e-ISSN 1984-7246  

 


A prática pedagógica do professor no ensino médio: percepções e narrativas de jovens mulheres

 

 

 

Hamanda Maiara Nascimento Pontes

Universidade de Brasília (UnB)

Brasília, DF - Brasil

lattes.cnpq.br/4598713932408247

orcid.org/0000-0002-8808-6827

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A prática pedagógica do professor no ensino médio: percepções e narrativas de jovens mulheres

 

Resumo

Este artigo discute as práticas pedagógicas de docentes no ensino médio a partir das percepções e narrativas de jovens mulheres, estudantes do 3º ano. Admitindo como premissa a consideração de que o ato pedagógico é uma relação interpessoal dos alunos entre si e dos alunos com o professor, considera que o tipo de comunicação intersubjetiva produzido no espaço de relações da sala de aula viabiliza e assegura as condições de possibilidade para a descoberta de um projeto de futuro. A pesquisa qualitativa que ofereceu os subsídios para a abordagem do problema esteve fundamentada nos pressupostos da Fenomenologia Social. O percurso metodológico do trabalho de campo incluiu a análise de quatro Entrevistas Narrativas com estudantes na faixa etária de 16 a 18 anos, matriculadas em escolas públicas da cidade de Belém/PA, que foram interpretadas com base nas etapas do Método Documentário. A análise dos dados indicou que a prática pedagógica dos professores de ensino médio, para além der ser apenas um espaço de aprendizagens escolares e catalisador de relação com um saber acadêmico organizado em disciplinas, abre para as jovens a possibilidade de experimentar relações de autoconhecimento consigo mesmas.

 

Palavras-chave: práticas pedagógicas; ensino médio; projeto de futuro.

 

 

The teacher’s pedagogical practice in high school: perceptions and narratives of young women

 

Abstract

The article discusses the pedagogical practices of high school teachers, based on the perceptions and narratives of young female students in their 3rd year. It starts with the premise that the pedagogical act is an interpersonal relationship between students and among students and teachers. The study suggests that the type of intersubjective communication that occurs within the classroom setting facilitates and ensures the conditions for the discovery of their future goals. The research follows a qualitative approach, using the principles of Social Phenomenology as its foundation. The methodology involved conducting 04 Narrative Interviews with students aged 16 to 18 years, who attend public schools in Belém/PA. These interviews were analyzed using the Documentary Method. The data analysis revealed that the pedagogical practice of high school teachers goes beyond being a space for academic learning and a means to engage with organized academic knowledge in different subjects. It also provides young women with the opportunity to explore and understand themselves better.

 

Keywords: pedagogical practices; high school; project of the future.

 

 

 

 

Ó cidade desejante pelos desejos (sempre) do Outro.

Anjos e demônios de todas as memórias e traições.

(Jomard Muniz de Britto, 1994, p. 13)

 

1 Introdução

Nos últimos anos, a produção científica oriunda de pesquisas nacionais desenvolvidas no campo dos estudos da sociologia da juventude, em interface com a sociologia da escola, tem problematizado, a partir de múltiplos caminhos e orientações teóricas, questões empíricas vinculadas a objetos distintos. Temas como as representações dos jovens sobre a escola (Franco, 2010), os sentidos da presença juvenil nessa instituição (Brenner; Carrano, 2014) e os desafios enfrentados pelo professor de ensino médio em sua ação pedagógica com esse grupo geracional (Mesquita, 2020; Almeida; Bassalo, 2021), estiveram no cerne das preocupações de cientistas da educação. 

Conforme Franco (2016, p. 536) já escreveu, toda prática pedagógica é uma “ação consciente e participativa, que emerge da multidimensionalidade que cerca o ato educativo”. Nesse sentido, a “subjetividade pedagógica” (Franco, 2012, p. 537) do professor é o que orienta sua ação em sala de aula e onde se ancora a produção do sentido que ele atribui a sua prática docente. Como a ação central que funda o mundo da sala de aula, a prática pedagógica do professor é também objeto de observação, percepção e processos de significação externos à sua subjetividade pedagógica. Desse ponto de vista, a prática pedagógica docente funda-se, a priori, em um sentido subjetivo que expressa uma intencionalidade, mas também é afetada por um sentido objetivo conferido pelos Outros com quem o professor estabelece relações de comunicação em sala, os alunos. 

Em se tratando do ensino médio, e considerando a premissa que o “ato pedagógico é uma relação interpessoal” (Franco, 2016, p. 538) dos alunos entre si e dos alunos com o professor, podemos afirmar que o tipo de comunicação intersubjetiva produzido neste espaço de relações viabiliza algo mais do que apenas a formação intelectual-cognitiva dos jovens, uma vez que também assegura as condições de possibilidade para a descoberta de um projeto de futuro. O lócus do ato pedagógico, a sala de aula, é o lugar de interlocução com outros de fora do convívio familiar, com quem os jovens entram numa relação comunicativa contínua, com quem aprendem sobre si mesmos e para quem expressam seus interesses, sonhos e motivações relacionadas ao futuro.

Por coincidir com um período que, em tese, os jovens estão em vias de formulação de um projeto de futuro, o ensino médio é representado socialmente como o lugar onde eles podem encontrar instrumentos, tempos e relações de qualidade viabilizadores de processos de escolha, autodescoberta e orientação (Weller, 2014). Esses elementos são centrais neste período, uma vez que, quanto mais o jovem se conhece, experimenta suas potencialidades e descobre preferências, ou seja, aquilo que sente prazer em fazer, maior será a sua capacidade de elaborar um projeto de vida em longo prazo (Dayrell, 2007).

Estudos já realizados com jovens da região norte do Brasil (Leão; Dayrell; Reis, 2011; Silva, 2021) apontam que a planificação de um futuro e, especialmente, a escolha de uma carreira profissional, começa a se apresentar como um desafio já durante o último ano do ensino médio, período que marca o início da contagem regressiva para o fim da formação na escola básica e o início da transição para a vida adulta. Dos relatos juvenis emerge como consenso a ponderação de que o enfrentamento dos dilemas inerentes à construção de um projeto de futuro, requer um quadro de suportes (Martuccelli, 2008) que possa garantir a realização do processo. 

Alguns desses estudos, como os de Silva (2017) e Gomes (2018), foram pontuais em evidenciar a repercussão que as práticas pedagógicas desenvolvidas pelo professor do ensino médio têm nos processos decisórios que respaldam a construção dos projetos de futuro dos jovens nessa etapa. Os resultados das pesquisas conduzidas pelas autoras, revelam que a atitude docente, isto é, “a forma como o professor ensina e interage” (Krawczyk, 2014, p. 88) durante a convivência em sala, é um aspecto que pesa na argumentação dos estudantes quando elencam as experiências mais relevantes que vivenciaram no ensino médio, e como elas os ajudaram a construir seus projetos de vida e de futuro.

Neste artigo, proponho uma reflexão sobre as práticas pedagógicas de docentes no ensino médio a partir das percepções e narrativas de jovens mulheres, estudantes em fase de conclusão dessa etapa. Embora autoras como Veiga (1992), Verdum (2013) e Franco (2016) tenham sido precisas ao afirmarem que a dimensão educativa das práticas pedagógicas não inclui apenas a esfera escolar, mas todos os contextos de “relações sociais que produzem aprendizagens, que produzem o ‘educativo’” (Souza, 2010, p. 03), opero, para fins da análise empírica, com uma noção de prática pedagógica que a concebe como aquele tipo de prática que se expressa nas atividades rotineiras que são desenvolvidas no mundo da escola (especialmente, o mundo da sala de aula), enfatizando mais a sua dimensão estética – isto é, a sensibilidade do professor na relação pedagógica, do que propriamente sua dimensão técnica – o domínio docente de saberes (Rios, 2008)[1].

 

2 Pressupostos teórico-metodológicos da investigação

Com base nos pressupostos da Fenomenologia Social de Alfred Schütz, a pesquisa qualitativa que ofereceu os subsídios para a abordagem do problema, se ocupou da interpretação das experiências escolares de jovens mulheres estudantes do ensino médio, suas percepções e narrativas sobre a prática pedagógica do professor dessa etapa escolar. Os aportes da teoria Schütziana ajudaram a traçar um caminho analítico apropriado para acessar as “categorias de sentido” (Berger; Luckmann, 1985, p. 59) comunicadas pelas e pelos estudantes quando narram o seu cotidiano na escola e as vivências geradas a partir da ação pedagógica desenvolvida pelos professores em sala de aula. Essas categorias de sentido, construídas a partir das experiências na escola, mediam as percepções das estudantes sobre a realidade das práticas pedagógicas dos docentes no ensino médio, seus professores.

Para a investigação empírica do objeto, foram realizadas entrevistas narrativas com jovens mulheres, estudantes do ensino médio em escolas públicas da periferia de Belém/PA. A operacionalização dessa técnica seguiu as orientações formalizadas por Schütze (2013) e pretendeu fugir da rigidez imposta pelo esquema pergunta-resposta que caracteriza o modelo semiestruturado de entrevista. Em campo, essa técnica trata-se basicamente de uma situação comunicativa aberta: o entrevistador apresenta uma questão aberta de fundo biográfico, que visa motivar a narração de experiências e acontecimentos relacionados a determinadas fases de uma história de vida, intervindo com outras solicitações de relato quando o entrevistado termina sua fala, isto é, quando há a indicação de uma coda narrativa (Schütze, 2013; Weller; Otte, 2014)[2].

Os encontros para a realização das entrevistas aconteceram em ambientes informais, situados fora do espaço escolar, como praças, shoppings e parques. Os locais foram escolhidos pelas próprias jovens em negociação com a pesquisadora. As 14 estudantes entrevistadas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e preencheram um questionário que posteriormente foi usado para a construção do perfil sociocultural das participantes. Durante o processo de identificação e contato com as jovens, seus pais e responsáveis foram informados sobre os objetivos da pesquisa e autorizaram a participação das filhas na investigação.

A narrativa de 4 (quatro) delas constituiu a base empírica das reflexões apresentadas neste artigo. No quadro abaixo (Quadro 01), apresento uma síntese das informações coletadas no questionário e que serviram de referência para a construção de um perfil mais amplo, que incluía, entre outros aspectos, o nível de escolaridade dos pais, renda da família, dados sobre o percurso escolar das jovens e os motivos para a escolha da escola de ensino médio.

 

Quadro 1 - Perfil das participantes

PARTICIPANTES

IDADE/COR

SÉRIE

RELIGIÃO

CURSO NO VESTIBULAR

Beatriz

18 anos/parda

3ª série

Espírita

Psicologia/Biologia

Deise

16 anos/negra

3ª série

Sem religião

Direito

Ellen

18 anos/parda

3ª série

Sem religião

Filosofia

Giovana

17 anos/negra

3ª série

Evangélica

Psicologia

Fonte: Quadro elaborado a partir dos dados da pesquisa, 2022.

 

Realizadas as entrevistas, deu-se início o tratamento analítico dos dados orais produzidos em campo. Com base de análise anteriores, em que o Método Documentário, tal como operacionalizado por Ralf Bohnsack (2014), se revelou um importante meio para a reconstrução do modus operandi da ação de jovens mulheres, estudantes universitárias, e o conhecimento conjuntivo oriundo suas experiências no ensino superior (Bassalo; Pontes, 2016), decidimos retomá-lo para desenvolver a interpretação do material empírico. Ao final, o percurso analítico traçado a partir desse método possibilitou o acesso às visões de mundo das estudantes entrevistadas e aos sentidos atribuídos à prática pedagógica de seus professores no ensino médio. 

Do ponto de vista metodológico, o método documentário é composto de quatro fases ou níveis de interpretação, a saber: i) interpretação formulada, ii) interpretação refletida, iii) análise comparativa e iv) construção de tipos, etapas essas que possibilitaram a apreensão e o acesso às representações e tipos[3] rotineiramente elaborados pelas jovens para conferir sentido à sua relação com a escola, com o saber e a prática pedagógica do professor. Para a elaboração deste artigo, apenas as duas primeiras etapas do protocolo analítico do método documentário foram consideradas.

A interpretação formulada busca “descontruir o sentido imanente, ou seja, aquilo que compreendemos de forma imediata” (Weller; Otte, 2014, p. 328) ao analisar o texto da narrativa. Nessa etapa, o intérprete identifica e organiza os tópicos presentes no decorrer da entrevista; isso se refere à formulação da estrutura temática da narrativa. Em seguida, o intérprete “reescreve a narrativa de modo a torná-la compreensível para as pessoas que não pertencem ao contexto pesquisado, eximindo-se de comentários” (Weller; Otte, 2014, p. 136).

Já a interpretação refletida demanda uma “observação de segunda ordem, na qual o pesquisador realiza suas interpretações, podendo recorrer ao conhecimento teórico e empírico adquirido sobre o meio pesquisado” (Bohnsack; Weller, 2013, p. 82). Essa etapa é centralizada na análise semântica, verificando a forma “como um tema ou problema foi elaborado assim como os respectivos quadros de referência ou modelos de orientação a partir dos quais o entrevistado constrói a narrativa” (Weller; Otte, 2014, p. 332).

No método documentário, a interpretação refletida se refere à explicação teórica da ação prática no sentido de sustar as informações sobre atitudes, habitus e padrões de orientação da prática, documentadas a partir dos sujeitos da investigação, questionando-as e buscando sua interpretação (Bassalo et al., 2019). Nesse sentido, os pesquisadores que adotam o método documentário não partem do pressuposto que sabem mais do que os sujeitos da pesquisa, “mas da perspectiva de que, na realidade, eles mesmos [os sujeitos da pesquisa] não sabem o quê e o quanto sabem” (Bohnsack; Weller, 2013, p. 73). O trabalho do intérprete, no caso, é encontrar uma forma de acesso ao conhecimento implícito do sujeito, explicitá-lo e defini-lo teoricamente.

 

3 Percepções sobre a prática pedagógica do professor de ensino médio

Na condição de observadoras da ação pedagógica cotidiana de seus professores, a relação que as jovens estabelecem com essa prática, tal como ela se apresenta no curso das interações no espaço de sala de aula, se dá mediante a atribuição de um “sentido objetivo” que, nos termos de Alfred Schütz (2018), difere do “sentido visado” pelos docentes – ou seja, sua intenção – ao desenvolver sua ação pedagógica. É importante considerar que a vinculação de sentido a uma ação sempre pressupõe um ato de interpretação pelo agente, seja este o executador da ação ou o observador de uma ação externa que está em curso (Bassalo et al., 2019; Schütz, 2018). No segundo caso, o que estrutura a percepção do agente são esquemas de interpretação oriundos de experiências anteriores com o objeto da observação que, por sua vez, é vivenciado como uma ocorrência natural em um mundo externo compartilhado com outros. O sentido objetivo se manifesta na significação atribuída ao objeto, significação que se origina na atitude racional do agente frente a este mesmo objeto (Schütz, 2018).

Para um exemplo mais concreto: a ação pedagógica do professor é uma das muitas ocorrências práticas que constituem o mundo natural da sala de aula. Essa ação tem sentido para todos os outros agentes que participam desse mundo porque, como já foram socializados em situações semelhantes, encaram com naturalidade a existência dessa ação. Na relação racional que estabelecem com esse objeto, as estudantes recorrem a estoques de conhecimento anteriores, experiências escolares no ensino fundamental, para construir esquemas de interpretação e percepção no presente. É com base nesse sentido objetivo que as jovens entrevistadas articularam, do ponto de vista narrativo, as percepções sobre a prática da ação pedagógica de seus professores do ensino médio e como estas contribuíram com a vivência de experiências educativas significativas, entre elas, a construção de um projeto de futuro.

A descoberta de vocação profissional em sala de aula

O primeiro conjunto de percepções reconstruídas é caracterizado pelo reconhecimento do grande papel de auxílio desempenhado pelos professores no ensino médio que, através do trabalho pedagógico desenvolvido em sala, foram agentes fundamentais no processo de descoberta de uma vocação profissional pelas jovens estudantes e de reorientação de expectativas futuras.

As relações altamente comunicativas construídas com professores e as atividades formativas organizadas fora da escola, como os passeios para conhecer as universidades públicas do estado, foram fatores que contribuíram para fortalecer a motivação das jovens em dar continuidade aos estudos em níveis mais altos de formação. Do mesmo modo, a organização curricular do ensino médio é indicada como um importante subsídio para construir identificação com um campo profissional no futuro. A seguir, a narrativa da estudante Giovana revela a participação positiva de sua professora de sociologia na delimitação dos possíveis cursos que poderiam ser objeto de escolha no momento da inscrição no vestibular:

 

Giovana: desde o primeiro ano eu ficava pensando °olha que eu vou fazer o que eu vou fazer° e sempre aquela pressão da minha mãe (.) da minha avó né que que tu vai fazer tu -tá estudando, -tá: terminando, quase terminando o ensino médio que tu vai fazer. eu fiquei olhando aí eu ficava olhando será que eu faço alguma licenciatura em alguma coisa. matemática história eu ficava observando assim os professores °égua° vida de professor não é fácil não é muito fácil e: eu ficava olhando. assim e eu conversava com muitos professores, (1) umas professoras de sociologia (1) e eu conversava muito com ela (.) e ela ficava olhando tu tem cara disso tem cara disso é ver essas ver essas profissões aqui que são tu é calma tu é doce (1) entendeu tu gosta muito de se comunicar então ver assim umas=umas profissões e alguns professores ia me ajudando (1) eu fui tentando (1) ouvindo o que eles me diziam alguns professores com quem eu conversava (1) até o próprio coordenador a gente conversava muito (1) e: de acordo com o que eles me diziam e o que eu gostava (1) e a gente ia colocando em prática (.) aí eu decidi o meu futuro (.) ser uma grande psicóloga[4]

 

Durante os três anos em que cursou o ensino médio, Giovana vivenciou processos de busca e definição de um curso universitário que estivesse alinhado com seus gostos e expectativas pessoais (Pontes; Bassalo, 2022). Ainda que em casa, as sucessivas cobranças e “pressões” colocadas pela avó paterna quanto à escolha de uma profissão (“que tu vai fazer”) tenham ensejado os primeiros questionamentos da jovem em relação ao futuro, foi na escola que o delineamento de um projeto aconteceu. Inicialmente, a afeição por disciplinas como matemática e história direcionou o olhar de Giovana para a docência, porém, a observação cotidiana das difíceis condições de trabalho enfrentadas por seus professores no exercício da profissão (“égua vida de professor não é fácil”), a fez considerar outras opções de carreira.

Foi em sala de aula, nas relações de diálogo com sua professora de Sociologia, que Giovana começou a conhecer suas habilidades e aptidões encurtando seu campo de escolhas para três profissões, as quais não cita (Pontes; Bassalo, 2022). No curso de sua escolarização, e com o passar do tempo, a jovem construiu coletivamente seus planos ao lado dessa professora e do coordenador da escola (“a gente ia colocando em prática”), informando suas escolhas e avaliando as possibilidades de realização, até que descobriu sua orientação vocacional (“ser uma grande psicóloga”).

Um processo semelhante pode ser evidenciado na formação escolar de Ellen, quando relata como a prática pedagógica de seu professor de Filosofia – em particular, a didática e metodologia de ensino adotada por ele – foi determinante para direcionar sua escolha profissional no vestibular:

 

Ellen: eu acho que pra muitas pessoas eh: não ajuda (.) mas especificamente falando de mim (1) eh: ajudou justamente por causa do professor entendeu porque: (1) muitas escolas públicas eh tem a filosofia só que a didática do professor nem sempre é boa então eh: a pessoa fica desanimada porque eu tenho muitos amigos na sala que eles não gostam de filosofia (.) eles odeiam então eu -tava lendo um livro que é como dá aula de filosofia que: a (.) a autora diz assim que filosofia são pra poucas pessoas são pras pessoas que realmente entendem que gostam entendeu então assim além (.) além do ensino reforçado da escola  eu acho que o meu professor incentivou muito na minha escolha por ele (.) pelo=pelo filósofo que ele é pelo professor maravilhoso que ele é pela: experiência de vida que ele te:m eu acho que (.) minha maior inspiração eh (.) no ensino médio foi ele

 

Do início ao fim da narrativa, Ellen enfatiza a centralidade de seu professor na decisão de cursar Filosofia. Na concepção da jovem, o ensino médio, de modo geral, não proporciona vivências satisfatórias e capazes de subsidiar a escolha de uma carreira profissional (“eu acho que pra muitas pessoas não ajuda”). Ao tomar a si mesma como exemplo, Ellen atribui a ajuda recebida aos esforços e compromissos empreendidos pelo professor da disciplina de Filosofia e não especificamente ao modo como o ensino médio está organizado, em termo de atividades e ações formativas que extrapolem um currículo formal e engessado em objetivos propedêuticos.

O absenteísmo docente na perspectiva das jovens

A análise das narrativas também indicou que, entre as estudantes, circula outro tipo de percepção sobre a prática pedagógica dos professores no ensino médio. Para o grupo de jovens que compõe este segundo tipo, a indiferença e o absenteísmo (Krawczyk, 2014) são as características mais visíveis de uma atuação docente cujas práticas estão assentadas em processos hierárquicos de transmissão do saber que dificultam o estar junto e o aprender junto. Para esse grupo de estudantes, os processos de autodescoberta que deram suporte às decisões concernentes a uma carreira profissional foram viabilizados pelas experiências de socialização em outros grupos (amigos e família).

A seguir, Beatriz relata sua percepção pessoal do processo:

 

Beatriz: Eu não sei se o ensino médio ajuda outras pessoas mas eu acho que: não me ajudou muito não porque eu não vi nenhum professor chegando e falando assim pra mim (.) ou pra turma (2) olha (2) é muito importa:nte (1) tu fazer isso tu fazer aquilo (.) tipo te instruir °nesses caminhos° (1) eu não escutei muito isso

 

Durante seu percurso de escolarização no ensino médio, Beatriz não vivenciou nenhuma experiência de orientação comunicativa quanto aos seus planos de ingresso na universidade, ainda assim, a jovem não descarte totalmente a possibilidade de auxílio e contribuição que essa etapa adquire em contextos e realidades alheias (“eu não sei se o ensino médio ajuda outras pessoas”). Beatriz pontua que o interesse em conhecer os projetos de futuro dos estudantes nunca se constituiu como uma atitude cultivada por seus professores em sala (“eu não vi nenhum professor chegando e falando”), tampouco ela e sua turma receberam qualquer instrução quanto ao processo de inscrição em processos seletivos dos vestibulares estaduais, ou incentivos mais específicos, como o apoio para prosseguir com os estudos em nível superior.

Deslocando sua narração do meio escolar, Beatriz direciona o foco de sua reflexão para as relações estabelecidas no espaço familiar e suas implicações no processo decisório de um futuro:

 

Beatriz: então a minha base mesmo foi as minhas primas que eram excelentes estudiosas elas se importavam muito com isso elas sabiam que precisava ser feito (1) eh: (.) eu vi também que eu cresci com pessoas que não se (.) não tiveram a oportunidade de entrar na faculdade (1) até porque °pelo capitalismo também né° @sabe como é que é@ (1) não é fácil (1) e muita das vezes as pessoas não têm eh: dinheiro pra financiar porque não é barato (.) apesar de tu ser de tu conseguir entrar numa pública não é barato pra ti entrar numa pública primeiro você tem que passar por um cursinho particular (1) porque: o governo não te (.) não te (.) oferece, (.) base pra (.) pra conseguir passar no Enem @que é o que eu tô passando agora@ (1) então a minha família eu fui cercada de pessoas que não (.) não (.) concluíram (1) o ensino superior (1) não concluíram não nem chegaram a entrar eu acho (2) então foi mais (.) por incentivo das minhas primas (1) que elas foram excelente nessa parte de me incentivar porque eu não sei o que eu seria agora se não fosse por elas minha irmã mais velha também (2) que ela -tá fazendo faculdade agora

 

Beatriz se orienta pela compreensão de que para jovens como ela, que pertencem a uma família de baixa renda e cursam o ensino médio em uma escola pública, o caminho até a universidade é marcado por dificuldades de ordem econômica e nem sempre representa um “‘percurso linear’ para os que o iniciam” (Weller; Pfaff, 2015, p. 113). Do seu ponto de vista, para ingressar no curso universitário desejado, ela precisa antes dedicar alguns meses de preparação em um cursinho pré-vestibular (“pra ti entrar numa pública primeiro você tem que passar por um cursinho particular”), já que considera o ensino oferecido na escola regular insuficiente para alcançar seu objetivo.

 A motivação que produz o alto empenho de Beatriz nos estudos resultou não só de experiências positivas e satisfatórias ao lado das primas e da irmã, tomadas em outros relatos como seus “espelhos”, mas, principalmente, tem como base a recusa de um histórico familiar marcado por trajetórias de escolarização inconclusas (“eu fui cercada por pessoas que não concluíram o ensino superior”). O convívio direto com pessoas da família (no caso, a mãe) que não tiveram acesso à educação superior e as consequências que esse fato trouxe para sua vida (“por isso eu tenho uma vida complicada”) influenciaram na escolha de permanecer na escola e investir nos estudos para tentar obter condições melhores de vida no futuro.

Alguns dos elementos que estruturam a percepção de Beatriz também foram identificados na interpretação da jovem Deise. A estudante aponta o pouco suporte oferecido pelos professores da escola no que refere ao conteúdo ensinado em sala de aula. A visão da estudante, dialoga com a crítica de Franco (2016), a respeito de uma atitude docente pautada mais na presunção do que na vontade de empreender uma ação pedagógica crítica, exercida com responsabilidade social e comprometida com o direito dos(as) alunos(as) à aprendizagem:

 

Deise: tem muito professor dando informação errada pra aluno (2) porque o professor ele acha assim (.) tem (.) esses professores que estão dando informação errada ele acha assim (1) eu tô formado o que eu falei o aluno vai acreditar eu sou o professor (.) é lógico ele é o professor ele sabe mais do que eu o que ele falou eu vou acreditar (1) °só que eu sou uma pessoa que sempre pesquiso as coisas° e como eu tô no cursinho eu tô no colégio às vezes as matérias se igualam (1) e aí: (.) aí às vezes o professor de cursinho fala a mesma coisa e fica assim caramba (1) só que: não tem nada a ver o professor daqui não é melhor do que o de lá o de lá também não é melhor do que o daqui só que aí eu vou perguntar professor por que isso aqui o outro professor me falou isso aqui e tal (.) não isso -tá errado não é assim vai pesquisar vou pesquisar realmente tem muito professor dando informação errada pro aluno na minha escola

 

Deise aponta falhas na atuação de seus professores e afirma não haver relações pedagógicas horizontais no processo de transmissão do conhecimento. No entanto, ao avaliar a atitude dos docentes, a estudante apresenta contradições em seu próprio posicionamento: ao mesmo tempo em que reconhece a autoridade intelectual representada por eles, questiona essa legitimidade ao criar estratégias de verificação das informações repassadas durante as aulas, demonstrando que estabelece relações de desconfiança com aquilo que está sendo ensinado (Pontes; Bassalo, 2022). Mesmo que, do ponto de vista valorativo, afirme não estabelecer diferenças entre a prática pedagógica dos  professores do cursinho e do colégio  (“o professor daqui não é melhor do que o de lá”), suas conclusões indicam não apenas o  despreparo do corpo docente da escola em que estuda, que no contexto da crítica feita pela jovem, ultrapassa questões de formação ou domínio técnico do conteúdo, tendo mais a ver com a existência de posturas arrogantes e de vaidade profissional entre os educadores, como também uma super valorização da experiência pedagógica vivenciada no curso pré-vestibular.

Além de “professor dando informação errada”, Deise aponta a existência daqueles que omitem ou negam o acesso das alunas a determinados conteúdos que, na perspectiva da jovem, serão necessários quando do ingresso na universidade, conforme explica a seguir:

 

Deise: e: (1) tem professor um professor de professor de língua portuguesa ele quis uma vez (1) implantar no cronograma no nosso horário como fazer carta resenha resumo essas coisas (.) os outros professores falaram pra ele ah isso não cai no Enem isso não tem nada a ver e tal -tá ele não quis brigar ele tirou (.) eu achava eu acho que isso (.) eu (.) isso que ele queria implantar eu achava uma coisa muito importante porque: (2) a escola ela tem obrigação de preparar o aluno pra vida (1) chega lá na universidade eu não sei o que é isso (1) o professor de universidade sabe que tu nunca viu isso na tua vida ele chega lá e fala eu quero isso aqui pra semana que vem eu quero que tu faça uma carta um resumo não sei o quê eu não sei nem o que é isso (1) ele fala ah vocês devem ter aprendido ele sabe que eu nunca aprendi isso a maioria ali veio de escola pública (2) então falta mais profissionais qualificados. (1) e compromissados com o ensinar

 

O episódio narrado pela jovem, em que o professor de Língua Portuguesa, ao tentar implementar, no conteúdo programático do terceiro ano, tópicos distintos daqueles estipulados nas provas dos vestibulares locais, teve sua proposta recusada pelo corpo docente e gestor da instituição, sugere a presença de um programa de estudos orientado exclusivamente pelas determinações de exames avaliativos externos, como o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e “um currículo escolar também fechado para as sugestões dos e das estudantes” (Pontes; Bassalo, 2022, p. 92). Na avaliação de Deise, oferta do professor é importante. A jovem apoia sua opinião no argumento de que “a escola tem a obrigação de preparar o aluno pra vida”.  No sentido da narrativa:

 

O significado que a palavra “vida” assume no contexto da narrativa parece estar associado aos supostos desafios e dificuldades que serão enfrentados durante a estadia no ensino superior, devido aos problemas de aprendizagem constituintes de sua formação na escola pública. Para ela, há uma grande desmotivação com o fazer docente na instituição em que estuda, que apresenta dificuldades em responder as expectativas de Deise quanto à exigência de um ensino médio que a capacite não somente a concorrer de forma mais igualitária nos processos seletivos do vestibular, mas que também proporcione subsídios para que ela tenha um bom desempenho no curso universitário que escolher. (Pontes; Bassalo, 2022, p. 92)

 

Mais adiante, Deise descreve, de maneira objetiva, o sentido anteriormente atribuído à escola e, consequentemente, à ação pedagógica dos professores, isto é, de preparo para a vida: “partindo de posições avaliativas, Deise constrói uma análise crítica sobre a ação educativa que seus professores empreendem em sala aula. Ao contrário de Fabíola, Deise reprova a didática de ensino utilizada pelos docentes” (Pontes; Bassalo, 2022, p. 93). Na descrição de Deise, percebe-se que o cotidiano escolar monótono, caracterizado pela ausência de atividades de ensino diferenciadas, parece que não conseguiu despertar em seus/suas colegas o desejo e o prazer pelo conhecimento, já que estes, assim como ela, apresentam dificuldades em se subjetivarem como alunos/as, isto é, de encontrar sentido na experiência de aprendizagem e apropriação do conhecimento escolar (Dayrell, 2007).

 

4 Considerações finais

A transição para o último ano do ensino médio representou, para as jovens entrevistadas, o início de um difícil processo de planificação do futuro. É nesse ponto da escolarização e da vida que a pressão familiar e social se manifesta como uma realidade externa que desloca as estudantes para um lugar de cobrança, em que a definição imediata de um curso no vestibular e, consequentemente, de uma carreira profissional, é tarefa urgente e incontornável. Nesse contexto, a prática pedagógica dos professores, para além der ser apenas um espaço de aprendizagens escolares e catalisador de relações com um saber acadêmico organizado em disciplinas, abre para as jovens a possibilidade de experimentar relações de autoconhecimento consigo mesmas.

 Nesse sentido, uma primeira consideração oriunda dos dados analisados é que a prática do professor do ensino médio é o lugar de transmissão de “corpos de saberes” (Charlot, 1996, p. 56) centrais para a formação intelectual em determinada disciplina escolar. Do mesmo modo, é objetivada nas narrativas das jovens como uma prática que media o acesso a outros tipos conhecimentos, de caráter subjetivo, que participam na construção de ações voltadas para a construção de um projeto de futuro.

O ensino médio, conforme evidenciado nos relatos apresentados, aparece como um espaço potencialmente rico de experiências formativas, tanto dentro como fora da escola que, se não determina por completo, ao menos oferece instrumentos e a vivência de relações que facilitam a planificação de um futuro, especialmente, a escolha de uma carreira profissional. Apesar das acusações e críticas à atitude docente de alguns professores, as jovens reconhecem o papel que estes têm na apresentação de outras perspectivas, descobertas e olhares sobre a vida e sobre elas mesmas, sobre suas potencialidades e competências.

Se os professores são “profissionais da escuta” antes mesmo que “da palavra”, como afirmou Teixeira (2014, p. 16), é só através do diálogo, e do diálogo afetuoso e atento, que poderão fazer de sua prática pedagógica um meio de transformação da realidade de suas educandas. Uma transformação que começa pela produção de um pensamento ousado, crítico e questionador, que produza novas categorias simbólicas de compreensão de mundo, do seu lugar nele e do que elas podem construir como um futuro possível. No entanto, a adoção de uma nova postura docente em sala requer o desenvolvimento de outra “racionalidade pedagógica” (Krawczyk, 2014, p. 96), fundamentada em princípios políticos e educativos sensíveis à realidade das jovens e às demandas próprias de seu processo de formação humana, e que as enxergue como sujeitos de ação, cultura e sonhos.

 

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[1] Conforme Verdum (2013), o professor não é apenas um executador do currículo prescrito; seus gestos e atitudes também transmitem elementos educativos. Nesse sentido, “ao ensinar uma disciplina, ele não está ensinando somente determinados conteúdos, mas está ensinando modos de ser e estar no mundo, atitudes em relação à realidade e à convivência social” (Verdum, 2013, p. 95).

[2] Sobre as fases da entrevista narrativa, ver Schütze (2013).

[3] Em alusão a Schütz (2018), a categoria “tipos” é referida aqui como o conjunto de conceitos que os atores mobilizam para conferir sentido às suas ações e atribuir inteligibilidade às situações que encontram no mundo social.

[4] As diretrizes de transcrição utilizadas em pesquisas com o Método Documentário deriva de um sistema de notação específico, a TIQ (Talk in Qualitative Research). Os códigos desse sistema de notação, quando utilizados no texto da transcrição de entrevista narrativa, não fazem alusão à ortografia padrão da língua portuguesa, mas carregam um significado particular que está relacionado aos aspectos característicos das expressões verbais e não verbais manifestadas pelos informantes na situação de comunicação que se estabelece em uma entrevista. Os principais códigos que compõem a TIQ, são: (.) pausa curta; (2) pausa e tempo de duração; falas iniciadas antes da conclusão da fala de outro jovem; ; (ponto e vírgula = leve diminuição do tom da voz); . (ponto = forte diminuição do tom da voz); , (vírgula = leve aumento do tom da voz); ? (interrogação = forte aumento do tom da voz); exem- (submissão de parte da palavra); assim=assim (pronúncia de forma emendada); exemplo (palavra sublinhada pronunciada de forma enfática); exemplo (palavra em negrito pronunciada em tom de voz elevado); °exemplo° (pronunciada em voz baixa); (exemplo) = palavra ou frase entre parêntesis que não foram totalmente compreendidas); @exemplo@ (palavra ou frase pronunciada entre risos). Cf. Bohnsack (2020).