e-ISSN 1984-7246
“Vocês vão me escutar, vão me
entender”: o itinerário intelectual e político de Diva Moreira
Arlene
Martinez Ricoldi*
Universidade Federal do ABC (UFABC)
Santo André – SP, Brasil
lattes.cnpq.br/1121005283262069
Isabela
Pereira de Sena **
Universidade Federal do ABC (UFABC)
Santo André – SP, Brasil
lattes.cnpq.br/6444957869707286
“Vocês vão me escutar, vão me
entender”: o itinerário intelectual e político de Diva Moreira
Resumo
Neste artigo apresentamos o itinerário da socióloga
e ativista negra Diva Moreira, especificamente a forma como ela articulou as
discussões de raça, gênero e classe em sua atuação política. O artigo se insere
no campo da História dos Intelectuais e do Feminismo Negro, entendendo Diva
Moreira como intelectual negra responsável pela difusão de ideias e discussões
voltadas para a luta antirracista. Como fontes primárias, foram utilizadas
entrevistas concedidas ao Museu da Pessoa (2005), CPDOC-FGV (2007) e à Fundação
João Pinheiro (2021). Como fontes secundárias, os relatórios produzidos pelo
Serviço Nacional de Informação (SIAN). A trajetória da ativista exemplifica a
produção político-cultural a partir da margem de ativistas negras, ampliando
nosso entendimento sobre a atuação política dessas mulheres.
Palavras-chave: mulheres negras;
movimento negro; história dos intelectuais.
"You'll hear me and you'll understand me": the political and
intellectual journey of Diva Moreira
Abstract
In this article we will delve
into the jouney of sociologist and black activist Diva Moreira, specifically on
the way she articulates discussions of race, gender and class in her own
political action. The article is a part of the field of Intellectual History
and Feminism, understanding Diva Moreira as a black intellectual who was
responsible for the diffusion of ideas and debates about anti-racist struggles.
As primary sources, interviews were granted by Museu da Pessoa (2005),
CPDOC-FGV (2007), and Fundação João Pinheiro (2021). As secondary sources, the
reports of the National Information Service (SIAN). This activist's history
sets an example for the political and cultural production from the margin of
black women, broadening our understanding of these women and their political
action.
Keywords: black women; black movement; intellectual history.
___________________________
Contribuições de
autoria
* conceituação, visualização, escrita - rascunho
original e escrita - análise e edição.
** conceituação, visualização, escrita - rascunho
original e escrita - análise e edição.
1 Introdução
A fala que serve
como título deste artigo foi utilizada por Diva Moreira para exemplificar as
atividades realizadas na Casa Dandara, em Belo Horizonte. Em 1988, na época em
que a casa foi fundada, a discussão racial ganhava terreno na esfera pública
brasileira, impulsionada por ativistas, intelectuais e artistas negros que
ousaram romper o silêncio imposto pela ordem dominante.
O objetivo deste
artigo é analisar o itinerário político de Diva Moreira, socióloga e ativista
negra, em particular a forma como ela articulou a questão racial e de gênero às
suas experiências políticas. As experiências de Diva são consideradas
ilustrativas tanto da pluralidade de sujeitos que compõem o feminismo negro,
quanto dos vínculos que as ativistas negras estabeleceram com uma diversidade
de movimentos e organizações além dos movimentos feminista e negro. O artigo se
insere no campo da História dos Intelectuais, que se consolidou a partir da
década de 1970, impulsionado pelas discussões desenvolvidas pela História
Política e do feminismo negro.
Optamos pela
observação do itinerário político e intelectual de Diva Moreira, ferramenta
teórico-metodológica da história dos intelectuais que busca reconstituir suas
biografias inseridas no contexto social e político. Privilegiamos uma concepção
de intelectuais que engloba aqueles situados nas margens, atuando como “despertadores”
e mediadores (Zanotto, 2008). Como fontes primárias foram utilizadas as
entrevistas concedidas por Diva Moreira ao Museu da Pessoa (2005), ao CPDOC-FGV
(2007) e à Fundação João Pinheiro (2021). Como fontes secundárias, os
relatórios produzidos pelo Serviço Nacional de Informação, disponíveis no
Sistema de Informação do Arquivo Nacional (SIAN).
O feminismo negro
brasileiro tem sua origem nas organizações e coletivos de mulheres negras no
fim dos anos 1970, se consolidando ao longo das décadas de 1980 e 1990, tendo
como principal pauta a luta por melhores condições de vida, bem como a
constituição de um sujeito político autônomo (Moreira, 2018). No entanto, tanto
as origens do movimento quanto a adoção do termo feminismo para definir as
próprias ações são temas de discussões e disputas entre o conjunto de mulheres
que compõem o feminismo negro e o movimento de mulheres negras brasileiras.
Cláudia Pons
Cardoso (2012) aponta que o feminismo negro surge não apenas dos tensionamentos
nos movimentos feminista e negro, mas da consolidação da consciência política
das mulheres negras a partir de suas experiências em movimentos sociais
diversos e da necessidade de constituir espaços autônomos para defender suas
reivindicações. Os estudos sobre a participação política das mulheres negras
focam, majoritariamente, no momento de emergência do movimento de mulheres
negras, na década de 1980, e no seu desenvolvimento.
Embora seja
possível observar um crescimento das pesquisas sobre mulheres negras, ainda
existem lacunas sobre suas trajetórias intelectuais e políticas (Rodrigues,
Freitas, 2021; Silva, 2019). Considerando essas lacunas, o artigo visa
contribuir para a ampliação do conhecimento sobre as experiências históricas
das mulheres negras brasileiras, especialmente aquelas relacionadas ao ativismo
político.
2 História política e história dos intelectuais: especificidade
das intelectuais negras
A consolidação da
história como disciplina autônoma e científica se deu no decorrer do século
XIX, estabelecendo técnicas e métodos que orientassem a prática dos
historiadores. Nesse período, a História Política prevaleceu, centralizando
narrativas acerca do Estado-Nação, de eventos militares e das biografias dos
“grandes homens”. No Brasil, a adoção desse modelo esteve intimamente ligada à
construção de uma história e de identidades nacionais inspiradas nas
representações europeias (Medeiros, 2017).
Com a emergência da
Escola dos Annales, a partir de 1929, essa abordagem foi criticada,
dando lugar para o estudo das mentalidades e da história social, que
enfatizavam experiências e processos sócio-históricos coletivos, o que resultou
em uma mudança radical na forma como se entendia e se fazia história (Zanotto,
2008). As contribuições dos pesquisadores da Escola dos Annales possibilitaram
o estudo de grupos e sujeitos até então excluídos das narrativas históricas,
entre eles as mulheres.
Com a emergência do
movimento feminista, pesquisadoras se dedicaram a denunciar e enfrentar a
invisibilidade feminina na historiografia, principalmente no campo da História
das Mulheres (Santos, 2016; Scott, 1995). Entretanto, essa invisibilidade
assume um caráter diferente quando se trata de mulheres negras, uma vez que
permanece mesmo nas produções historiográficas sobre as mulheres, que tendem a
assumir as experiências e trajetórias de mulheres brancas como universais
(Santos, 2016).
Na década de 1970
houve uma renovação da história política, ligada à expansão da ação do Estado
na vida social. No contexto brasileiro, o deslocamento do olhar dos
historiadores para os movimentos sociais e a cultura, bem como a inserção de
sujeitos historicamente marginalizados na universidade – tendo em vista a
significativa entrada de estudantes negros nas universidades na década de 1970
(Ratts, 2021), processo que se intensificou após a implementação das políticas
afirmativas –, favoreceram o crescimento de pesquisas no campo da história
política. Essa abordagem, no entanto, se distanciou das concepções tradicionais
positivistas, mantendo uma posição interdisciplinar. Segundo Medeiros (2017, p.
264),
A
apropriação dos conceitos marxistas, quer oriundos de Gramsci (hegemonia, bloco
histórico, Estado ampliado, intelectuais tradicionais e orgânicos), quer de
Althusser (autonomia relativa, sobredeterminação, aparelhos ideológicos de
Estado), bem como a incorporação de noções gestadas, sobretudo, na Antropologia
e na Filosofia, permitiram a transformação da história política, que não mais
se identifica com a concepção tradicional de poder, essencialmente repressor.
A renovação da
disciplina permitiu novas abordagens em relação à história intelectual e à
história dos intelectuais, abarcando os movimentos coletivos, as redes de
sociabilidade, o trânsito de ideias, o imaginário e a ação política (Zanotto,
2008). Assim, foi possível pensar os intelectuais como sujeitos inseridos em
seus contextos sociais e capazes de agir sobre eles através da criação e
mediação de ideias. Apesar da fluidez do termo “intelectual”, duas definições
norteiam a história intelectual: a primeira engloba os criadores e mediadores
culturais (cientistas, escritores, jornalistas, professores) e a segunda
considera a noção de engajamento na vida social (Zanotto, 2008). Não são
definições excludentes, uma vez que é sua “especialização” que confere ao intelectual
os meios para intervir na sociedade (Sirinelli, 2003).
No caso das
mulheres negras é necessário considerar que, historicamente, esses sujeitos
foram excluídos dos espaços de produção de conhecimento institucionais
(Collins, 2019). Portanto, sua produção intelectual frequentemente se dá em
espaços e formatos alternativos, o que dificulta a sua identificação como
intelectuais. A fala de Diva Moreira sobre as negociações realizadas para
viabilizar a Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra ilustra os
obstáculos enfrentados pelas mulheres negras que se inserem no campo político e
intelectual.
Foi um
negócio impressionante. Agora, eles se depararam com uma pessoa com quem eles
nunca tinham se deparado na vida: uma intelectual negra. Entendeu? Então eu
chegava com a maior paciência também, não chegava esnobando, senão perdia os
caras na hora (MOREIRA, 2007, p. 57).
No que se refere à
produção de conhecimento e sua inserção nas universidades e instituições de
pesquisa, as mulheres negras intelectuais ainda se encontram em uma posição
marginalizada. De acordo com Ana Rita Santiago (2017), essa marginalidade pode
ser identificada pelo fato de suas obras e pesquisas não serem abarcadas pelo
mercado editorial, por projetos de publicações em instituições acadêmicas ou
mesmo programas dos cursos de graduação e pós-graduação. A marginalização é
perpetuada a partir de práticas e representações que caracterizam as mulheres
negras como “corpos sem mente”, inaptas para o trabalho intelectual (hooks, 1995).
A renovação da
história política acompanhou a valorização da história do tempo presente e seu
vínculo com a memória. Desde a segunda metade do século XX, a memória – tanto
individual quanto coletiva – tem sido objeto de estudo em diversas áreas do conhecimento.
Nas Ciências Sociais, as obras do sociólogo Maurice Halbwachs, Os quadros
sociais da memória (1925) e A memória coletiva (publicação póstuma,
1950) são consideradas referências pioneiras e fundamentais para o estudo da
memória enquanto fenômeno social.
Na perspectiva de
Halbwachs, a memória é resultado de um processo coletivo de reconhecimento e
reconstrução a partir das relações que os membros de um grupo estabelecem para
si, em um trabalho constante de seleção e organização de lembranças em quadros
sociais comuns (Schmidt; Mahfoud, 1993). É no interior do grupo, na sociedade,
nas famílias, que a imagem rememorada se torna lembrança viva. Dessa forma, a
memória coletiva seria um conjunto de lembranças, imagens e narrativas
socialmente enquadradas pelos membros de um grupo, sendo a memória individual
um fragmento desse conjunto, “o ponto de encontro dos tempos coletivos”
(Halbwachs, 1990).
A memória nacional
era entendida por Halbwachs como a forma mais completa de memória coletiva,
garantindo referenciais compartilhados estáveis e contínuos, fortalecendo o
sentimento de coerência e pertencimento (Pollak, 1989). No entanto, estudos
posteriores, ao se debruçarem sobre grupos marginalizados, apontam para o
caráter destruidor, uniformizador e repressor da memória nacional, destacando
os conflitos e disputas entre diferentes grupos sociais (Pollak, 1989). Nessa
perspectiva, as fontes orais ganharam destaque nas pesquisas históricas, uma
vez que:
O testemunho
oral tem sido amplamente discutido como fonte de informação sobre eventos
históricos. Ele pode ser encarado como um evento em si mesmo e, como tal,
submetido a uma análise independente que permita recuperar não apenas os
aspectos materiais do sucedido como também a atitude do narrador em relação a eventos,
à subjetividade, à imaginação e ao desejo, que cada indivíduo investe em
relação com a história (Portelli, 1993, p. 41).
Ao se dedicar ao
estudo das memórias individuais, Alessandro Portelli (1988) aponta para a
existência de “memórias divididas”, criadas e preservadas por indivíduos e que
destoam das narrativas oficiais. O autor propõe um olhar crítico para as
experiências singulares e as diferentes formas como as pessoas as representam,
buscando compreender os significados históricos e subjetivos atribuídos pelos
sujeitos:
quando
falamos numa memória dividida, não se deve pensar apenas num conflito entre a
memória comunitária pura e espontânea e aquela “oficial” e “ideológica”, de
forma que, uma vez desmontada esta última, se possa implicitamente assumir a
autenticidade não-mediada da primeira. Na verdade, estamos lidando com uma
multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas, todas, de uma
forma ou de outra, ideológica e culturalmente mediada (Portelli, 1988, p. 4).
As memórias
individuais podem ser entendidas como fontes históricas válidas, que apontam
para a multiplicidade de estratégias, representações e significados que os
indivíduos atribuem às experiências individuais e coletivas. No caso das
mulheres negras brasileiras, essas narrativas revelam experiências e pontos de
vista frequentemente silenciados na esfera pública.
Atualmente, o
feminismo negro tem ganhado um relativo destaque nas produções acadêmicas
brasileiras e na esfera pública; no entanto, as pesquisas sobre o ativismo das
feministas negras ainda são raras (Rodrigues; Freitas, 2021). Nesse sentido,
recuperar e interpretar os itinerários das mulheres negras e suas produções
intelectuais nos diversos campos de conhecimento constitui uma dimensão
importante para o desenvolvimento do pensamento feminista negro, entendido como
conhecimento produzido por e para mulheres negras a partir da reflexão crítica
de suas experiências (Collins, 2019).
As experiências das
mulheres negras enquanto mulheres – em uma sociedade patriarcal – e negras – em
uma sociedade racista – não são apartadas e determinam quais são os lugares
sociais que ocupam, quais atividades econômicas exercem, como são vistas pela
sociedade e como percebem o mundo (Collins, 2019). À raça e ao gênero, também
estão articulados outros eixos de opressão, como classe, sexualidade,
território e nacionalidade, vistos pelas feministas negras como produtores
simultâneos de realidades marcadas pela desigualdade, exploração e dominação.
Soma-se a isso a
especificidade do racismo brasileiro, definido por Lélia Gonzalez (2020) como
racismo por denegação, que, partindo da ideologia do branqueamento, nega a
presença e as experiências da população negra no processo de formação histórica
e social da nação brasileira. Assim, as evidências da presença negra são
recalcadas, caracterizadas como “cultura popular” ou “folclore nacional”
(Gonzalez, 2020, p. 128).
Inserida nessas
dinâmicas de poder, a elaboração das narrativas sobre o passado, bem como os
significados que damos a elas, são perpassados por estereótipos que reduzem as
experiências dessas mulheres. Para Patricia Hill Collins (2019), as condições
históricas das mulheres negras deram origem a um tipo específico de
representação sobre elas, chamado “Imagens de Controle”. Essas “imagens” são
representações estereotipadas e negativas que incidem sobre as mulheres negras
e a sociedade em geral, criando um ideal negativo e normativo que perpetua as
relações de dominação.
Entende-se,
portanto, que a representação das mulheres negras é marcada pelo atravessamento
de eixos de opressão tais como raça, gênero, sexualidade e classe e por
experiências como a escravidão, a marginalização, a discriminação e a solidão.
Essa dinâmica de dominação não seria possível sem uma justificativa ideológica,
que naturaliza as desigualdades e a desvalorização dessas mulheres (Collins,
2019). O direito de atribuir valores e definições a si, aos outros e ao mundo é
essencial para a manutenção e exercício do poder e permite que os grupos
dominantes distorçam e fabriquem imagens – previamente existentes ou não –
sobre os grupos dominados, de tal forma que as desigualdades sejam vistas como
naturais e inevitáveis.
Lélia Gonzalez
(2020) afirma que as mulheres negras brasileiras aparecem nas narrativas
sociais e históricas a partir de duas imagens: a mãe preta e a mucama
(mulata/doméstica). Essas representações aludem aos papéis e funções que
desempenham na sociedade brasileira desde o período da escravidão, associados à
exploração do trabalho reprodutivo e de cuidado e à exploração sexual.
As relações de
poder que perpassam a vida das mulheres negras impactam diretamente tanto na
forma como elas foram e ainda são representadas, quanto nas possibilidades de
elas atuarem como sujeitos e narradoras de suas histórias. No entanto, seria um
erro pensar que são passivas diante da violência e opressão. Segundo Collins
(2019), as experiências pessoais e coletivas das mulheres negras contradizem as
representações hegemônicas, o que as leva a desenvolver um ponto de vista específico
sobre si mesmas e o mundo. Ao recusarem as representações racistas e sexistas
que naturalizam e justificam sua subalternização, elas criam novas definições
para si, através do ato da autodefinição, reivindicando e reafirmando sua
humanidade (Collins, 2019).
Parte do processo
de autodefinição das mulheres negras passa por ressignificar as narrativas e
representações sobre o passado. Nesse sentido, os esforços em produzir,
difundir e valorizar narrativas próprias sobre sua história podem ser
considerados estratégias para o enfrentamento à aniquilação racista e
heterossexista. Ao colocar no centro deste trabalho as narrativas produzidas
por Diva Moreira, buscamos inserir as representações autodefinidas produzidas
pelas mulheres negras no campo da história política. A reconstrução da
trajetória de Diva oferece, portanto, duas implicações: a primeira é a
ampliação do conhecimento sobre as experiências históricas durante a Ditadura
Militar e a redemocratização; a segunda é situar as mulheres negras neste processo,
inseridas em uma complexa rede política e intelectual que envolveu a circulação
de ideias e práticas entre diferentes grupos sociais.
3 Itinerário de Diva Moreira
Diva Moreira
nasceu dia 8 de junho de 1946, em Bocaiuva-MG. Desde a década de 1960, participou
de diversos movimentos sociais, em Belo Horizonte e Sabará, município onde
reside atualmente. Atuou no Partido Comunista Brasileiro entre 1968 e 1987,
quando se afastou para fundar a Casa Dandara: projeto de cidadania do povo
negro, entidade vinculada ao Movimento Negro. A experiência de Diva está
inserida em um contexto de emergência de novos espaços e práticas políticas,
que possibilitaram a constituição de sujeitos coletivos descentralizados,
frutos das interações sociais, estratégicas e de processos de reconhecimento
que buscavam expressar (Sader, 1988).
Em 1950, Diva se
mudou com a mãe, Maria Moreira, para Belo Horizonte. Maria trabalhava como
empregada doméstica em uma pensão em Bocaiuva e a decisão de se mudar para Belo
Horizonte foi motivada pelo desejo de proporcionar melhores oportunidades e
condições de vida para a filha, Diva. A mudança significou uma separação da
família, sem casa própria e residindo no trabalho, Maria não pôde permanecer
com os três filhos, vistos pelos patrões como “uma boca a mais” (Moreira, 2007,
p. 8). As dificuldades enfrentadas por Maria, viúva e mãe, são percebidas por
Diva como experiências comuns às mulheres negras:
Qual
trabalho uma mulher negra e analfabeta tinha naquele período? Era só trabalho
braçal, doméstico, prestação de serviços para uma família branca. Era sempre
assim: os patrões brancos, as patroas brancas e as empregadas negras (Moreira;
Nogueira; Martins, 2021, p. 297).
Segundo Lélia
Gonzalez (2020), o termo “doméstica” abrange uma variada gama de atividades
desempenhadas pelas mulheres negras no setor de serviços e representa o “lugar
natural” dessas mulheres na sociedade brasileira. Os baixos índices de
escolaridade e a exigência da “boa aparência” como critério para ocupar
determinadas posições são apontados pela autora como fatores que perpetuam essa
realidade (2020). Diva relata que, ainda criança, era esperado que ela
desempenhasse parte do serviço doméstico em detrimento de sua educação:
É
engraçado, há poucos anos atrás eu me dei conta: eu fui trabalhadora infantil,
por que não? Eu era empregada doméstica também, apesar de não ter nenhum
vínculo formal. Mas eu fui empregada doméstica quando era criança. A gente
tinha que varrer, tinha arrumar a cama, tinha que fazer um tanto de tarefas domésticas.
Porque como o serviço para minha mãe era muito, elas naturalizavam aquilo: “Mas
sua filha pode ajudar” (Moreira, 2007, p. 18).
Porque
nesta casa eles queriam que eu fosse babá dos bebês que estavam nascendo na
família, e eles achavam, eu me lembro assim, como se fosse hoje: “Não, negro
não precisa estudar, até o quarto ano está bom”. Então eles não queriam que eu
estudasse depois da quarta série primária. E minha mãe não, ela fazia todo o
serviço para que eu tivesse o tempo para estudar. Então foi uma sobrecarga
muito grande para ela. Mas valeu a pena para nós duas (Moreira, 2005).
A “consciência
racial” é atribuída ao saber-se negra e reconhecer a discriminação. Não é uma
percepção politizada (no sentido, atribuído por ela, de reconhecer a injustiça
da discriminação e atuar politicamente com o objetivo de promover mudanças),
mas há um reconhecimento das relações como racialmente mediadas num período em
que o mito da democracia racial imperava. Essa percepção é relacionada à
experiência pessoal, à observação do mundo ao seu redor:
tinha as
rodas na hora do recreio, eles colocavam as crianças de mãos dadas e tinha as
brincadeiras na hora do recreio. E do meu lado tinha um gurizinho branco,
também de classe média, esse guri, eu lembro dessa família, família importante
aqui em Belo Horizonte, aí, quando eu fui pegar na mão dele, ele não quis
segurar na mão de uma criança negra. Aí a roda não rodou. E aí, todo mundo
esperando, aquilo foi uma humilhação para mim, uma humilhação terrível, a roda
não ter girado e todas as crianças olhando, e ele lá do meu lado e eu lá com a
mão que se estendeu inutilmente. Então aquilo, porque foi uma coisa pública,
notória, eu tenho a menor ideia… (Moreira, 2007, p. 12).
A escola é tanto
um espaço de violência racial, quanto de inserção na vida política. Suas
primeiras experiências políticas se dão no grêmio estudantil do Colégio
Estadual de Minas Gerais. Localizado em uma confluência de bairros nobres da
capital mineira, o colégio é conhecido pela excelência acadêmica e pelo
incentivo ao exercício da liberdade, mesmo após o golpe de 1964 (Teixeira,
2011).
Olha,
primeiro eu fui do movimento estudantil, então eu tenho uma história de
movimento social bem jovenzinha, porque fui para… Já era ditadura. A ditadura
entrou em 64, em 64 eu acho que eu já tinha me formado no ginásio. Aí a gente
já fazia parte, já tinha se formado no ginásio, porque em 67 eu estava na
universidade. Então a gente, quando eu estava no ginásio ainda, nós fazíamos
parte de movimento estudantil, e questionando as regras da escola. Sabe aquela
coisa assim, de subversão, de você não aceitar a autoridade? Eu me recordo que
não podia entrar de calça comprida, sabe? (Moreira, 2005).
Apesar da
importância do movimento estudantil no início de sua trajetória política, é no
movimento jovem ligado à Igreja Católica que Diva consolida sua visão política,
intimamente relacionada ao catolicismo e ao marxismo.
Agora,
aconteceu um negócio fantástico quando eu fui morar neste cortiço, porque o
cortiço era perto do convento dos dominicanos. E nesta ocasião o convento dos
dominicanos era um centro de discussão política e de teologia de libertação.
Não tinha esse nome não, mas era uma teologia progressista. Os padres engajados
nos movimentos sociais... tinha um fervedouro naquela época no convento dos
dominicanos. A primeira vez que eu ouvi o nome Karl Marx foi no convento dos
dominicanos, numa palestra sobre marxismo no convento dos dominicanos. Então
aquilo foi, assim, um achado para mim. E eu comecei a participar do movimento
jovem ligado à Igreja Católica (Moreira, 2007, p. 21).
A aproximação da
Igreja Católica com os movimentos populares se deu na década de 1950, período
em que a instituição perdia espaço entre a população. Embora tenha mantido sua
estrutura hierárquica, há um movimento de aproximação entre os grupos de leigos
com grupos ligados às lutas populares que paulatinamente assumiram uma postura
contestatória. Essa postura se intensificou após o golpe militar em 1964,
estimulada pelos encaminhamentos do Concílio Vaticano II, provocando uma
transformação na organização das paróquias e no papel assumido pelos sacerdotes
(Sader, 2007).
A Igreja aparece
com frequência na fala de Diva Moreira, embora ela diferencie o catolicismo
solidário (pautado na solidariedade e tolerância e na indignação perante a
injustiça) e o catolicismo formalista (violento e vigilante, controlador,
preconceituoso), este último associado às patroas de sua mãe. O Convento dos
Dominicanos é entendido como um espaço de conscientização, conhecimento e
mobilização política, bem como de acolhimento diante das limitações materiais
(lugar para estudar, fugir da pobreza do cortiço, do barraco). A experiência
religiosa também é mediadora de laços afetivos e de solidariedade. Não é, no
entanto, um espaço onde a questão racial emerge.
Não, eu
acho que nunca passou por nenhum amigo meu, por nenhuma amiga minha, que essa
questão existisse: no Partido Comunista, nada; na Igreja Católica, nada: éramos
todos filhos de Deus na Igreja Católica. No movimento estudantil, nos
movimentos de esquerda, essa questão não emergiu. Essa questão sequer poderia
ter sido chamada na época de epifenômeno, de uma questão de superestrutura,
porque essa questão não existia. Não existia, era a invisibilidade total e
absoluta da questão racial naquela época (Moreira, 2007, p. 30).
Em 1968, a
ativista ingressou no Partido Comunista Brasileiro. Nesse período, Diva se muda
para São Paulo, onde se envolve mais intensamente com as atividades
desenvolvidas pelo PCB. A estadia foi breve: Diva decide retornar para Belo
Horizonte após a prisão de Antônio Ribeiro Pena, com quem residia na capital. O
retorno para Minas Gerais foi motivado tanto pelo medo da repressão do regime
militar, quanto pela possibilidade de continuar os estudos.
A análise dos
relatórios produzidos pelo Serviço Nacional de Informação, disponíveis no
Sistema de Informação do Arquivo Nacional (SIAN) demonstram que, uma vez em
Belo Horizonte, a ativista se envolveu com diversas atividades relacionadas à
reorganização PCB no estado de Minas Gerais, sendo frequentemente citada como
membro do seu comitê municipal de Belo Horizonte.
Embora Diva
enfatize que a questão racial não se apresentava como uma preocupação política,
ela tinha conhecimento das lutas pelos direitos civis nos EUA e pela
independência dos países africanos; no entanto, essa questão é vista como
estrangeira:
É claro:
“Graças a Deus a gente não está lá!” Essas informações, eu era uma pessoa muito
bem informada porque eu estava no movimento político e no movimento social.
Então essas informações… além disso, naquela época eu assistia um pouco de
televisão. Hoje zero de televisão. Mas
naquela época eu assistia um pouco de televisão. Então a gente estava
acompanhando, seguramente… não me recordo se os estudantes realizaram algum
protesto pela morte do Luther King. Não me recordo de nada disso, mas a gente
sabia, estava acompanhando sensibilizada a questão racial nos Estados Unidos.
Mas aqui era outra coisa (Moreira, 2007, p. 33).
A interpretação do
racismo como um problema estrangeiro vigorou nos movimentos de esquerda do
período. Apesar das manifestações de solidariedade às diversas lutas
empreendidas por grupos racialmente politizados em outros países, no Brasil, o
discurso da democracia racial tinha uma influência significativa na identidade
da sociedade brasileira, sendo parte da ideologia do Estado o que significa que
falar sobre racismo era considerado subversivo.
Apesar disso, é
importante destacar a existência de organizações negras desde o início da
República, como é o caso da Frente Negra Brasileira – FNB, fundada em 1931, que
se tornou um partido político em 1936, sendo, segundo Petrônio Domingues (2007)
uma das “primeiras organizações negras com reivindicações políticas mais
deliberadas” (p. 106). Outro exemplo é o Teatro Experimental do Negro – TEN,
fundado em 1944. O TEN se formou, a princípio, como um grupo teatral composto exclusivamente
por atores negros, mas paulatinamente adquiriu um caráter político mais amplo.
Em defesa dos direitos civis dos negros, o TEN foi responsável por trazer ao
Brasil as propostas do movimento da negritude francesa (Domingues,
2007). Em Belo Horizonte, as discussões sobre raça com que Diva tinha contato
eram vinculadas à Frente Negra Brasileira - FNB.
Mas o que
esse pessoal fazia era mais aquela preocupação em que os negros deveriam se
comportar bem, as meninas negras estudarem, se comportarem… Eu vi depois vários
materiais deles, recortes de jornal, faziam concursos de Miss, tinham encontros
sociais. Então era tudo aquilo que eu não gostava, que não tinha nada a ver
comigo. Mas mesmo isto, não chegou. Porque eram circuitos diferentes: o pessoal
morava no bairro Santa Efigênia, eu morava em outra região. Quer dizer, o meu
relacionamento, a minha vida social e política se dava noutros fóruns. Nos
quais a temática racial não chega nem sequer na porta (Moreira, 2007, p.
33-34).
Na década de 1970,
houve a emergência de grupos de pesquisa, entidades e coletivos voltados para a
questão racial, valorização e organização das populações negras organizados por
sujeitos que se inseriram nas universidades. Essa movimentação, concentrada em
cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, tinha – na percepção de Diva
– pouca penetração em Belo Horizonte.
Assim como para
outras ativistas como Lélia Gonzalez e Beatriz do Nascimento, o interesse pela
questão racial surge na universidade, por meio de discussões teóricas. Em 1972,
Diva inicia o mestrado em Ciência Política e passa a frequentar eventos,
palestras sobre o tema. É no mestrado o primeiro confronto com a identidade
negra, embora ainda não figure como uma questão central em sua atividade
política:
A questão
racial estava no porão, no porão da minha mente. E aí, alguma outra coisa que
aparecia, uma palestra, eu ia. Algum livro que caía na minha mão… […] mas eu
não me interessei, eu já devia estar, já estava com mil inserções aqui, então
eu não me interessei na questão racial. Mas aí, pouco depois, esteve, jovem
ainda, quem na Universidade para falar da pesquisa que estava realizando? Thomas
Skidmore é convidado para fazer uma palestra para falar da pesquisa que derivou
no livro Preto no Branco. Então, a partir da ciência política, meu interesse
teórico pela questão aumenta (Moreira, 2007, p. 31-32).
A questão racial
estava adormecida ou fora tornada invisível pelo discurso dominante? Diva tem
uma percepção da discriminação racial desde criança. A princípio, ela se dá em
relação às suas experiências escolares e cotidianas, quando separa lugar de
branco (a pensão, classe média) e os lugares de negros. Em relação à
experiência com as patroas de sua mãe, raça, gênero e classe se mesclam:
trabalho infantil, abuso sexual, restrição dos estudos, falta de autonomia e
privacidade. Suas experiências explicitam o racismo “à brasileira” (Gonzalez,
2020), ao mesmo tempo em que os sujeitos e espaços nos quais estava inserida
negligenciam esse aspecto.
A geração de
intelectuais negras da década de 1980 questionou na esfera pública a ideia
dominante de que o Brasil não era um país racista. O contato com as discussões
do movimento negro se deu através de Lélia Gonzalez. Lélia foi uma militante
importante para a reorganização do movimento negro durante a década de 1970,
sendo uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, em 1978. No decorrer de
sua trajetória política e intelectual, produziu análises aprofundadas sobre o
racismo no Brasil e sobre o impacto da articulação entre raça, gênero e classe
social na vida das mulheres negras brasileiras.
Em 1985, Diva
recebeu um convite de Lélia para falar na III Conferência Mundial sobre a
Mulher, em Nairóbi. Nessa época, trabalhava como pesquisadora na Fundação João
Pinheiro, instituição de pesquisa e ensino criada em 1969, ligada à Secretaria
de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais. Na Fundação, Diva entrou em
contato com ativistas proeminentes do movimento negro, passando a ter um
contato maior com as discussões sobre raça e gênero desenvolvidas pelos movimentos
negro e feminista. Na Fundação, Diva foi responsável pela produção do
documentário Dandara, mulher negra (1985).
Sua aproximação
com o movimento feminista se deu na época da campanha Quem Ama Não Mata. Em
1971, Jô Souza Lima, filha do prefeito de Belo Horizonte foi assassinada pelo
marido, Roberto Lobato. Na época, Roberto foi absolvido após a defesa alegar
legítima defesa. Em uma entrevista concedida à historiadora Tauana Silva
(2014), Diva aponta esse episódio como estopim para o seu envolvimento com o
feminismo. A absolvição de Roberto gerou revolta entre mulheres ligadas ao
movimento feminista, que lançaram a campanha que se tornou nacional.
Apesar do
estabelecimento de uma rede de contatos com militantes negros, foi a leitura de
A integração do negro na sociedade de classes (1964), de
Florestan Fernandes, o “estalo” para seu envolvimento com a luta antirracista:
Um dia eu
estava lendo um livro de Florestan Fernandes: “A Integração dos Negros na
Sociedade de Classes”, e neste livro ele falava assim: que a população negra,
na fase pós-abolição, teve muita dificuldade de constituir entidades, organizações
sólidas, as organizações começavam e paravam, não tinham continuidade, as
entidades. E não faltavam recursos financeiros, recursos humanos, faltava sede
própria. Aí eu me dei conta de que eu tinha mais de 40 anos e que eu tinha
tido... Como é? Inserções, e lutado em várias áreas no país, dado a minha
contribuição. Eu esqueci de falar que eu participei do movimento feminista,
também. E eu pensei: “Poxa, eu que desde menor de idade estou aqui nesse país
buscando construir uma vida melhor para o seu povo e ainda não fiz nada para o
meu próprio povo, a população negra.” E, com base neste livro eu pensei: “Mas
quem sabe a gente constrói uma entidade diferente, que possa ter continuidade,
uma entidade sólida e tal...” Foi aí que eu fui procurar outras pessoas negras
para criarem, comigo, a Casa Dandara, cujo subtítulo era: “Projeto de Cidadania
do Povo Negro” (Moreira, 2005).
O desejo de “fazer
algo pelo meu povo” é o principal motivo apontado por Diva para a fundação da
Casa Dandara e, consequentemente, para seu desligamento tanto da fundação
quanto do PCB. O reconhecimento do “povo negro” como “seu povo” é percebido
pela ativista como resultado de um processo contínuo, de suas experiências em
Nairóbi, na elaboração de eventos e materiais na Fundação João Pinheiro e,
principalmente, na leitura de textos teóricos. Dessa forma, apesar de sua
inserção nos movimentos de base, na Igreja e no Partido Comunista, esses não
são “seu povo”.
Em 1988, Diva
Moreira se afastou do PCB para fundar a Casa Dandara: projeto de cidadania do
povo negro, espaço onde colocou em prática seus projetos de justiça social,
agora fortemente vinculados ao movimento antirracista. Como afirmamos, a
decisão é atribuída por Diva à experiência pessoal, vinculada ao amor aos
livros e à prática da leitura bem como sua atuação política e intelectual. No
entanto, a fundação da Casa Dandara pode ser entendida num contexto mais amplo,
principalmente quando consideramos o período em que foi criada.
O enfraquecimento
do Regime Militar, as eleições para deputados constituintes, a criação de
órgãos participativos fruto das demandas dos movimentos sociais, as marchas e
protestos antirracistas e feministas, possibilitaram um contexto propício para
a emergência e fortalecimento de coletivos autônomos de mulheres negras,
ampliando o debate sobre cidadania no Brasil. Foi nesse contexto que as
mulheres negras passaram a criar, difundir e reivindicar imagens alternativas
de feminilidade, questionando não só as imagens estereotipadas sobre mulheres
racializadas, mas também apresentando um contraponto às representações
conservadoras e patriarcais da “mulher ideal” (Rios, 2017).
O ano de 1988 foi
significativo para o fortalecimento do movimento de mulheres negras,
impulsionado pelas discussões acerca da atuação de ativistas negros na
Constituinte, as comemorações do Centenário da Abolição e a organização e
realização do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, evento que reuniu cerca
de 450 mulheres na cidade de Valença, Rio de Janeiro (Moreira, 2018).
Diva Moreira fez
parte desse processo que, na década de 1990, assumiu um caráter nacional. Já
atuando na Casa Dandara, produziu uma série de calendários que referenciavam a
história, a cultura e a estética negra. Ao falar da elaboração dos calendários,
Diva Moreira destaca que uma das motivações para sua confecção era apresentar
um repertório de imagens positivas para pessoas negras:
Os
calendários que existiam na época eram só crianças brancas com bichinhos,
bonecas brancas e tal. Então a ideia era você ter esse cuidado também em
apresentar uma estética negra, que na época era só negativa. A gente aparecia
nos cadernos policiais ou então nas imagens de pobreza de África, ou mesmo de
Vale de Jequitinhonha, de Nordeste brasileiro. Era sempre mau, crianças de pé
no chão, com o cabelo assanhado... Então a gente trabalhou muito essa questão
do cabelo, que é um problema entre as crianças negras, meninas negras e também
entre as mulheres negras. Aí, aquela preocupação com o cabelinho trançado, com
uma estética negra bonita, afirmativa, positiva, sem passar também aquela
imagem de que nós negros somos pobres, apenas, e sem passar aquela imagem da escravidão
(Moreira, 2007, p. 50).
Ela estabelece,
então, parcerias com outras ativistas e organizações de mulheres negras, como o
Geledés – Instituto da Mulher Negra, também criado em 1988. Entretanto, a
relação com outras organizações do movimento negro – especialmente o MNU – foi
conflituosa. Pautada em suas experiências anteriores com o PCB e o movimento da
juventude católica, Diva tece críticas em relação à atuação do movimento negro,
principalmente em relação ao público ao qual esse se dirige:
E uma outra
razão também pela qual eu não quis entrar no MNU é porque eu sonhava com uma
entidade que fosse realmente de base, que alfabetizasse os negros analfabetos,
porque eu tinha, eu vindo de uma família extremamente pobre, e além disso o
compromisso social colocado pela Igreja, pelo Partidão… Então não era pregar,
fazer a pregação racial, digamos, para um público escolarizado. Porque eu sabia
inclusive que era um público extremamente limitado (Moreira, 2007, p. 42).
Então eu
acabei tendo um contato que, ao longo dos anos, acabou se tornando “zero”, com
outras lideranças do movimento negro aqui de Belo Horizonte. Houve muita
competição e muita fofoca, muita calúnia. Aí eu falei: “Não. Eu não tenho idade
para isso. Eu não estou no movimento negro para competir com ninguém. Eu já
tenho o meu espaço, eu já tenho o meu nome, já tenho a minha trajetória, com
todo o movimento negro para conseguir brilhar...” Poxa, eu já tinha mais de 40
anos. Então acabei me distanciando, parei de ir às reuniões, eu achava as
reuniões cansativas, chatas. Então eu deixei de fazer parte do movimento negro.
Eu sou uma ativista negra. Isso ninguém vai roubar de mim. Isso é um
compromisso meu, a minha missão na vida. Mas eu não sou militante de nenhuma
entidade, fazem reuniões aí e não me sinto motivada a ir (Moreira, 2007, p.
51-52).
A experiência de
Diva na Casa Dandara requereu uma transformação na forma como ela entendia o
“fazer política”, aprendido no PCB e na Igreja Católica, bem como uma
acomodação das práticas antirracistas desenvolvidas por outros militantes
negros. Buscando atingir o “pessoal da base”, Diva organizou uma série de
seminários e rodas de conversa que passavam pela reconstrução da autoestima e
da tomada de voz da população negra em Belo Horizonte:
Eu pensava:
“Não, quem precisa desta palavra, quem tem que se organizar é o pessoal da
base, é o povo negro pobre”. Mas como falar da questão da negritude, da
identidade racial? Como falar de política? Porque ao lutar contra o racismo, a
gente está trabalhando com o tema de relações de poder. Nós vamos trabalhar com
um tema eminentemente político. Como abordar a questão política para a
população pobre? Eu pensei em combinar expressões culturais com a política.
Isso deu muito certo, foi muito interessante (Moreira, 2005).
“Trabalhar” com o
tema racial articulado com a ideologia marxista foi, portanto, um desafio. Na
fala de Diva, a raça aparece inevitavelmente articulada com a questão do poder,
o que não é o caso de outras lutas com as quais se envolveu, como o movimento
de bairro por infraestrutura, a organização contra o Regime Militar no PCB etc.
A questão racial apresentava uma especificidade e um obstáculo, principalmente
porque a discussão era (e ainda é) tabu em diversos espaços.
Nesse sentido, a
atuação na Casa Dandara parte da valorização da “tomada de voz”, da necessidade
de criar um espaço acolhedor, onde pessoas negras pudessem falar de suas vivências
sem medo de represálias e desqualificação. Além de palestras com intelectuais e
militantes proeminentes do movimento negro e feministas negras, como Abdias do
Nascimento e Sueli Carneiro, havia grupos de trabalho voltados para a troca em
nível local:
Então tinha
palestra depois o debate, e como a gente sabia que para muitas pessoas falar em
público era algo muito difícil, então tinha os trabalhos de grupo. Porque a
gente pensava assim: nos grupos as pessoas vão se abrir mais, elas vão ficar
mais à vontade para poder falar e exercer o direito à fala, poder se expressar.
É um passo fundamental na construção da cidadania, então tinha isso (Moreira,
2005).
A importância de
um espaço de fala e escuta é exemplificada por Diva com a fala de um dos
participantes das atividades da Casa:
Porque
quando eu falar que eu estou sendo discriminada, uma pessoa, branca, em geral,
fala: ‘Não, você está exagerando. O que é isso, não tem racismo no Brasil’. Mas
quando eu falo aqui, eu sei que vocês passam pela mesma situação, que vocês vão
acolher o meu lamento, o meu sofrimento, a minha fala. Vocês vão me escutar,
vão me entender. Então era incrível, eram verdadeiras terapias de grupo que
aconteciam nos dias de estudo. Muito impressionante (Moreira, 2005).
Dessa forma, era
possível articular os debates desenvolvidos no Brasil sobre o racismo, com as
experiências vividas pela população negra de Belo Horizonte, proporcionando um
espaço de troca e produção de conhecimento, bem como de estratégias para o
enfrentamento ao racismo. A realização dos grupos de discussão permitia o
desenvolvimento de um ponto de vista autodefinido, voltado para as necessidades
e demandas da população do local, prática que Collins (2019) identifica como
característica da atuação política e intelectual das mulheres negras.
Apesar de muitas
feministas negras terem iniciado suas atividades políticas no interior do
movimento negro, a sua consolidação foi marcada por denúncias do número
reduzido de mulheres negras em posições de liderança e deliberativas, bem como
da invisibilidade das pautas relacionadas à intersecção de gênero e raça
(Moreira, 2018). Além disso, atitudes e comportamentos sexistas dos militantes
negros acabavam por afastar as mulheres das organizações (Cardoso, 2012).
Embora não tenha sido uma organização declaradamente feminista, a Casa Dandara
se destaca tanto pela presença marcante de mulheres negras nos espaços
deliberativos e de liderança, como pelas atividades desempenhadas – voltadas
para o acolhimento de crianças, jovens e mães –, que garantiram um espaço onde
mulheres negras pudessem se formar e se fortalecer politicamente.
Na década de 1990,
sua atuação – assim como de outras ativistas negras – se aproxima do Estado. Em
1998, foi criada a primeira Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade
Negra, não sem resistência por parte dos políticos da região, que a viam como
desnecessária, uma vez que o racismo não era um “problema” em Belo Horizonte.
Nesse período, Diva se afasta das atividades da Casa Dandara que, por sua vez,
“vai minguando” até suas atividades serem encerradas, em 1998.
A trajetória de
Diva destoa das trajetórias mais comumente analisadas, uma vez que a ativista
não teve experiências prévias em grupos e entidades vinculadas ao movimento
negro. Sua inserção política se dá, principalmente, através dos movimentos
marxistas. Assim, aponta para a relação entre o ativismo das mulheres negras
contra o racismo e o sexismo e suas experiências – muitas vezes simultâneas –
com outros setores organizados da população civil. Nesse sentido, os percursos
de intelectuais ativistas como Diva Moreira demonstram o caráter interligado de
diferentes lutas e movimentos sociais, bem como a intercambialidade de ideias,
pontos de vista e projetos de justiça social que marcam a experiência política
das mulheres negras.
4 Considerações finais
A sociedade
brasileira é marcada pelo atravessamento de diferentes eixos de opressão, entre
eles raça, gênero e classe, que classificam hierarquicamente indivíduos e
grupos sociais. Nesse contexto, as mulheres negras ocupam, historicamente, uma
posição social marginalizada que pode ser observada em diversas esferas
sociais, entre elas, na produção e circulação de conhecimento. Nesse contexto
de marginalidade, no entanto, as que foram “empurradas” produziram
criativamente novos espaços políticos e novas perspectivas político-culturais
(Collins, 2016).
Desde o século
XIX, quando se iniciam os primeiros projetos de escrita da história nacional,
as mulheres negras foram sistematicamente apagadas e/ou estereotipadas nas
narrativas dos processos históricos brasileiros. Apesar do aumento de pesquisas
voltadas para as experiências femininas negras, ainda há diversas lacunas em
relação à participação das mulheres negras na história brasileira, em especial,
nos processos políticos.
A produção
intelectual das mulheres negras é caracterizada pela relação íntima e
indissociável entre teoria e prática, compreendendo que a defesa pelos direitos
das mulheres negras passa, também, pela produção de uma teoria capaz de abarcar
as demandas e experiências dessas mulheres. Por isso, a reconstituição dessas
experiências se apresenta como uma tarefa essencial para o desenvolvimento do
pensamento feminista negro, entendido como uma teoria crítica produzida por e
para mulheres negras.
Nesse sentido,
buscamos contribuir para a ampliação do conhecimento sobre as experiências das
mulheres negras no processo histórico brasileiro a partir da reconstituição da
trajetória política de Diva Moreira, ativista e socióloga mineira, que atua em
defesa dos direitos das populações negras do estado de Minas Gerais até os dias
de hoje.
A trajetória de
Diva, apresentada neste artigo, demonstra como as mulheres negras brasileiras
circulam politicamente em movimentos populares diversos, parte das vezes associados
às suas demandas e condições locais. Como Diva afirma em suas entrevistas, a
politização das diversas esferas da vida se dá a partir de um processo de
trocas e aprendizado tanto com outras ativistas negras, como com os demais
grupos organizados em torno das lutas populares.
Por fim, a
inserção das experiências políticas das mulheres negras no campo da história
política e da história dos intelectuais amplia as noções sobre o que é fazer
política e qual o papel e definição dos intelectuais na sociedade brasileira.
Ao longo de sua vida, Diva Moreira atuou tanto em espaços institucionais quanto
não institucionais, tendo – principalmente durante a atuação na Casa Dandara –
como objetivo a difusão e conscientização da população de seu território em relação
à cidadania, à luta por direitos e à luta antirracista.
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