Dossiê
Sentidos
e significados para a escolha da profissão professora de música: por uma
compreensão narrativa
Senses and meanings for the choice of the
music teaching profession: By a narrative understanding
Teresa Mateiro¹ teresa.mateiro@udesc.br
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Brasil
Giulliana Audrá² juaudra@uol.com.br
Claretiano - Centro Universitário, Brasil
Revista
Orfeu
Universidade do Estado de
Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Contínua
vol. 7, núm. 1, 2022
revistaorfeu@gmail.com
Recepção: 31 Março
2022
Aprovação: 30 Junho
2022
Autores mantém os
direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.
Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.
Resumo: O
objetivo deste trabalho é tornar perceptíveis os sentidos e significados da
narrativa de uma estudante de pós-graduação, a fim de compreender como ocorreu
sua escolha pela profissão professora de música. Os ensaios autobiográficos,
orais e escritos, entendidos como prática de formação e método de investigação
foram produzidos durante quinze semanas em uma disciplina do curso de Mestrado
em Educação Musical, oferecida durante o ano de 2019. Dez temáticas foram
abordadas: escolha da profissão; antecedentes familiares, musicais e
educacionais; ser professor e músico; atuação profissional com música;
aprendizagem musical; música no contexto escolar; experiências formativas
marcantes; experiências com composição e improvisação; experiências com
educação musical não formal; e como as experiências musicais se relacionam aos
estudos teóricos e às visões epistemológicas de autores das áreas de educação
e, especialmente, de educação musical. Para apresentar a história da estudante,
uma série de cortes foi realizada para permitir olhar sua trajetória para além
do percurso biográfico. A pergunta que norteou esta pesquisa foi: qual o caminho
trilhado por ela para decidir pela profissão professora de música? Ao
interpretar as narrativas, foram destacadas as relações entre as dimensões
pessoais e profissionais que conduziram suas escolhas de formação, assim como
os processos de mudança que se refletem em sua história de vida. Os eixos
selecionados para discussão foram: os primeiros anos escolares, as experiências
musicais e de formação e a decisão pela educação musical. É uma história
singular que pretende, acima de tudo, ser educativa.
Palavras-chave: Autobiografização, Narrativas escritas,
Experiências vividas.
Abstract: The aim of this
study is to make perceptible
the senses and meanings of
the narrative of a graduate student,
in order to understand how her choice for the music teaching
profession occurred. The autobiographical essays, oral and written, understood
as a training practice and research method, were produced during
fifteen weeks in a course of the
master’s course in music education, offered during 2019. Ten themes were
addressed: choice of profession; family, musical, and educational background; being a teacher and musician;
professional performance with music;
musical learning; music in the school context;
outstanding formative experiences; experiences with composition and improvisation; experiences with non-formal music education; and how musical experiences relate to theoretical studies and epistemological views of authors
in the fields of education and,
especially, music education. To present
student’s story, a series of cuts were
made to allow
looking at her trajectory beyond the biographical
journey. The question that guided this
research was: what was process
of deciding to become a music
teacher? In interpreting the narratives, the relationships between the personal
and professional dimensions
that led to her educational
choices were highlighted, as well as the processes of change that are reflected in her life story. The axes selected for discussion were the early school
years, musical experiences and training, and the decision for music education. It is a singular story that intends, above
all, to be
educational.
Keywords: Autobiographization, Written
narratives.
Introdução
Este artigo é resultado da atividade narrativa de Giulliana Audrá – considerando
seus atos de viver e de contar, à época aluna de uma disciplina de Mestrado em
Música – e da produção textual elaborada por mim, como professora pesquisadora
na área de educação musical. Delory-Momberger (2012, p. 529) explica que, se há, por
um lado, a relação entre o texto e a ação, há, por outro, o objeto a ser
interpretado. Giulliana, ao narrar e refletir sobre
suas experiências vividas com música, permite “dar sentidos ao que aconteceu,
ao que está acontecendo, ao que pode mudar ou permanecer inalterável, mas
também ao que poderia ter acontecido e por quais razões” (PASSEGGI, 2021, p. 2). Ademais, repensa
suas relações com o outro e com o mundo, reelabora suas aprendizagens, dado que
é um processo permanente de interpretação e reinterpretação de suas ações.
A compreensão narrativa das experiências da estudante em
formação foi fundamental para que eu pudesse dar sentido àquilo que conecta o
texto à ação. Delory-Momberger
(2012, p. 529-530), fundamentada em Ricouer, Baudouin e Alheit e Dausien, esclarece que “o relato de vida” revela um desafio
epistemológico que consiste na relação entre “os recortes, as categorizações,
os procedimentos de avaliação do texto e os recortes, as categorizações, os
procedimentos de avaliação da ação”. Consequentemente, o relato de Giulliana não representa a totalidade de suas experiências
nem a fatualidade de suas ações. O relato, sendo uma
atividade de linguagem, é ação, porém não é ação, dado que “o enredamento
reconfigura a ação mediante operações de seleção e ordenamento, escolhas
narrativas (velocidade do relato, forma de presença do narrador, postura
enunciativa etc.), mediante modalizações e formas de valorização” (DELORYMOMBERGER, 2012, p. 530).
A possibilidade de Giulliana ser
narradora, protagonista e autora da própria história, como destaca Passeggi (2021),
bem como coautora deste texto, é o que caracteriza o processo de autobiografização. É o ato de narrar as próprias
experiências, “no qual presente, passado e devir se entrelaçam” (p. 5),
independentemente de sua natureza – “escrita, oral, pictórica, gestual”,
podendo ser também musical – ou de sua denominação, ou seja, “narrativas de si,
escrita de si, memorial, autobiografia”, entre outras. Para mim, no entanto, ao
criar um enredo para compor a biografia de Giulliana,
por intermédio do convívio em sala de aula, de seus relatos, depoimentos e
escritos, das trocas de mensagens por e-mail e WhatsApp, pude aprender como ela
se concebe em um mundo social e histórico.
Esse processo de aprendizagem é denominado biografização,
por narrar uma história que não é minha, e heterobiografização,
pelas atividades de troca, escuta e leitura dos textos biográficos, que também
me fizeram refletir sobre mim mesma. Ao ler Sancho
e Hernández (2011, p. 14-15), identifiquei-me com a ideia de me reconhecer
como alguém que se constitui na pesquisa assim como a metodologia pode ser
concebida na pesquisa, formando, portanto, parte do processo de se construir
durante o desenvolvimento investigativo. Os autores afirmam que não é o pesquisador
que adota uma metodologia, é a metodologia que adota o pesquisador.
Consequentemente, neste trabalho, assumir uma metodologia não é
legitimar um processo, mas apresentar uma história vivida, dialogando de forma
crítica com outros autores e relacionando-a com os contextos sociais em que se
insere. Para isso, segui a recomendação de Bolívar
(2002, p. 14), no sentido de realizar uma descrição dupla “entre descrições
desde dentro (primeira pessoa, fenomenológica) versus descrições desde fora
(terceira pessoa, objetivista)”. Valorizo, assim, o discurso narrado e o
contexto externo que dá significado e sentido à realidade vivida pela
estudante.
O foco deste artigo recairá, então, sobre o processo de biografização como um trabalho biográfico, por meio da ação
da linguagem escrita (PASSEGGI, 2021).
Desse modo, deixarei para outra oportunidade os efeitos de compreensão e de
formação que me foram presenteados com as reflexões conjuntas realizadas com Giulliana sobre suas experiências com música. Logo, o
objetivo deste trabalho é tornar perceptíveis os sentidos e significados da
narrativa de uma estudante de pós-graduação, a fim de compreender como ocorreu
sua escolha pela profissão professora de música.
Narrando no feminino³
Giulliana e eu nos conhecemos em
sala de aula de uma disciplina de mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Música que ministro há alguns anos e que prevê estudos sobre formação e prática
docente. Tenho proposto estudar tanto sobre as diferentes dimensões da formação
do licenciando em Música quanto sobre o professor [4]. que
atua no componente curricular Arte/Música em escolas públicas de educação
básica e em escolas especializadas de música (MATEIRO,
2019). Dessa forma, elaboro planos de ensino a partir de quatro linhas de
pesquisa: formação acadêmico-profissional em música, professores e contextos de
trabalho, estudos transculturais e abordagens (auto)biográficas em educação
musical.
Essa turma era composta por sete mulheres: cinco eram estudantes
do curso de Mestrado em Música (PPGMUS/UDESC), duas do Mestrado Profissional em
Artes (PROF-ARTES/UDESC) e uma era aluna especial, ou seja, não estava
vinculada a nenhum programa de pós-graduação e solicitou matrícula para cursar
a disciplina. Optei aqui por compartilhar uma dessas sete histórias, tendo como
critério a estudante que eu ainda não conhecia, aquela que se matriculou como
aluna especial e participou ativamente das aulas, tendo sempre algo para
contar, comentar e analisar. Para apresentar sua história, fiz uma série de
cortes para permitir olhar sua trajetória para além do percurso biográfico.
Especificamente, naquele semestre de 2019, durante quinze
semanas, propus a narração oral e a escrita de ensaios autobiográficos,
seguindo o propósito das narrativas de experiências vividas como prática de
formação e método de investigação. As temáticas escolhidas foram: escolha da
profissão; antecedentes familiares, musicais e educacionais; ser professor e
músico; atuação profissional com música; aprendizagem musical; música no
contexto escolar; experiências formativas marcantes; experiências com
composição e improvisação; experiências com educação musical não formal; e como
as experiências pessoais musicais se relacionam aos estudos teóricos e às
visões epistemológicas de autores das áreas de educação e, especialmente, de
educação musical.
A cada aula, uma aluna narrou a sua história correspondente à
temática proposta. O fato de ser uma conversa em grupo fazia com que os
discursos narrativos não fossem contados de forma linear e cronológica, mas por
meio de uma corrente fragmentada de percepções e lembranças (ARANGO, 2016). Por vezes, os ensaios
autobiográficos escritos previamente eram lidos durante a aula, e, conforme as
estudantes liam, percebi que lembravam de outros acontecimentos ou comentavam
que ajustariam a escrita para poder inserir algum detalhe omitido ou retirar
alguma parte que consideravam não ser tão relevante.
Fazíamos perguntas umas às outras e tecíamos comentários
construtivos. Era um momento de pensar juntas, como afirma Hernández (2013, p. 19), “não somente
sobre a experiência narrada do outro, mas sobre a experiência do encontro entre
sujeitos”. Dessa maneira, não se tratava de uma entrevista em grupo, como um
método de pesquisa, mas de uma prática de formação (PASSEGGI, 2011). Parafraseando Hernández (2013), era um espaço comum onde
eu, como pesquisadora, queria saber sobre elas e sobre mim mesma, e as
mestrandas, que me ofereciam suas experiências, também queriam saber de si e de
todas nós. Era uma forma de aproximação ao conhecimento.
Em um dos seus ensaios autobiográficos, Giulliana
narra que, inicialmente, teve “alguma resistência para expor verdadeiramente as
histórias” de seu percurso de vida com música. No entanto, continua:
Com a ajuda dos
textos lidos e das discussões em sala, fui me entregando a esta proposta, fui
aos poucos retirando o véu que encobria minha capacidade de ouvir de mim mesma
o que realmente tinha sido importante no meu percurso de vida musical e, aos
poucos, fui entendendo a profundidade desta disciplina.
De acordo com Passeggi (2011, p. 153), as narrativas de si, orais e
escritas, são formadoras a partir do momento em que há “coerência entre a noção
da reflexividade autobiográfica, entendida como o retorno sobre si mesmo, para
tirar lições de vida, e a noção de formação”. Recordar as experiências de vida
e narrá-las implica um distanciamento do narrador e a
possibilidade de se permitir ver com outras lentes. Esse processo de
compreensão de si a partir da perspectiva do outro, continua a autora,
pressupõe enfrentar sentimentos de rejeição,
contradição, surpresa, frustação. Porém, é desse modo que ocorre a transforma-ção durante os processos formativos.
Foi nessa perspectiva que me referi à escrita de narrativas como
método de investigação, visto que intencionava utilizá-las como fontes
biográficas, pois meu interesse como professora formadora era conhecer e
acompanhar os processos formativos e (auto)formativos em educação musical das
estudantes matriculadas na disciplina. Contudo, a principal questão que motivou
a pesquisa foi investigar o caminho trilhado por elas para decidir pela
profissão professora de música.
O interesse por esses mesmos processos formativos de estudantes
dos cursos de Mestrado Acadêmico em Música (PPGMU/UnB) e Mestrado Profissional
em Artes (PROF-ARTES/UnB), similar ao dos estudantes matriculados na disciplina
supracitada, permeou o trabalho de Abreu
(2017a), que adotou os memoriais formativos. Outros trabalhos que utilizam
a abordagem (auto)biográfica em educação musical podem ser encontrados, inicialmente,
nas pesquisas de Almeida (2019) e Gontijo (2019) e, posteriormente, nos
trabalhos de Marques, Pedrollo
e Madeira (2021), Pedrollo
et al. (2021) e Madeira et al.
(2021).
As autoras refletem sobre o aumento de pesquisas nessa
perspectiva, demonstram quais procedimentos teórico-metodológicos têm sido
adotados, apresentam os autores mais citados e as temáticas de interesse
investigativo dos pesquisadores, além dos termos e conceitos produzidos na
interface entre música, educação musical e (auto)biografia. Consequentemente, a
discussão sobre uma área de conhecimento em construção tem sido constante entre
os profissionais. Nesse sentido, vale sublinhar os novos vocábulos:
autobiografias musicais, biografia musical, biografia músico-educativa, escuta
musical autobiográfica, musicobiografização e ateliê musicobiográfico de projeto.
“Adoro contar sobre esta
fase”
Aos quatro anos de idade, Giulliana
foi morar em um sítio na Serra da Mantiqueira com os pais e irmãos – o mais
velho com seis anos e a irmã caçula com seis meses. Ela conta que “não tinha
energia elétrica, não tinha estrada que se chegasse de carro, não tinha
supermercado, apenas pessoas com um mesmo ideal: construir um ambiente saudável
para criar os filhos”. Vale ressaltar que a Serra da Mantiqueira está entre as
belezas naturais brasileiras por ser uma cadeia montanhosa, de aproximadamente
500 quilômetros, que se estende pelos estados do Espírito Santo, Minas Gerais,
Rio de Janeiro e São Paulo.
A família de Giulliana encontrava-se
no lado mineiro do rio Preto, que faz a divisa com o lado carioca. “Outras
famílias, algumas fugindo de perseguição política do regime militar, outras em
busca de outras maneiras de viver e criar os filhos, se juntaram a nós e lá
fundaram uma escola para alfabetizar e escolarizar as crianças”, acrescenta Giulliana.
Essa escola
experimental, que se chamava Escola da Terra, tinha seus princípios baseados no
socioconstrutivismo de Paulo Freire com algumas
tendências estéticas da Pedagogia Waldorf. Na minha
classe de primeiro ano, tinham crianças de todas as idades, alguns que, aos
quatorze anos de idade, estavam tendo pela primeira vez na vida seus primeiros
contatos com a vida escolar. Essa experiência mágica ainda repercute em mim e
nas minhas ações até hoje.
Crescer “em uma comunidade quase hippie nos
anos 1970 em um rincão da Serra da Mantiqueira”, como escreveu Giulliana, e rodeada por adultos que não só queriam
modificar a escola, mas também a realidade social, é, de fato, “uma experiência
mágica” que ficou para sempre em sua memória. Uma memória que remete a
concepções e valores de vida, de família e amizade, de educação e comunidade.
Ao escrever esse ensaio autobiográfico, Giulliana,
com 47 anos de idade, indica Paulo Freire e a Pedagogia Waldorf,
de Rudolf Steiner, como referenciais teóricos e estéticos seguidos pela escola
onde estudou até o 3º ano do ensino fundamental e que teve sua mãe como
fundadora.
Vale sublinhar que, depois de 14 anos de exílio, Paulo Freire
foi convidado para abrir o I Seminário de Educação Brasileira, realizado em
Campinas no ano de 1978 – um ano depois de Giulliana
se mudar para a Serra da Mantiqueira. Gadotti
(2007) relata que, como o governo brasileiro negara o regresso do educador
ao país, Paulo Freire falou “clandestinamente” por telefone aos professores,
que se reuniam livremente pela primeira vez desde o início da ditadura militar.
O educador popular e subversivo, que escreveu em defesa dos oprimidos, ganhando
força no mundo, inspirava outros educadores comprometidos com a causa da
mudança – alguns deles aparentemente se encontravam na imensidão da Serra da
Mantiqueira, dando aulas para Giulliana.
A Pedagogia Waldorf está fundamentada
na questão da liberdade do ser humano, e a concepção de liberdade, de Rudolf
Steiner, está no conhecimento. A dimensão da autoeducação, a individualidade, o
ato de ensinar, a interação interpessoal (professores e alunos) e intrapessoal
(consigo mesmo), entre outros componentes, constituem holisticamente o
desenvolvimento complexo entre os âmbitos físico, espiritual, afetivo,
intelectual e artístico do ser humano (BACH
JÚNIOR, 2012). Bach Júnior coloca Paulo Freire e Rudolf Steiner em diálogo
e afirma que, para ambos, uma educação para a liberdade significa “que o
direcionamento pedagógico não é orientado nem pelo Estado, nem pelo mercado”
(p. IV). Outro ponto convergente “está na ideia de escola autoadministrada,
que configura uma república de professores. A democracia participativa está
incorporada a uma autoadministração escolar” (BACH
JÚNIOR, 2012, p IV.). Essas características parecem ser as mesmas da Escola
da Terra, que, conforme Giulliana, era uma escola
rural “tipo público/privada”.
“Maneira através da qual
eu expressaria minha leitura do mundo”
Giulliana é bacharela em Música
pela Faculdade Santa Marcelina. Morando em São Paulo já antes do ingresso no
curso, tinha aulas de flauta transversal e violão. Estudar música foi uma
decisão influenciada pelo namorado, que já frequentava a universidade, e de
grande parte de seus melhores amigos, que eram músicos. Ela conta que, naquele
tempo, “quem sabia tocar e cantar já ganhava algum status,
pois, como não existia aparelho de som, os encontros e festas eram sempre
embalados por músicos que tocavam ao vivo e onde todos se envolviam”. Ela
escreve:
Quando anunciei em
casa que eu iria prestar faculdade de música, minha mãe achou um pouco
precipitada a minha decisão. Achava que eu deveria experimentar outras opções
também. Não porque ela não acreditava que música fosse uma boa escolha, apenas
achava que eu poderia abrir para outras experiências. Mas não teve jeito. A
influência dos amigos e do meu namorado eram muito fortes. Não pensávamos em
outra coisa, não fazíamos outra coisa a não ser tocar e debater sobre música.
Na família não havia nenhum músico, mas os amigos – chamados por
Giulliana como “quase irmãos”, pelo fato de viverem
todos juntos – eram filhos de músicos e tocavam algum instrumento. Foi nesse
contexto que escolheu um instrumento para tocar. Confessa que sua vontade era
cantar, porém tinha uma amiga mais velha que cantava muito bem e, por isso,
pensava que “a concorrência era desleal”. Continua: “Como o canto me parecia
inatingível, escolhi a flauta transversal, que é um dos instrumentos que mais
se aproxima da voz humana, e foi através dela que passei a me expressar neste
ambiente”. Seu relato revela os vínculos afetivos que teve durante a juventude,
os amigos com quem conviveu e suas influências: “Construíamos, através da
música, uma identidade social e cultural que nos caracterizava e nos unia. A
música nos representava e nós representávamos a música”.
Quando foi para São Paulo, Giulliana e
essa amiga, que era dois anos mais velha, iam a uma loja de discos de vinil[5],. onde havia cabines de escuta
para ouvir música. Poeticamente escreveu: “Ficávamos lá, dentro de uma pequena
cabine, onde a música fazia caber o mundo inteiro. Depois saímos e a cidade
fervia, pessoas circulavam com suas infâncias escondidas em suas maletas ou
engolidas para o âmago de suas almas”. Para ela, “a música traz a possibilidade
de nos pôr cara a cara com nossos sentimentos esquecidos pela dureza da rotina
da sobrevivência”. Contou ainda que, na cabine, colocavam o álbum Clube da Esquina e competiam para ver quem chorava
primeiro: “Todas as memórias da nossa infância afloravam, e quem derramasse a
primeira lágrima ganhava. […] a música não nos deixa esquecer quem somos, seja
na escuta, na criação ou na interpretação”. A amiga já cantava canções do álbum
Clube da Esquina 2, e elas se identificavam com
algumas delas. Esse álbum duplo foi lançado em LP em 1978 e reuniu um grupo de
músicos, sobretudo mineiros vinculados a Milton Nascimento, que ficou conhecido
como Clube da Esquina (DINIZ, 2012).
“Quem eram aquelas pessoas que expressavam uma vida que se
assemelhava à vida que juntas havíamos experimentado e que agora se escondia
nas fendas do asfalto e nos ruídos da cidade?”, perguntou-se Giulliana. De acordo com Julião
(2020), pode-se dizer que o núcleo inicial do Clube da Esquina foi
constituído por Milton Nascimento e pelos três principais letristas: Fernando
Brant, Márcio Borges e Ronaldo Bastos. Os compositores do grupo eram,
prioritariamente, Milton Nascimento (melodia) e Lô Borges (harmonia). Citam-se,
ainda, músicos como Wagner Tiso, Eumir Deodato, Paulo Moura, Toninho Horta, Tavito, Nelson Ângelo e Robertinho Silva.
Contudo, o importante a ressaltar é que esse grupo “encontrou na
amizade e na paixão pela música os ingredientes necessários para extravasar a
verve criativa e amplificar, a partir da poesia e da canção, os desejos e
sonhos de toda uma geração” (BORGES; PÁDUA,
2019, p. 1-2). Imagino que Giulliana, sua amiga e
seu grupo de amigos sentiam algo semelhante, pois em seus relatos ela sublinha
a “amizade” e a “paixão pela música”, assim como as experiências vividas que a
levariam a perseguir seus “desejos e sonhos”.
A produção musical da geração de Milton Nascimento, que driblou
a censura imposta pelo regime militar com o uso de metáforas em suas canções (BORGES; PÁDUA, 2019), influenciou a
geração de Giulliana Audrá,
que viveu a então recente abertura política com a tão desejada democracia. Como
destacam os autores, os discursos socialmente construídos refletem visões
pessoais do momento histórico do grupo mineiro – e do povo brasileiro – e “a
complexidade das relações humanas, políticas e artísticas dos anos 1960 e 1970”
(BORGES; PÁDUA, 2019, p. 8).
A estudante, que pretendia ingressar em um curso de Doutorado em
Música em 2019, conta que teve outras experiências marcantes que confirmaram
sua escolha profissional com música. Em suas palavras:
Juntou-se a isso a minha
estupefação diante da energia e da sensação de liberdade que vivenciei quando
fui assistir, aos 15 anos, ao concerto da banda do grande multi-instrumentista
e compositor Hermeto Pascoal. Ao vê-los tocar, não tive a menor dúvida de que
seria aquela a maneira através da qual eu expressaria minha leitura do mundo.
Na Faculdade entrei em contato com a música contemporânea erudita e me
encantei. Passei a me debruçar sobre o repertório contemporâneo para flauta,
bem como paralelamente continuava tocando música brasileira e jazz. Casei-me
com um compositor e passamos a fazer muitos trabalhos juntos.
Giulliana se encantou com Hermeto
Pascoal, músico associado às tradições da música popular brasileira e à música
instrumental presente em gêneros como o choro, o frevo ou o jazz (COSTA-LIMA NETO, 2010, p. 56). O músico
alagoano que tem grande curiosidade em relação aos timbres, explorando
instrumento convencionais e exóticos, como um balde ou uma máquina de costura (BORÉM; ARAÚJO, 2010). O músico ecumênico
que afirma que a música é a sua religião, que é atento às tradições religiosas
indígenas e afro-brasileiras, que é fiel aos sons da natureza e que é o espelho
do tempo e da sociedade. O “músico genial, para o qual não existe divisão entre
composição, performance, arranjo e improvisação” (BORÉM; ARAÚJO, 2010, p. 39). Refletindo
sobre a história de Giulliana, não é difícil imaginar
a perplexidade da experiência vivida com Hermeto Pascoal e sua banda tocando ao
vivo.
“Me esforçava muito para
ser alguém que jamais seria”
Por vários anos, Giulliana atuou como
flautista, tocando em bandas, fazendo shows e turnês. Durante a faculdade, tinha
um trio (dois violões e flauta) e desenvolvia “um repertório de releituras de
músicas do Egberto Gismonti e do Hermeto Pascoal”, músicas que fazem parte de
suas lembranças musicais desde a infância. Ela narra que, nessa época, tinha
dificuldades relacionadas à interpretação musical no contexto acadêmico. A
pressão relacionada ao certo e ao errado e os julgamentos rígidos importados
pela visão eurocêntrica não permitiam que se expressasse plenamente, pois ela
não avançava para além do desenvolvimento técnico.
Para se formar, Giulliana deveria
tocar um repertório obrigatório, com peças desde o período clássico ao
romântico, porém ela não conseguia se identificar com o que interpretava: “Não
havia uma compreensão plena do que o compositor expressava, eu não me
expressava, não me identificava e executava estas músicas de maneira bastante
técnica, fato este muito repreendido pela boa professora que eu tinha”. Pereira (2020, p. 4), ao refletir sobre os
currículos superiores de música no Brasil, afirma que há um desequilíbrio entre
os valores atribuídos à música erudita e às “outras músicas que atravessam a
vida (pessoal e profissional) dos estudantes e o contexto em que os cursos
estão inseridos – muitas vezes silenciadas como processos, quando não ausentes
das discussões que ali se realizam”.
É perceptível o sentimento de frustração nas linhas escritas
pela estudante. Ao mesmo tempo que “admirava imensamente” as pessoas que
tocavam o repertório reconhecido como oficial e legítimo na academia,
reconhecia que se “esforçava muito para ser alguém que jamais seria”. Giulliana relata que um dia sua professora de flauta
transversa pediu para que “esquentasse os dedos enquanto ela terminava alguns
afazeres”. Para isso, Giulliana começou a tocar o
repertório que estava montando com os amigos. Eram composições de Egberto
Gismonti que, no momento, ela estava ouvindo e transcrevendo de ouvido algumas
partes do piano para a flauta. Ela continua sua narrativa:
Quando a professora
me escutou tocando aquilo, veio correndo, de longe, gritando: “É isso, é isso,
é assim, é desta maneira que se toca, isto é música,
isto é flauta, isto é você”. Saí desta aula ainda sem saber exatamente quem eu
era, mas ao menos já sabia quem eu não era. Agradeço a ela até hoje.
Certamente, muitos estudantes e professores dos cursos de
música, ao lerem o relato de Giulliana, se
identificarão. Eu também sou dessa geração que, durante os anos de Graduação e
Mestrado em Música, tocou peças do repertório europeu com a mesma dificuldade
de expressão e sentido. Temáticas como ensino conservatorial,
colonialidade, giro decolonial,
práticas tradicionais de ensino, repertório institucionalizado e naturalizado e
eurocentrismo musical têm estado no palco dos debates acadêmicos. Com isso,
vislumbramos a possibilidade de outras músicas e outras práticas na e para a
formação de músicos e professores de música.
Anos depois, Giulliana tocou com um
grupo de improvisação livre quando passou um ano na Inglaterra com seu marido,
o que impulsionou a criação de um trio quando de seu retorno ao Brasil. Com
esse trio, montaram “um espetáculo que envolvia composições eletroacústicas de
compositores atuais entrecortadas por seções de improvisação livre” e ganharam
dois prêmios: PROAC e Petrobras Cultural.
Durante oito anos
da minha vida, entre os anos de 2001 e 2009, participei de um grupo de música
popular contemporânea brasileira que chegou a ter boa atuação no cenário da
música instrumental. Com este grupo, gravamos três álbuns. Considero a gravação
do segundo álbum, cujo nome é Tupigrafia, bem como seus concertos de lançamento, o ápice do
trabalho deste grupo.
Quando fomos gravar
este CD Tupigrafia, enviamos um áudio-demonstração
para o soprista Carlos Malta, convidando-o a gravar
conosco. Ele prontamente aceitou. Esta foi a maior satisfação da minha vida.
Passamos dois dias gravando, ouvindo, regravando, e depois fizemos alguns shows
com sua participação.
O entusiasmo de Giulliana está
relacionado ao concerto de Hermeto Pascoal, que assistiu em 1998: “Hermeto era
acompanhado por uma banda de jovens que se dedicava exclusivamente à sua
música, e havia um exímio soprista que hoje segue
carreira solo, Carlos Malta. Eu e meus amigos admirávamos este grupo e jamais
perdíamos um concerto deles”. O repertório tocado, ouvido e vivido pela
estudante era o da música popular brasileira – Milton Nascimento, Egberto
Gismonti, Hermeto Pascoal. Ela não conta em suas narrativas que dançava valsas,
que ouvia música sinfônica e que costumava ir a concertos de música clássica.
Desse modo, fica a pergunta: é possível pensar que há músicas mais apropriadas
para o estudo de música?
“A educação encontra-se na
parte mais profunda da minha alma”
Outras experiências foram igualmente importantes nessa época,
como, por exemplo, os três intensos meses que passou no Ponto de Cultura,
chamado de Projeto Ciranda, na cidade de Cuiabá (MT), desenvolvendo um trabalho
voltado para o ensino de instrumentos de orquestra para alunos de baixa renda
matriculados em escolas da rede pública de educação básica.
Quando eu e meu
marido voltamos de nossa temporada em Londres, o Brasil estava no início de um
momento favorável para a cultura, as artes e para as práticas docentes.
Gilberto Gil era o então ministro da Cultura e conseguiu, nesta fase, fomentar
as práticas educativas culturais por todo o Brasil. Criou os Pontos de Cultura,
que era o projeto principal do Programa Cultura Viva, programa este fundado pelo
ministro em 2004 no governo Lula.
Após quatro anos de
criação dos Pontos de Cultura, o ainda ministro Gilberto Gil, juntamente com
outras secretarias e com a Funarte, criou o projeto Interações Estéticas, que
tinha como objetivo fazer um intercâmbio de artistas entre as diversas regiões
do país através de residências artísticas em Pontos de Cultura. Eu e meu marido
elaboramos uma residência de três meses em um Ponto de Cultura chamado Projeto
Ciranda.
Para elaborar o projeto com o qual ganharam o prêmio da residência,
o casal debruçou-se no estudo dos métodos ativos, entre eles, Murray Schafer, John Paytner, Boris Porena e George Self. Giulliana
narra: “Da mesma maneira que me encantei com o concerto de Hermeto Pascoal, me
encantava agora com as propostas de Murray Schafer e
John Paynter. E, a partir desse projeto realizado em
Cuiabá, já pensava em me inscrever no mestrado, para o qual não tinha mais
dúvida, seria em Educação Musical”. Foi com essa experiência que decidiu
abraçar a docência. Durante a faculdade, ela deu aulas de flauta doce e depois
de flauta transversal, mas não se identificava como professora de instrumento.
Afirma: “Quando comecei a atuar como professora de música, aí, sim, passei a me
identificar como educadora”.
Ao revisitar o passado, textualizando suas experiências, Giulliana sonha com o futuro, fazendo mestrado e
substituindo a carreira de flautista pela docência. Começou a pensar a música
por meio do processo de ensinar e aprender, e não mais apenas como o ato de
tocar um instrumento. Parafraseando um dos meus textos (MATEIRO, 2015), ela escreve: “A música
menos como uma ocupação individual, de ofício, e mais como um conhecimento que
todos têm o direito de construir”. Assim, foi se desligando de suas atividades
performativas, e essa decisão ficou ainda mais reforçada com o nascimento de
seus filhos, simultaneamente à realização do curso de mestrado.
Conta que “a maneira livre com que as crianças improvisam com
qualquer som” sempre a fascinou. Dá exemplos de quando as crianças estão
experimentando e explorando o mundo com suas vozes ou quando começam a
descobrir os sons emitidos por objetos e fazem suas músicas. Suas diversas
experiências com improvisação livre são a base para suas aventuras docentes:
“Quando comecei a me aventurar na área da educação musical, procurei trazer a
improvisação e a composição para as atividades que realizei junto aos grupos de
crianças com quem trabalhei”. Posso ler nas entrelinhas de Giulliana
o quanto ela se envolve e se dedica àquilo que acredita. Ainda sobre sua
decisão acerca da opção pela profissão professora, volta ao passado e reflete
no presente sobre o futuro:
Ao analisar por que
a área da Educação tanto tem me atraído, volto ao meu passado, à minha infância,
onde minha primeira experiência escolar foi muito profunda, carregada de
significados e experiências marcantes.
Creio que a
alfabetização é uma das fases mais importantes na nossa vida, pois passamos a
ler e escrever o mundo, o que nos leva a significar o mundo de outra maneira.
Por isso, acredito que a experiência relatada acima [Serra da Mantiqueira] tem
grande influência nesta minha mudança de “leitura” e “escrita” do mundo, onde a
educação encontra-se na parte mais profunda da minha experiência vivida, da
minha alma, e a performance ficou para os momentos de lazer com os amigos e a
família, o que acaba também, de alguma maneira, por nutrir e influenciar as
minhas práticas docentes.
As reflexões de Giulliana que
encontrei registradas em seus ensaios (auto) biográficos confirmam a busca pelo
sentido das experiências que, por sua vez, são as fontes originais de todo e
qualquer narrador. Percebo que as experiências narradas por ela foram, de fato,
vividas por meio de “um encontro ou uma relação com algo que se experimenta”,
como Larrosa
(2002, p. 25) se refere ao argumentar que a experiência não é informação
nem opinião e que é cada vez mais rara por falta de tempo e excesso de
trabalho. Define que a “experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o
que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (p. 21).
Desse modo, o sentido dado por Giulliana às suas
experiências potencializou o seu processo de formação, pois conseguiu
“reconstruir uma imagem de si mesma como um sujeito histórico, situado em seu
tempo e espaço, agindo e sofrendo na trajetória de sua história” (PASSEGGI, 2015, p. 78).
Considerações para não
concluir
Chego a esta parte com dificuldade de estabelecer um ponto final
à interpretação da narrativa de Giulliana. A história
não termina e sempre há mais para narrar, e, por isso, a decisão de como
terminar me é desafiante. Por ora, quero ainda contar que em 2020 e 2021, com o
cenário de escolas fechadas e outras medidas de isolamento provocadas pelo
vírus SARS-CoV-2, que causa a doença Covid-19, ela voltou para o lado mineiro
da Serra da Mantiqueira, onde todas as manhãs deu aulas para os três filhos.
Se, por um lado, na década de 1970 algumas famílias se escondiam da perseguição
política do regime militar nesse rincão, por outro, Giulliana
opta pelo mesmo local para se proteger do vírus que matou milhares de
brasileiros.
O discurso narrativo da estudante, registrado em seus ensaios escritos,
representa um saber construído de modo biográfico, expresso por meio de uma
sequência de eventos em tempos e lugares, produzindo conhecimento prático
intransferível e privilegiado que corresponde a intenções e significados,
conforme aponta Bolívar (2002). Para
compreender o caminho trilhado por Giulliana para
decidir pela profissão professora de música, foi necessário colocar a história
em um determinado contexto e fazer alguns recortes que permitiram olhar sua
trajetória para além do percurso biográfico.
Os primeiros anos escolares foram marcantes em sua vida, por
isso, quando reconstrói sua história, ela reflete que esse período, muito
provavelmente, foi o que mais a influenciou a se decidir pela educação musical.
O ato de fazer música, cantando e tocando, interpretando e improvisando, é uma
ação presente em seu dia a dia, como uma atividade de lazer, e não mais com os
mesmos objetivos e intensidade, como ocorria durante sua juventude, seu período
de formação acadêmica e, posteriormente, como musicista. Sua vasta e diversa
experiência musical nutre e influencia suas práticas docentes, como Giulliana mesma reconhece.
O fato de ter tido uma formação diferente daquela oferecida pela
maioria das escolas públicas brasileiras parece ter sido determinante, pois ela
considera que suas opções tanto como flautista quanto como professora foram
“menos de conservar, de manter hábitos e modelos do passado e mais de ruptura,
de uma procura pelo novo”. Não havia nada que a prendesse a velhos hábitos e,
por isso, não tinha uma tradição a zelar. Ela escreve: “Ninguém melhor do que
nós mesmos, com a ajuda do outro, para descobrirmos através de nossa própria
história, como e porque fazemos e ensinamos música”.
Vale evidenciar aqui o desconforto de Giulliana
durante o seu curso de Graduação em Música quando ela conta que não se
identificava com o repertório obrigatório proposto no currículo e a breve
discussão sobre as possibilidades de outras músicas, outros compositores, outros
saberes, culturas e práticas para e na formação musical. Não se trata de
escolher um conhecimento ou um repertório em detrimento de outro, mas de um
processo de redistribuição. Como diz Pereira
(2020, p 17): “Descobrir que o melhor conhecimento não é somente aquele que
tem sido valorizado como o tesouro da humanidade. Há outros tesouros encobertos
pelo véu da colonialidade”.
Percebi uma Giulliana independente,
criativa, sensível, curiosa, inquieta, crítica, afirmativa, comunicativa,
colaborativa, indagadora – para lembrar da pedagogia da autonomia, de Paulo Freire (2011), que exige uma escola
que prepare cidadãos com essas características. Dessa forma, haja vista seu
fascínio e interesse pela educação, ela decidiu cursar Licenciatura em
Pedagogia. Em sua mensagem, durante a escrita deste artigo, escreveu-me: “Estou
me aprofundando em Piaget e Emília Ferreiro. Estou amando”. Com esse fato, Giulliana reafirma sua escolha pela profissão professora e
sua amorosa relação com a educação.
Com ela e com as outras mestrandas, durante aquele semestre,
aprendi a ouvir mais, ficando atenta ao que me contavam, no sentido de
valorizar cada experiência narrada, cada história compartilhada e cada reflexão
gerada. Mais uma vez reli o artigo de Larrosa (2002) para reforçar a necessidade de parar
para olhar e escutar; de parar para pensar, olhar e escutar mais devagar; de
parar para sentir e sentir mais devagar; para suspender a opinião, o juízo, a
vontade e o automatismo da ação; para “cultivar a atenção e a delicadeza, abrir
os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão,
escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e
dar-se tempo e espaço” (p. 19). Giulliana também se
expressou, confirmando a ideia de que a experiência e a formação estão
conectadas:
Considero esta
prática [reflexão (auto)biográfica] de extrema importância e deveria ser ela
uma constante dentro do processo de formação de qualquer pessoa, pois traz para
nós a responsabilidade e a importância que temos dentro da formação da nossa
sociedade, sendo nós mesmos, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, transformador e
transformado, significante e significado.
Agradeço a Giulliana por ter me
oferecido seus ensaios autobiográficos e por tantas trocas de mensagens durante
a escrita deste texto, que me permitiram compreender como ela dá sentido ao que
faz. Fui ouvinte, leitora e intérprete da história que acabo de escrever. Em
alguns aspectos, pode ser uma forma tradicional de construir uma história de
vida, no sentido de alguém escrever a vida do outro. Entretanto, trata-se de um
processo colaborativo cuidadosamente construído desde 2019. Consequentemente,
de várias formas, reitero a coautoria deste artigo.
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Barcelona: Ediciones Octaedro, 2011. p. 8-23.
Notas
1. Professora
associada do Departamento de Música (DMU) da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC). Trabalha nos Programas de Pós-Graduação, Mestrado em Música
(PPGMUS) e Mestrado Profissional em Artes (PROF-ARTES) na mesma instituição.
Foi professora de música em escolas, públicas e privadas, de educação básica.
Desenvolve pesquisas na área de Formação Docente privilegiando temas como
prática pedagógica, programas curriculares, conhecimento profissional, práticas
musicais escolares, estudos transculturais e pesquisa (auto)biográfica em
educação musical.
2. Mestra em Educação
Musical pela UNESP e bacharela em Flauta Transversal pela Faculdade Santa
Marcelina. Desde 2021 cursa Licenciatura em Pedagogia na Faculdade Claretianos (EaD) e trabalha como
colaboradora na elaboração, captação e realização de projetos para escolas
públicas da região rural de Visconde de Mauá (RJ). Ingressou no doutorado do
PPGMUS UDESC em 2019. Atuou como flautista nas áreas de música popular com o
grupo Armazém Abaporu, com quem realizou turnês
nacionais e internacionais. Integrou grupos de câmara e orquestras
interpretando músicas de concerto. Participou de projetos de arte-educação e
circulação artística que foram premiados, como: Cuiabá Sonoro – Interações
Estéticas (2008-2009), Petrobras Cultural (2011), PROAC (2009), Ano Brasil na
França (2005) e Projeto Pixinguinha (2005).
3. Resultados parciais
foram apresentados no IX Congresso Internacional de Pesquisa (Auto) Biográfica (CIPA), realizado na UnB no período de 1 a 4 de
junho de 2021, no formato on-line e promovido pela Associação Brasileira de
Pesquisa (Auto)Biográfica (BIOGRAPH).
4. Utilizarei o genérico
masculino “professor” para me referir a ambos os sexos, estando consciente de
que essa decisão poderá despertar polêmicas.
5. Sinônimo
de disco fonográfico, vinil ou LP (Long Play) –
originalmente da terminologia inglesa Long Playing Record. Gravação de áudio, principalmente, de
canções de 1948 a 1990, quando surge o CD.