Dossiê
Práticas
interpretativas, performance musical, processos criativos: mais uma reflexão
sobre o intérprete na academia
Music performance: another debate
regarding the interpreter and academia
Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina,
Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Contínua
v. 7, n. 2, 2022
revistaorfeu@gmail.com
Recepção: 12 Abril 2022
Aprovação: 07 Julho 2022
Autores mantém os
direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.
Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.
Resumo: Debate
sobre a situação dos intérpretes da área de Música – cantores, instrumentistas
e regentes – e sua respectiva subárea no meio acadêmico brasileiro da
atualidade. O método consiste em revisão bibliográfica ligada a pesquisadores
que se debruçaram sobre a questão, em nível nacional e internacional,
juntamente com cruzamentos interdisciplinares. Conclusões apontam para a
possível implementação da pesquisa artística, mais especificamente a pesquisa
através das Artes juntamente com a infraestrutura necessária, como forma de
contribuir para a legitimidade de sua posição na academia.
Palavras-chave: Práticas Interpretativas;
Performance Musical; Metodologia Científica; Pesquisa Artística
Abstract:
Discussion regarding
interpreters/performers position in Brazilian’s academia. The method is focused
on bibliographical review with studies from national and international
researches related to the main topic, involving interdisciplinary approaches.
Conclusions point to the implementation of artistic research, more specifically
research through arts (BORGDORFF, 2012) and its necessary infrastructure,
aiming to better legitimate the interpreter’s position in Brazilian’s academic
field.
Keywords:
Music Performance; Scientific
methodology; Artistic Research; Research through Arts
Introdução
Performance Musical, Práticas Interpretativas, Execução Musical,
Criação e Interpretação em Música, Processos Criativos... logo de início temos
uma indefinição na terminologia referente à subárea da Música que se dedica
mais diretamente ao fazer artístico-musical como objeto e/ou objetivo de suas
pesquisas.
Ora, mas essa definição também pode se aplicar à Musicologia e
demais subáreas, pois elas se debruçam sobre o estudo das práticas musicais,
não é? Certamente sim. Ao mesmo tempo, os estudos associados à subárea em
debate utilizam métodos característicos das subáreas-irmãs e de outras áreas do
conhecimento? Com certeza. E essa semelhança conceitual torna ainda mais
complexa a tarefa de buscar esclarecimentos para a questão em pauta...
Nessa perspectiva, o presente artigo oferece algumas reflexões
acerca das incertezas apresentadas, procurando fomentar um debate que não é
recente, mas ainda raro por ter “potencial de risco”. Trata-se de um estudo
essencialmente bibliográfico, ancorado em publicações acadêmicas de autores-intérpretes
[1] que têm se debruçado sobre o assunto, bem
como em referências interdisciplinares. Por fim, gostaríamos de ressaltar que o
termo a ser utilizado adiante em referência à subárea em debate será “Práticas
Interpretativas”, pois além de ser uma medida para organização do texto,
trata-se da nomenclatura mais recorrente nos atuais Programas de Pós-Graduação
em Música do Brasil, certamente por ter sido proposta no primeiro Encontro
Nacional da Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM),
realizado em 1988 (BORGES, 2019, p. 49).
Destarte, nossos agradecimentos à colaboração voluntária do Prof. Dr. Renato
Borges.
Um breve retrospecto
histórico
Podemos associar o embrião do problema apontado ao momento em
que, segundo uma convenção entre pesquisadores da Música, houve a
sistematização e subsequente estabelecimento da Musicologia como disciplina
acadêmica. Segundo o musicólogo Paulo
Castagna (2008), uma proposta feita por Friedrich Chrysander
em 1863 teria sido a pioneira no sentido de reconhecer determinadas pesquisas
sobre música como possíveis métodos científicos para uma futura área acadêmica
de Música [2]. Duas décadas depois, o dito autor
tomou parte na criação do periódico Vierteljahrsschrift für Musikwissenschaft
juntamente com Philipp Spitta e Guido Adler,
em 1884 (MUGGLESTONE, 1981), chamados
na época de “historiadores da música”. Dentre os artigos publicados na sua
primeira edição, o de maior impacto foi Umfang, Methode
und Ziel der Musikwissenschaft[3], do último autor (ADLER, 1885). Nele, são
propostas duas abordagens gerais de estudos sobre música: a) análise teórica
sobre obras, fenômenos sonoros e sistemas de organização sonora, incluindo seu
ensino e aprendizagem, denominada “Musicologia Sistemática”; e b) pesquisa
histórica/historiográfica sobre práticas musicais de diferentes pessoas,
épocas, e regiões geográficas associadas à cultura dita “Ocidental”, intitulada
“Musicologia História”. Da primeira categoria, houve diálogos
interdisciplinares que levaram ao estabelecimento de disciplinas como Estética
da Música (ao abordar Filosofia), Educação Musical (Pedagogia), Acústica
(Física) e Psicologia da Música, entre outras (CABRAL, 2014). Já a Etnomusicologia, que
conta com uma forte influência da Antropologia, teve sua origem na primeira
categoria sob a denominação de “Musicologia Comparada”, visando ao estudo dos
sistemas de organização sonora de comunidades e culturas diversas do mundo em
comparação com referências de teoria e análise da produção musical associada à
cultura convencionalmente denominada “Ocidental”, sem considerar questões
sociais e temporais/históricas.
Para nós, é fundamental observar que nesse percurso inicial de
inclusão da Música como área do conhecimento na academia, nenhuma das
disciplinas mencionadas trata de maneira direta ao que se entende na atualidade
como “Práticas Interpretativas”, além de não agregar diretamente a figura do
intérprete. É perceptível que, para se afirmar como uma disciplina respeitável,
a Musicologia precisou tomar de empréstimo métodos de investigação e
referências de áreas já estabelecidas no meio acadêmico, como as mencionadas
Filosofia, Antropologia, Educação, História, Psicologia e Física, dentre as
diversas possibilidades. Hoje, é possível afirmar que ela constitui uma subárea
já estabelecida graças a uma literatura específica/especializada em
desenvolvimento há mais de um século – sendo essa bibliografia a responsável
por prover a sua identidade acadêmica. Assim sendo, os musicólogos já têm à disposição
uma diversidade de abordagens, métodos e referências.
Por que não estamos junto
com a Musicologia?
A pergunta dessa subseção personifica um dos desconfortos
provenientes da falta de uma posição estabelecida no meio acadêmico para a
subárea objeto do presente estudo. O intérprete – ou musicólogo?[4] – John Rink, em um artigo
que discute como as ferramentas de análise musicológica aplicadas nas Práticas
Interpretativas são diferentes (e não piores!) em relação à Musicologia, aponta
uma valoração de perfis acadêmicos relacionada à questão:
[...] existe há muito tempo na musicologia uma
suposição implícita, segundo a qual os acadêmicos ocupariam um patamar superior
em termos de conhecimento e discernimento, e que os intérpretes que não buscam
assimilar avidamente os resultados dessas pesquisas em suas performances
correriam o risco de se entregar a um fazer musical superficial e desprovido de
sentido, que serviria apenas a eles enquanto indivíduos, ao invés de atender a
um ideal mais elevado. Tal ponto de vista é insustentável e deve ser abandonado
de uma vez por todas (RINK, 2012, p. 40).
Por um lado, é necessário reconhecer que a publicação de certos
estudos dotados de fragilidade metodológica pode dar margem à crítica que Rink procurou responder. Dentre alguns exemplos, temos a
autoetnografia, ferramenta utilizada com recorrência nos últimos anos em
pesquisas associadas às Práticas Interpretativas. A etnografia é um método de
pesquisa oriundo da Antropologia, sendo aplicada primordialmente em pesquisas
sobre comunidades – voltada, portanto, ao estudo da coletividade em contextos
sociais, históricos e culturais. Logo, sua derivação individual – a
autoetnografia[5] – deve(ria) abordar a posição
do indivíduo em seu contexto, situando-o no meio sociocultural e compartilhando
os saberes advindos dessa experiência, para assim manter o foco na
coletividade, dialogar com a literatura relacionada e promover contribuições à
área do conhecimento em pauta. Entretanto, ao verificar qualitativamente o
emprego da autoetnografia em estudos recentes associados às Práticas
Interpretativas, a pesquisadora Rebeca Vieira apontou a aplicação dessa
ferramenta em uma maneira definida pela autora como de “caráter pessoal”[6], deixando a desejar em termos de acréscimos efetivos
para o debate sobre a coletividade, a investigação acadêmica e, principalmente,
em termos de contribuição para a área do conhecimento[7]:
Depois de realizadas as análises sobre as
pesquisas, identifico duas vertentes dentre os resultados obtidos com as
investigações: de caráter pessoal, que pode ser ou não compartilhado com sua
área de conhecimento; e a de caráter geral que pode ser aplicável em outras
experiências. Acredito ser esse o principal desafio das pesquisas em Práticas
Interpretativas que se utilizam da autoetnografia como ferramenta metodológica:
fazer de sua autodescoberta uma descoberta que pode ser partilhada em outras
experiências. A forma de conduzir a investigação, principalmente na análise dos
materiais levantados, pode ser o diferencial. [...] Chego à conclusão de que a
autoetnografia é uma excelente ferramenta metodológica a ser aplicada nas
investigações sobre as Práticas Interpretativas, sobretudo quando utilizada em
conjunto com ferramentas complementares que envolvam a participação de outros
agentes, pois assim as pesquisas tendem a ganhar maior credibilidade nos seus
resultados (VIEIRA, 2020, p. 1076).
A autora complementa que a “pesquisa da prática artística é uma
jovem aprendiz” (VIEIRA, 2010, p. 1076);
logo, é parte do processo de amadurecimento haver experiências metodológicas
que deixam a desejar. Esse é um processo natural das disciplinas que ainda
precisam passar por uma consolidação e subsequente aceitação por parte do meio
acadêmico – vide o percurso pelo qual passaram as Ciências Sociais e Humanas no
século XIX, conforme aponta o musicólogo Henk Borgdorff (2012):
eram consideradas “faculdades inferiores” até o final do século XVIII[8]. Nesse sentido, é preciso manter uma autoavaliação
constante sobre as produções para assim assegurar o desenvolvimento do campo[9]. Todavia, a
generalização feita aos intérpretes em geral, denunciada anteriormente por Rink, não pode ser aceita. Borgdorff
alerta que existe um tipo de perfil acadêmico presente na própria área de
Música, e nas Artes em geral, que resiste à aceitação da prática como meio
legítimo de pesquisa e produção de conhecimento: “Para certos acadêmicos
estabelecidos da arte, a prática como pesquisa não pode ser aceita como uma
metodologia respeitável, sendo vista como uma nódoa em subdisciplinas de arte e
mídia recém-estabelecidas” (BORGDORFF, 2012,
p. 4).
Outro aspecto que diferencia a subárea debatida em relação à
Musicologia é a necessidade de autoafirmação como “Ciência”; enquanto se trata
de um objetivo preterido na última, vários estudos ligados às Práticas
Interpretativas reiteram a intenção de diferenciar essa subárea como sendo
“Arte”. Uma ilustração notável é a breve menção do pianista José Alberto Kaplan
em sua Teoria da Aprendizagem Pianística, obra
norteada pelo objetivo de sistematizar o ensino e aprendizagem do piano por
meio de processos científicos, mas sem abandonar a essência da prática
pianística e musical em geral, que é o fazer artístico:
Em trabalhos anteriores, procurei demonstrar –
e creio tê-lo conseguido – a necessidade inadiável de fundamentar o ensino do
piano, não no empiro-subjetivismo imperantes, e sim
em bases científicas, isto é, nos dados objetivos que nos podem proporcionar
aqueles ramos do saber que, como a Anatomia, a Fisiologia, a Física e a
Psicologia, especialmente a da Aprendizagem Motora, deveriam ser os pilares de
sustentação do processo de ensino-aprendizagem dos instrumentos musicais. É
verdade que tocar piano ou qualquer outro instrumento não será nunca uma
ciência, nem pretendemos que o seja, mas não vemos razões suficientemente importantes
que invalidem nossa pretensão de que a execução instrumental e seu ensinamento
estejam alicerçados em premissas de caráter científico (KAPLAN, 1987, p. 13).
Ligando essa questão às Artes de maneira geral, um desdobramento
emerge nos debates pioneiros sobre pesquisa em Arte no Brasil, levantados pelo
artista visual e pesquisador Sílvio Zamboni, já vistas na opção pelo título de
seu livro sobre o assunto – A Pesquisa em Arte: um
paralelo entre Arte e Ciência (ZAMBONI,
2001). Na introdução, o autor relata alguns dos desafios institucionais
enfrentados durante o processo de aceitação das Artes como uma área do
conhecimento junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico do Brasil (CNPq):
No CNPq, ficou cada vez mais clara a todos os
dirigentes a necessidade de oficialização da área de artes. Mas isso não era o
bastante. Uma proposta nesse sentido deveria ser aprovada no órgão colegiado de
deliberação máxima da instituição, no qual tinham assento e voto vários membros
representantes da comunidade científica, muitos dos quais eram contrários à
implantação da área. Alegavam que o CNPq era um órgão que, por tradição,
apoiava a ciência baseando-se nos próprios critérios científicos para definir
os projetos a serem aprovados, e que não deveria apoiar as artes, pois poderia
ferir os objetivos primeiros da instituição, além de faltarem critérios claros
e objetivos para o julgamento de projetos em artes (ZAMBONI, 2001, p. 2).
Dessa maneira, fica claro que as Práticas Interpretativas
necessitam da “Ciência” em sua acepção tradicional, mas não podem apenas se
restringir ao pensamento científico-racional e seus respectivos protocolos de
investigação. E se por um lado se deseja manter a intuição, a subjetividade e a
experimentação como características afins ao cotidiano laboral do intérprete –
elementos que, em diversas situações, ainda despertam “maus olhares” no meio
acadêmico – por outro, segundo Borgdorff, há um
pré-conceito sobre a metodologia científica como se ela não oferecesse espaço
para criação e inovação:
Os pesquisadores acadêmicos, além de
desenvolver os métodos e técnicas apropriados para a condução de seus estudos,
definem as regras de validade e confiabilidade dos resultados com base no
próprio domínio da pesquisa, e não de maneira externa e/ou independente a ela.
A ciência alcança sua excelência se for conduzida de maneira menos rígida e
limitada do que imaginam alguns participantes do debate (BORGDORFF, 2012, p. 40).
Nesse sentido, além do pré-conceito que certos acadêmicos de
áreas estabelecidas têm sobre a produção artístico-cultural, existe também um
desconhecimento de boa parte dos artistas em relação ao ofício de um
pesquisador. Uma hipótese para a última questão é que nos cursos voltados à
formação de intérpretes da área de Música, os componentes curriculares
relacionados à pesquisa acadêmica – quando existem – são apresentados como
manuais de metodologia científica “engessados”, baseados na descrição dos
métodos de investigação como regras e procedimentos a serem seguidos, falhando
em demonstrar as possibilidades de variações e adaptações para cada ferramenta
metodológica. A pesquisadora Carolina Couto, em sua pesquisa doutoral, trata de
características preteridas da estrutura curricular de cursos voltados à
formação de intérpretes:
A trajetória tradicional de formação do músico
performer, que em sua maioria prioriza o desenvolvimento de habilidades
artísticas e musicais em detrimento de um treinamento da capacidade reflexiva
sobre essas habilidades e todo o conjunto de conhecimentos teóricos,
filosóficos e sociológicos implicados nela, acaba desenvolvendo mais um
conhecimento do tipo tácito. A dificuldade de falar sobre um conhecimento dessa
natureza será acentuada pela ausência de estudos de caráter mais teórico no
currículo que subsidiariam o treino para o desenvolvimento da habilidade do
pensamento reflexivo com esse tipo de material (COUTO, 2019, p. 9).
Ao mesmo tempo, há uma certa dúvida dos intérpretes com relação
ao usufruto da metodologia científica em suas carreiras profissionais – fato
compreensível diante do distanciamento que ainda persiste entre prática
artística e pesquisa acadêmica. Soma-se à questão o fato de que as disciplinas
de Metodologia Científica, na maioria absoluta das vezes, não apresentam
ferramentas de investigação claramente direcionadas à pesquisa sobre Artes e através das Artes – conceito proveniente da Pesquisa
Artística, em debate internacional desde o início da década de 1990 segundo Borgdorff (2012) e
que será abordado adiante.
E por que também estamos
junto com a Musicologia?
Sônia Ray e Fausto Borém,
pesquisadores de longa data dedicados às Práticas Interpretativas – e que
defendem a nomenclatura “Performance Musical” –, procuraram
delinear os principais tópicos e contribuições da subárea através de uma
análise quali-quantitativa de estudos publicados
entre 2000 e 2012 em uma seleção de
periódicos e de eventos acadêmicos da área de Música. Destarte, os autores
apontam certa dificuldade em detectar quais estudos estariam efetivamente
relacionados às Práticas Interpretativas, havendo duas possibilidades:
a. se eles são autodeclarados
afins à subárea pelo(s) próprio(s) autor(es/as); ou
b. se o tema e/ou a abordagem
se relacionam à subárea em questão, com base na proposta taxonômica
desenvolvida pelos autores.
De maneira geral, os autores concluem que a subárea é, por
natureza, “versátil e interdisciplinar” – e, possivelmente, multidisciplinar[10]. Eles também apontam que as pesquisas relacionadas
às Práticas Interpretativas são recentes meio acadêmico brasileiro, sendo que
em outros países, Gerling
e Souza (2000) – em outro relevante estudo voltado à caracterização da
subárea em debate – afirmam que elas retroagem à década de 1920. Contudo,
concordamos em parte: para que haja um diálogo inter/transdisciplinar,
é necessário que o campo temático já esteja consolidado como disciplina. Mesmo
com os avanços das últimas décadas – que diferem da dificuldade pioneira
apontada por Ray e Borém (2012, p. 160) na qual os
intérpretes ingressantes na pesquisa acadêmica, diante da falta de
especialistas, tinham de recorrer a orientadores que desconheciam a realidade
da prática vocal, instrumental, da regência e da composição – as Práticas
Interpretativas ainda carecem de uma consolidação mais ampla de métodos,
procedimentos e recursos próprios de investigação. Estamos, aparentemente, em
uma etapa análoga à da Musicologia nas primeiras décadas do século XX,
ancorando-se em métodos de outras disciplinas já estabelecidas – daí a
percepção de uma “interdisciplinaridade”, mas que é, contudo, mais a
consequência da falta de uma identidade própria.
Tomando como base a pesquisa exploratória de Renato Borges,
voltada à análise da produção acadêmica de Música com a proposição do conceito
de “repertório musicológico” – referente às ferramentas metodológicas
desenvolvidas até então pela Musicologia – o autor analisou qualitativamente
dezoito teses de doutorado defendidas no Programa de Pós-Graduação em Música da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) entre 2009 e 2015
autodeclaradas afins às Práticas Interpretativas. As características
diagnosticadas por Borges, em síntese, são as seguintes:
• O compositor como a figura central dos estudos;
• Ampla dependência dos conceitos de autor.
obra;
• Condução da pesquisa com base na proficiência/especialidade do
intérprete (instrumento, canto ou regência) [11]
com consequente “especialização extremada” do estudo;
• Uso de diferentes tipos de suporte para além do texto
acadêmico.
Com relação ao primeiro ponto, a contextualização histórica sobre
o repertório estudado – uma importação da historiografia recorrente em estudos
ligados à interpretação musical – prioriza o autor/compositor e seu respectivo
contexto em relação a outros tópicos como, por exemplo: definições de gênero
musical; história da circulação das obras estudadas; idiomatismo e técnica
instrumental; subsídios para edições musicais críticas; ou análise
interpretativa de fonogramas.
Apesar de breve, a amostra estudada pelo autor já apresenta
características recorrentes da produção acadêmica ligada às Práticas
Interpretativas, com destaque à importação de modelos analíticos das
Musicologias Histórica e Sistemática. Além disso, tais pesquisas se edificam –
de maneira implícita – sob uma compreensão estabelecida de “música” na perspectiva
sociológica da cultura “Ocidental”, e geralmente não têm o objetivo de abordar
aspectos sociais, políticos e econômicos presentes na prática, produção,
difusão e nas posições e estruturas de poder consolidadas no mercado e na
cadeia produtiva da música erudita (ou de concerto), focando quase que
exclusivamente, portanto, nos conceitos de autor e obra pontuados por Borges.
Não vemos essa abordagem como problema em uma determinada pesquisa em si; a
questão passa a ser inadequada quando uma subárea inteira se ancora em apenas
uma única perspectiva metodológica, gerando pouca ou mesmo nenhuma reflexão
sobre as várias possibilidades de pesquisa disponíveis ao
intérprete-pesquisador.
Como consequência da dita “especialização extremada” (BORGES, 2019, p. 70), o autor aponta para
uma possível consequência da ênfase no idiomatismo típica de estudos
relacionados à subárea em pauta:
Eles [os estudos] priorizaram atender a uma
demanda bastante específica, delimitada entre a obra e o instrumento propostos.
Caso fosse buscado um nível epistemológico de hierarquia mais alta a que esses
textos pudessem se incorporar, eles seriam no Brasil associados à subárea de
Performance (ou Práticas Interpretativas e demais denominações). No entanto,
vê-se que o que emerge dessa situação não é o fortalecimento de um campo de
Práticas Interpretativas propriamente dito. Isso parece o mais significativo
aqui. No lugar disso, estabelecem-se microrredes de
pesquisas e assuntos, organizadas a partir principalmente dos instrumentos.
Talvez, por isso, uma palavra forte nessas pesquisas seja idiomatismo, buscando
lidar principalmente com aquilo que é particular daquele instrumento (BORGES, 2019, p. 71).
Trata-se de uma situação oposta ao que pontuam Ray e Borém ao discorrer sobre o contexto de inserção dos
primeiros intérpretes no universo da pesquisa acadêmica, cujos trabalhos finais
podiam conter dois problemas: “falta de profundidade e ausência de uma relação
factível com a performance” (RAY; BORÉM, 2012, p.
160). Em acréscimo, Borges traz uma questão que pode ser relacionada às
conclusões do estudo de Vieira (2020) acerca
do (mau) uso da autoetnografia:
Uma leitura dos textos revela uma preocupação
em alcançar conclusões para um público-alvo que se encontra naquela mesma
situação específica, sem empreender diálogos com campos mais amplos da própria
atividade musical, começando com praticantes de outros instrumentos,
repertórios, estilos e gêneros, e alcançando compositores, arranjadores,
professores de música, musicólogos e demais analistas (BORGES, 2019, p. 70-71).
Podemos acrescentar as limitações de tais tipos de pesquisa aos
próprios intérpretes: os estudos de caso sobre repertório acabam sendo de
interesse direto apenas para quem pretende interpretar aquelas obras em
particular; ausentam-se, portanto, subsídios capazes de oferecer contribuições
mais amplas a um repertório de regiões, épocas e linhas estéticas variadas ou
mesmo à subárea de maneira mais geral. Trata-se de um fato curioso, pois Gerling e Souza
(2000) e Ray e Borém (2012) ilustram uma
diversidade metodológica considerável nas pesquisas em Práticas
Interpretativas, enumerando estudos heterogêneos em termos de possíveis tópicos
e abordagens [12]. Tal fato nos leva, mais uma
vez, a suspeitar de lacunas na formação de intérpretes com relação aos
componentes curriculares dedicados à pesquisa acadêmica, mesmo em nível de
pós-graduação – questão corroborada pelo estudo de Couto (2019).
Caminhos para delinear a
identidade da subárea
Com relação à última característica observada por Borges, o uso
de diferentes tipos de suporte – tanto nas etapas da pesquisa (processo) quanto
no produto final – sinaliza uma qualidade distinta das Práticas Interpretativas.
Na oportunidade, o autor se refere ao uso de partituras e fonogramas, sendo
esses últimos mais ligados ao interesse dos intérpretes por conterem
sonoridades que documentam objetivamente ideias e conceitos de interpretação musical[13]. Diversos estudos
ligados à subárea como, por exemplo, os de Pederiva
(2004), Madeira e Scarduelli (2014),
Póvoas e Pontes (2007), o mencionado Kaplan (1987) e Borém (2011) abordam, sob diferentes pontos
de vista – a saber: saúde do músico, expressividade cênico-musical e
aprendizagem motora, respectivamente – corpo e movimento para intérpretes. No
estudo desse tópico, as descrições textuais acadêmicas se apresentam como uma
ferramenta metodológica limitada[14], motivo
pelo qual o emprego de imagens, vídeos, renderização15 e
captura de movimentos[16] é mais adequado para
compreensão dos fenômenos investigados. Tais tipos de dados, naturalmente,
demandam o uso de plataformas multimídia, diversificando os tipos de suporte
para a pesquisa em Práticas Interpretativas. Contudo, geram um desafio para as
Ciências da Informação: a necessidade de repositórios para publicação capazes
de lidar com tais recursos, não se limitando apenas à hospedagem de arquivos de
texto e imagem – sendo o formato PDF aquele mais disseminado na atualidade. Um
importante exemplo é o “Research Catalogue”,
repositório internacional dedicado à publicação de estudos ligados à Pesquisa
Artística e que conta com os recursos tecnológicos necessários mencionados –
disponível em https://www.researchcatalogue.net.
Aqui, temos um ponto importante a ser debatido nas pesquisas
acadêmicas das Práticas Interpretativas: muitas das informações presentes no
dia-a-dia do intérprete – desde a interpretação do repertório, aprendizagem e
preparação da prática à etapa de difusão das obras – são “invisíveis” aos meios
tradicionais de documentação e publicação acadêmica, pois envolvem audição
direcionada e analítica, estudo cinestésico/de movimentos corporais e de
sensações táteis, direcionamento da atenção/concentração, propriocepção[17] e educação somática[18],
para assim enumerar alguns dos aspectos e tipos de informações presentes nesse
complexo campo de investigação[19]. O flautista
e pesquisador Jorge Salgado Correia se refere à inclusão desses tipos de
informação como a “fratura epistemológica” das Práticas Interpretativas (CORREIA, 2013), pois elas precisam ampliar
seu leque metodológico em relação a ferramentas, procedimentos e formatos para
divulgação de pesquisas, não se limitando apenas à importação dos padrões
provenientes de outras disciplinas – incluindo a Musicologia. Borgdorff acrescenta ao debate:
[...] adotar unilateralmente o modelo das
‘ciências naturais’, das ‘ciências sociais’ ou das ‘humanidades’ [...] irá produzir
uma compreensão míope do que realmente está acontecendo nas artes. As várias
abordagens divergentes sobre processos e produtos artísticos possuem sua
própria razão de ser [...] (BORGDORFF, 2012,
p. 23).
Couto, ao analisar as diretrizes dos Programas de Pós-Graduação
em Música brasileiros em vigência, sinaliza que ainda não há espaço para adoção
de suportes diversos de divulgação científica, prejudicando o estabelecimento
de novas ferramentas metodológicas para as Práticas Interpretativas:
Embora cada área do conhecimento possua
autonomia metodológica e epistemológica, autonomia quanto ao estabelecimento de
critérios para constituição de quadros docentes dos cursos e programas, para
organizar e gerir a forma de seleção e treinamento dos discentes, para decidir
quantidade e tipos de produção aceitas e seus critérios de avaliação, os
músicos devem apresentar produção em formato de texto acadêmico,
independentemente se a área optou por aceitar a produção artística como mais um
tipo de produto legítimo. Nesse sentido, podemos dizer que essa norma que
estabelece a necessidade de compartilhamento pela via escrita do conhecimento
que se produz acaba configurando uma demarcação limítrofe dentro da qual a
autonomia dos profissionais em questão pode ser exercida. Em outras palavras, a
maneira com que o sistema de pós-graduação se encontra estruturado permite aos
músicos autonomia para controlar o corpo de conhecimento que lhe compete bem
como a forma de produzi-lo, mas não proporciona autonomia completa em relação à
forma de compartilhá-lo (COUTO, 2018).
Logo, a diversificação dos tipos de dados a serem tratados, bem
como a adequação dos repositórios institucionais às necessidades de difusão das
pesquisas que fazem uso dessas particularidades, ainda são insipientes no
cenário nacional.
A pesquisa artística em
música
Ao nos debruçarmos sobre os referenciais que tratam da Pesquisa
Artística para a elaboração de um breve manual didático de metodologia
científica para a área de Música (CERQUEIRA,
2017), foi possível propor um modelo que ilustra a hierarquia entre as
ferramentas de pesquisa presentes em manuais de metodologia científica (Figura 1):
Figura 1 -
Fonte: elaborado
pelo autor em 2022.
Apesar da limitada amostra de manuais de metodologia científica
utilizada para elaboração do mencionado livro (CERQUEIRA, 2017), percebemos uma característica
em comum ao conjunto de referências acessadas. Os manuais voltados às Ciências
Exatas apresentavam métodos, abordagens e teorias aplicáveis apenas a esse
conjunto de áreas, e sequer mencionavam ferramentas das Ciências Sociais e das
Humanidades – mesmo sendo essas utilizadas nos campos da Biologia e Ciências da
Saúde, mais próximas às Ciências da Natureza. Entre os tópicos recorrentes
apresentam-se o método cartesiano, o método hipotético-dedutivo, noções de
Estatística e as propostas conceituais de Isaac Newton e Francis Bacon, entre
as diversas possibilidades. Já nos manuais voltados às Ciências Sociais e
Humanidades, há menções a métodos utilizados nas Ciências Exatas e Naturais –
de maneira menos detalhada – com o acréscimo de ferramentas e teorias próprias
das primeiras, incluindo métodos para pesquisa com pessoas (entrevista,
questionário, etnografia, etc.) e bases teóricas para interpretação da
realidade e construção de narrativas (marxismo dialético, fenomenologia e
psicanálise, por exemplo).
Com relação aos métodos específicos das Artes, incluindo a
Pesquisa Artística – somada a toda a bagagem metodológica das Ciências Exatas,
Naturais, Sociais e Humanas – não os encontramos em nenhum dos manuais de
metodologia científica, levando-nos a ancorar nas referências que oferecem um
diagnóstico sobre os métodos e abordagens mais recorrentes. Entre eles, o livro
de Borgdorff apresenta subsídios importantes,
exemplificando disciplinas ligadas às Artes, Mídia e Estudos Culturais que já
contam com métodos reconhecidos na academia, a saber: Musicologia (de maneira
mais geral), História da Arte, Estudos em Teatro, Estudos em Mídia e Literatura
(BORGDORFF, 2012, p. 38). O musicólogo
acrescenta um campo caracterizado por abordagens próprias das Ciências Sociais
Aplicadas em uso nas Artes, que envolvem pesquisas ligadas indiretamente à
realização artística – adaptações acústicas de espaços culturais,
desenvolvimento de tecnologias em apresentações públicas e interações entre
linguagens artísticas, por exemplo. Contudo, como tais pesquisas também se
baseiam em métodos consolidados de outras áreas do conhecimento – em relação
aos exemplos mencionados: Física/ Acústica, Computação/Informática,
ópera/espetáculo cênico e de dança/audiovisual e cinema, respectivamente –
optamos por não as diferenciar das disciplinas mencionadas anteriormente em
termos de categorização.
Mesmo sendo tais disciplinas e estudos desenvolvidos com a
adoção de métodos e abordagens já consolidados na academia, adaptações
particulares para a área de Música podem ser observadas. A historiografia,
quando aplicada à Musicologia Histórica, faz uso de apreciação de repertório e
de fontes primárias raramente utilizadas na área de História, como programas de
concerto e encartes de fonogramas; já na organização e manutenção de documentos
musicais, conceitos de Arquivologia e Biblioteconomia precisam ser adaptados,
como a questão do arquivo sair da fase corrente (uma partitura ou fonograma
sempre pode voltar à utilização, a qualquer tempo) e o incipit, uma síntese do tema principal da peça que
deve estar presente entre os metadados de catálogos de coleções e acervos
musicais – e que exige do bibliotecário um conhecimento elementar de leitura
musical (ÁVILA, 2021), entre alguns
exemplos. Tais particularidades permitiram a definição de uma identidade para a
Musicologia como disciplina, levando Borges a propor o conceito de “repertório
musicológico”. A aplicação dessas ferramentas nas Práticas Interpretativas, por
sua vez, foi referenciada por Correia como “Estudos em Performance”.
Entretanto, o autor reconhece que tais métodos e abordagens não são suficientes
para abordar aspectos mais aprofundados sobre a prática do intérprete, sendo
necessário envolver análise e documentação de informações aurais/auditivas e
visuais mais amplas, motoras/cinestésicas e táteis; e o papel da
concentração/atenção seletiva, intuição, subjetividade e da experimentação,
entre outras possibilidades. Aqui, Correia faz a proposta metodológica da
“Investigação Artística” [20], termo utilizado
em Portugal mais próximo ao que temos chamado de “Pesquisa através das Artes”.
Breves explanações
conceituais
Pesquisa Artística, de maneira geral, refere-se a qualquer
investigação acadêmica que possui arte como objeto e/ou objetivo de estudo.
Inclui, portanto, toda a literatura da pesquisa sobre
e para práticas/processos e produtos
artístico-culturais. No entanto, a diferença substancial se faz presente em uma
nova proposição de abordagem metodológica: a pesquisa através
das artes. Nela, a prática artística se faz presente como método de
investigação com todas as suas particularidades: intuição, experimentação e
demais elementos mencionados anteriormente. Essa abordagem metodológica visa a
acessar conhecimentos e habilidades invisibilizados nas ferramentas de pesquisa
já estabelecidas, seja pela impossibilidade de documentação (no caso da
sensação tátil)[21],
pela restrição proveniente do conceito tradicional de “conhecimento” na
academia[22] ou pela dificuldade gerada devido à
complexidade das informações envolvidas. Nesse último caso, oferecemos o
exemplo do instrumentista: os movimentos corporais construídos para a
interpretação de uma obra são resultado de anos de estudo e aprimoramento
cinestésico e tátil, e não estão restritos apenas à preparação dessa obra em
particular: envolvem toda sua trajetória de ensaios e prática deliberada, as
aulas de instrumento com seus professores, as masterclasses e outros
meios de adquirir informações cinestésico-motoras, como assistir a concertos de
instrumentistas e a videoaulas de técnica instrumental. Tais saberes, passados
entre gerações de intérpretes-professores de maneira similar às tradições orais
principalmente devido à impossibilidade de registro – e cuja interrupção pode
acarretar consequências irreversíveis para a subárea em debate – é chamado de conhecimento incorporado [23].
No meio acadêmico, ele pode passar despercebido por pesquisadores não
familiarizados com o ofício do intérprete, correndo risco constante de rejeição
como forma legítima de saber[24].
Borgdorff oferece uma defesa persuasiva para a
questão:
Essa abordagem [pesquisa através das artes] é
baseada na compreensão de que não existe separação fundamental entre teoria e
prática nas artes. Além disso, não há práticas artísticas desprovidas de
experiências, histórias e conhecimento; da mesma maneira, não há teoria ou
interpretação da prática artística que deixa de moldá-la em sua essência. Conceitos
e teorias, experiências e compreensões estão inter-relacionados com a prática
artística; e, parcialmente por esse motivo, a arte é sempre reflexiva. Assim, a
pesquisa através das artes busca articular parte desse conhecimento incorporado
por meio do processo criativo e do produto artístico (BORGDORFF, 2012, p. 38-39).
Apresentamos adiante um modelo que situa a Pesquisa Artística e,
particularmente, a pesquisa através das artes no cenário da metodologia de investigação
acadêmica (Figura 2):
Figura 2 -
Fonte: elaborado pelo
autor em 2022.
O que entendemos por “Pesquisa Artística” consiste no círculo em
cinza, envolvendo as subcategorias “pesquisa sobre artes” (que faz uso de
métodos e abordagens consolidados) e “pesquisa através das artes” (na qual a
prática artística constitui parte do método de investigação). O modelo mostra
também a localização da produção artístico-cultural em geral, incluindo tanto
aquela externa ao meio acadêmico – ou seja: produzida sem o intuito da pesquisa
acadêmica – quanto aquela resultante de processos de investigação artística e
que fazem a interseção entre os meios interno e externo à academia.
É inevitável que nesse momento algumas perguntas apareçam: o que
caracteriza, então, a diferença entre a produção artístico-cultural feita com
pesquisa daquela usual? Os pesquisadores ligados ao tema, depois de debates
calorosos em eventos dedicados à pauta, procuram responder. O musicólogo Rúben López-Cano e a musicóloga Úrsula San Cristóbal Opazo, em relevante publicação sobre esse tópico, afirmam
que para diferenciar o processo criativo das Artes em geral com o viés de
pesquisa, algumas preocupações são necessárias, sendo elas: a) documentar o
processo de criação artística, de maneira a tornar possível sua análise e replicação
do modelo; e b) permitir o compartilhamento do conhecimento gerado sobre o
processo e/ou o produto (LÓPEZ-CANO; SAN
CRISTÓBAL OPAZO, 2014, p. 47). Borgdorff
acrescenta que para permitir seu desenvolvimento, a Pesquisa Artística deve
adotar o mesmo sistema de orientação acadêmica e de revisão por pares da
prática científica tradicional, assegurando a avaliação dos processos e
produtos por artistas-pesquisadores de excelência em seus respectivos campos de
atuação (BORGDORFF, 2012, p. 132-133).
Já a coreógrafa Efva Lilja,
em seu livro Arte, Pesquisa, Empoderamento: sobre o artista como pesquisador,
oferece uma concepção mais aberta, afirmando que ao abordar produções
artísticas de diferentes locais, épocas e comunidades, o artista já estaria
trabalhando sob uma perspectiva de investigação (LILJA, 2015, p. 15). Contudo, todos esses
autores concordam que se trata de (mais) um debate relacionado à Pesquisa
Artística que ainda precisa de amadurecimento para chegar a soluções
consensuais.
Alguns exemplos de
“pesquisa através da Música”
A exemplificação é certamente a melhor maneira de conhecer as
possibilidades metodológicas da pesquisa através das artes aplicada à área de
Música, inclusive porque é a literatura produzida que irá solidifica-la como
disciplina. López-Cano e San Cristóbal Opazo (2014) baseiam seu livro em pesquisas concluídas
e reconhecidas como afins ao método em debate. Apresentamos adiante uma síntese
das ilustrações dos autores, organizadas em tópicos mais gerais:
• Inovação nas convenções de difusão e
circulação da produção musical: pesquisas que envolvem apresentações em
espaços alternativos, formas inovadoras de interação com o público e
experimentos transdisciplinares com expressões e linguagens artísticas
variadas. Alguns exemplos são os concertos-debate (mais amplos que os “recitais-palestra”,
pois abrem espaço para diálogo com o público), recitais em espaços culturais
diferentes daqueles em que o tipo de prática musical abordada circula por
convenção, reconstituição virtual de espaços acústicos (recorrente com a música
acusmática), dramatizações, artes performáticas
(integração com as Artes Cênicas e/ou a Dança) e mídias audiovisuais em
interação com a interpretação ao vivo;
• Práticas inovadoras de interpretação: pesquisas
que visam ao estabelecimento de formas distintas de reger, cantar ou
interpretar o instrumento e/ou documentação do processo de estudo/preparação.
Alguns exemplos são readaptações, arranjos e intervenções no repertório
canônico, reconstituição de práticas históricas de organologia,
escuta/apreciação e interpretação (aqui entra a dita “interpretação de época”
ou “interpretação historicamente informada”), criação de técnicas expandidas ou
de novos recursos para a interpretação, análise de movimento, corpo e gesto no
fazer musical, experiências performáticas (ansiedade no palco e estudos que
tangenciam Psicologia e Educação Física, entre outros), registro e análise do
processo de preparação do repertório;
• Teoria e análise aplicadas à
interpretação: pesquisas que adotam ferramentas analíticas, musicais ou
não, direcionadas à interpretação musical. Algumas possibilidades são estudos
sobre decisões interpretativas em gravações de obras, análise performativa –
aqui, entram os estudos de Robert Hatten (2004) sobre
gesto musical, que agregam teoria musical com o resultado sonoro das
interpretações para análise e compreensão da obra – integração entre
hermenêutica, retórica e semiótica junto à interpretação musical,
intertextualidade e interdiscursividade (relações transdisciplinares entre a
música como expressão, linguagem ou discurso com outras áreas das Artes).
Sob tais perspectivas metodológicas, uma breve busca na internet
revelou pesquisas associadas às Práticas Interpretativas no Brasil que fazem
uso de abordagens afins a alguns dos três tópicos apresentados. Seria oportuno
realizar uma investigação qualitativa para avaliar como cada um dos estudos
encontrados se relaciona à pesquisa para as artes na Música, mas que, por ora,
excede o escopo do presente artigo. Ademais, a perspectiva de já haver uma
produção acadêmica com possível associação à metodologia em pauta aponta para a
necessidade de uma organização mais clara desse corpus de
conhecimento.
E como estão nossas
“irmãs”?
Assim como na área [25] de
Música, Artes Visuais, Artes Cênicas [26] e
Dança contam com especialidades cujas posições se assemelham às do
instrumentista/cantor/regente. São elas, na ordem respectiva: artista
visual/das visualidades (nas vertentes bi e/ou tridimensional), ator/atriz [27] e bailarino(a)[28]. No âmbito da pesquisa acadêmica, as subáreas que se
dedicam aos processos de criação interpretativa são:
• Artes Visuais: Poéticas Visuais ou
Poéticas Artísticas, com base no último encontro da
Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP);
• Artes Cênicas: Atuação Cênica ou Processos de Criação. Expressão Cênicas, com base no
último congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes
Cênicas (ABRACE);
• Dança: Poéticas ou Execução da Dança, baseado em documentos da Associação
Nacional de Pesquisadores em Dança (ANDA); contudo, a última nomenclatura foi
objeto de recente questionamento por parte de pesquisadores da área (VIERA et al, 2019,
p. 65).
Sobre a Pesquisa Artística em cada uma das mencionadas áreas,
uma breve busca por referências trouxe nomes de artistas-pesquisadores que têm
se dedicado a trazer o debate a suas respectivas especialidades no Brasil.
Alguns deles são Ciane Fernandes e Sílvia Geraldi em
Artes Cênicas; Joelene de Oliveira Lima e Neila Baldi em Dança. O tema
contou com uma mesa-redonda no X Congresso Nacional da ABRACE, realizado em
2018 na cidade de Natal. Com relação às Artes Visuais, não encontramos
publicações que apresentassem o termo “pesquisa artística” com o sentido
proposto nesse artigo.
Uma questão importante que leva a refletir sobre o emprego do
termo “performance” na Música é observar sua utilização nas demais áreas
artísticas. Enquanto performance[29] musical se refere à
apresentação musical pública (recital, concerto, show, etc.) – e que na
justificativa de Borém
(1997, p. 51) seria mais apropriado porque, na língua inglesa, to perform apresenta um sentido mais amplo em relação a
to practice – as Artes em geral, principalmente as
Artes Cênicas, utilizam o termo “performance” em referência a atividades
artísticas multidisciplinares e até pluriculturais, ainda que envolvam o
palco/espaço cultural e a ação pública/voltada a um público. Tomamos como
referência a definição de “Artes Performativas”[30]
proposta no livro de Barros et al (2012), que conta com o corpo (portanto, Dança,
Teatro e Música – mas não apenas essa última!) e a performance
(o espetáculo e a imagem – Artes Visuais, considerando também o público e
sua recepção do performer). Nesse aspecto, o uso do
termo “performance musical” tem sido restrito em
relação ao uso nas demais Artes. Já “interpretação”, por sua vez, denota maior
completude, pois um intérprete pode produzir várias performances
– ou mesmo nenhuma, pois a interpretação de uma obra ou ciclo de obras
não precisa existir apenas no plano físico. De qualquer forma, é fundamental o
diálogo entre as diversas Artes para chegar a uma possível convergência
terminológica ou, ao menos, a um entendimento mútuo.
Por fim...
Ao abordar a formação do intérprete [31]
na Escola Superior de Música de Lisboa, Cristina Cruz trata da inclusão da
pesquisa artística (sob o termo artistic research), trazendo uma nova
perspectiva formativa na instituição. Até então, as pesquisas acadêmicas eram
conduzidas por musicólogos, no âmbito das disciplinas consolidadas –
Musicologia Histórica e Sistemática, Etnomusicologia e Psicologia da Música,
por exemplo. Com a pesquisa artística, introduzida por meio de formações strictu
sensu diferentes das já estabelecidas – semelhantes ao Mestrado
Profissional em Música no Brasil e, futuramente, ao Doutorado Profissional, com
base na sinalização constante no documento de avaliação da pós-graduação mais
recente (CAPES, 2019) – a autora oferece
um panorama sobre as características e impactos da implementação da “pesquisa
através das artes” na Música, destacando ser ainda um sistema em construção:
Informalmente, os performers sempre fizeram
este tipo de investigação sobre o repertório a estudar, o estilo das obras, os
seus compositores, a coerência do programa, as partituras originais, as suas
edições ou a sua recuperação através de investigação, a sua interpretação,
muitas vezes informada historicamente, o instrumento em si mesmo ou as
características do agrupamento vocal ou instrumental executante, a acústica da
sala, etc. A investigação feita por músicos sempre existiu, mas a sua tradução
escrita não. Notas de programa, textos inclusos em edições de discos, CDs e
DVDs, ou ocasionalmente artigos em revistas da especialidade, seriam as formas
mais usuais de comunicação, por escrito, das conclusões ou resultados do
processo de investigação informal que visava à performance e a sua qualidade. A
documentação escrita, gravada ou filmada produzida durante a Artistic Research, também veio
transformar o panorama da investigação em música, já que o performer, um
investigador no seu próprio backyard, comunica os
resultados do que investigou a uma comunidade alargada de musicólogos e
músicos, a partir de uma perspectiva assumidamente subjetiva. O investigador é
um dos participantes e está completamente envolvido no objeto de investigação
quando não é ele próprio, enquanto músico, o objeto de estudo. Um novo
paradigma de investigação veio definitivamente mudar o panorama da investigação
e será necessária alguma distanciação temporal para organizar processos e
métodos, para avaliar os resultados do ponto de vista científico e também
artístico (CRUZ, 2014-2015, p. 78).
Conforme vimos anteriormente, entendemos a pesquisa artística de
maneira mais ampla, e uma diversidade maior de métodos e abordagens podem se
somar às ilustradas por Cruz em seu relato. Entretanto, diferentemente de
Portugal e outros países mais avançados no tópico, o caminho a ser traçado na
realidade brasileira ainda é de aceitação e posterior implementação
institucional dessa perspectiva inovadora para a pesquisa acadêmica. As
contribuições em potencial não serão refletidas apenas para os intérpretes que
buscam uma capacitação no meio acadêmico, mas também à sociedade, através de
profissionais da cadeia produtiva da Música mais seguros sobre como lidar com
uma maior diversidade de práticas e conhecimentos, encontrando, enfim, uma
razão para integrar de fato a pesquisa acadêmica em seu métier.
Com relação à terminologia referente à subárea estudada no
presente artigo, nosso objetivo não é o de propor soluções, mas apenas
sinalizar o problema. Seria oportuna a realização de um debate junto aos
interessados, especialmente envolvendo as entidades que congregam
intérpretes-pesquisadores, a exemplo da Associação Brasileira de Performance Musical
(ABRAPEM) – que, inclusive, já traz em seu título uma proposta de nomenclatura.
Trata-se de uma decisão coletiva; ela não será alcançada através das
entrelinhas dessa ou de qualquer outra publicação acadêmica.
Por parte da academia, é importante, de começo, mudar a visão na
qual o intérprete seria “menos competente” ou um mero “rebelde” no sentido de
acatar e assumir o modus operandi hegemônico e
estabelecido da academia por ser essa uma suposta obrigação dele quando assinou
um contrato profissional com tais instituições. A universidade, as agências de
fomento à pesquisa, as leis e regulamentos que regem o sistema educacional
brasileiro nunca incluíram as Artes com todas as suas particularidades de fato;
é necessário reconhecer que o espaço do intérprete na academia sempre foi
relegado a uma “faculdade inferior”, nos termos utilizados por Borgdorff (2012).
E estamos aí para mudar isso.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, G. A. O elo perdido do ‘tesouro’ de João Mohana:
proveniência documental na música. Tese (Doutorado em Artes) – PPGARTES, UFPA, Belém,
2021.
BARROS, N.; ROMÁN, J. C.; MAIA, M. H. (org.). Artes Performativas:
novos discursos. Porto: Escola Artística Superior do Porto, 2012.
BORÉM, F. O ensino da performance musical na universidade
brasileira. Pesquisa e
Música, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 53-72, 1997.
BORÉM, F. Um
sistema sensório-motor de controle na afinação do contrabaixo:
contribuições interdisciplinares do tato e da visão na performance musical.
Tese (Concurso para Professor Titular) – EMUFMG, UFMG, Belo Horizonte, 2011.
BORÉM, F.; RAY, S. Pesquisa em performance musical no Brasil no
século XXI: problemas, tendências, alternativas. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE
PÓS-GRADUANDOS EM MÚSICA (SIMPOM), 2, 2012, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: UNIRIO, 2012. p. 121-168.
BORGDORFF, H. The Conflict of the Faculties:
Perspectives on Artistic Research and Academia. Leiden: Leiden University
Press, 2012.
BORGES, R. P. T. Repertório Musicológico: conceituação e aplicações
contemporâneas na pesquisa em música no Brasil. Tese (Doutorado em Música) –
PPGM, UNIRIO, Rio de Janeiro, 2019.
CABRAL, T. Musicologia sistemática, humanismo e
contemporaneidade. Opus,
Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 125-150, 2014.
CAPES. Documento
de Área: 11. Artes. Brasília: MEC/CAPES/DAV, 2019.
CASARI, I. S. Metáforas e recursos imaginativos em estratégias
pedagógico musicais. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS
(SIMCAM), 14, 2019, Campo Grande. Anais... Campo Grande: UFMS, 2019. p. 63-70.
CASTAGNA, P. A Musicologia Enquanto Método Científico. Revista do Conservatório,
Pelotas, n. 1, p. 7-31, 2008.
CERQUEIRA, D. L. Considerações sobre a elaboração de um método
de Piano para Ensino Individual e Coletivo. Revista do Conservatório de Música da UFPel, Pelotas, n. 5, p. 98-125, 2012.
CERQUEIRA, D. L. Métodos e Técnicas de Pesquisa em Música.
São Luís: UAB/UEMAnet, 2017.
CERQUEIRA, D. L. Notas sobre a Etnomusicologia no Maranhão:
revisão comentada da literatura. In: JORNADA DE ETNOMUSICOLOGIA, 8, 2021,
Belém. Anais...
Belém: UFPA, 2021. p. 1-15.
CORREIA, J. M. S. Investigação em Performance e a fractura epistemológica. El Oído Pensante,
Buenos Aires, v. 1, n. 2, p. 1-22, 2013.
COUTO, A. C. N. A relação dos músicos da subárea Práticas
Interpretativas com a escrita acadêmica: uma análise sociológica. Debates,
Rio de Janeiro, n. 20, p. 1-26, 2018.
CRUZ, C. B. Sobre a formação de performers,
investigadores e docentes de música: A Escola Superior de Música de Lisboa e
outras instituições públicas de ensino superior. Revista de Educação Musical,
Lisboa, n. 140-141, p. 75-79, 2014-2015.
GERLING, C. M. P. C.; SOUZA, J. V. A Performance
como objeto de investigação. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM
PERFORMANCE MUSICAL (SNPPM), 1, 2000, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 114-125.
HATTEN, R. S. Interpreting Musical Gestures, Topics and Tropes:
Mozart, Beethoven, Schubert. Bloomington: Indiana University Press, 2004.
JAKUBOWSKI, K.; EEROLA, T.; ALBORNO, P.;
VOLPE, G.; CAMURRI, A.; CLAYTON, M. Extracting Coarse Body Movements from Video
in Music Performance: A comparison of automated computer vision techniques with
motion capture data. Frontiers in Digital Humanities, Lausanne, v. 4, n. 9, p. 1, 2017. Disponível em
https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fdigh.2017.00009/full. Acesso em
19 mar. 2022.
JENSENIUS, A. R.; SKOGSTAD, S. A.;
NYMOEN, K.; TORRESEN, J. Reduced displays of multidimensional motion capture
data sets of musical performance. In: CONGRESSO DA SOCIEDADE EUROPEIA PARA AS CIÊNCIAS COGNITIVAS
DA MÚSICA (ESCOM), 7, 2009, Jyväskylä. Anais... Jyväskylä: Universidade de Jyväskylä,
2009.
KAPLAN, J. A. Teoria da Aprendizagem Pianística. 2. ed. Porto Alegre: Movimento, 1987.
LILJA, E. Art, Research, Empowerment: On the
Artist as Researcher. Estocolmo: Regeringskansliet,
2015.
LÓPEZ-CANO, R. La investigación artística
en música en Latinoamérica. Quodlibet, Madrid, v. 74, n.
2, p. 139-167, 2020.
LÓPEZ-CANO, R.; SAN CRISTÓBAL OPAZO, U. Investigación artistica en música: Problemas, métodos,
experiencias y modelos. Barcelona: Edição dos autores, 2014.
MADEIRA, B.; SCARDUELLI, F. O gesto corporal na performance musical.
Opus, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 11-38, 2014.
MUGGLESTONE, E. Guido Adler’s ‘The
Scope, Method and Aim of Musicology’ (1885): An English Translation with an Historico-Analytical Commentary. Yearbook for Traditional Music, Cambridge, v. 13, p.
1-21, 981.
PEDERIVA, P. A aprendizagem da performance musical e o corpo. Música Hodie, Goiânia, v. 4, n.
1, p. 45-61, 2004.
PIMENTEL, L. Tecnologias Motion Tracking.
Motion Capture: poéticas e cibernéticas. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE
ARTES E TECNOLOGIA, 12, 2013, Brasília. Anais... Brasília: UnB, 2013. p. 1-13.
PÓVOAS, M. B. C.; PONTES, V. E. Técnica pianística e coordenação
motora: relações interdisciplinares com vistas à aprendizagem motora. DAPesquisa,
Florianópolis, v. 2, n. 4, p. 472-479, 2007.
RINK, J. Sobre a Performance: O ponto de vista da musicologia. Revista Música,
São Paulo, v. 13, n. 1, p. 32-60, 2012.
VIEIRA, M. S.; SOUSA, M. A. C.; JESUS, T. S. A. (org.). Quais danças estão por-vir? Trânsitos, poéticas e políticas
do corpo. Salvador: ANDA, 2020.
VIEIRA, R. Autoetnografia da Prática Interpretativa: um
levantamento de teses e dissertações brasileiras. In: SIMPOM, 6, 2020, Rio de
Janeiro. Anais...
Rio de Janeiro: UNIRIO, 2020. p. 1066-1077.
ZAMBONI, S. A Pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência.
2. ed. Campinas: Autores Associados, 2001.
ZORZAL, R. C. Metáforas no ensino de música: um estudo de caso
sobre o emprego de linguagem figurada em master-class
de violão. In: SIMCAM, 3, 2007, Salvador. Anais... Salvador: UFBA, 2007. p.
384-389.
Notas
1 No presente artigo,
utilizaremos a palavra “intérprete” em referência a instrumentistas, cantores e
regentes quando for de nossa lavra, ao invés dos termos performers, músicos ou
musicistas. Um debate sobre o uso desses termos é oportuno, entretanto, por ora,
foge à essência do que pretendemos abordar.
2 Um ponto a destacar
para pesquisadores de outras áreas do conhecimento é que “música” – em
minúsculas – certamente já era objeto de estudo desde a Antiguidade Helênica.
Contudo, “Música - iniciando em maiúscula – ainda não era entendida na
academia, nesse contexto, como uma área do conhecimento.
3 Tradução: “O Escopo,
Método e Objetivo da Ciência da Música [Musicologia]”.
4 Interessante observar
que no artigo citado, Rink diferencia “intérpretes”
de “acadêmicos”. Tal fato personifica a distinção que ainda existe entre
“músico” e “musicólogo”, “artista” e “pesquisador”, “Arte” e “Ciência”.
5 Uma curiosidade:
Ruben López-Cano, em um artigo sobre a pesquisa artística na América Latina (LÓPEZ-CANO, 2020), afirmou que a pesquisa
de doutorado do autor do presente artigo é uma “autoetnografia”; contudo, não
há menção ao termo na tese, nem foi sinalizada a adoção dessa ferramenta na
metodologia.
6 Borém e Ray (2012, p.
124-125) percebem problema semelhante ao tratar dos primeiros estudos de
pós-graduação strictu sensu brasileiros da área de
Música.
7 Existe um trocadilho
na língua inglesa em referência a esse tipo de falha metodológica, baseada no
termo research: “mesearch”.
8 Segundo o contexto
ilustrado por Borgdorff
(2012), até então, as únicas áreas do conhecimento autorizadas a emitir
diplomas de doutoramento eram Medicina, Ciências Jurídicas (Direito) e
Teologia.
9 Complementação de Borgdorff (2012, p. 6): “Atualmente, este desenvolvimento
[da pesquisa através da prática artística] é caracterizado por uma diversidade
de iniciativas, modelos e práticas, nas quais nem todas são comprovadamente
frutíferas. Essa heterogeneidade é típica de um campo que ainda está se
desenvolvendo e ainda não foi cristalizado completamente. Estabelecer um novo
campo de pesquisa é algo que leva tempo – e gera alguns conflitos”.
10 Uma breve explanação:
a interdisciplinaridade trata do diálogo entre disciplinas de uma mesma área do
conhecimento e multidisciplinaridade se refere a estudos sobre um mesmo tópico,
sendo cada um deles ancorado em uma determinada área e cujas conclusões podem
se cruzar.
11 A essa
característica, Borges (2019) se refere
como alteridade, ou seja: a vivência/proximidade do pesquisador com seu
contexto de investigação – que, nas “Práticas Interpretativas”, é
recorrentemente próxima.
12 Devido à brevidade do
texto, não foi possível exemplificar tais estudos mencionados pelos autores.
Sendo assim, para maior aprofundamento, recomendamos a leitura das respectivas
publicações.
13 É oportuno
mencionarmos a Teoria do Gesto Musical de Robert
Hatten (2004) que oferece uma abordagem inovadora
em Teoria e Análise Musical ao considerar que não apenas a partitura e o
compositor, mas também a literatura de fonogramas e interpretações devem ser
consideradas para o estudo e compreensão de uma obra – colocando o intérprete
em uma posição diferenciada em relação às pesquisas musicológicas tradicionais.
14 Tal fato também
explica o uso recorrente de metáforas no intercâmbio e difusão de saberes no
ensino e aprendizagem musical. Para maiores informações, recomendamos as
leituras de Zorzal
(2007) e Casari
(2019).
15 Essa ferramenta
tecnológica tem sido utilizada em livros didáticos para ensino do piano. Uma
explanação mais pormenorizada pode ser encontrada em Cerqueira (2012).
16 Chamada de motion capture (MoCap) ou
performance animation, essa tecnologia é mais
utilizada em produções audiovisuais de Cinema (animação) e, particularmente, em
jogos virtuais de futebol, nos quais os movimentos de jogadores profissionais
são capturados por receptores óticos ou eletromagnéticos e replicados nos
modelos 3D de suas respectivas réplicas virtuais. No Brasil, estudos na área de
Dança já contam com o uso dessa tecnologia, como no “Elétrico” – Grupo de
Pesquisa em Ciberdança (PIMENTEL, 2013). Em nível internacional,
temos o exemplo de Jensenius
et al (2009) e Jakubowski
et al (2017).
17 A propriocepção diz
respeito à capacidade de sentir e controlar os movimentos e o posicionamento
das partes do corpo apenas pela sensação tátil. O professor de instrumento
evoca a propriocepção em frases como “sinta seu pulso desativado” ao invés de
“olhe o seu pulso desativado” – a segunda frase evoca a visão ao invés da
sensação.
18 A educação somática
trata do desenvolvimento de movimentos/habilidades motoras ao longo da carreira
do intérprete, não se restringindo somente aos movimentos necessários para a
preparação/construção da prática de uma obra musical em particular; seria um
“repertório de habilidades” adquirido ao longo da vida.
19 Com base nessa
questão, podemos afirmar que as práticas musicais e artísticas são
essencialmente orais; mesmo sob processos sistemáticos de documentação, há
informações cuja permanência só é assegurada se forem mantidas entre gerações
de artistas e aprendizes. Logo, a melhor forma de registro é zelar pela
sobrevivência dos agentes culturais, além de dar-lhes de condições adequadas
para manutenção de suas tradições.
20 Alertamos que há
denominações distintas para o que decidimos por chamar de “Pesquisa Artística”,
a exemplo do sinônimo português; encontramos “Pesquisa Performativa” e “Prática
como Pesquisa”, mas que na maioria das ocorrências não corresponde ao
significado empregado nesse artigo. Outro termo visualizado, utilizado em
Portugal, foi “Investigação Baseada em Arte” (tradução literal de Pratice-based Research).
21 É importante frisar
que a documentação cinestésica/de movimentos já é uma realidade, sendo feita
por eletrodos ligados ao corpo para captação em três dimensões. Games de
futebol já fazem isso para registrar os gestos corporais de determinados
jogadores. Contudo, a documentação da sensação tátil ainda é inviável, pois
depende de mecanismos cognitivos internos nos quais apenas a reprodução de
movimentos não assegura a plena compreensão.
22 A intuição, por
exemplo, é apenas um tipo de pensamento humano diferente da razão; contudo, ela
norteia diversas de nossas tomadas de decisão no dia-a-dia, afetando a
realidade. Nas Artes, ela pode ser considerada uma forma de conhecimento.
23 Em referência a esse
conceito, Borges utiliza a expressão “conhecimento tácito”. Na língua inglesa,
o uso recorrente é pelo termo embodied knowledge.
24 Defendemos,
inclusive, que essa é a mesma situação dos Mestres das Tradições Populares, uma
vez que a oralidade e o desenvolvimento de habilidades
através de informações “invisíveis” para as pesquisas acadêmicas tradicionais é
similar ao que acontece com os artistas (CERQUEIRA,
2021).
25 Alertamos aqui para a
classificação das áreas do conhecimento da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), que considera Artes Cênicas, Artes Visuais,
Dança e Música como subáreas de uma grande área denominada “Linguística, Letras
e Artes” – denominação que não concordamos. Por isso, trataremos das diversas
linguagens artísticas como áreas individuais e autônomas do conhecimento.
26 Agradecimentos à
Prof.ª Dr.ª Cássia Batista (UFMA) pelas conversas sobre a questão nas Artes
Cênicas.
27 O dramaturgo ou
teatrólogo tem papel mais semelhante ao do compositor na Música.
28 O coreógrafo,
responsável pelo roteiro do espetáculo de Dança, também se assemelha à função
do compositor.
29 Não apenas no
presente artigo, o termo Performance aparece em itálico pelo fato de possuir
origem latina, mas ter sido “reimportado” da língua inglesa sob outro sentido –
razão pelo qual não é bem visto por alguns pesquisadores da área de Música no
Brasil
30 Interessante observar
que o adjetivo “performativo” tem sido preterido em relação a “performático”.
31 O autor usa o termo
performer em referência a intérpretes.