Dossiê

 

Sonata para flauta e piano de Lowell Liebermann: sugestões para a performance do flautista e análise musical em interlocução com o compositor

Lowell Liebermann’s Sonata for flute and piano: performance and musical analysis in dialogue with the composer

Lucas Martins Pedro 1

Zürcher Hochschule der Künste , Suiza

Adriana Lopes Moreira 2

Universidade de São Paulo, Brasil

 

Revista Orfeu

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN: 2525-5304

Periodicidade: Contínua

vol. 7, núm. 2, 2022

revistaorfeu@gmail.com

Recepção: 19 Agosto 2022

Aprovação: 18 Novembro 2022

 

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.

Resumo: Circunscrito ao campo da pesquisa artística, este artigo volta-se à relação entre a análise e a performance musical da Sonata para flauta e piano Op. 23 de Lowell Liebermann. Estabelece uma interlocução com o compositor por meio de remissões a uma recente entrevista. Através de recursos em análise musical e da experiência dos autores em performance musical, apresenta aspectos composicionais da obra, sugestões de interpretação e estratégias de performance.

Palavras-chave: Flauta transversal, Performance musical, Análise musical, Forma sonata, Lowell Liebermann.

Abstract: This article is restricted to the field of artistic research and focuses on the relationship between analysis and musical performance of Lowell Liebermann’s Sonata for flute and piano Op. 23. Establishes a dialogue with the composer through references to a recent interview. Through resources in musical analysis and the authors’ experience in musical performance, it presents compositional aspects of the work, interpretation suggestions and performance strategies.

Keywords: Transverse flute, Musical performance, Musical analysis, Sonata form, Lowell Liebermann.

Introdução

O compositor estadunidense Lowell Liebermann nasceu em 22 de fevereiro de 1961, em Nova York (Estados Unidos), e é considerado um dos mais importantes compositores daquele país. Após iniciar seus estudos musicais ao piano, Liebermann cursou Bacharelado, Mestrado e Doutorado em Composição na Juilliard School of Music. Segundo consta no site do compositor (LOWELL LIEBERMANN, [s. d.]), sua produção inclui desde obras solo, como os Noturnos para piano e Soliloquy, para flauta transversal, passando por obras de câmara, como as Sonatas, Trio-sonatas . Quintetos de cordas, até as obras orquestrais, incluindo uma ópera. Recentemente, foi indicado para o prêmio Grammy. Atualmente, integra o quadro de professores da Mannes School of Music, onde fundou a Mannes American Composers Ensemble (MACE), e mantém um vínculo com a empresa Steinway and Sons.

Este artigo origina-se da relação entre duas práticas, performance e análise musical, sendo acrescido de menções a uma entrevista semiestruturada3 com o compositor e circunscrevendo-se no campo da pesquisa artística.

A pesquisa artística é, por definição, o processo de produção de conhecimento a partir da experiência prática. É possível delimitar quatro objetos de estudo principais dentro do campo da pesquisa artística (LÓPEZ-CANO, 2015, p.74): práticas interpretativas, processos criativos, exercício profissional e práticas pessoais. O objeto de uma pesquisa focada em processos criativos culminará na execução da obra proposta, que prevê, por exemplo, a exposição das conduções motívica, contrapontística, harmônica, rítmica, dinâmica, textural e timbrística; a escolha de notas, acordes e regiões mais estruturais, em contrapartida aos multiníveis mais ornamentais; a escolha de guias de memorização e de andamentos; entre outros aspectos inerentes ao intérprete, que, combinados, resultam na performance integral da peça.

Buscaremos apresentar, portanto, alguns processos criativos em análise musical de forma inteligível e palpável ao leitor, em interlocução com os processos envolvidos na criação da performance da Sonata para flauta e piano Op. 23, de Lowell Liebermann.

Análise musical da Sonata para flauta e piano Op. 23, de Lowell Liebermann

Conforme consta na capa da partitura, a Sonata para flauta e piano Op. 23 foi composta em agosto de 1987, tendo sido comissionada pelo Spoleto Festival Chamber Music Series4 e dedicada à flautista, também norte-americana, Paula Robinson e ao pianista Jean-Yves Thibauldet. Trata-se de uma obra representativa de suas estratégias composicionais, “que englobam tonalidade, expressão romântica, cores impressionistas e uma abordagem neoclassicizante” (GARNER, 1999, p.2).

Esta Sonata apresenta algumas diferenciações em relação à Sonata do período Clássico e à Forma Sonata5. A primeira delas é a organização em apenas dois movimentos, o primeiro lento con rubato, e o segundo, presto energico. O compositor não se vale das relações de tônica-subdominante-dominante entre as seções, como apresentado na Fig. 1, especialmente no primeiro movimento, como será visto abaixo, mas também no segundo movimento. Em contrapartida, recorre especialmente às relações de mediantes entre as tonalidades e centralidades. É perceptível também a exploração de três características muito comuns à música do século XX: a politonalidade, o uso de métrica mista e as escalas hexatônica e octatônica.

Primeiro movimento

O primeiro movimento da obra, lento con rubato, é composto por 102 compassos e pode ser dividido conforme apresentado na Fig. 1.


Fig. 1
Forma do primeiro movimento (lento con rubato). Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I.
Elaboração própria.

A partir da observação da divisão estrutural, proposta na Fig. 1, é perceptível que o primeiro movimento apresenta uma exposição bastante extensa (47 compassos), sendo finalizada com a grande pausa do compasso 48, centro estrutural do movimento, que polariza a atenção para si por meio do silêncio. Sobre este compasso, na entrevista que realizamos com o compositor, Liebermann afirmou: “[…] essa pausa marca o meio da obra e deve ser uma pausa longa e desconfortável, o público deve começar a se perguntar o que está acontecendo neste momento” (LIEBERMANN in PEDRO, 2020, p.32).6

Após a grande pausa, seguem-se um curto desenvolvimento, que retoma todos os materiais apresentados na exposição de forma retrógrada, uma recapitulação quase literal dos dezesseis primeiros compassos e uma curtíssima coda.

A ambiguidade na definição das tríades apresenta-se nesta obra como um fator estilístico fundamental. Decorrente da combinação de diferentes escalas, esse obscurecimento harmônico é classificado pelo compositor como “definitivamente politonal. Às vezes atonal, às vezes quase atonal” (LIEBERMANN in PEDRO, 2020, p.31). Ao longo desta Sonata, há combinações da escala aumentada (que alterna intervalos de segunda menor e terça menor)7 com diversas formas de escalas diatônicas (a escala maior, as escalas menores e os modos lídio e frígio).

No segundo compasso da peça (Fig. 2), pode-se ver como as combinações de materiais se expressam na prática. Aqui, tem-se uma harmonia baseada nas notas Ré#, Mi#, Fá#, Sol, Lá# e Si. Essa combinação pode gerar as tríades de Ré# menor (que vem escrita), mas também soam as tríades de Ré# maior e Ré# aumentado:

Geralmente é uma textura maior e menor ao mesmo tempo. É algo que eu uso para cores sonoras e cores harmônicas, […]. E também não penso em termos de progressões de acordes padrão. Geralmente, a harmonia é mais um aspecto de cor para mim do que de função. (Lowell Lieberman. In: PEDRO, 2020, p. 31).

Em boa parte do tempo, essas alterações caminham junto com o ritmo harmônico.


Fig. 2
Ambiguidade harmônica e diversidade escalar no início do primeiro movimento. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 1-11).
Theodore Presser Company (1988a, p.2).

A Tab. 1 elenca as escalas numeradas na Fig. 2 e destaca as centralidades em Ré#, Mi, Ré, Réb, Ré, lembrando uma cambiata. A esse respeito, Lowell Liebermann (in PEDRO, 2010, p.31) declara: “uso centros tonais de maneira temática”.


Tab. 1
Escalas e centralidades. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 1-11)8.
Elaboração própria.

Nesse trecho inicial, é apresentado o primeiro tema, doravante Tema A (comp. 2-9, Fig. 2). O tema A possui claro centro Ré# (por repetição) e é composto por oito compassos, divididos em duas semifrases de quatro compassos cada. Para compor a linha melódica, o compositor utiliza os modos lídio e frígio, além de manipular os modos maior e menor, relativos ao centro mencionado. A dinâmica e a expressão, textualmente indicadas (pp, dolcissimo possible), e a textura rarefeita contribuem para a construção de uma ambientação de suspensão ou hesitação. Além disso, a frase longa, em um andamento muito lento (semínima = 40 batidas por minuto), se apresenta como uma grande dificuldade ao instrumentista, que precisa executá-la com grande controle da emissão de ar. Como o compositor sugere, é preciso grande carisma e concentração para que a linha freaseológica seja executada de maneira a cativar o ouvinte; caso contrário, Liebermann afirma preferir que o movimento seja executado levemente mais rápido:

Eu acho que, para tocar no andamento indicado, deve-se ter um controle extraordinário da respiração e, mais ainda, ter extrema concentração e carisma para executar a passagem de maneira satisfatória, caso contrário, o trecho pode parecer um pouco tedioso ou muito lento. Então, para mim, as indicações de metrônomo são mais indicações do humor desejado do que uma indicação absolutamente inflexível. Mais uma vez, é algo no qual me tornei mais específico mais tardiamente. Se eu quero que uma especificação seja seguida exatamente, escrevo semínima igual a algum andamento. Quando alguém pode ter alguma liberdade, escrevo “ca.” (aproximadamente) antes da marcação metronômica. A outra coisa importante é que eu sempre espero que minha música seja tocada com uma certa quantidade de rubato, então não é metronômica, você deve seguir a frase. Mas, tendo dito tudo isso, quando eu toco a peça com um flautista, geralmente ela é muito lenta, porque é o que tenho em mente. Eu ouvi alguns flautistas que não têm o controle da respiração ou a intensidade para sustentar as frases e, nesse caso, eu preferiria que eles tocassem um pouco mais rápido. Mas, o flautista ainda deve seguir a sugestão da semínima igual a 40, que deve ser extremamente lenta e suspensa; portanto, se alguém tocar com a semínima igual a 60 está errado, e ouvi pessoas tocando tão rápido e isso não faz sentido algum para mim. (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.30).

Aqui propomos que o intérprete comece seu estudo a 60 batidas por minuto e gradualmente, durante o passar dos dias de estudo, reduza o andamento até 40 batidas por minuto, a fim de executar os quatro compassos de cada semifrase em uma única respiração, atentando-se às dinâmicas e às indicações escritas. Uma segunda alternativa é a respiração a cada dois compassos do tema, por exemplo, nos compassos 3 (após o Ré#) e 5 (na pausa de semínima).

Desde o princípio do movimento, Liebermann estabelece uma camada textural ao piano em forma de ostinato (comp. 1-5, 10-16, Fig. 2 e 3), utilizando a tríade aumentada de Ré# (com enarmonização na nota Fáx, escrita como Sol). Na escuta ampla da passagem (comp. 1-16), as escalas formadas sobre Mi, Ré e Réb obscurecem, por vezes, o centro Ré#. A opção por ostinatos é recorrente no trabalho do compositor, como o próprio afirma: “Gosto de ostinatos, uso-os com frequência e não sei realmente se há mais alguma razão a dizer. É apenas parte do meu estilo” (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.33).

O ostinato forma a camada intermediária de uma textura composta por três monodias. A camada superior corresponde a uma linha melódica de caráter lírico, executada pela flauta (cuja construção é discutida a seguir), e, a partir do compasso 10 (Fig. 3), uma terceira camada é apresentada pela linha do baixo oitavada.

A inserção da terceira camada na região grave do piano (comp. 10-16, Fig. 3) promove uma ambientação auditiva mais misteriosa. Há também uma alteração na segunda camada, que é transposta uma oitava abaixo, reforçando a distância entre as texturas de melodia e de acompanhamento. Quanto à voz principal, Liebermann utiliza nesse conjunto de compassos o que Douglas Green (1965, p.48) chamou de frase diferente, porém similar à primeira, pois são preservados muitos elementos da primeira frase, como o contorno melódico na camada da flauta e algumas sucessões harmônicas, mas o objetivo harmônico desta frase é outro. Aqui, ele amplia ainda mais a angulosidade da melodia, levando a flauta até o Sib da terceira oitava do instrumento. Sugere-se a utilização de posições alternativas tanto para o Lá (uso da chave do Dó# grave) quanto para o Sib da terceira oitava (adicionar o uso da primeira chave de trinado, além dos anelares das duas mãos), além de uma velocidade de ar maior, combinada com a diminuição do orifício da embocadura, para que se obtenha um timbre mais delicado, como solicitado na partitura. Por angulosidade, entende-se os amplos intervalos utilizados horizontalmente, e a constante mudança de direção, verticalmente.


Fig. 3
Segunda frase semelhante à primeira, mas com objetivo harmônico distinto. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 10-16).
Theodore Presser Company (1988a, p.2).

Na segunda seção (comp. 17-30, Fig. 4), que começa com uma nova indicação de andamento (un poco piu mosso), é apresentado, pelo piano, o Tema B (comp. 21-28), que será retomado e expandido pela flauta a partir do compasso 21, com uma nova indicação de andamento (movendo). Durante os quatro primeiros compassos, é difícil que se estabeleça um campo tonal claro, devido ao grande uso de cromatismos. Entretanto, pode-se sugerir o centro Sol, que é reafirmado a partir do compasso 21, com a textura arpejada apresentada pelo piano, novamente amparando-se na ambiguidade entre os modos maior e menor, com uso predominante do modo lídio. O Tema B estabelece, com o Tema A, uma relação de mediante por enarmonia. Mais adiante, observaremos que a relação mediante é um dos recursos explorados nesta obra.

O Tema B é apresentado com uma textura clara e transparente, composta por duas camadas principais (melodia e arpejos do piano) e uma terceira, mais espaçada, de notas longas com o uso de pedal indicado pelo compositor. As próprias indicações do compositor (molto tranquilo, limpido e ppp) reforçam a ideia da textura transparente e ambientação mais calma.

Uma pequena transição (comp. 28-30) traz, na mão esquerda do pianista, uma figuração caracterizada pela síncopa, o retorno do intervalo de segunda menor e a voz do baixo reforçando o centro Sol. Concomitantemente, a mão direita executa um movimento melódico com paralelismos na construção harmônica e também com a diminuição da célula indicada (Fig. 4, sob os círculos).


Fig. 4
Na seção 2, apresentação do Tema B pelo piano (comp. 17-20) e pela flauta (comp. 21-28) e ambiguidade entre Sol maior, Sol menor e Sol lídio (comp. 21-22). Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 17-30).
Theodore Presser Company (1988a, p.3).

Após um ritardando, introduz-se abruptamente a terceira seção (comp. 30-35, Fig. 5), que tem textura mais áspera que a seção precedente, com três vozes acontecendo simultaneamente (duas de melodia e uma de acompanhamento), tocadas sob a indicação de dinâmica ff, e com a ocorrência de inúmeras indicações de acentos, como marcatto, tenuto e martelato. Outro aspecto relevante dessa passagem é a variedade rítmica, valendo-se desde semínimas até fusas e passando por quiálteras compostas de três, cinco, seis e sete notas. Pode-se destacar, no compasso 32, a presença de escalas octatônicas na voz executada pela flauta, justapondo tétrades diminutas para compor o movimento melódico:

Eu sempre gostei de escalas octatônicas e sempre as usei até certo ponto. Eu também acho que elas pertencem ao mundo sonoro desta peça e à ênfase nas terças, você sabe, nas terças maiores/menores, nas terças entrelaçadas, tudo se encaixa nas escalas octatônicas. Então, eu acho que isso faz parte do meu mundo sonoro […]. (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.34-35)

Logo no início da terceira seção, o compositor insere um novo padrão rítmico na voz executada pela mão esquerda do pianista, com uma colcheia seguida de quatro fusas (comp. 30-32, Fig. 5). No compasso seguinte, ele utiliza o mesmo ritmo, com uma colcheia seguida de seis fusas, utilizando uma forma espelhada: enquanto uma voz faz esse ritmo ascendente, a outra voz faz o mesmo ritmo, porém de forma descendente.

A partir do compasso 33, o compositor explora a ambiguidade entre Ré# menor e Ré menor para a construção da camada homofônica no piano e monofônica na flauta. Nesse contexto textural composto, o compositor se vale do paralelismo (evidente nas figuras compostas por colcheias pontuadas, seguidas de uma semicolcheia) e da simetria (no espelhamento entre a voz executada pela mão direita do pianista, que se movimenta de baixo para cima, e a voz executada pela mão esquerda do pianista, que executa as figurações de cima para baixo).

Fica claro que, no compasso 30, a intenção do compositor era submeter o ouvinte à grande surpresa, ao fazer tais mudanças, tão drásticas, em intensidade, ritmo, textura e densidade. Essas mudanças impõem aos executantes grande dificuldade técnica, seja pela complexidade rítmica, seja pelo alto número de acidentes e acentos recorrentes, além de ser especialmente difícil, para a flauta, o controle da afinação, na dinâmica e registros indicados pelo compositor.

Observamos que, para uma boa execução técnica, este trecho requer um estudo muito lento e também uma atenção especial durante os ensaios com o pianista para a perfeita sincronia entre as vozes. Por fim, sugere-se o estudo destes compassos de trás para frente, a fim de condicionar a coordenação motora das mãos, em concomitância com a embocadura e com a língua.


Fig. 5
Na seção 3, escalas octatônicas Oct1,2 e Oct2,3 (comp. 32), espelhamento e ambiguidade entre Ré# menor e Ré menor (comp. 33), paralelismo e simetria (comp. 34-35). Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 29-35).
Theodore Presser Company (1988a, p.4-5).

Na quarta seção (comp. 36-47, Fig. 6), o compositor volta a utilizar o ostinato como forma de acompanhamento, na mão esquerda do pianista, enquanto apresenta, na mão direita, o tema de fechamento da exposição (que será desenvolvido, apenas posteriormente, pela flauta), composto especialmente pela figuração de colcheia pontuada, seguida de grupo de quatro semifusas. É importante ressaltar esse aspecto, pois, no trecho de transição entre exposição e desenvolvimento (comp. 42-47), o compositor manipula este material, aumentando-o, para construir o acompanhamento da transição, que é finalizada com um compasso de grande pausa (comp. 48).

No que se refere a centralidades, a quarta seção pode ser dividida em duas partes (Fig. 6). Na primeira parte (comp. 36-41), tanto o tema quanto as pequenas interjeições realizadas pela flauta circundam a região tonal expandida de Si, explorando, como em outras seções, a politonalidade. Já na segunda parte (comp. 42-47), a textura volta à intensidade ppp no piano, e a flauta, que agora possui uma curta linha melódica, volta ao pp. Esta segunda parte é apresentada na região de Fá, explorando o uso do trítono, como ocorrerá em outras regiões da obra. Aqui a progressão harmônica se dá por uma região de dominantes, finalizando a seção em um poliacorde que combina os acordes de Ré maior e menor.


Fig. 6
Quarta e última seção da Exposição. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 36-48).
Theodore Presser Company (1988a, p.5-6).

Por fim, pontua-se que o compositor, na entrevista concedida, afirma que a grande pausa (comp. 48) deve ser executada com a duração de um compasso completo (segundo Liebermann, por vezes, intérpretes a ignoram) e que ela foi pensada neste compasso tanto para funcionar como divisão estrutural entre exposição e desenvolvimento como para provocar uma sensação de dúvida aos ouvintes: “essa grande pausa deve ser mantida por toda a duração do compasso, porque muitos flautistas simplesmente ignoram e fazem uma breve pausa, mas há uma razão pela qual eu escrevi isso” (LIEBERMANN in PEDRO, 2020, p.30).

O desenvolvimento (comp. 49 a 80) começa com a flauta retomando o tema apresentado pelo piano no compasso 47, a partir do qual o compositor expande os materiais melódicos. O tema continua na região tonal predominantemente de Si menor, sendo desenvolvido até atingir o clímax do movimento, no compasso 56.

No início do desenvolvimento, as indicações “p”, “esitante”, “poco a poco più f” e “ritmico” (Fig. 7) se relacionam especialmente com a parte do piano, cujo acompanhamento se torna visivelmente mais rítmico, e gradualmente, ao sofrer seguidas diminuições em conjunto com o crescendo indicado (tanto para o piano quanto para flauta), colabora para o acréscimo de tensão, que vai culminar no supracitado clímax.


Fig. 7
No início do desenvolvimento, princípio do acréscimo de tensão ao movimento. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 48-51).
Theodore Presser Company (1988a, p.6)

Um trecho de difícil execução pelo flautista é o que apresenta duas estruturas rítmicas com quiálteras de sete e dez notas (comp. 52-53, Fig. 8). No trecho com quiálteras, sugere-se o apoio melódico nas três primeiras notas de cada grupo, tendo em vista que o tempo despendido enfatizando estas notas permite a organização mental e a coordenação entre os dedos, para que a passagem seja executada de forma mais clara. Julga-se também possível a tomada e retomada do andamento, ou seja, a realização de pequenos rubatos, que também auxiliam na execução e na sincronia entre flauta e piano.


Fig. 8
Quiálteras de dez e sete notas. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 52-53).
Theodore Presser Company (1988b, p.6).

Chega-se, pois, ao clímax do 1º movimento, no compasso 56 (Fig. 9). Aqui, o compositor continua com centro Si (com alternância entre Si maior e menor) e promove um forte adensamento da textura, sobrepondo três camadas que dividem o protagonismo. A primeira camada é executada pela flauta, onde há a variação de um material apresentado pelo piano ao final da terceira seção (comp. 33-35). A segunda camada é formada por um ostinato com figuras rítmicas de valor reduzido (semicolcheias e fusas). E a terceira camada, executada pela mão esquerda do pianista, varia também um material utilizado na terceira seção (nos comp. 30-31, oitavas na mão direita do músico), como podemos observar na Fig. 9.

Sugere-se, neste trecho, que o flautista despenda maior atenção à afinação, para que, seguindo a indicação do compositor (ff e o vasto uso do terceiro registro do instrumento), o resultado sonoro, em conjunto com o piano, seja o adequado ao ouvinte. Como experiência pessoal, o uso de dedilhados alternativos demonstrou-se efetivo.

Rapidamente, a partir dos compassos 58 e 59 (Fig. 9), há uma diminuição na atividade musical, seja em textura, seja em volume sonoro, e o clímax se dissipa, dando início a uma nova seção a partir do compasso 60.


Fig. 9
Textura composta por três camadas no clímax do primeiro movimento. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 56-60).
Theodore Presser Company (1988a, p.7).

A passagem compreendida entre os compassos 60 e 79, como indicado pelo compositor (no comp. 60, Fig. 9), é construída com extrema delicadeza, em ppp, delicato. É iniciada com uma textura em arpejos executados pelo piano, novamente explorando a centralidade em Si, com o recorrente uso da politonalidade e da ambiguidade entre modos. A flauta retorna no compasso 62, com variações por aumentação do tema B.

Após uma pequena cadência, no compasso 68, a centralidade em Sol é retomada, mantendo as relações mediantes que permeiam todo o movimento. Logo em seguida, o compositor faz a sobreposição de materiais previamente utilizados, formando uma textura composta (Fig. 10, camadas 1, 3 e 4), com a adição de um ostinato, com a figuração de quiáltera de seis semicolcheias por grupo (Fig. 10, camada 2).


Fig. 10
Identificação dos materiais reapresentados formando uma textura composta. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 70-71).
Theodore Presser Company (1988a, p.10)

Por fim, ressalta-se a citação de dois trechos do terceiro ato da ópera Die Walküre de Richard Wagner, respectivamente, em remissão ao momento de despedida de Wotan e à circunscrição Brünnhilde no anel de fogo mágico (Fig. 11). O primeiro inspirou a construção do Tema A de Liebermann e aparece subposto ao segundo na retransição que antecede a recapitulação (Fig. 12).


Fig. 11
Início da frase de despedida de Wotan e, mais adiante, figuração que remete ao anel de fogo mágico que marca sua partida. R. Wagner, Die Walküre, ato III, Sehr bewegt, Sehr lebhaft, Brünnhilde (stürzt auf ihre Knie, comp. 90-93) e Mäßig bewegt (comp. 28-29
Dover Publications, 1978, p. 656, 682. Cf. Garner (1997, p.39).


Fig. 12
Citações de excertos de Richard Wagner por Liebermann. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 1-4, 76-78).
Theodore Presser Company (1988a, p. 2, 11).

Sobre a retransição, o autor afirma:

Bem, a citação de Wagner foi muito deliberada, e teve a ver com um período específico da minha vida, e não há um significado programático extra para essas citações, além de significarem algo pessoalmente para mim, musicalmente. Mas também é citado porque, às vezes, eu fazia isso, como uma espécie de trocadilho musical com os intervalos com os quais estava trabalhando na peça. Então, essa é a única razão pela qual isso é citado. Eu não diria que Wagner foi uma grande influência para mim, musicalmente, embora tenha sido um período muito importante da minha vida, durante minha estadia no Festival de Bayreuth, com a neta de Wagner. (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.28).

A partir do compasso 80, a obra entra na fase de recapitulação, iniciada pela reexposição quase exata dos dezesseis primeiros compassos do movimento. As exceções decorrem das indicações de tempo, intensidade e timbre, bem como da adequação harmônica à centralidade em Sol (comparar comp. 9-10 e 88-89, Fig. 13) e de uma nova figuração em fusas presentes na mão esquerda do pianista (comparar comp. 10-12 e 89-91, Fig. 13).


Fig. 13
Poucas diferenças entre a exposição e a recapitulação. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 9-12, 88-91).
Theodore Presser Company (1988a, p. 2, 12).

Após um compasso de transição, com um grande diminuendo (onde o compositor novamente explora as relações de terça maior e menor, entre as notas Sol-Si e Sol-Sib), uma pequena coda bipartida encerra o movimento (comp. 97-102, Fig. 14).


Fig. 14
Coda do primeiro movimento. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 48-49, 96-102).
Theodore Presser Company (1988a, p.6, 12).

Nos três primeiros compassos da coda, Liebermann retoma o material que abre o desenvolvimento, transposto por um intervalo de terça maior abaixo do original. Contudo, se no desenvolvimento esse material adicionou energia ao movimento, no novo contexto, o grande diminuendo, até não haver mais som, combinado a um ritenuto e à finalização em uma pausa de colcheia longa, revela seu inusitado potencial recessivo.

Na segunda parte da coda (comp. 100-102), o compositor escreve uma escala aumentada, de execução livre pelo flautista, como indicado (lento, a piacere). Sugere-se aqui que o instrumentista realize uma respiração lenta e profunda, obtendo e armazenando a maior quantidade possível de ar, tendo em vista que o último compasso do primeiro movimento, além de desacelerar bruscamente (rit. molto), possui uma fermata. Sugere-se também que o ataque da nota Sol do compasso 101 seja o mais delicado possível, possivelmente com a língua entre os lábios, além de utilizar, para a digitação, o dedo mínimo da mão direita na chave de Dó sustenido em vez da chave de Ré sustenido. Essa alternativa permite que a nota seja executada com um volume sonoro menor, mas ajuda a manter seu brilho sonoro.

Os últimos dois compassos possuem uma textura esparsa e uma tessitura muito expandida. Neles, Liebermann utiliza apenas as quatro notas presentes no ostinato inicial (Ré#, Sol, Lá# e Si), seja verticalmente ou horizontalmente, e reforça o término da obra dentro do centro que a iniciou.

Segundo movimento

Pode-se afirmar que o impacto que o segundo movimento causa ao ouvinte é um dos grandes responsáveis pelo grande sucesso da sonata Op. 23 entre os flautistas. Aqui, Liebermann escreve um Rondó extremamente enérgico (Presto enérgico), onde flauta e piano duelam pelo protagonismo, ambos com figurações rítmicas vigorosas (especialmente quiálteras de três semicolcheias, que permeiam todo o movimento) e com indiscutível virtuosismo requerido. O compositor afirma que pianista e flautista devem ser parceiros iguais e que não gosta de pianistas que tocam como acompanhantes:

Eu deliberadamente quis escrever uma peça que seria extremamente forte, onde o flautista seria igual ao pianista e onde o pianista seria também um parceiro, e não apenas um acompanhante, o que geralmente acontece em peças de flauta. Eu realmente fui entender como a flauta foi estereotipada, e é assim que, penso, a peça decolou do jeito que aconteceu. É claro que havia peças antes que faziam a mesma coisa, por exemplo, a sonata de Prokofiev. […], toda a tensão do segundo movimento depende do virtuosismo instrumental entre os dois músicos e sua dificuldade. (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.28).

O segundo movimento da sonata Op. 23, Presto energico, é composto por 175 compassos e pode ser dividido conforme apresentado na Fig. 15, onde as seções A, B, C e coda são as partes estruturais que compõem o Rondó:

Sim, acho que se poderia dizer que é um Rondó. Bem, provavelmente veio do meu amor por Haydn, que costuma usar as formas Rondó. Novamente, acho que nunca me sentei e disse: “Vou compor um Rondó agora”. Eu costumo rascunhar e escrever os materiais sem ter ideia de qual será a forma. E, quando eu tenho uma boa percepção de quais são os materiais e como eles querem se desenvolver, aí, sim, eu tomo a decisão. Depois que eu escrevi o primeiro material, a forma Rondó parecia se encaixar naturalmente com o material. Eu sabia que queria que fosse um moto perpetuo, mas a forma me parecia um caminho natural a seguir. (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.33).


Fig. 15
Forma do segundo movimento (Lento con Rubato). Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, II.
Os autores.

Antes de prosseguir com a análise, é importante ressaltar que, a cada vez que cada seção do Rondó é reapresentada, há pequenas variações intrínsecas, mas que não descaracterizam ou alteram relevantemente o trecho apresentado originalmente. Ao ser questionado sobre as variações, sendo apontado na entrevista que essas alterações dificultam o processo de memorização do Rondó, Liebermann afirma: “As pequenas mudanças foram feitas para variar o tema principal, para mantê-lo interessante e, suponho, para que o flautista fique infeliz [os dois riram]” (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.34).

A seção A é inicialmente apresentada com centralidade em Mib, explorando vastamente o intervalo de terça menor (Mib-Solb) e continuando a explorar a politonalidade descrita na análise do primeiro movimento (Fig. 16). Há uma alternância constante das classes de alturas Si e Sib,9 e a métrica mista da seção mantém a semicolcheia como unidade rítmica.


Fig. 16
No início do segundo movimento, centralidade em Mib, alternância constante das classes de alturas Si e Sib e métrica mista que mantém a colcheia como unidade de tempo. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, II (comp. 1-6).
Theodore Presser Company (1988a, p.13)

Ao final da seção A (comp. 20-21, Fig. 17), alterações no agrupamento das notas formam uma hemíola, deslocando assim a acentuação dos tempos dentro do compasso e inserindo mais um grau de complexidade rítmica.


Fig. 17
Hemíola presente no segundo movimento. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, II (comp. 20-21).
Theodore Presser Company (1988a, p.14)

Como pode-se observar, desde o início, tanto do ponto de vista do flautista quanto do pianista, este é um movimento extremamente virtuosístico. Sugerimos aqui, bem como para todo o Rondó, iniciar o estudo muito lentamente, com o auxílio de um metrônomo, primeiramente com a marcação temporal em semicolcheias (p.ex., 160 batidas por minuto), aumentando o andamento gradual e diariamente até atingir uma agilidade considerável (p.ex., 252 batidas por minuto). Quando for atingida a marcação temporal em colcheias indicada ao início da obra, sugerimos um novo aumento gradual de andamento, com o intuito de assegurar um controle técnico-mecânico absoluto na marcação de tempo indicada. De maneira geral, sugerimos ao flautista o uso da posição 2 durante todo o movimento, conforme apresentada na Tab. 2, para a execução da altura Sib do segundo registro do instrumento, utilizando-se a chave do polegar com um grau maior de conforto. Entretanto observa-se que o compasso 4 (e todas suas repetições adiante) apresenta um nível de dificuldade acentuado devido à proximidade entre as alturas Si e Sib no compasso, já que a velocidade do movimento dificulta a alternância do polegar esquerdo entre a chave de Si e Sib.


Tab. 2
Opções para a execução da nota indicada.
Charette ([s. d.]), adaptado pelos autores.

Ao longo da seção A, a harmonia gravita em torno do centro Sol, evidenciando novamente a relação por terças. Contudo, a centralidade retorna muito rapidamente para a região de Mib e segue dessa maneira até o início da seção B (comp. 23, Fig. 18).

A seção B (comp. 23-56, Fig. 18) é caracterizada pelo centro em Dó, pela mudança de caráter na linha melódica da flauta e pela alternância constante entre o uso das terças maiores e menores (Mi e Mib, respectivamente): “No segundo tema, a parte da flauta é construída sobre a progressão harmônica da primeira parte do movimento. Ele acompanha os centros que você atinge na primeira parte do movimento” (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.33).


Fig. 18
No início da seção B, centralidade em Dó e alternância entre as terças maior e menor. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, II (comp. 23-24).
Theodore Presser Company (1988a, p.14)

Sob um caráter mais lírico, a linha melódica da flauta combina duas tríades aumentadas justapostas horizontalmente (comp. 25-32, Fig. 19). O piano mantém o vigor rítmico para que não se perca a ideia do supracitado moto perpetuo e mantém a estabilidade métrica (predominantemente binária e tendo a mínima como unidade de tempo).


Fig. 19
Justaposição de tríades aumentadas. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, II (comp. 27-31).
Theodore Presser Company (1988b, p.5), alterada pelos autores.

Como sugestão de interpretação da seção B pelo flautista, aconselha-se o uso de um vibrato mais intenso e mais amplo, aproveitando-se do maior lirismo do presente trecho. Entre os compassos 27 e 44, há quatro possíveis pontos de apoio em perceptíveis resoluções de semifrases (comp. 27, 31, 35 e 39). A linha melódica construída a partir do uso dos intervalos de segunda menor é finalizada pela apogiatura Lá-Láb (comp. 41), que estabelece o clímax do longo período. A partir do compasso 41, sugere-se uma rápida retração na dinâmica, para uma posterior retomada do tema na dinâmica mf a partir do compasso 45.

Uma reiteração da estrutura acima descrita conduz à seção A1 (comp. 61-80), com o tema transposto e gravitando ao redor do centro Si.

Na seção C (comp. 81-101, Fig. 20), o protagonismo está focado no piano. O flautista deve perceber que suas inserções devem ser ouvidas como pano de fundo, como complemento à textura em oitavas apresentada pelo piano, seguindo assim estritamente as indicações textuais do compositor:

Existem alguns pontos em que o flautista muda a dinâmica ou as oitavas porque acredita que eu não sabia o que estava fazendo. Por exemplo, no último movimento, há um ponto em que as flautas tocam notas repetidas, e o ponto principal disso é que você não ouviria isso no começo e, portanto, emergeria da parte do piano posteriormente. Era para ser parcialmente coberto e uma textura de fundo. E há alguns trechos que levam uma oitava para cima, onde os flautistas pensam que eles devem ser ouvidos acima do piano o tempo todo, e às vezes queremos que o piano seja ouvido mais do que a flauta. (LIEBERMANN in PEDRO, 2010, p.29).


Fig. 20
Na seção C (comp. 81-101), o protagonismo passa para o piano. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, II (comp. 80-91).
Theodore Presser Company (1988a, p.19).

Nas seções C e A2. deste segundo movimento, destacamos duas citações do primeiro tema exposto pela flauta no primeiro movimento, aqui transformado na linha melódica transposta ao piano (Fig. 21). Na seção A2 (comp. 111-115, Fig. 21), a citação oitavada que ocupa a região grave do piano traz uma sensação métrica binária, que estabelece uma polimetria implícita com a métrica mista das vozes superiores desprovidas de um padrão constante e perceptível.


Fig. 21
Relação motívica entre os movimentos. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, I (comp. 2-5) e II (comp. 8184, 111-115).
Theodore Presser Company (1988a, p.19, 21)

Na seção B1 (comp. 121-138), o segundo tema é transposto terça maior acima, mantendo a centralidade em Mi, até que a centralidade original em Mib é restabelecida na seção A2 (comp. 139-164). Uma pequena variação ao final desta última funciona como ponte para a coda.

A coda (comp. 165-175, Fig. 22) é basicamente construída sobre a execução de arpejos pela flauta, cujas notas todas são acentuadas com cunhas, ou martelatos, enquanto o piano sobrepõe as mesmas notas em forma de acordes incisivos e extremamente acentuados, que culminam nos três últimos compassos. O fato de ser a primeira subseção escrita em fff em todo o movimento10 suscita um possível sentimento de histeria e agitação ao final da obra, liberando a tensão musical acumulada. Neles, há uma súbita diminuição da dinâmica para . para permitir que os músicos tenham espaço para que cresçam com a dinâmica até os enfáticos Rés sustenidos, executados em quatro oitavas diferentes, que impactam fortemente a audiência com um final brilhante e cheio de energia.


Fig. 22
Sobreposições, com dinâmica e articulações intensas na coda do segundo movimento. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, II (comp. 165-175).
Theodore Presser Company (1988a, p.25)

Considerações finais

No que tange às centralidades subjacentes a ambos os movimentos, as relações por quintas cedem espaço para relações por terças. Nesse contexto, alguns recursos da teoria transformacional revelaram conexões que garantem uma unidade no âmbito estrutural, conforme apresentado a seguir.

No primeiro movimento, a sucessão de centros descreve a sequência D#-G-B-F-B-G--D#-G-D#, que ocupa os quadrantes 1, 2, 7 e 8 da “ciranda de cubos” transformacional (Fig. 23, com destaques nas cores roxo e cinza). Nesse ínterim, às relações mediantes cromáticas cujas fundamentais distam a terças maiores, somam-se relações por trítono formadas entre os centros Fá (F+ e f-, nos quadrantes 1 e 2) e Si (B+ e Bm, nos quadrantes 7 e 8).

No segundo movimento, a sucessão acórdica Eb-C-B-G#-G-E-Eb(D#) ocupa os quadrantes 7, 8, 10 e 11, que se entrecruzam no vértice 9 (Fig. 23, com destaques nas cores cinza e verde). Sendo assim, as relações mediantes cromáticas alternam-se às relações cromáticas C-B, G#-G e E-Eb, e as relações com fundamentais passam a ser distanciadas por terças maiores e menores.


Fig. 23
Centralidades relacionadas por terças, segundas menores e trítonos. Liebermann, Sonata para flauta e piano Op. 23, II.
Os autores, a partir de Richard Cohn (2012, p.104)

Conclui-se que as relações por semitons, por trítonos e por terças maiores e menores (tanto exclusivas como misturadas) articulam tanto as funções estruturais como os desdobramentos acórdicos e as elaborações melódicas da obra. As relações cromáticas prontamente perceptíveis na construção melódica e motívica da superfície combinam-se às relações mediantes cromáticas da micro à macroestrutura da Sonata, formando uma obra de alta engenhosidade composicional. E essa engenhosidade reflete-se no alto grau de desafios apresentados para ambos os instrumentistas.

Referências

CAPLIN, William E. Classical form: a theory of formal functions for the instrumental music of Haydn, Mozart, and Beethoven. New York: Oxford University Press, 1998.

CHARETTE, Mark. The woodwind fingering guide. Disponível em: https://www.wfg.woodwind.org/flute/fl_alt_2.html. Acesso em: 23 ago. 2020.

COHN, Richard. Audacious euphony: chromatic harmony and the triad’s second nature. New York: Oxford University Press, 2012.

GARNER, Lisa Michelle. Lowell Liebermann: a stylistic analysis and discussion of the sonata for flute and piano Op. 23, sonata for flute and guitar Op. 25, and Soliloquy for flute solo Op. 44. Thesis (Doctorate degree in Musical Arts) – Rice University, Houston, 1997.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

GREEN, Douglass M. Form in Tonal Music: An Introduction to Analysis. 2. ed. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1979.

KOSTKA, Stefan; SANTA, Mathew. Materials and techniques of post-tonal music. 5. ed. NY and London: Routledge, 2018.

LÓPEZ CANO, R. Pesquisa artística, conhecimento musical e a crise da contemporaneidade. ARJ Art Research Journal / Revista de Pesquisa em Artes, v. 2, n. 1, p. 69-94, 30 jun. 2015.

LIEBERMANN, Lowell. Sonata for flute and piano, op. 23. King of Prussia, PA, USA: Theodore Presser Company, 1988a. 1 partitura para flauta e piano.

LIEBERMANN, Lowell. Sonata for flute and piano, op. 23. King of Prussia, PA, USA: Theodore Presser Company, 1988b. 1 partitura para flauta.

LOWELL LIEBERMANN. Site oficial. Disponível em: https://www.lowellliebermann.com/bio-graphy. Acesso em: 10 jun. 2020.

PEDRO, Lucas Martins. Lowell Liebermann: performance e análise musical da Sonata para flauta e piano em interlocução com o compositor. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Instrumento com Habilitação em Flauta Transversal) – Departamento de Música, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.

ROSEN, Charles. Sonata forms. NY: W. W. Norton, 1988.

SPOLETO Festival USA. Disponível em: https://spoletousa.org/about/program-history-2/. Acesso em: 19 out. 2022.

STRAUS, Joseph. Introduction to post tonal theory. 4. ed. NY: W. W. Norton, 2016.

WAGNER, Richard. Die Walküre, WWV 86B. New York: Dover Publications, 1978. 1 partitura.

Notas

3 Uma entrevista pode ser denominada semiestruturada quando apresenta certo nível de formalização, como um roteiro de perguntas, mas reserva um espaço para uma expansão dos assuntos, visto que o entrevistado ou entrevistada tem liberdade para extrapolar os tópicos das perguntas elencadas. Entretanto, o sociólogo Antonio Carlos Gil (2002) destaca que a entrevista semiestruturada também permite que o entrevistador retome a questão original ao perceber desvios.

4 Fundado em 1977 pelo compositor Gian Carlo Menotti, o Spoleto Festival USA é dedicado à performance de música, dança e teatro. Na área de música, contempla óperas, obras sinfônicas, corais e de câmara, estendendo-se aos estilos jazz e folk. Sediado na cidade de Charleston, Estados Unidos, constitui-se como uma contrapartida americana ao Festival dei Due Mondi fundado por Menotti em 1958 e que ocorre anualmente na cidade de Spoleto, Itália (SPOLETO, [s. n.]).

5 Constituída por exposição, desenvolvimento e recapitulação, a Forma Sonata disseminou-se durante o período Clássico. Boa parte das sonatas com três ou quatro movimentos desse período possui pelo menos um deles escrito em forma sonata. No período Romântico, mesmo obras com apenas um movimento foram influenciadas pelo contraste temático e harmônico-estrutural dessa forma (ROSEN, 1988, p.15, tradução nossa). Durante o século XX, “permaneceu sendo uma forma viável, embora altamente modificada” (CAPLIN, 1998, p.195, tradução nossa).

6 No dia 22 de maio de 2020, às 15h, por meio do aplicativo Zoom, realizamos com o compositor uma entrevista semiestruturada, gravada em vídeo, cuja transcrição integra o trabalho de conclusão de curso realizado por Lucas Martins Pedro (2020) sob orientação de Adriana Lopes Moreira.

8 Colocamos entre parênteses as alturas sugeridas pelo contexto, mas ausentes da partitura.

9 Emprestamos o termo “classe de alturas” da teoria dos conjuntos por corresponder a todas as alturas que possuem o mesmo nome (STRAUS, 2016, p.1-4).

10 Apesar de haver um fff em uma única nota, que finaliza uma frase musical no compasso 81.

Autor notes

1 Lucas Martins Pedro é Bacharel em Música, com Habilitação em Instrumentos de Sopros, com Ênfase em Flauta Transversal, pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP, 2017-2020). Já participou de festivais de música no Brasil, Argentina, Estados Unidos, Itália e Suíça, além de ter colaborado com as maiores orquestras jovens e profissionais do Estado de São Paulo. Foi vencedor do 1° Concurso “Jean Nöel-Saghaard” (2020) e do 8° e 9° Prêmio “Ernani de Almeida Machado” (2019 e 2020). Foi premiado também como aluno destaque no “Galway Flute Festival 2016”. Atualmente atua com docência de flauta transversal e é bolsista do programa JOVENS TALENTOS, da Sociedade Cultura Artística (2017-).

2 Livre-docente, é Professora Doutora Associada no Departamento de Música (CMU) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP, 2004-) e no Programa de Pós-Graduação em Música da ECA-USP (2010-). É coordenadora do Grupo de Pesquisa TRAMA: Teoria e Análise Musical, voltado à aplicação de conceitos teóricos emergentes para a prática analítica de obras musicais (ECA e CNPq, 2015-). Foi editora-chefe de publicações da ANPPOM (2011-15), que englobam Revista OPUS (Qualis-CAPES A1), série Pesquisa em Música no Brasil e coordenação científica dos congressos anuais. É colaboradora externa do Caravelas, Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira, FCSH-UNL, Portugal (2012). A ênfase de seu trabalho está voltada a estudos sobre Teoria, Análise e Percepção Musical, atuando principalmente nos seguintes temas: Música dos Séculos XX e XXI; Almeida Prado; Olivier Messiaen; Piano.