Dossiê

 

O dizível das pesquisas em educação musical: abordagem (auto)biográfica na produção acadêmica

THE DESCRIBABLE OF RESEARCH IN MUSIC EDUCATION: The (auto)biographical approach in academic production

Mônica Luchese Marques 1

Universidade Federal do Maranhão, Brasil

Ana Ester Correia Madeira 2

Universidade do Estado de Santa Catarina , Brasil

Silani Pedrollo 3

Universidade do Estado de Santa Catarina , Brasil

Teresa Mateiro 4

Universidade do Estado de Santa Catarina , Brasil

Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Continuo
vol. 7, núm. 1, 2022
revistaorfeu@gmail.com
Recepção: 28 Fevereiro 2022
Aprovação: 26 Junho 2022

 

URL: https://periodicos.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/21773

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.

Resumo: Para saber como as pesquisas (auto)bio-gráficas estão sendo desenvolvidas na educação musical, analisamos 47 teses e dissertações por meio de um estudo de estado do conhecimento. Neste artigo ressaltamos a análise sobre o referencial teórico, a metodologia e os neologismos formados na interface educação musical e (auto)biografia. Esses trabalhos refor-çam a autonomia da educação musical como área de conhecimento, e mesmo diante da contribuição da Sociologia, Psicologia e Filosofia, seus objetos de estudos centram-se em problemáticas e campos empíricos específicos da edu-cação musical. A metodologia dos tra-balhos revela uma pluralidade de nomes utilizados que se misturam à abordagem de investigação – como narrativas, bio-gráficas, histórias de vida, história oral –, embora percebamos pouca variação de autores(as) para fundamentá-los. Encontramos seis novos termos com conceitos delineados pelos(as) pesqui-sadores(as), que contribuem para o vo-cabulário da área de educação musical, mostram as encruzilhadas conceituais da área e ampliam os caminhos investi-gativos percorridos.

Palavras-chave: Estado do conhecimento, Referencial teórico, Metodologia, conceitos.

Abstract: Seeking to know how the (auto)biographical research are being developed in music education, we analyzed 47 theses and dissertations throughout a state of knowledge study. We highlight the analysis of the theoretical framework, methodology and neologisms constituted at the interface between music education and (auto)biography. These works reinforce the autonomy of music education as an area of knowledge, and even face to the contribution of sociology, psychology and philosophy, their objects of study focus on specific issues and empirical fields of music education. The methodology of the studies reveals a plurality of names used that merge with terms of research’ approaches: narratives, biographical, life stories, oral history, although we perceive few variations between authors to substantiate. We found six new terms with concepts outlined by the researchers, which contribute to the vocabulary of music educationarea, showing the conceptual crossroads of the area and expanding the investigative paths taken.

Keywords: State of knowledge, Theoretical reference, Methodology, concepts.

Caminho se conhece andando

Caminho se conhece andando, então vez em quando é bom se perder Perdido fica perguntando, vai só procurando e acha sem saber Perigo é se encontrar perdido, deixar sem ter sido, não olhar, não ver Bom mesmo é ter sexto sentido, sair distraído espalhar bem-querer (Chico César)

A canção “Deus me Proteja”5de Chico César, Francisco César Gonçalves, é quase uma oração de proteção. O seu eu lírico usa de paradoxos para construir sua prece nordestina. Escrevemos este artigo ao som das canções do compositor e cantor paraibano nascido em 1964 e, inspiradas em suas letras poéticas, as associamos ao desenvolvimento deste trabalho6. O caminho que conhecemos da educação musical, como área de conhecimento, vem sendo construído e discutido por autores como Kraemer (2000), Nielsen (2008), Del-Ben (2001, 2010, 2014) e Souza (1996, 2007, 2014, 2020). O nosso andar como pesquisadoras e professoras de música segue o percurso já traçado e reconhecido por sua comunidade. Desse modo, por já haver um corpo de ideias já aceitas, evitamos o perigo de nos encontrarmos perdidas. Os que vieram antes de nós nos protegem com suas pesquisas e experiências para, assim, continuarmos o trilhar científico dos processos inerentes ao campo da educação musical ou da pedagogia da música, como Kraemer e Nielsen se referem.

Reforçamos o pensamento de Souza (2020, p. 15) ao afirmar que a educação musical é uma área autônoma7 ou seja, “que ela não está subordinada a outras áreas do conhecimento e que pode determinar sua problemática teórica, bem como definir seus interesses e ter objeto próprio”. Para Nielsen (2008), o ensino e a aprendizagem em música, assim como concepções sobre formação musical, são o objeto de análise. Kraemer (2000, p. 52) destaca “as relações entre pessoa(s) e a(s) música(s) sob os aspectos de apropriação e transmissão”. Souza (2020, p. 15) concorda com Kraemer e reconhece que a educação musical, como um campo autônomo, “não está subordinada aos códigos da pedagogia (educação) e nem da música (musicologia no sentido mais amplo da ciência da música)”. Para a autora, a autonomia de uma área significa “ter seu próprio objeto, método e linguagens próprias” (p. 15).

Essa autonomia da educação musical, que tem o conhecimento pedagógico-musical como objeto de interesse, não a isola das demais áreas e nem a torna obrigatoriamente uma área interdisciplinar (SOUZA, 2020). Ao contrário, reforça a característica complexa dos fenômenos investigados, criando subdisciplinas como Sociologia, Psicologia, História e Filosofia da Educação Musical. Nas palavras de Souza (2020, p. 17), “A reflexão sobre as especificidades do conhecimento pedagógico-musical pode contribuir para a construção de teorias explicativas nessa área que partam de instrumentos e práticas metodológicas próprias”. Dessa forma, sem perder o foco, torna-se indubitável que as pesquisas em educação musical necessitam de uma teoria associada e articulada a outras áreas. Essa complexidade é também apontada por Minayo (2010) nas Ciências Humanas e Sociais, que partem de problemas da vida prática.

O debate epistemológico da educação musical brasileira, segundo Souza (2020), está centrado na discussão sobre a produção da área em levantamentos bibliográficos de estudos de estado da arte e de conhecimento. Para a autora, “nesses estudos parecem ficar claros os temas que têm sido explorados, delineando, assim, as especificidades do nosso objeto e de que conhecimento trata a Educação Musical como ciência” (p. 14). Assim, destacamos os trabalhos de Ramos, Oliveira e Santos (2017), Maffioletti e Abrahão (2017), Almeira (2019), Gontijo (2019) e Ropke e Monti (2021), que evidenciam as pesquisas (auto)biográficas no campo da educação musical. Nos estudos desses(as) autores(as), percebemos a forte presença da valorização dos processos de formação pessoal, profissional e musical.

Com o intuito de colaborar com essa discussão, este trabalho é parte do resultado de um projeto intergrupos que teve como objetivo estudar os conceitos e a constituição da pesquisa (auto)biográfica8em educação musical. Estudantes de mestrado e doutorado, em música e educação, participantes de dois grupos de pesquisa9, se reuniram para realizar um estudo de estado de conhecimento (ROMANOWSKI; ENS, 2006; MOROSINI; FERNANDES, 2014) centrado em teses e dissertações. A finalidade desse levantamento se desdobrou em três direções que convergem ao final: (1) ampliar o mapeamento realizado por Gontijo (2019); (2) destacar o referencial teórico, metodológico e os termos específicos das pesquisas que utilizam a (auto)biografia como abordagem investigativa; e (3) identificar como os conceitos da pesquisa (auto)biográfica têm sido desenvolvidos no campo da educação musical. Os resultados foram apresentados no XXV Congresso Nacional da Associação Brasileira de Educação Musical (MARQUES; PEDROLLO; MADEIRA, 2021; MADEIRA et al., 2021; PEDROLLO et al., 2021)10.

A aproximação da área da educação musical às pesquisas (auto)biográficas retratam as possíveis contribuições que essas podem revelar uma à outra, possibilitando novas vozes serem escutadas e novos olhares sobre o processo de pesquisa e formação dos fenômenos músico-pedagógicos em diversos contextos e campos empíricos. Assim, o principal objetivo deste artigo é demonstrar como a produção acadêmica com abordagem (auto)biográfica está sendo desenvolvida na educação musical, destacando aspectos dos referenciais teóricos e metodológicos, bem como palavras criadas para designar novos conceitos.

Pesquisa (auto)biográfica: um espaço em expansão

Era uma contemplação, como com lente que aumenta Era o espaço em expansão, e o tempo em câmara lenta Era tudo em comunhão, com o um e tudo à solta Era uma outra visão, das coisas à nossa volta (Carlos Rennó e Chico César)

Esse trecho de outra canção de Chico César, composta em parceria com o paulistano Carlos Rennó, “Experiência"11, enfatiza a comunhão do ser com tudo à sua volta. A pesquisa biográfica contribui para a construção de um sentido teórico, pois é entendida como a interface que possibilita ao indivíduo, “nas condições de sua inserção sócio-histórica, integrar, estruturar, interpretar as situações e os acontecimentos de sua vivência” (DELORY-MOMBERGER, 2012a, p. 75). Percebemos que isso permite uma outra visão das coisas à nossa volta. Logo, ao buscar compreender as trajetórias de vida e as experiências dos indivíduos por meio de narrativas autobiográficas, segundo Delory-Momberger (2011), as pesquisas propiciam a reflexão daquele que age, concedendo uma nova leitura e interpretação da ação vivida.

Sobre a pesquisa (auto)biográfica, Abrahão afirma que

[...] é uma forma de história autorreferente, portanto plena de significado, em que o sujeito se desvela, para si, e se revela para os demais. Produzir pesquisa (auto)biográfica significa utilizar-se do exercício da memória como condição sine qua non. A memória é o elemento-chave do trabalho com pesquisa (auto)biográfica, em geral: Histórias de vida, Biografias, Autobiografias, Diários, Memoriais. (ABRAHÃO, 2004, p. 202).

Essa reflexão sobre si mesmo não deixa de ser “uma contemplação como com lente que aumenta” a trajetória e as experiências vividas e memoráveis, sejam elas de professores, estudantes em formação, músicos ou crianças. Para Abreu (2017a, p. 101), existe a necessidade de a educação musical colocar em evidência, no sentido epistemológico, “a reflexividade (auto)biográfica do sujeito que se forma e também dos que formam outros na área”. A autora vê esse processo reflexivo como um fenômeno antropológico na educação musical que, por meio das narrativas (auto)biográficas, permite uma visão pós-disciplinar da área, interessada nos processos pelos quais as pessoas se relacionam e dão sentido à música em se tornar quem são.

Assim, percorrer os caminhos de uma hermenêutica da relação das pessoas com a educação musical é empreender um trabalho do sujeito, tanto do autor do relato, quanto dos que contam os relatos dos outros […] também é possível considerar as narrativas como fonte e método investigativo, indagando-se sobre práticas musicais, não apenas para produzir conhecimentos sobre essas práticas, mas para perceber como os sujeitos dão sentido a elas. E, por fim, fazer uso dessas narrativas como dispositivo de investigação-formação-ação, instituindo o sujeito como um dos maiores interessados no conhecimento que ele produz para si mesmo e para o outro. (ABREU, 2017a, p. 101).

Ampliando o “espaço expandido”, contemplando os processos subjetivos, Maffioletti e Abrahão (2017, p. 73) afirmam que, assim como o método (auto) biográfico oferece “ricas oportunidades à investigação em educação musical, […] a arte como experiência e o significado da experiência sensível da música na vida das pessoas é uma dimensão que amplia a compreensão ética e estética da existência humana no campo do método autobiográfico”. Com este artigo, pretendemos fazer jus a essa construção, apresentando o processo e os resultados de um estudo de estado de conhecimento, concentrado nas produções acadêmicas brasileiras sobre a pesquisa (auto)biográfica em educação musical.

O dizer do indizível metodológico

Como a onda tão etérea, e a partícula não tão Num ponto tal da matéria, tanto “tão quanto não” tão Até que ponto resistem, a lógica e a razão Já que nas coisas existem, coisas que existem e não O que dizer do indizível, se é preciso precisão Pra quem crê no que é incrível, não devanear em vão (Carlos Rennó e Chico César)

Uma de nossas primeiras perguntas, o que é um estado de conhecimento, foi respondida por Morosini e Fernandes (2014, p. 155): é a “identificação, registro, categorização que levem à reflexão e síntese sobre a produção científica de uma determinada área, em um determinado espaço de tempo […]”. Assim, delimitamos que continuaríamos o trabalho de Gontijo (2019), ampliando o período de publicação das teses e dissertações até maio de 2021, já que nas coisas existem coisas que existem e não. Expandimos também as categorias a serem analisadas, contemplando fatores sociais e políticos, como o fomento de pesquisas, órgãos de financiamento, regiões de defesa, campo de coleta de dados e neologismos.

Gontijo (2019), em sua dissertação de mestrado, realizou um levantamento bibliográfico de teses e dissertações publicadas entre 2003 e janeiro de 2019. Analisou 31 trabalhos que foram coletados via plataforma do banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e via Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). As palavras-chave utilizadas foram: “autobiografia + música, ((auto)biográfica) + (música), autobiografia + música, autobiografia + história de vida, (autobiografia + história de vida), autobiografia + história de vida” (p. 54). A partir desse primeiro mapeamento, a autora buscou mais trabalhos, nessa perspectiva, no curriculum lattes das professoras orientadoras indicadas nas pesquisas coletadas. Para dar continuidade, seguimos os mesmos passos metodológicos supracitados, ou seja, mantendo o modo de busca de Gontijo.

A organização dos nossos dados se deu pela construção de uma tabela com as seguintes categorias: título, autor(a), tipo de documento (tese ou dissertação), ano de defesa, programa de pós-graduação, área do trabalho, financiamento, órgão de financiamento, universidade, orientador(a) e co-orientador(a), grupos de pesquisa dos(as) autores(as) dos trabalhos, lócus da pesquisa, palavras-chave, referencial teórico, referencial teórico-metodológico, abordagem metodológica, sujeitos, quantidade de sujeitos, coleta de dados, análise de dados, resultados, significado da palavra (auto)biografia e novos termos da educação musical na pesquisa (auto)biográfica. Por fim, depois de realizadas as devidas verificações, mais 16 pesquisas foram adicionadas às produções acadêmicas, sendo 12 dissertações e 4 teses, totalizando 47 trabalhos (34 dissertações e 13 teses), conforme apresentado no Apêndice A, os quais correspondem ao objeto de estudo analisado neste artigo.

Com esse total, percebemos que a produção de trabalhos referente às pesquisas (auto)biográficas na educação musical mantém-se em crescimento, conforme apontado em Gontijo (2019) e Röpke e Monti (2021). A primeira autora constatou que, do ano de 2018 até a finalização de sua pesquisa, houve um aumento de 16% do total de teses e dissertações produzidas e ressaltou uma continuidade ininterrupta dessas a partir do ano de 2011. Röpke e Monti (2021) focaram o levantamento de teses desenvolvidas entre os anos de 2015 e 2019 e encontraram 16 trabalhos acadêmicos. Em nosso levantamento, percebemos o aumento de 51,6% de pesquisas (auto)biográficas no período entre 2019 e janeiro de 2021.

Na área da educação, os mapeamentos de Souza e Meireles (2018) e Ramos, Oliveira e Santos (2017) também apontam para o crescimento de pesquisas (auto) biográficas. Para Passeggi e Souza (2017), existem dois momentos significativos do movimento (auto)biográfico que corroboram a discussão desse crescimento: o movimento autobiográfico, em 1990, e a expansão de trabalhos acadêmicos empregando os termos biográfico e autobiográfico depois dos anos 2000. O segundo foi marcado também pela realização do I Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)biográfica (CIPA), em 2004. Ressaltamos que em 2021, na IX edição do CIPA, houve a presença da área de educação musical em mesas, simpósios e apresentações de comunicações.

Neste artigo, contemplaremos com nossa lente de aumento os seguintes pontos das pesquisas (auto)biográficas mapeadas: a construção do conhecimento teórico e metodológico dos trabalhos e seus neologismos. Em cada etapa apresentaremos o desenvolvimento da pesquisa (auto)biográfica nas produções acadêmicas em educação musical, dando ênfase aos resultados e reflexões que surgiram, fazendo apontamentos e observando seus propósitos nas pesquisas da área. Tentaremos, ao longo dos próximos tópicos, dizer do indizível e não devanear em vão.

Educação musical em diálogo: no nível de um campo semântico

Era qual uma lição, del viejo brujo don Juan Uma complexa questão, sem nexo qual um koan Um signo sem tradução, no plano léxico-semântico Enigma, contradição, no nível de um campo quântico (Carlos Rennó e Chico César)

A construção do conhecimento em educação musical é observada na sua relação com outras disciplinas, assim como o índio mexicano da tribo Yaqui, Don Juan de Matus, transmitiu seus conhecimentos para o escritor e antropólogo Castaneda e modificou sua percepção e compreensão de mundo. Buscamos em outras áreas, muitas vezes, um suporte para não cairmos em ideias soltas, em perguntas sem respostas. Somos levadas a pensar fora de nossa casa, como os koan budistas, que não possuem razão, mas trazem ideias, reflexões e novas conexões. Kraemer (2000) analisa esse processo destacando a frequência com que as ciências humanas são exploradas na pesquisa em música. Como ciência, a educação musical se alimenta dessas fontes e constrói ligações fundamentais para a música, assim como para a formação e atuação do(a) educador(a) musical. Dentre as preocupações do autor, estão: a análise dos discursos pedagógico-musicais, os caminhos metodológicos que focam a construção do conhecimento dentro da área e os questionamentos de ordem filosófica, focados em compreender questões éticas e antropológicas fundamentais na pedagogia musical.

Há ainda aspectos que estudam os detalhes históricos, psicológicos e sociológicos que se ocupam, respectivamente, com o desenvolvimento da área, as ações do(a) professor(a) durante a prática pedagógica e as condições socioeconômicas e institucionais de uma educação musical. O que Kraemer (2000) apresenta é corroborado no trabalho de Bragança (2012, p. 74) no que diz respeito à contribuição das ciências humanas em trabalhos científicos que envolvem a (auto) biografia. Por um lado, vemos a presença frequente de áreas como “a sociologia, a história, a antropologia, a psicologia e a filosofia, ou seja, as ciências humanas”. Por outro, em países francófonos, por exemplo, são identificadas referências a autores(as) e conceitos da área das ciências biológicas.

Consideramos essa relação no desenvolvimento de uma das partes deste projeto, onde realizamos o mapeamento do referencial teórico de todos os trabalhos encontrados. Ressaltamos que foi necessário revisitar cada pesquisa mais de uma vez, porque foi um processo que exigiu cuidado e estudo frequentes da nossa parte, para que os dados obtidos ficassem o mais claro possível, evitando o perigo de deixar sem ter sido, não olhar, não ver. O resultado foi um detalhamento de 677 obras referenciadas pelos autores(as), sendo elas publicadas de formas diversas, como em livros, capítulos de livros, periódicos e anais de congressos.

Percebemos que as 47 pesquisas não possuem uma unificação de termos no que se refere à fundamentação teórica e metodológica. Alguns trabalhos, por exemplo, destacam o “referencial teórico” adotado na investigação, já no resumo, enquanto outros optam pelo termo “referencial teórico-metodológico”. Por essa razão, vimos como necessária a leitura detalhada da introdução e dos capítulos que apresentam desde o referencial teórico até o metodológico para identificar se havia, ou não, essa separação entre eles, buscando também fontes que fundamentam as opções epistemológicas. A partir desse aspecto, concordamos com Gray (2012, p. 21) quando afirma que as pesquisas baseadas em estruturas positivistas tendem a assumir essa separação de maneira mais frequente, pois suas concepções teóricas estão relacionadas diretamente com características da objetividade.

De maneira contrária, a perspectiva construtivista e os estudos interpretativos defendem que a criação da verdade e do sentido acontecem, de fato, nas interações do sujeito com o mundo (GRAY, 2012). Entendemos que a pesquisa (auto) biográfica se encaixa nessa perspectiva, pois aborda experiências de pessoas por meio de fontes como “histórias de vida, relatos orais, fotos, diários, autobiografias, biografias, cartas, memoriais, entrevistas, escritas escolares e videográficas” (PASSEGGI et al., 2021, p. 5). Essa é uma abordagem investigativa adotada recentemente em trabalhos de educação musical (ver Apêndice A), porém já foi possível observar que as fontes teóricas, muitas vezes, fundamentam o quadro teórico-metodológico, sem distinção.

De contemplar e buscar compreender a construção do conhecimento na pesquisa (auto)biográfica em educação musical, nossos olhares se voltaram para três aspectos que, mesmo observados separadamente, foram encontrados em comunhão: teorias, metodologias e neologismos. É como a canção de Rennó e César: tudo entrelaçado, individual enquanto identidade, mas como um todo quanto à amplitude da educação musical.

Referencial teórico: áreas, temáticas e suas conexões

Observamos que a maioria dos trabalhos encontrados foi desenvolvida nas áreas de educação (43%) e música (43%), o que era esperado, pois a nossa busca está centrada nos programas de pós-graduação dessas áreas. Ao analisarmos os objetivos gerais e específicos de cada investigação, chamou-nos a atenção a conexão das teses e dissertações com o campo das Ciências Sociais, como foi o caso de Teixeira (2016), que se fundamentou na Filosofia; de Oliveira (2020), que conversa com a Psicologia; e de Torres (2003), que teve como fonte a Sociologia (Gráfico 1). Os pensamentos de Kraemer (2000) e de Souza (2020) são corroborados por meio desses exemplos, no que diz respeito à construção teórico-científica da educação musical na sua relação com outras áreas.

Essa relação da música com as Ciências Sociais foi discutida por Bastian (2000). Para o autor, a área apresenta um leque de possibilidades de conteúdos e métodos que destacam sua relevância. Na mesma linha, Del-Ben (2001) afirma que a educação é um fenômeno complexo, envolvido por diversas variáveis. É por essa razão que fundamentos de áreas como a Psicologia, a Sociologia, a Filosofia e a História podem contribuir para uma análise mais profunda. Nas palavras de Del-Ben (2001, p. 69), “suas teorizações se constituem como discursos disciplinares sobre dimensões ou aspectos particulares da educação, não sendo suficientes para apreender e compreender as práticas educativas em sua totalidade e concretude”. Entendemos, portanto, que nem sempre elas serão capazes de orientar a prática educativa em música. Assim, é necessário identificar esses limites para, então, definir o campo da educação musical. Para Souza (2020), esses contornos são delimitados pelo olhar específico da área, que é construído a partir da formação de pesquisadores, sua institucionalização e organização.


Gráfico 1
Trabalhos por área
produção das autoras

A partir do Gráfico 1, podemos identificar dados que legitimam a discussão que apresentamos neste tópico. A Sociologia faz parte de 11% das pesquisas estu-dadas (ABREU, 2011; ANDERS, 2019; LIMA, 2013; LOURO, 2004; MARQUES, 2016; MOTA, 2017; PEDRINI, 2013; RECK, 2017; SANTANA, 2019; SANTOS, 2019; SILVA, 2020; TORRES, 2003). A contribuição dessa área cresceu consideravelmente, conforme apontam Kraemer (2000) e Souza (2003, 2004a, 2004b, 2007, 2008, 2014a, 2014b, 2015, 2020), pois desenvolve discussões que cumprem muitos dos objetivos pautados nas pesquisas encontradas. Podemos citar temáticas em torno das identidades, teorias sociais (Teoria do Cotidiano e Teoria Ator-Rede) e sociologia da infância. Todas indicam a emergência de trabalhos cada vez mais focados no sujeito, aspecto fundamental da pesquisa (auto)biográfica, conforme menciona Passeggi (2020).

Ao mencionarmos as temáticas encontradas, é relevante destacar que três dos trabalhos imersos na área da Sociologia (ABREU, 2011; BRAGA, 2016; SANTOS, 2019) exploram a Teoria Ator-Rede. Essa contribuição, baseada no sociólogo Bruno Latour, é essencial quando o pesquisador se propõe a acompanhar os sujeitos (atores) dentro do seu contexto social, a fim de compreender como o saber é construído dentro de determinada comunidade. Aqui percebemos o quão indispensável é a observação do ambiente de socialização, que alimenta a “acumulação de conhecimento” (ABREU, 2011, p. 43), reunindo novos elementos diariamente.

A rede, nessa teoria, está na força da socialização que produz aliados e torna os atores indispensáveis na realidade onde estão inseridos. As estratégias que o ator produz para convencer seus pares da necessidade da sua presença é mais importante que o conhecimento acumulado, conforme destacam as pesquisas supramencionadas baseadas em Latour. Dominar a área não é suficiente, é preciso construir um ambiente de convencimento que o reconheça no seu ambiente social. Abreu (2011), por exemplo, explora essa construção do sujeito sociocultural como essencial na profissionalização do(a) professor(a) de música.

As teorias do cotidiano e identidades são outros dois aspectos da área da Sociologia que foram exploradas em quatro trabalhos (TORRES, 2003; LOURO, 2004; MOTA, 2017; RECK, 2017). Louro (2004) afirma que a identidade profissional do(a) professor(a) de música se desenvolve com a presença de outras pessoas no seu espaço de trabalho e estudo. Já Reck (2017, p. 49), associado às teorias do cotidiano, parte dos estudos de Lucy Green ao considerar que a relação estabelecida nos grupos sociais “é uma organização social da prática musical”, que gera significado para a prática docente. Isso demonstra o quão determinante a Sociologia é para conectar argumentações para a pesquisa (auto)biográfica, no que diz respeito à valorização do sujeito na sua individualidade e a sua relação com o grupo social onde está inserido.

Quando nos referimos às áreas de Educação e Música, observamos o domínio de estudos sobre formação docente no referencial teórico, seguidos pelo estudo da experiência do docente e do discente, assim como do músico (musicista). A presença de temas como formação, experiência, memória e prática docente indica o elo forte com a pesquisa (auto)biográfica, marcando a valorização do sujeito pesquisado. Passeggi (2020) afastou a concepção de “sujeito assujeitado”, dando ênfase ao sujeito da experiência, que carrega consigo conhecimento e vivência suficientes para construir saberes pedagógicos de formação enquanto está exercendo sua profissão.

De igual modo, observamos que a música também contempla, em sua maioria, trabalhos sobre formação docente e musical. Isso nos levou a compreender que essa busca pode contemplar a necessidade tanto da formação pedagógica como da formação musical. Mateiro (2007, 2009, 2015) acompanha essa discussão, investigando como a formação acadêmica, oferecida pelos cursos de Licenciatura em Música, tem preparado os estudantes para o trabalho em sala de aula em escolas de educação básica. Podemos encontrar essa relação em cinco trabalhos. Tomazi (2019) e Torres (2003) realizaram suas pesquisas com professoras pedagogas e indicaram que as experiências musicais, aliadas ao grupo de formação onde estavam inseridas, foram essenciais no processo formativo, nas suas práticas musicais e pedagógico-musicais, as quais se tornaram mais significativas. Almeida (2016) e Gaulke (2013, 2017) focaram seus estudos nos docentes de música, observando como a formação de um(a) professor(a) de música está intrinsecamente conectada com a preparação musical e com a pedagógica do sujeito.

Referencial teórico: publicações, autores(as) e suas conexões

Para não devanear em vão, atentamo-nos aos anais de congressos, periódicos, livros e capítulos de livros como os tipos de publicações mais usados ao longo das teses e dissertações. Partindo do que já existe, percebemos a presença considerável de livros tanto na Educação como na Música, o que indica que ambas as áreas possuem estrutura teórica para subsidiar o referencial de trabalhos no campo das (auto)biografias. Identificamos as obras mais exploradas no referencial teórico dos 47 trabalhos, as quais fundamentam discussões teórico-práticas sobre formação docente e pesquisa (auto)biográfica. Essa informação converge com as áreas mais exploradas – Educação e Música, conforme apresentado no Gráfico 1.

Procurando identificar a grande rede de entrelaçamento de autores(as), analisamos que essa união representa um caminho indispensável para a construção do pensamento teórico das pesquisas (auto)biográficas em educação musical. Foi relevante identificar os(as) autores(as) da área da Educação citados(as) ao menos três vezes ou mais de cinco vezes. As mais citadas para fundamentar os processos biográficos foram Marie-Christine Josso, Christine Delory-Momberger e Maria da Conceição Passeggi. Já os autores Paulo Freire, António Nóvoa e Jorge Larrosa costuram o processo de construção profissional do(a) professor(a).

Verificamos que a influência de autores(as) estrangeiros(as) na pesquisa (auto)biográfica brasileira tem sua origem na Europa e na América do Norte. Passeggi e Souza (2017) desenvolvem uma discussão sobre essa questão, confirmando a informação, pois o movimento (auto)biográfico teve início em países como França, Portugal e Canadá. Podemos mencionar aqui pesquisadores(as) como Gaston Pineau, no Canadá, Marie-Christine Josso, na Suíça, e António Nóvoa, em Portugal, pioneiros da primeira rede de pesquisas em histórias de vida em Educação, que traçaram objetivos e princípios éticos no contexto da formação continuada dos(as) professores(as).

Na área da Educação Musical, realizamos o mesmo processo analítico e destacamos duas questões fundamentais sobre representatividade feminina12, dos(as) autores(as) encontrados(as), cinco são mulheres, quatro delas brasileiras. Enquanto a pesquisa em educação musical se estruturava no Brasil, no início dos anos 1990, autores homens e estrangeiros eram os mais explorados. Entretanto, ao longo dos anos constatamos que autoras como Cláudia Bellochio, Jusamara Souza, Maura Penna e Teresa Mateiro deixaram de estar presentes nas revisões de literatura de trabalhos na área para fundamentá-los em temáticas como formação docente, música na escola, formação continuada, aula de música e educação musical no cotidiano.

O entrelaçamento da Educação Musical com a Sociologia volta a aparecer, sublinhando-se os pensamentos de Rudolf-Dieter Kraemer e Jusamara Souza. A Filosofia, então denominada de Filosofia da Educação Musical, está presente a partir das ideias de Wayne Bowman e Estelle Jorgensen. Identificamos, ainda, Ana Lúcia Louro e Delmary de Abreu, da Educação Musical, que desenvolvem pesquisas (auto)biográficas há mais de 10 anos – muitas das teses e dissertações selecionadas neste levantamento são oriundas de seus grupos de pesquisas.

Os(as) autores(as) mais citados(as) relativos à Filosofia, Sociologia, Geografia e Psicologia também apareceram. Observamos que a Filosofia teve destaque em vários trabalhos com a obra Tempo e Narrativa de Paul Ricoeur; a Sociologia, com as identidades profissionais de Claude Dubar; e os estudos culturais, com Stuart Hall. Destacamos o trabalho de Santana (2019), que explorou as obras de Marilena Chaui, filósofa brasileira, apresentando contribuições sobre a formação universitária. Na Geografia, identificamos o conceito de lugar e espaço a partir de Yi-Fi Tuan. A Psicologia teve suas contribuições nas temáticas sobre percepção e memórias docentes a partir de Vygotsky, Bruner e Bosi.

É importante sublinhar que a pesquisa (auto)biográfica em Educação Musical no Brasil contou não só com autorias, mas também com coautorias. De todas as obras citadas com mais frequência (cinco ou mais), apenas um livro apresenta a temática da formação docente (PIMENTA; LIMA, 2017), enquanto as outras quatro estão no campo da pesquisa (auto)biográfica, configurando dois artigos científicos (ISAIA; BOLZAN, 2007; PASSEGGI; ABRAHÃO; DELORY-MOMBERGER, 2012) e dois livros (PASSEGGI; SOUZA; VICENTINI, 2013; PASSEGGI; SOUZA, 2012). Essa informação indica o crescimento de parcerias e troca de experiências registradas em trabalhos científicos da pesquisa (auto)biográfica. Podemos afirmar que é um início promissor, um crescimento expressivo de autores(as), indicando que a Educação e a Música também contribuem na formação de novos(as) pesquisadores(as), conforme apontam Freitas e Souza (2018).

Processos investigativos com intensificação e ampliação

E as coisas eram as coisas, a folha, a flor e o grão O sol no azul e depois as estrelas no preto vão E as coisas eram as coisas, com intensificação Que as coisas eram as coisas, porém em ampliação (Carlos Rennó e Chico César)

Ressaltamos as referências que fundamentaram o conjunto de conceitos e proposições inter-relacionados e apresentados com o propósito de explicar o processo investigativo das pesquisas, afinal as coisas eram as coisas, mas cada uma se desenvolve de uma maneira. A folha, a flor, o grão são coisas diferentes, mas ao mesmo tempo estão todas relacionadas, têm o seu momento certo, técnicas e métodos a serem desenvolvidos para se chegar aos seus resultados. No Gráfico 2, apresentamos os autores(as) citados(as) em mais de seis trabalhos. Esse é um dado que, embora represente apenas 4,8% das teses e dissertações, nos possibilitou identificar de que forma as perspectivas epistemológicas e ontológicas no campo da Educação Musical, em relação às pesquisas de abordagem (auto)biográfica, foram sendo construídas e constituídas.


Gráfico 2
Referenciais nas abordagens metodológicas
produção das autoras

Ao analisar os capítulos da metodologia, encontramos a presença frequente de autoras(es) como Delory-Momberger (21,4%), Josso (15,5%), Bolívar (10,7%), Passeggi (9,5%), Abrahão (8,3%), Clandinin e Connely (7,1%), Ferrarotti (7,1%) e Pineau (7,1%). Assim como na análise do referencial teórico, verificamos a influência francesa na área (auto)biográfica. Um dos fatores desse destaque passa pela formação da professora Maria da Conceição Passeggi, que se dedica a essas produções desde a década de 1970. Além disso, a autora e outros(as) pesquisadores(as) brasileiros(as) desenvolvem estudos fortalecendo as parcerias entre Argentina, Brasil e França (SOUZA et al., 2010), trabalhos esses reconhecidos que contribuem para a expansão e divulgação do pensamento de origem francófona, lusófona e hispânica na pesquisa (auto)biográfica no Brasil.

Consideramos importante reiterar que essa ênfase não elimina os diálogos entre autores(as) não citados(as) aqui, como, por exemplo, o artigo de Passeggi e Souza (2017) ou o livro de Bolívar, Domingo e Fernández (2001). Mesmo que os(as) nomeados(as) anteriormente tenham sido os(as) mais citados(as), os 47 trabalhos analisados não deixaram de entrelaçar seu referencial com outros(as) que também discutem sobre a pesquisa (auto)biográfica.

Métodos investigativos: fontes (auto)biográficas

Considerando que a pesquisa (auto)biográfica tem, entre outras fontes, as biografias, autobiografias, “cinebiografias, fotobiografias, videografias, webgrafias”, segundo Passeggi (2011, p. 28, tradução nossa), é importante diferenciar metodologia e fontes de informação, detalhes nem sempre claros nos trabalhos analisados. Nesse sentido, Souza esclarece que

A abordagem (auto)biográfica tanto é método, devido à vasta fundamentação teórica no seu processo histórico, quanto é técnica, pela utilização metodológica em vários contextos. O uso do método (auto)biográfico está, por sua vez, inserido no campo de pesquisas socioeducacionais, possibilitando, a partir da voz dos atores sociais, remontar a singularidade das histórias narradas por sujeitos históricos, socioculturalmente situados, garantindo o seu papel de construtores da história individual/ coletiva intermediada por suas vozes entre a unicidade (subjetividade) e o que é científico (SOUZA, 2006, p. 29).

Encontramos diversas nomenclaturas quanto às abordagens investigativas, como biográfica, autobiográfica, (auto)biográfica, narrativa, biográfico-narrativa, história de vida e história oral. Röpke e Monti (2021), em seu levantamento, constataram que diversos termos epistêmico-metodológicos eram, muitas vezes, usados nos trabalhos como sinônimos. Em nossa análise, os termos (auto)biografia e autobiografia, por exemplo, apareceram com frequência, consolidando a afirmação da pluralidade de usos da abordagem (auto)biográfica, conforme indica Souza (2006). Na área de Educação Musical, percebemos que a (auto)biografia é uma abordagem teórica que permite que o sujeito, inserido no seu contexto, entrelace as situações que vivencia de forma integrada, estruturada e interpretada, em concordância com Delory-Momberger (2012a). Destacamos que, em 19 trabalhos, o conceito de (auto)biografia foi compreendido como um processo reflexivo dentro do processo de biografização do sujeito, o que enfatiza sua característica epistemopolítica (PASSEGGI; SOUZA, 2017).

Passeggi e Souza (2017), tendo como foco tornar o ato autobiográfico objeto de estudo científico, propõem reflexões sobre uma aposta tríplice. Primeiramente, epistemológica, colocando a reflexividade autobiográfica do sujeito no centro, proporcionando a emancipação e o empoderamento do indivíduo. Em seguida, pós-colonial, redirecionando uma maneira de olhar antes elitista sobre a capacidade reflexiva e interpretativa do(a) cidadão(ã) comum. E, por fim, pós-disciplinar, reflexão baseada na busca por espaços de descobertas, onde os sujeitos se encontram a partir da liberdade de ir e vir.

Identificamos em alguns trabalhos o entrelaçamento entre Educação Musical e (auto)biografia, fazendo uso da metodologia biográfica (TORRES, 2003; ABREU, 2011; GAULKE, 2013), da narrativa (PEDRINI, 2013; RASSLAN, 2014; LEAL, 2019; PEREIRA, 2020), da história oral (LOURO, 2004; MACHADO, 2012; JUNGES, 2013; WEISS, 2015; TEIXEIRA, 2016; SCHNEIDER, 2017; PENTEADO, 2019), da docu-mentação narrativa (CORRÊA, 2019; OLIVEIRA, 2019; SANTOS, 2019), do estado da arte (GONTIJO, 2019) e da pesquisa documental (OLIVEIRA, 2019).

Com relação aos aportes metodológicos, os termos empregados nas pesquisas foram: histórias de vida (MACHADO, 2012; LIMA, 2013; ALMEIDA, 2019), método biográfico (LIMA, 2015; NICODELLI, 2019; PENTEADO, 2019), narrativa (JUNGES, 2013; MOTA, 2017), narrativas em formação (GAULKE, 2013), pesqui-sa-formação (ALMEIDA, 2016; ARAÚJO, 2017; CORREA, 2018; TOMAZI, 2019; SANTOS, 2019; ROSA, 2020) e musicobiografização (PITANGA, 2021). Destaque para a tese de Anders (2019), pois apenas nela a (auto)biografia aparece descrita como um método de pesquisa.

Dentre as pesquisas, seis delas têm como sujeitos licenciandos(as), seis alunos(as) da educação básica, quatro instrumentistas, um(a) arte-educador(a), um(a) pesquisador(a) e um(a) licenciando(a) e instrumentista. O Gráfico 3 demonstra que os(as) professores(as) ocuparam lugar de destaque, uma vez que as investigações estão centradas nas práticas educativas. Vale ressaltar que 54% desses(as) atuavam na educação básica, 27% em universidades, 11% como professores(as) de instrumento musical e 8% em projetos sociais.


Gráfico 3
Sujeitos das pesquisas
produção das autoras

Ao longo dos anos, pensar e fazer pesquisa sobre a formação de adultos foi assumindo outras formas investigativas, como a pesquisa-formação ou pesquisaformação (MOTTA; BRAGANÇA, 2019). Sendo assim, encontramos 10 pesquisas com características semelhantes: pesquisa-ação-formação (ARAÚJO, 2017; CORRÊA, 2018; OLIVEIRA, 2018; SANTOS, 2019), pesquisa-formação (ALMEIDA, 2017; TOMAZI, 2019; ROSA, 2020), investigação-formação (LEAL, 2019), ateliê musicobiográfico de projeto (SOUZA, 2018) e biografia músico-educativa (ALMEIDA, 2019). Todas foram realizadas com diferentes etapas de coletas de dados e de forma coletiva, com até 30 sujeitos.

A centralidade da música no processo formativo dos sujeitos pesquisados auxiliou na adaptação e/ou criação de novos termos necessários e específicos para o campo investigativo da Educação Musical. Esses neologismos que, em alguns casos, se referem a métodos de pesquisas ou conceitos teóricos tramam o entrelaçar entre teoria e método, a abordagem teórico-metodológico das pesquisas, o “tanto ‘tão quanto não’ tão”.

Termos e conceitos em ritmo caleidoscópico

Era qual uma visão, de um milagre microscópico, o infinito num botão E em ritmo caleidoscópico, ciclos de aniquilação e criação sucessiva Átomos em mutação, cósmica dança de Shiva,Shiva, Shiva, Shiva, Shiva, Shiva E as coisas ao nosso ver davam no fundo a impressão De ser de ser e não-ser a sua composição (Carlos Rennó e Chico César)

Um caleidoscópio precisa de movimentos e feixes de luz externos para refletir em seus pequenos pedaços de vidros coloridos, formando diversos desenhos para compor o efeito visual que nos prende em um simples tubo, muitas vezes de papel. Da mesma forma, percebemos em nosso levantamento a criação sucessiva de expressões que possuem significados próprios, neologismos formados a partir das coisas que nós, pesquisadores(as) da educação musical imbricados em conceitos da pesquisa (auto)biográfica, vemos.

Podemos entender essas novas palavras como “Unidade de Conhecimento Especializado” (SILVA, 2008 apud COSTA, 2015, p. 62), que, ativas e inseridas em um contexto, expressam conceitos significativos e frequentes em discursos especializados. Segundo Benveniste

A história particular de uma ciência se resume na de seus termos específicos. Uma ciência só começa a existir ou consegue se impor na medida em que faz existir e em que impõe seus conceitos, através de sua denominação […]. Denominar, isto é, criar um conceito, é, ao mesmo tempo, a primeira e última operação de uma ciência. (BENVENISTE, 1989, p. 252).

A criação de um conceito e a utilização deste de forma sistemática representam o discurso produzido por uma área do saber, o qual não é isolado de seu contexto sociocultural. Assim, os termos são “como unidades que atuam e propiciam o processo comunicativo no mundo especializado e, sendo assim, não visam à padronização ou unificação linguística” (COSTA, 2015, p. 44).

Encontramos seis termos que indicam ser novos vocábulos, gerados na combinação entre música, educação musical e (auto)biografia. São eles: autobiografias musicais, biografia musical, biografia músico-educativa, escuta musical autobiográfica, musicobiografização e ateliê musicobiográfico de projeto (AMBP). Cada vocábulo, definido por seus autores(as), é utilizado com um sentido semântico claro nas pesquisas em questão (Figura 1). Apresentaremos cada um desses conceitos, conforme foram encontrados nos trabalhos acadêmicos, procurando aprofundá-los a partir dos(as) autores(as) que os criaram.


Figura 1
Termos, autores(as) e ano de publicação
produção das autoras

Autobiografias musicais

Em 2003, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Maria Cecília Torres defendeu sua tese de doutorado, a qual teve como objetivo conhecer, por meio das autobiografias musicais, os aspectos que constituíram e constituem as identidades musicais de 20 estudantes do curso de Pedagogia. Conforme apontou no processo metodológico, seu trabalho se situa nas pesquisas biográficas e narrativas de si. Assim, expôs o conceito de autobiografia

[...] apresentado por Roberts (2002) no glossário de sua obra Biographical Research, como o contar, por uma pessoa, sua vida de forma oral ou escrita. Ao contar ou à narrativa podem-se acrescentar materiais visuais, como fotografias, e a vida pode ser apresentada sob a forma de vídeo ou CD. O autor destaca estudos da área da Sociologia, com os de Plummer (1983), Denzin (1989) e Stanley e Morgan (1993), trabalhando com a noção de autobiografias como representativas das condições de vida dos indivíduos. Para Stanley (1994), a autobiografia “substitui o referencial e as afirmações dos escritores e pesquisas ao focalizar nas escritas/falas das vidas e as complexidades de ler/ouvir as mesmas” e complementa que “isto não são meramente as preocupações da auto/biografia, mas um achado do campo oral e também de outras áreas”. (TORRES, 2003, p. 75).

Analisamos que, a partir de uma combinação entre conceitos, foi gerado o termo especializado e consideramos que compreender o significado de autobiografias trazido pela autora é essencial para apreender o sentido atribuído ao termo “autobiografias musicais”. Segundo a autora, a definição envolve as narrativas de si que estão imbuídas nas memórias musicais que adquirimos ao longo da vida em etapas e espaços sociais diversos, como “as lembranças de melodias, letras de músicas, shows de bandas, rituais religiosos, aulas de instrumentos musicais, grupos de amigos e familiares e práticas pedagógicas, dentre outras lembranças” (TORRES, 2003, p. 75).

Torres relaciona esse conceito aos seus sujeitos de pesquisa. Contudo, percebemos que, ao revisitar as narrativas de sua tese em artigo de 2017, adota a expressão (auto)biografias musicais – com os parênteses no auto –, sem mudar sua conceituação. Essa alteração também se encontra em artigo publicado em 2019, no qual desenvolve uma pesquisa com licenciandos(as) de um curso de Graduação em Música mantendo o conceito do termo nas memórias musicais.

Biografia musical

Este termo está presente na tese de Ana Lúcia Louro, a qual contou com narrativas de 16 professores(as) de instrumento que atuavam em cursos em nível superior do estado do Rio Grande do Sul. Defendeu sua pesquisa em 2004 na UFRGS e adotou como metodologia a História Oral Temática. Louro baseou-se no autor italiano Demetrio (1994 apud LOURO, 2004, p. 24) para citar autores(as) que recorrem às metodologias biográficas em estudos que tratam de identidades e música, afirmando que seus escritos “acenam para a música como uma influência possível no modo de pensar dos indivíduos”. As ideias do referido autor, nas palavras de Louro:

A biografia musical, mais uma vez, é certamente a mais misteriosa, ela vai encontrar em que lugar a nossa mente aprendeu a construir a si mesma como “pensamento” musical. Uma dimensão que pode nos conduzir não só para saber escutar música, para produzi-la, para comunicá-la, mas, sobretudo, que essa dimensão pode ser encontrada na forma que assumiu ou está assumindo a nossa vida e o nosso modo de pensar. (DEMETRIO apud LOURO, 2004, p. 25).

Compreendemos que o conceito desse termo está relacionado ao pensa-mento musical, ao modo de pensar a vida com música e, dessa forma, torna-se diferente do sentido utilizado por trabalhos da musicologia, por exemplo. Conforme Brandão (2020), a utilização desse termo na musicologia está frequen-temente relacionada com pesquisas de caráter histórico sobre a vida de músicos, compositores ou para análise de obras musicais.

Biografia músico-educativa

Jéssica de Almeida defendeu sua tese na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 2019. Seus sujeitos de pesquisa foram 12 licenciandos(as) de Música da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e seu objetivo foi compreender suas “biografias músico-educativas” a partir das maneiras pelas quais produzem sentidos para seus processos formativos na graduação. Fundamentou-se em Pierre Dominicé e Marie-Christine Josso, que utilizam a biografia educativa para afirmar que a biografia músico-educativa

[…] busca, justamente, explorar sistematicamente uma abordagem (auto)biográfica de pesquisa e formação, fazendo-se ouvir vozes e melodias tradicionalmente marginalizadas pelo discurso musical, sobretudo quando tratam de experiências com a música em contextos informais ou não formais, ou de repertórios que não aqueles institucionalizados e historicamente aceitos pelos cursos superiores em música. (ALMEIDA, 2019, p. 151).

Conforme explicam Almeida e Louro (2019), a expressão se refere a um procedimento metodológico de pesquisa e formação. O termo foi criado diante dos desafios encontrados para desenvolver biografias educativas com licenciandos, com os seguintes objetivos: “a proximidade pesquisadora-sujeitos, a duração do procedimento, a distância entre as leituras levadas para o debate e a realidade dos acadêmicos e o aprisionamento das narrativas ao visar o estímulo à construção de biografias educativas por meio de questionamentos […]” (p. 101). Segundo as autoras, as metodologias de pesquisa e formação são estudadas na área de Educação por Abrahão, Delory-Momberger, Josso, Passeggi, Nacarato e Passeggi, e Peres. A principal diferença em relação à biografia músico-educativa é a memória centrada na música. Nas palavras de Almeida e Louro, é “aquela que marca, que transforma, que leva a vida para outros rios, que desenha modos de ser músico, ser estudante de música e professor de música” (p. 102).

Escuta musical autobiográfica

Edson de Oliveira apresentou a expressão escuta musical autobiográfica a partir da ampliação do termo escuta musical, em sua dissertação defendida em 2018 na Universidade de Brasília (UnB). Utilizando os pressupostos teórico-metodológicos da documentação narrativa de experiências pedagógicas e a (auto) biografia, o autor objetivou compreender a constituição da experiência do violonista acompanhador.

O termo expõe, por meio dessa escuta autobiográfica, uma nova categoria de violonista acompanhador(a) que “se configura e reconfigura abrindo-se para compor com o outro [...], evidenciando assim resultados gerados da interação com narrativas musicais, compreendendo certas habilidades e limitações do intérprete a ponto de criar um acompanhamento personalizado” (OLIVEIRA, 2018, p. 91). O autor enfatizou que, mediante a escuta musical autobiográfica, músicos/musicistas, professores(as) e estudantes de música “podem ter uma percepção múltipla e plural que vai além da escuta musical. É, pois, um nível de percepção mais profundo que possibilita compreender nuances do intérprete e de outros que, porventura, venham a fazer música em (com)junto” (p. 91).

Musicobiografização

O termo musicobiografização é mencionado pela primeira vez em um artigo de Abreu (2017a, p. 1010), sendo definido como “[…] instrumentos terminológicos e nocionais apropriados para a biografização do sujeito com música […]”. Em outro artigo, a pesquisadora esclarece que a musicobiografização são atos, narrativas e que nela

[…] podem-se encontrar diferentes tipos de discursos em que a música é apresentada no ato de narrar, a fim de descrever, explicar, argumentar e avaliar seus posicionamentos. Desse modo, as narrativas com música tornam potencialmente acessíveis os sistemas de tematização e de valorização utilizados pelo sujeito que faz narrativas de si com música. (ABREU, 2017b, p. 221).

Observamos a construção do termo, que envolve toda a relação de experiências e sentidos entre sujeito e música (ABREU, 2017a). Segundo Delory-Momberger (2012b), a palavra biografização é um neologismo que destaca o caráter processual da atividade biográfica, designa “não a realidade fatual do vivido, e sim o campo de representações e de construções segundo as quais os seres humanos percebem sua existência […]” (p. 525). Percebemos, assim, que a biografização e a musicobiografização estão relacionadas aos procedimentos e fases do processo biográfico, articulando as partes com o todo e vice-versa.

A dissertação de Daniel Pitanga defendida na UnB em 2021 envolveu os processos de formação com a música a partir das histórias de vida de três músicos populares brasileiros por meio da musicobiografização, como coleta e análise de dados. Para o autor, o termo musicobiografização apresenta um quadro estrutural apoiado no tripé: música, pesquisa (auto)biográfica e metodologias. Desse modo, afirmou que “a musicobiografização é um processo investigativo baseado em configurações narrativas de experiências de vida em formação com a música que proporciona a construção de uma compreensão sobre a identidade narrativa” (p. 51).

Segundo Pitanga, o conceito vem sendo construído e organizado pelo grupo de pesquisa Educação Musical Escolar e Autobiografia (GEMAB), coordenado pela prof.ª Dra. Delmary Vasconcelos de Abreu. O autor definiu a musicobiografização como “[…] uma atividade hermenêutica prática e deliberada de construção de estruturas em seu sentido narrativo, que deseja a criação de compreensões e significados para as experiências de vida com a música” (PITANGA, 2021, p. 51).

Ateliê musicobiográfico de projeto

O termo Ateliê Musicobiográfico de Projeto foi identificado na dissertação de Hugo Souza, defendida em 2018 na UnB, que objetivou compreender as experiências musicais formativas de estudantes do Instituto Federal, focando os sentidos que a formação musical teve nos projetos de vida desses sujeitos. Construiu o neologismo a partir do procedimento metodológico do Ateliê Biográfico de Projeto de Delory-Momberger (2006).

Este conceito é utilizado na condução da construção de experiências do sujeito e das histórias de vida em uma dinâmica que liga a temporalidade do sujeito que, por meio do seu projeto social, “visa fundar um futuro do sujeito” (DELORY-MOMBERGER, 2006, p. 366). O Ateliê envolve momentos de narração, biografização e heterobiografização em encontros organizados e coordenados pelo investigador e socializados em grupo. É possível utilizá-lo igualmente na formação de adultos, dividido em seis etapas de execução, com até 12 participantes subdivididos em grupos menores de até três pessoas

Para Souza (2018), o Ateliê Musicobiográfico de Projeto é a materialização das ideias e proposições na perspectiva musicobiográfica, isto é:

A perspectiva musicobiográfica da formação musical pode ser vista como uma abordagem de pesquisa-formação que fornece subsídios conceituais, teóricos e práticos que possibilitem o arranjo e a elaboração de projetos formativos musicobiográficos que tenham, nas narrativas (auto)biográficas com música, o seu fio condutor. (SOUZA, 2018, p. 157).

A música possui um sentido central nesse processo, no qual o investigador propõe práticas musicais coletivas durante os encontros, estimulando o sujeito a reconhecer suas experiências musicais formativas por meio da própria narrativa, do relato escrito e oral. Na sequência, é convidado(a) a partilhar com os(as) demais participantes de forma narrativo-musical, por ela mesma, discurso ou texto (SOUZA, 2018).

Neologismos

Tendo como base os conceitos desenvolvidos pelos(as) autores(as), afirmamos que os neologismos criados resultam de palavras já existentes na pesquisa (auto)biográfica em Educação. O sentido do termo biografia, “escrita de vida”, foi ampliado para falarmos das experiências musicais, respeitando o caráter ontológico, epistemológico e metodológico das pesquisas biográficas (DELORYMOMBERGER, 2012b, p. 525).

Do ponto de vista epistemológico, as pesquisas demonstram uma preocupação com a constituição do indivíduo musical, um ser social singular, histórico e cultural, a partir de estudos relacionados com a fenomenologia e a hermenêutica. Na pesquisa biográfica, o tempo biográfico se insere na percepção própria do indivíduo, um processo que acontece dentro de uma razão narrativa, incluindo a experiência, na “temporalidade das experiências e existências”, conforme explica Delory-Momberger (2012b, p. 524).

Identificamos uma subjetivação específica de pensamento musical: nos significados dos termos (auto)biografia musical (TORRES, 2017, 2019) e biografia musical (DEMETRIO, 1994 apud LOURO, 2004), os(as) autores(as) buscam relacionar a vida com a música, tornando-a uma ferramenta para compreender o indivíduo. A expressão escuta musical autobiográfica (OLIVEIRA, 2018) deriva do processo de escuta profissional do músico.

Na perspectiva metodológica, o objeto de pesquisa dos termos é a biografização. Verificamos que o discurso narrativo sobre si foi apresentado de várias formas, como a fala, escrita, imagens, sons, comportamentos, gestos. Essa pluralidade de manifestações e seu entrecruzamento são necessários para potencializar a narrativa, afirma Delory-Momberger (2012b). A música torna-se o discurso narrativo nos neologismos apresentados nas pesquisas de Educação Musical, sendo considerada em algumas como propulsora de narrativas por meio de memórias musicais ou da própria expressão da experiência musical. Compreendemos, assim, que a música é uma fonte (auto)biográfica. Ela permite ao pesquisador uma ampliação da produção de conhecimentos sobre os sujeitos e sua formação, bem como sua relação histórico-social.

Por meio dos termos biografia músico-educativa (ALMEIDA, 2019), musicobiografização (ABREU, 2017a) e Ateliê Musicobiográfico de Projeto (SOUZA, 2018), percebemos que a pesquisa (auto)biográfica também é um dispositivo formativo (PASSEGGI, 2011; DELORY-MOMBERGER, 2016). Essas pesquisas estão centradas em dispositivos metodológicos que permitem propor práticas formativas por meio de experiências musicais, indo além do processo de compreender essas experiências nas histórias de vida dos sujeitos.

A partir dos neologismos, identificamos e compreendemos que o olhar específico dado por pesquisadores(as) da área de Educação Musical a essa terminologia atribui um significado único que é compartilhado por seus pares, sejam estudantes, professores(as) e investigadores(as). O uso e a ampliação desses termos permitem à Educação Musical a criação de um vocabulário próprio, que proporciona união e identidade em sua comunidade científica, além de sua validação. No entanto, compreendemos que, por estarem inseridos na abordagem de pesquisa (auto)biográfica, são pouco explorados pelo fato de este tipo de pesquisa ser pouco utilizado no meio científico, embora com crescente presença.

Indo por entre, por dentro, aprendendo a apreensão

E as coisas eram as coisas, com intensificaçãoQue as coisas eram as coisas, porém em ampliação Era como se as víssemos, entrando nelas então Com sentidos agudíssimos, desvelando seu desvãoIndo por entre, por dentro, aprendendo a apreensão De tudo bem dês do centro, do fundo, do coração (Carlos Rennó e Chico César)

A realização de um estudo do tipo estado do conhecimento reserva em si um trabalho incansável que sempre tem algo para acrescentar. Os participantes do projeto intergrupos têm revelado esse esforço. Tentamos adentrar, estudar os conceitos e a constituição da pesquisa (auto)biográfica na Educação Musical indo por entre, por dentro, aprendendo a apreensão de seus pesquisadores e pesquisadoras.

Desvelamos que cada etapa desenvolvida no projeto reforça que a Educação Musical é uma área estruturada e autônoma (SOUZA, 2020), ou seja, não subordinada a outras áreas do conhecimento para determinar sua problemática, seus objetivos e seu objeto de estudo. Ao mesmo tempo, percebemos a necessidade do diálogo com outras áreas, pois enriquecem a pesquisa ao olhar de uma forma integral para o contexto em questão, construindo uma rede de conhecimentos ainda mais significativos para nosso campo de estudo. Concordamos com Souza que esse diálogo da Educação Musical com outras áreas, mesmo que crie subdisciplinas como a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia ou a História, está sempre conectado à Educação Musical, como ciência-mãe.

Nas metodologias das pesquisas, encontramos uma diversidade de fontes e observamos que nem sempre a diferenciação entre metodologia e fontes de informações está clara nos trabalhos. Esse dado reforça as escolhas dos pesquisadores, tendo em vista as opções de diálogos com diversas fundamentações e, especialmente, a conexão que há entre suas questões de pesquisa, escolha dos sujeitos e contexto empírico. Essa pluralidade é constatada nos referenciais que destacam a (auto)biografia tanto como método quanto como técnica ou instrumento, mas que, por finalidade, busca a subjetividade acompanhada da reflexão crítica, por meio das narrativas individuais ou coletivas, que tornam a pesquisa legitimamente científica.

Para além de uma ferramenta metodológica, encontramos as palavras (auto) biografia ou autobiografia na maioria dos trabalhos e verificamos que, nos últimos anos, os pesquisadores da área de Educação Musical têm se aproximado dessa perspectiva, dentro de uma abordagem teórico-metodológica. Essa relação permite o surgimento de termos e conceitos que contribuem para a construção de um glossário especializado que colabora para o reconhecimento de seu campo de saber e de seus pares, que possuem esses vocábulos em seu cotidiano acadêmico. Podemos inferir sobre o papel central da música nesses termos, enfatizando que as experiências musicais, ao longo das histórias de vida, têm vários sentidos e significados para a construção e formação de diferentes sujeitos. Sublinhamos que é a partir de conceitos definidos que surgem as teorias.

Assim, terminamos este artigo diferentemente de como termina a música “Experiência”, de Chico César. Nela, apesar da vivência das coisas que eram qual foram e são, os pés dos protagonistas terminam um tanto fora do chão. Ao adentrarmos com intensificação nas teses e dissertações (auto)biográficas produzidas na área de Educação Musical, sentimos nossos pés cada vez mais firmes e seguros em nosso caminhar, nos aproximamos de nossa rede de proteção, como na primeira música mencionada, nos sentimos protegidas de nós mesmas, “da maldade de gente boa [e] da bondade da gente ruim”.

 

REFERÊNCIAS

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Notas

APÊNDICE A

APÊNDICE A

DISSERTAÇÕES

AUTORES(AS)

INSTITUIÇÃO

ANO

DISSERTAÇÕES

ALMEIDA, Jéssica de

UFSM

2016

ARAÚJO, Gustavo

UnB

2017

BRAGA, Eudes

UnB

2016

CARDOSO, Vinicius Nicolodelli

UDESC

2019

CORREA, Alessandro Ferreira

UnB

2018

FIGUEIRÔA, Arthur de Souza

UnB

2017

GAULKE, Tamar Genz

UFRGS

2013

GONTIJO, Millena Brito Teixeira

UnB

2019

JUNGES, Fernanda

UFSM

2013

LIMA, Diogo Baccio

UFSM

2015

LIMA, Janaína Machado

UFSM

2013

LOPES, Mariana Fonseca

UFSM

2014

MACHADO, Renata Beck

UFSM

2012

MARQUES, Olivia Augusta Benevides

UnB

2016

OLIVEIRA, Edson Barbosa de

UnB

2018

OLIVEIRA, Jonathan de

UFPB

2020

OLIVEIRA, Raimundo Vagner Leite de

UnB

2019

PEDRINI, Juliana Rigon

UFRGS

2013

PENTEADO, Nicole Roberta de Mello

UDESC

2019

PEREIRA, Elineide Soares Braga

IFPI

2020

PITANGA, Daniel Martins

UnB

2021

QUEIROZ, Andrea Matias

UnB

2015

RASSLAN Simone Nogueira

UFRGS

2014

SANTANA, Elizane Priscila Silva

UFPB

2019

SANTOS, Leandro Francisco dos

UnB

2019

SCHNEIDER, Jade da Rosa

UFSM

2017

SILVA, Mara Pereira da

UnB

2015

SILVA, Rodrigo Lisboa de

UFPB

2020

ROSA, Dyane

UDESC

2020

SOUZA, Hugo Leonardo Guimarães

UnB

2018

TOMAZI, Ana Carla Simonetti Rossato

UFSM

2019

VIEIRA, Karina Firmino

UnB

2017

WEBER, Vanessa

UFSM

2014

WEISS, Douglas Rodrigo Bonfante

UFSM

2015

Dos autores

APÊNDICE A

APÊNDICE A

TESES

AUTORES(AS)

INSTITUIÇÃO

ANO

TESES

ABREU, Delmary Vasconcelos de

UFRGS

2011

ALMEIDA, Jéssica de

UFSM

2019

ANDERS, Fernanda

UFSM

2019

CORRÊA, Juliane Riboli

UFSM

2018

GAULKE, Tamar Genz

UFRG

2017

LEAL, Ester Rodrigues Fernandes

UNIRIO

2019

LOURO, Ana Lúcia

UFRGS

2004

MOTA, Lúcius Batista

UFSM

2017

MOTA, Lúcius Batista

UFAM

2019

RECK, André Müller

UFSM

2017

TEIXEIRA, Ziliane Lima de Oliveira

UFSM

2016

TORRES, Maria Cecília

UFRGS

2003

WEISS, Douglas

UFSM

2020

dos autores

1 Professora da Universidade Federal do Maranhão, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Música da UDESC e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de Brasília, UnB.

2 Professora de música na Educação Infantil, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Música da UDESC e mestra em Música, Educação Musical.

3 Professora de música na Educação Infantil e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Música da UDESC, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Graduada no curso de Licenciatura em Música na mesma instituição (2019) e em Pedagogia pela Universidade Paranaense, UNIPAR (2001).

4 Professora associada do Departamento de Música (DMU) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Atua nos Programas de Pós-Graduação, Mestrado em Música (PPGMUS) e Mestrado Profissional em Artes (PROF-ARTES) na mesma instituição. Foi professora de música em escolas, públicas e privadas, de educação básica. Desenvolve pesquisas na área de Formação Docente privilegiando temas como prática pedagógica, programas curriculares, conhecimento profissional, práticas musicais escolares, estudos transculturais e pesquisa (auto)biográfica em educação musical.

5 Gravada no CD Francisco, forró y frevo, de 2008. Escute a música em: https://www.youtube.com/watch?v=E79ZV7rLeeA

6 Convidamos os leitores a apreciarem as músicas citadas neste artigo. Utilizamos da imaginação material definida por Gaston Bachelard (1978), na qual as imagens das canções suscitadas em nós conduziram a escrita deste artigo. A imaginação, segundo o autor, é um elemento fundamental à criação científica, sendo a linguagem poética “um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado na sua atualidade” (p. 188).

7 É importante apontar alguns autores que ampliam o conceito de autoridade e autonomia de um campo científico, como Gadamer (1997), com sua discussão sobre a virada ontológica hermenêutica nas ciências do espírito (humanas e sociais), e Santos (1987), em seu livro Um discurso sobre as Ciências, que gerou várias discussões e respostas no meio acadêmico.

8 Utilizaremos a palavra autobiográfica ou (auto)biográfica respeitando a forma de escrita de cada autor(a) citado(a). Porém, quando não for em citação, nossa opção será pelo termo (auto)biográfica, tendo como suporte a autora Passeggi (2011), que enfatiza a utilização dos parênteses na palavra como forma de chamar atenção aos dois tipos de fontes utilizadas nesta abordagem: biográfica e autobiográfica (p. 29).

9 Grupo de Estudos e Pesquisas (Auto)Biográficas em Educação Musical (GEPAEM/UFRR), coordenado pela Prof.ª Dra. Jéssica de Almeida, e Grupo de Pesquisa Educação Musical e Formação Docente (ForMusi/UDESC), coordenado pela prof.ª Dra. Teresa Mateiro.

10 Este artigo é uma revisão ampliada dos trabalhos publicados nos anais desse congresso.

11 Todas as demais epígrafes que seguem neste artigo são trechos da letra da música “Experiência”, lançada no CD Respeitem meus cabelos brancos em 2002. Escute a música em: https://www.youtube.com/watch?v=D8_aThsYkb0

12 Mesmo destacando a representatividade feminina, optamos por não alterar a escrita em relação ao gênero, estando cientes de que essa decisão poderá despertar polêmicas.

Autor notes

1 Professora da Universidade Federal do Maranhão, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Música da UDESC e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de Brasília, UnB.

2 Professora de música na Educação Infantil, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Música da UDESC e mestra em Música, Educação Musical.

3 Professora de música na Educação Infantil e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Música da UDESC, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Graduada no curso de Licenciatura em Música na mesma instituição (2019) e em Pedagogia pela Universidade Paranaense, UNIPAR (2001).

4 Professora associada do Departamento de Música (DMU) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Atua nos Programas de Pós-Graduação, Mestrado em Música (PPGMUS) e Mestrado Profissional em Artes (PROF-ARTES) na mesma instituição. Foi professora de música em escolas, públicas e privadas, de educação básica. Desenvolve pesquisas na área de Formação Docente privilegiando temas como prática pedagógica, programas curriculares, conhecimento profissional, práticas musicais escolares, estudos transculturais e pesquisa (auto)biográfica em educação musical.