traz em si a condição de “[...] continuidade e permanência de uma doutrina, de uma escola de pensamento [que contém em si] costumes e valores” (Almeida, 2019, p. 102). Em seu estudo, Almeida confirma junto às Iyalorixás e Babalorixás entrevistados/as que a tradição e a ancestralidade são materializadas como componentes “[...] de conhecimento real” (Almeida, 2019, p. 103) dentro dos terreiros, assim como confirma a nossa interlocutora.

Eduardo Oliveira (2006, p. 156) salienta em seu estudo Cosmovisão Africana no Brasil, baseado na cultura Yorubá, que:

 

A Tradição com base no culto aos ancestrais e nas ramificações dos princípios ligados a este culto na esfera da política e da organização da produção e da sociedade tornaram-se elementos estruturantes da identidade dos povos africanos genericamente espalhados pelo mundo e, especificamente, situados no Brasil.

 

Nas obras de Eduardo Oliveira (2006) e Eliane Almeida (2019, p. 101), os dois autores apresentam a ancestralidade como força vital para a cosmovisão africana, expondo que essa energia movimenta o tempo e a vida. Para a pesquisadora Leda Maria Martins (2023, p. 62), essa força vital é denominada de “energia vital”, em suas próprias palavras:

 

A ancestralidade é o princípio base e o fundamento maior que estrutura toda a circulação de energia vital. Os ritos de ascendência africana, religiosos e seculares, reterritorializam a ancestralidade e a força vital como princípios motores e agentes que imantam a cultura brasileira e, em particular as práticas artístico-culturais afro. Quer nos saberes medicinais curativos [...], nas formas arquitetônicas, nas texturas narrativas e poéticas, nas danças, na música, na escultura [...], nos sistemas religiosos, nos modelos de organização social, nos modos de relacionamento entre os sujeitos e entre o humano e o cosmos e, em particular, na concepção do tempo espiralar.

 

Em sua obra, Eduardo Oliveira (2006, p. 156-157) afirma que os povos advindos de África, oriundos do processo de escravidão derivado do processo civilizatório ocidental, “[...] reconstituíram e reconstruíram a identidade negra com matriz africana a partir da tradição”. Segundo o autor, a Tradição Africana é dinâmica e sua composição se renova e muda de acordo com as necessidades, mas sempre “[...] assentada na sabedoria ancestral” (Oliveira, 2006, p. 156-157). O autor também afirma que o Candomblé, religião cultuada por nossa interlocutora, é uma das formas de resistência das “[...] expressões religiosas africanas e das cosmovisões de etnias diferenciadas” (Oliveira, 2006, p. 157) que chegaram ao Brasil. Ele condiciona que essa matriz de religiosidade africana também preservou os modos e a organização de vida e sua produção — grifa-se aqui a produção de conhecimento do povo negro no país.

É importante pensar que, na produção de Eduardo Oliveira (2006), a intersecção das identidades dos povos étnicos africanos que aportaram no país inferiu a constituição dessa matriz e confere a essa resistência política, cultural e religiosa da identidade negra de Matriz Africana a própria constituição identitária brasileira. Dessa forma, o autor entende que as discussões sobre o processo identitário e sobre a constituição étnica no Brasil precisam ser revistas a partir da legitimidade da identidade negra de Matriz Africana no país.

Cabe aqui assentar para usar um termo religioso da Tradição de Matriz Africana — que por meio do movimento de identidade e de resistência, se perpetua de forma oral, pela experiência de vida retratada nos terreiros, como forma de prática contínua de transmissão de conhecimentos, a demarcação de um campo de saber-poder que opera sobre a estruturação dos conceitos e estes organizam a realidade.

Nesse sentido, observa-se o processo da linguagem que se dá pela oralidade como forma de transmissão de conhecimento dentro dos terreiros, garantindo sua existência por memória ancestral dentro da Tradição de Matriz Africana. É o que se pode notar no diálogo com a Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum (2023) e no trabalho de Eliane Almeida (2019) — que também é Iyalorixá.

Há de se considerar nessa análise a linguagem como produto das relações de poder e dominação que remontam a uma elaboração discursiva (Foucault, 1971), que por curso, equaliza as formas de pensar e, por essa razão, a intelectualidade.

Considerações finais

Tendo em vista que outras epistemologias entrecruzam a vida das pessoas que vivenciam as Matrizes Africanas no Brasil, conhecer o processo de formação durante a trajetória acadêmica e o “cruzo” (Rufino, 2019, p. 88) do saber-poder no campo das ciências vivenciado por uma Iyalorixá que defendeu sua tese de doutorado já com mais de oitenta anos diz muito sobre como se formam as intelectualidades negras no Brasil.

 Ficou explícito, em nosso diálogo, o tensionamento que a intelectualidade negra carrega entre seu poder ancestral e o espaço acadêmico. Também é relevante observar a partir da entrevista que não há condescendência do status acadêmico para com as experiências e conhecimentos que divergem do campo do pensamento ocidental. 

Absorve-se pela vivência acadêmica da Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum (2023), a partir do seu lugar hierárquico no Candomblé, no seu espaço de atuação e interação com a comunidade – entendida para além do terreiro – que a intelectualidade negra se organiza por meio dos modos de vida e compreensão dos fenômenos da cosmologia africana. Não há como entender os processos da intelectualidade produzida no campo do saber da filosofia e do pensamento de negras/os sem o entendimento dessa cosmologia africana que atravessa a condição de ser e estar.

 Pode-se dizer que a produção de conhecimento institucionalizada no campo acadêmico no país está em dívida com a filosofia e o pensamento de negras/os. Essa lacuna vem sendo arrastada pelo processo de colonização que buscou dizimar a filosofia, a cultura, a arte e o conhecimento africanos. Esse apagamento atuou principalmente sobre as narrativas negras que poderiam espelhar nossa pertença histórica, nossa raiz identitária e nosso ethos de poder.

Assimila-se por meio do diálogo com a Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum (2023) que nossa intelectualidade é produzida por modos próprios da vivência africana. Na descrição dessa entrevista, podemos perceber que essa vivência está alicerçada, organizada e fundamentada no espaço Sagrado do terreiro.

A partir desse ethos de interação e sustentação cosmológica que entrecruza a vida dos/as estudiosos/as, pesquisadores/as e intelectuais de Matriz Africana, denota-se que a ancestralidade atua em todos os níveis da nossa existência. Por essa razão, pensar é parte significativa do Nosso Ori. E o Ori é conduzido, dirigido e guiado por um/a Orixá, que é a força/energia vital que sustenta a nossa ancestralidade.

 

Referências

 

ALMEIDA, Eliane. A pedagogia cosmocena e a afrocentricidade nos terreiros de  Matriz Africana. Porto Alegre: Editora Nika, 2019.

 

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

 

CUNHA, Janine Nina Fola. Corpo – Terreiro: como podem se verificar as categorias ocidentalizadas de gênero, sexualidade e hierarquias neste contexto. Letra Magna: Revista de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Linguística e Literatura, Cubatão, v. 26, n. 16, p. 144-233, jun. 2020. Semestral. ISSN 1807-5193. Disponível em: https://ojs.ifsp.edu.br/index.php/magna/issue/view/163/215. Acesso em: 27 mar. 2024.

 

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. [S. l.: s. n.], 1998. Disponível em: https://www.nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfisica_do_Poder_-_Michel_Foulcault.pdf .  Acesso em: 11 nov. 2022.

 

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. [S. l.]: Ciberfil, 2002. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/2520353/Michel-Foucault-A-Ordem-do-Discurso. Acesso em: 13 set. 2023.

 

IYAGUÑA, Dalzira Maria Aparecida [Dalzira Maria Aparecida Iyaguña de Ogum]. [Entrevista cedida a] Basualdo Irineu dos Reis Gomes; Letícia de Assis; Roselaine Dias da Silva e Sandra Tanhote. Curitiba, maio 2023.

 

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[1] Alguns termos sagrados das religiões de matrizes africanas estão grafados com inicial maiúscula para respeitar sua importância.

[2] Os pronomes relativos à Yalorixá estão grafados em maiúsculo em sinal de respeito à sua posição hierárquica.

[3] As Iyalorixás também são chamadas de Iyas ou Yabás. De acordo com Almeida (2019), são termos designados às representações femininas dos espaços de religião africana. O equivalente masculino seria Babalorixás ou Babás.

[4] A grafia de Matriz Africana em maiúsculas segue a grafia estabelecida por Almeida (2019), como forma de ressaltar a importância desse campo de conhecimento.

[5] Expressão da ritualística de Matriz Africana que orienta o poder e a hierarquia de uma Iyalorixá ou Babalorixá sobre a pessoa iniciada na religião, que por questões éticas, como nos ensina Eliane Almeida (2019), não será aprofundada neste texto.

[6] Yorubá constitui um dos grupos linguísticos da África Ocidental, com mais de 30 milhões de pessoas na região. Trata-se do segundo maior grupo étnico da Nigéria (Almeida, 2019, p. 56).

 



[i] Artigo recebido em 15/09/2023

 Artigo aprovado em 07/05/2024