Dossiê
A
HISTÓRIA DE VIDA DE DUAS PROFESSORAS DE MÚSICA DAS ESCOLAS PARQUE DE BRASÍLIA:
Construção de laços pelas experiências
THE
LIFE HISTORY OF TWO MUSIC TEACHERS FROM ESCOLAS PARQUE OF BRASÍLIA: Development bonds through experiences
Arthur de Souza Figueirôa arthur_figueiroa@hotmail.com
UnB, Brasil
Delmary Vasconcelos de Abreu delmaryabreu@gmail.com
UnB, Brasil
Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Continua
vol. 7, núm.
1, 2022
revistaorfeu@gmail.com
URL: https://periodicos.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/20898
DOI: https://doi.org/10.5965/2525530406012021e0105
Autores mantém os
direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.
Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.
Resumo: O
presente trabalho consiste num recorte de uma pesquisa concluída que teve como
tema “Histórias de Vida de Professores de Música das Escolas Parque de
Brasília/ DF”. Como objetivo da pesquisa buscou-se compreender como os laços
entre as professoras e a escola de educação básica são construídos, tendo como
desdobramentos evidenciar como as experiências dessas professoras contribuem na
formação desses laços e entender nas narrativas (auto)biográficas como essas
professoras se tornam sujeitos da experiência. A abordagem teórico-metodológica
é a pesquisa (auto)biográfica, e a fonte utilizada é a entrevista narrativa
(auto)biográfica. Os resultados apontam que a construção dos laços foi dada
pelas professoras em suas narrativas, entendendo que é a partir do movimento
(auto)biográfico que o sujeito constrói e reconstrói novos sentidos para si
mesmo, aprofundando suas próprias histórias de vida com aquilo que emerge da
sua relação com a escola, sendo, a partir dessas ligações, produzido um
dispositivo formativo para o sujeito – o laço.
Palavras-chave: Educação Musical, Pesquisa
(Auto)Biográfica, Histórias de Vida de professores de música das Escolas Parque
de Brasília/DF.
Abstract: This article
consists of excerpts from completed research whose subject was “Life Stories of
Music Teachers from the
Escolas Parque de Brasília/DF”. This research aimed to understand how
the bonds between teachers and the primary school are built and its ramifications are the emphasis on how the experiences
of these teachers contribute to their
bonding with the school, and the understanding, through (auto)biographical narratives, of how these teachers became the subjects of the experience. The theoretical-methodological
approach applied throughout
the article is the (auto)biographical research and the source is the (auto)biographical narrative interview.
The results reveal that the bonding was started by
the teachers themselves in their narratives, understanding that the subject builds and rebuilds new meanings to himself
starting from the (auto)biographical movement, going deep in their
own life stories with what emerges from their relationship
with the school. From these connections a formative device is created to the subject – the bond.
Keywords: Music Education,
(Auto) biographical research,
Life Stories of Music Teachers from
the Escolas Parque de Brasília/DF.
Introdução
O interesse pelo tema História de Vida de Professores de Música
surge nos estudos empreendidos pelo Grupo de Pesquisa Educação Musical e
Autobiografia, coordenado pela pesquisadora coautora deste texto, em conexão
com as minhas interações no espaço escolar desenvolvidas durante a graduação.
Iniciei minha trajetória acadêmica na Universidade Federal de Pernambuco –
UFPE, no curso de Licenciatura em Música, curso esse escolhido pela minha
identificação com o exercício da docência de música. Construí durante esse
período experiências significativas de aprendizagem da docência no que tange à
princípios pedagógico-musicais, propostas e projetos musicais que poderiam ser
desenvolvidos na prática de sala de aula.
Após o terceiro semestre no curso de licenciatura em música,
candidatei-me a uma vaga de estágio numa escola pública municipal de Recife/PE,
a Escola Municipal de Arte João Pernambuco, que oferece aulas de diversas
modalidades artísticas como música, dança, artes cênicas e artes visuais. Nesse
contexto, atuei durante um ano como professor de canto coral, percepção
musical, prática de conjunto e trombone. Embora estivesse inclinado a seguir o
caminho da docência, nesse mesmo período fui convidado por um amigo a concorrer
ao concurso público para músico militar da Força Aérea Brasileira – FAB. Fui
aprovado e designado para Brasília, transferindo o curso de licenciatura ainda
incompleto para a Universidade de Brasília – UnB. O desejo por continuar a
trajetória acadêmica persistiu e, com ele, o desejo de compreender mais sobre a
profissão professor de música.
Essa aproximação com o exercício da docência me levou a repensar
a sala de aula como um espaço de partilhas de experiências musicais entre
professores e alunos, considerando ainda as experiências compartilhadas por
demais profissionais da educação que atuam no contexto escolar (ABREU, 2011, p.106). Para continuar
praticando a profissão professor de música, procurei ampliar esses laços
profissionais me inserindo em outros contextos educativo-musicais em que se
requer um profissional dessa área. Tenho atuado em projetos vinculados a
igrejas que envolvem a musicalização infantil com flauta doce para crianças de
quatro a onze anos de idade, bem como o ensino de instrumentos harmônicos como
violão, teclado e baixo elétrico para idades variadas.
Assim, com as experiências da docência e realização de pesquisas
científicas, aprofundei questões iniciais sobre os desafios da profissão
docente de música em contextos escolares, tais como: como é ser professor de
música na educação básica, e por que existe escassez de professores de música
atuando nesse contexto? E o que faz alguns docentes de música continuar no
exercício da profissão nesse espaço escolar? Busquei, a partir dessas questões,
encontrar na literatura o que autores têm abordado sobre o assunto.
A educação musical escolar tem sido investigada por diferentes
enfoques como políticas educacionais, formação de professores, concepções e
práticas de ensino, o trabalho docente de música, e história de vida de
professores de música em contextos escolares, esse último, foco do meu
interesse de pesquisa. Ao investigar o que esses trabalhos produziram de
conhecimento na área de educação musical, na perspectiva das Histórias de Vida,
narrativas e memórias de professores, encontrei ressonâncias com a minha
pesquisa nos trabalhos de Torres (2003),
Abreu (2014, 2013, 2011),
Anezi e Garbosa
(2013), Gaulke (2017; 2013)
e Almeida e Louro (2016).
Partindo do diálogo construído juntamente com tais pesquisas,
compreendo que suas contribuições mostram que é nesse ato de narrar, de se “biografizar” com a música, que os professores têm dimensões
compreensivas do quanto as suas narrativas são formativas. Esse processo pode
ser aclarado com as palavras de Ricoeur (1994), que para se ter consciência daquilo que
se configura torna-se necessário reconfigurar as narrativas. E, isso se torna
possível quando, segundo Delory-Momberger (2012) acontecimentos, ou motivos
recorrentes, tematizados pelos professores são organizados em suas próprias
narrativas na qual ajustam suas histórias de vida profissional implicadas com o
contexto escolar.
Diante disso, para pensar a construção de laços com a escola,
tomei as seguintes questões norteadoras da pesquisa: que acontecimentos
tramaram a vida dessas professoras com a escola, que experiências contribuíram
para a constituição desses laços e como essas experiências são reconfiguradas
em suas narrativas. A partir dessas questões, tomei como objetivo geral da
pesquisa compreender na história de vida de professores de música como
constroem laços com a escola de educação básica. Esse objetivo se desdobrou nos
seguintes objetivos específicos: evidenciar como as experiências dessas
professoras contribuem na formação desses laços e entender nas narrativas
(auto)biográficas como essas professoras se tornam sujeitos da experiência.
História de Vida: tecendo laços
Neste tópico discorro sobre os conceitos que nortearam a
pesquisa, aclarando como os autores com os quais dialoguei podem contribuir
para que as teorias explicativas, que possam emergir das narrativas dos
sujeitos da pesquisa, farão avançar no processo de análise e nos achados da
pesquisa que respondem aos objetivos delineados previamente.
Os pressupostos teóricos da pesquisa estão fundados na pesquisa
(auto) biográfica, mais especificamente, na História de Vida. Dentro dessa
perspectiva, e de acordo com Josso (2006), a história de vida oportuniza revisitar
sua história para extrair dela o que pensamos ter contribuído para nos
tornarmos o que somos, o que sabemos sobre nós mesmos e nosso ambiente humano e
natural e tentar compreendê-la melhor (JOSSO,
2006, p. 376). No que se refere à História de Vida de professores, Abrahão (2007) nos ajuda a pensar que, à
luz da História de Vida, conhece-se a história da Educação do próprio estado,
neste caso, da Escola Parque como um lugar em que se constroem os laços. A
História de Vida constitui-se de relatos produzidos com o objetivo de remontar
a memória individual ou coletiva num período da história, cujo pesquisador está
também unido ao processo, participando na elaboração desse memorial, pois a
História de Vida não é uma transmissão, mas uma construção (ABRAHÃO, 2007).
A história de vida se constrói junto com a narrativa,
diferenciando-se do relato de vida. O relato de vida é a narração de uma
história exatamente como quem a viveu conta, valorizando a fidelidade dos
acontecimentos narrados, ao passo que na história de vida a pessoa ao relatar poderá
nesse processo ressignificar o relatado, dando a sua compreensão do presente
para percursos vividos (PUJADAS, 1992 apud
ABRAHÃO, 2007, p. 167). Ela consiste no próprio relato da história contada,
juntamente com fontes documentais que permitam reconstruir essa história o mais
fielmente possível. Estas fontes podem ser: a) documentos pessoais-diários,
correspondências, fotografias, vídeos, matéria publicada etc., além de
documentos oficiais e b) registros biográficos, História de Vida e relatos
cruzados. “Em se tratando de pesquisa na área educacional pode-se explorar, por
meio do método de Histórias de Vida, a dinâmica de situações concretas pelas
narrativas em que aflorem as percepções de sujeitos históricos” (ABRAHÃO, 2007, p. 167).
A História de Vida nessa perspectiva se constrói a partir de
cenas de uma história plural do sujeito, cuja compreensão não se preocupa em
entender uma história linear, mas como um repertório de cenas, para que se
tenha uma construção global dessa história (ABRAHÃO
com base em MARINAS, 2016, p. 04). Essa perspectiva focada nesse repertório
de cenas me faz lembrar as palavras de Josso (2006),
que para se tomar consciência das dimensões individuais da existencialidade,
é preciso abordar a vida das pessoas na globalidade de sua história,
compreendendo as variações dos registros nos quais elas se exprimem, e as
múltiplas facetas que elas evocam de seu percurso. Essa história representada
por cenas é uma forma de elaboração mental, pois ao narrar sua própria
trajetória, uma vez que, no momento da enunciação, o sujeito (re)significa o vivido, “pelo esforço de trazer os
acontecimentos à memória, sopesando uns, destacando outros, esquecendo ou
reprimindo alguns” (ABRAHÃO, 2016, p. 265).
Para tanto, dois construtos são de fundamental importância nesse
processo: a escuta e a palavra dada. Essa escuta se refere a uma escuta atenta,
de qualidade, em que a narrativa do sujeito está em evidência para que se
identifiquem e se organizem essas estruturas cênicas. A palavra dada é algo que
deve estar combinada com a escuta, pois exerce um vínculo entre o que narra e o
que “escuta”, se constituindo de um valor moral e de um rigor metodológico
dessa escuta (ABRAHÃO, 2016). Para a
autora, esses dois conceitos estão ligados pelo compartilhamento da memória no
contexto da narração, acarretando num momento de máxima implicação entre o
investigador e investigado, possibilitando significados para as narrativas numa
construção rica da história, pois “certamente, as narrativas são
ressignificadas no momento da narração (a invenção de si/a invenção da
personagem) dada a natureza reconstrutiva e seletiva da memória que permeia a
relação narrador/ouvinte. Mas vai além.” (ABRAHÃO,
2016, p. 284).
A História de Vida de professores de música que constroem laços
com a Escola Parque pode ser melhor compreendida a partir dos construtos
apresentados por Abrahão (2016) no que
concerne à compreensão cênica com a inclusão dos correlatos palavra dada e
escuta atenta; e a compreensão dos laços apresentada por Josso
(2006), ao afirmar que “não haveria vida sem uma multiplicidade de ligações
biopsicossociais e, ainda menos, história sem constituição de ligações entre
acontecimentos materiais e psíquicos de nossas vidas em suas dimensões
individuais e coletivas” (JOSSO, 2006, p.
375).
Para tratar do sensível nas histórias de vida e formação,
dialoguei com o conceito de dimensões do ser no mundo. De acordo com Josso (2007),
nosso existir histórico e social é engendrado por diversas formas de ligações
de várias dimensões. Estamos biologicamente ligados a uma herança genética de
nossos pais, mesmo sem haver outras ligações envolvidas, como laços afetivos;
estamos psicologicamente ligados àquelas pessoas que estão intimamente próximas
a nós, mesmo que distantes fisicamente; e estamos socialmente ligados, por
exemplo, com nossos vizinhos, amigos, companheiros de trabalho, com pessoas que
nunca vimos antes, mas que estiveram conosco nalguma interação.
Entendo que as figuras de si – Dimensões do ser no mundo,
entrelaçadas com as Dimensões das Histórias de Vida ligadas a contextos
sócio-históricos propiciam a compreensão desses laços que se tramam ao longo da
vida do indivíduo que se tornaram professores de música de escolas de educação
básica. Para uma melhor compreensão desse indivíduo, desse ser, que se torna
professor, apresento a seguir as dimensões do sujeito da experiência a fim de
tornar clara a compreensão do conceito-experiência utilizado ao longo desse
trabalho.
Para pensamos no professor como sujeito da experiência, tomamos
os construtos teóricos de Passeggi (2016) que tematiza o sujeito da experiência
entrelaçando as noções de sujeito epistêmico e sujeito empírico, “como
concepções propícias ao exercício da biografização”.
Essas noções de sujeito ajudam na compreensão do “sujeito biográfico que enlaça
nas narrativas da experiência razão e emoção, público e privado, padecer e
empoderamento” (PASSEGGI, 2016, p. 67).
O termo “experiência” utilizado em pesquisas em Educação é tratado por Contreras (2016, p.
15) como “relatos de experiência, em busca de um saber pedagógico”. Segundo
Josso (2006),
a origem da experiência é, em primeiro lugar, “algo que se vive”, entendendo
que o viver a educação [musical] é um convite para prestar a atenção naquilo
que nos faz compreender as “dimensões do ser” (JOSSO, 2006, p. 376 acréscimos meus).
Podemos, a partir disso, pensar para que serve essa experiência
senão para pensar com ela, o sujeito da experiência. Contreras
(2016) nos convida a refletir sobre o “pensar com os acontecimentos, para, a
partir deles, intentar elucidar o que nos estão dizendo, o que nos estão
pedindo para refletir”. Nesse sentido, compreender o sujeito da experiência,
neste caso o professor de música, que estando ligado ao contexto educacional
constrói a experiência na relação com os acontecimentos das situações de
ensino, como um movimento que o torna sujeito da experiência com a escola.
E, se esse movimento do que acontece com o sujeito é tombado
como experiência, abre-se então possibilidades para ampliar a forma como se vê
a si mesmo em relação com aquilo que se experimenta. Nesse sentido, Contreras (2016)
sinaliza “o caminho da pesquisa com experiência: continuar e ampliar o que nos
pede a experiência, estar pensando, seguir pensando” (p. 21, tradução nossa).
Para seguir pensando na experiência como conceitos operantes da pesquisa, trago
a seguir o referencial teórico-metodológico da pesquisa fundamentada no método
da pesquisa (auto)biográfica.
Referencial teórico-metodológico da pesquisa
(auto)biográfica
Neste trabalho trago, de forma sucinta, compreensões a respeito
da pesquisa (auto)biográfica no que se refere à sua conceituação teórica. A
forma como o termo “(auto)biografia” vem ecoando nas pesquisas têm sugerido uma
pluralidade de termos para se referir a pesquisa (auto)biográfica, e isso pode
causar certa confusão se não for bem esclarecido, principalmente para uma área
como a educação musical, em que a pesquisa (auto)biográfica é bastante recente.
Por isso, tomei como pertinente esclarecer os termos adotados para a pesquisa.
E, para tanto, parto da indagação: O que seria (auto)biografia? Em qual campo
da ciência ela atua? Método ou Teoria?
A técnica utilizada nessa pesquisa é a Entrevista Narrativa
(Auto)Biográfica – ENAB ou Biográfico-Narrativa (SOUZA, 2016). Para Souza (2016), a técnica de Entrevista
Narrativa consiste em apreender dispositivos de formação vinculados às
trajetórias sociais e coletivas, e aos percursos individuais de cada sujeito.
Seu termo, assim como a pesquisa (auto)biográfica, tem sido utilizado de forma
plural, destacamos que para essa pesquisa utilizamos o termo para se referir à
entrevista narrativa (auto)biográfica. No entanto, gostaria de trazer
compreensões a respeito dessa técnica a fim de aclarar os caminhos
metodológicos adotados na pesquisa no que concerne às especificidades dessa
forma de entrevista.
Tomando como ponto de partida para essa compreensão, a ENAB
possui como finalidade apreender a singularidade de uma fala e de uma
experiência. Trata-se de colher e ouvir, em sua singularidade, a fala de uma
pessoa num importante momento de sua experiência em sua existencialidade.
Para essa técnica é importante estar atento aos acontecimentos, sejam
históricos, sociais ou políticos, bem como para as formas de representações que
o indivíduo faz de si mesmo. Importante ainda perceber na experiência do
sujeito suas formas de narrar sua própria história, pois “o fato de ser uma
fala de sua época e de sua sociedade é plenamente reconhecido pela pesquisa biográfica
que vai mais além: faz dela uma dimensão constitutiva da individualidade” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 526). Para que
se tenha uma compreensão mais ampla do que essa técnica possibilita, Delory-Momberger
(2012) faz questionamentos importantes: Quem entrevista quem na entrevista
de pesquisa biográfica? Em outras palavras: de que (de quem?) é constituído o
espaço de pesquisa, o espaço heurístico da entrevista? Quem é o verdadeiro
perguntador numa entrevista biográfica?
Essas questões nos ajudam a refletir sobre como os colaboradores
da ENAB, investigador e investigado, se constroem nesse processo. Para a autora
pelo menos três componentes estão agindo e interagindo da ENAB, os quais são:
duas pessoas, o entrevistador e o entrevistado, que ocupam posições diferentes;
e o que se passa, o que “se mantém” entre essas duas pessoas: atitudes,
colocações, formas de intercâmbio e de ação recíprocas. A ENAB possibilita um
duplo espaço heurístico, o espaço do entrevistado na posição de entrevistador
de si mesmo e o espaço do entrevistador, cujo objeto próprio é criar as
condições e compreender o trabalho do entrevistado sobre si mesmo (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 527). A
perspectiva colaborativa da pesquisa que se utiliza da ENAB implica
aprendizagens e teorizações sobre as práticas docentes, cujas experiências
narrativas possibilitam compreender e ampliar as trajetórias de formação e a
própria história dos diferentes sujeitos vinculados ao projeto de formação (SOUZA, 2016, p. 74). No caso da ENAB, o
investigador “deixa o narrador expandir-se da maneira mais ampla e mais aberta
possível o espaço da fala e das formas de existência de si, quando ele se
coloca na posição de seguir os atores” (DELORY-MOMBERGER,
2012, p. 528-529). Nessa perspectiva, seguir os atores requer um cuidado
específico do investigador, pois exige maior atenção para as formas do discurso
do sujeito, de suas representações de si, para uma configuração singular de
acontecimentos, e de interpretações que ele faz de sua experiência.
O processo de realização das primeiras entrevistas foi demasiado
desafiador para mim, pois me sentia no início do processo de construção como
pesquisador. Refiro-me a esse processo, uma vez que é necessário, na entrevista
narrativa (auto)biográfica, entender as minúcias na forma de discurso do entrevistado,
e, como pesquisador perceber com o sujeito como se dá a reconfiguração de sua
experiência e como a ressignifica. E isso é uma tarefa muito complexa, pois
exige do pesquisador uma afinidade com o aporte teórico-metodológico da
abordagem escolhida, neste caso a pesquisa (auto)biográfica. Por isso, retomei
o encontro com as duas entrevistadas aprofundando com elas as nuances dos
relatos transcritos e organizados por mim.
Nessa etapa procurei reconfigurar com elas o meu primeiro
processo de análise, pois como questiona Delory-Momberger (2012) “o que se faz com essa palavra
do outro?”. Como se analisa isso? Entendo que, primeiramente, é saber conduzir
bem o processo de entrevista explorando, nas formas do discurso do entrevistado
as relações que os sujeitos estabelecem entre os discursos que produzem de si
para agir biograficamente. E esse processo entre pesquisador e pesquisado se
torna colaborativo, quando “coletamos, ordenamos, organizamos, vinculamos as
situações e os acontecimentos de nossa existência, damos a eles uma forma
unificada e associada a uma vivência [...] e, através dessa formatação,
interpretamos e outorgamos sentido ao que vivemos” (DELORY-MOMBERGER, 2012).
Outro aspecto a ser considerado no processo de entrevista
narrativa (auto) biográfica, é a atitude que os entrevistados adotam de forma
recorrente nas narrativas (auto)biográficas, a sua relação com as situações e
acontecimentos, e na forma como agem e reagem. Esse esquema de ação é um
processo que deve ser explorado pelo pesquisador no ato da entrevista, pedindo
ao entrevistado que conte um pouco mais sobre determinados esquemas de ação que
foram relatados, para que possa emergir tais acontecimentos e o modo como lidam
ou lidaram com esses acontecimentos. Além dessa exploração pelo pesquisador no
ato da entrevista, isso pode ser adensado no retorno das narrativas para o
entrevistado para reeditar esses esquemas de ação.
Os assuntos ou temas trazidos na entrevista, por eles próprios,
aos quais se referem de forma recorrente, podem e devem ser aprofundados pelo
pesquisador no momento da entrevista narrativa (auto)biográfica. Esse aspecto
da entrevista, e que posteriormente é utilizado no processo de análise, faz
parte dos construtos teórico-metodológicos de Delory-Momberger
(2012, p. 535). A autora entende que os “motivos recorrentes ou topoi: tematizam e organizam a ação do relato, agindo nele
como lugares de reconhecimento e chaves de interpretação da experiência. No topoi os entrevistados constroem sentidos de si”. Assim, o
pesquisador poderá, a partir das narrativas (auto)biográficas, da palavra do
outro, isto é, do entrevistado, analisar como “ocorre a confrontação e a
negociação entre os topoi, as disposições e
restrições de recursos pessoais e coletivos com tomadas de posições avaliativas
em que os sujeitos ajustam sua ação com a realidade, a gestão biográfica dos topoi” (DELORY-MOMBERGER,
2012, p. 528-535).
E foi com base nesses pressupostos teórico-metodológicos que
construí o segundo momento da entrevista narrativa (auto)biográfica com as duas
professoras colaboradoras da pesquisa. Esse segundo momento se constituiu em
alguns passos: o primeiro passo foi dar um tratamento analítico para as
narrativas e, na sequência, devolver essas narrativas às professoras
colaboradoras para que estas pudessem ler as escritas de si e terem a
oportunidade de reconfigurar suas narrativas. Durante as entrevistas observei
atentamente os relatos das professoras que narravam sua história. Comecei a ter
consciência de que minha presença na condução das entrevistas estava sendo
também um exercício formativo como pesquisador. Entendi que essa relação
pesquisador e entrevistado na pesquisa (auto)biográfica é um processo formativo
para ambos.
Para Ferrarotti (2010),
toda narrativa de acontecimentos ou de uma vida é, por sua vez, um ato, a
totalização sintética de experiências vividas de uma interação social. Toda
entrevista biográfica é uma interação social completa, ela esconde tensões,
conflitos e hierarquias de poder. “Nós não contamos a nossa vida e os nossos “Erlebnisses” a um gravador, mas a outro indivíduo” (FERRAROTTI, 2010, p. 46). Ou seja, contar
nossas experiências a outro indivíduo não é transmitir algo a ele, mas é uma
construção para ambos.
O exercício de ir a campo e ouvir as experiências de professores
de música enriqueceu o meu aprendizado, principalmente, após as primeiras
entrevistas e suas transcrições, quando pude ler e reler atentamente para
compor temas das análises e interpretação das narrativas. Para adensar as
fontes orais oriundas das entrevistas, busquei algumas fontes documentais que
trazem registros das professoras de música como: documentos, fotos, vídeos, facebook, sites da escola, registros de alunos,
dissertação, artigos, PIBID, blogs, etc. Essas fontes secundárias corroboram na
escrita da história contada por elas no processo de entrevista narrativa, ou
seja, na fonte primária, conforme aponta Ferrarotti
(2010). Tomando os pressupostos teórico-metodológicos de Delory-Momberger
(2012) e as categorias de análise utilizadas pela autora, é preciso
esclarecer como se deu o processo de análise das ENAB. Para analisar as
entrevistas nessa perspectiva, a pergunta geradora é: “O que se faz com essa
palavra do outro?” (DELORY-MOMBERGER, 2012,
p. 528). Essa questão proposta pela autora nos fez refletir sobre o
compromisso que se deve ter com aquilo que fazemos com a narrativa do outro. A
autora afirma que “é preciso tentar compreender bem o que está em jogo da
relação com o real, com o vivido, no relato que o narrador faz” (Ibidem). Nesse
sentido, a autora apresenta categorias de análise das entrevistas, das
produções (auto)biográficas.
A primeira categoria é a das formas do discurso, na qual ela se
refere ao modo como o narrador organiza seu discurso (narrativo, descritivo,
explicativo, avaliativo) e às relações que se estabelecem entre eles. Cada uma
dessas formas do discurso é suscetível, por sua vez, de ser categorizada. É o
caso, em particular, do modo narrativo que se pode articular em diversos tipos
de relato segundo os modelos biográficos de referência. A segunda categoria é a
do esquema de ação que o narrador utiliza, isto é, da atitude que adota de
forma recorrente na sua relação com as situações, com os acontecimentos, e na
forma como agem e reagem.
A terceira categoria é a dos motivos recorrentes ou topoi (do grego tópos,
lugar-comum), que tematizam e organizam a ação do relato, agindo nele como
lugares de reconhecimento e chaves de interpretação da vivência, embora o
narrador não tenha necessariamente consciência disso. É particularmente na
escrita desses topoi, desses lugares privilegiados,
que o narrador constrói um sentimento de si próprio e das suas formas próprias.
A quarta categoria apresentada por Delory-Momberger
(2012) refere-se à gestão biográfica dos topoi em
virtude da realidade socioindividual. Essa categoria
concerne à confrontação e à negociação entre os topoi,
as disposições e recursos efetivos (pessoais e coletivos), e as restrições socioestruturais. No discurso propriamente narrativo, essa
confrontação pode traduzir-se por “choques” entre padrões biográficos
veiculados pelos mundos sociais e as biografias de experiência. Ela é também
observável nas fases deliberativas e avaliativas no decorrer das quais os
autores apreciam, negociam e ajustam sua ação a realidade socioindividual.
Esse processo da análise narrativa consistiu em colher e
sopesar, preliminarmente, o material biográfico fornecido pelas duas
professoras de música. Foram utilizados os registros escritos de suas
dissertações de mestrado e artigos científicos publicados e suas narrativas
transcritas. Seguindo nesse processo, os primeiros excertos desse processo de
análise foram devolvidos para ambas as professoras separadamente para que
lessem, modificassem, e ampliassem o que achassem pertinente. Por último foi
feita uma abstração daquilo que as professoras analisaram.
Dimensões da compreensão da vida-formação
Tematizando a Vida-formação como alunas de Escola Parque, a
análise evidenciou as dimensões compreensivas de como as professoras de música
foram construindo laços com as Escolas Parque de Brasília. Na medida em que
analisei os materiais biográficos em suas Histórias de Vida, tive compreensões
no que tange aos objetivos delineados na pesquisa. Os primeiros escritos dessas
análises foram devolvidos para as professoras separadamente, cujas
interpretações de suas narrativas foram ressignificadas por elas em uma segunda
narrativa, configurando-se num processo de análise (auto)biográfico, da qual as
professoras participaram e (re)configuraram assim o
que acharam necessário.
As professoras organizaram o seu relato inicial a partir de sua
infância na Escola Parque. Percebi, nas primeiras leituras das Entrevistas
Narrativas, que as professoras tematizaram as suas vidas como alunas da escola,
trazendo acontecimentos relacionados às aulas de música. Suas vidas-formação
são entendidas nesse capítulo de análise, que se introduz, com momentos de seu
percurso formativo como alunas de Escola Parque, e as escolhas profissionais
para a docência serão tratadas no próximo capítulo de análise.
A nomenclatura “movimento (auto)biográfico”, utilizada ao longo
dessa pesquisa, refere-se ao ato do sujeito mover-se na busca de memórias
relacionadas àquelas experiências formativas que produziram sentido no instante
que são ligadas pela narrativa. Existe um ir e vir nesse processo, por exemplo:
o sujeito pode criar um laço com uma determinada experiência evocando memórias,
porém pode ficar apenas na dimensão abstrata e não produzir novos sentidos. O
ir e vir do movimento (auto)biográfico faz-se necessário para que o sujeito
construa os sentidos. Nesse caso, o laço não tem a mesma função do movimento
(auto)biográfico, mas está em função deste, uma vez que o laço é construído
para fazer ligações de memórias formativas no sujeito que fará produzir os
sentidos, contextualizando-os no presente da narrativa. Esse movimento
(auto)biográfico pode ser entendido também como processos de (auto)biografização musical (FIGUEIROA,
2017), atualmente aprofundado por Abreu
(2020) como processos de musicobiografização.
Porém, para manter coerência com os estudos de Josso (2006),
referencial da pesquisa, seguirei com o termo.
Esse movimento que as professoras fazem é contextualizado no
presente, gerando sentidos da experiência. Os laços constituídos na
vida-formação constroem um topoi em sua História de
Vida, cuja construção é apresentada nessa pesquisa como nós ligantes. Esses
ligantes indicam o movimento (auto)biográfico que o sujeito faz com suas
memórias ao narrá-las e, por sua vez, os pontos
representam o laço produzido ao se formarem com essas memórias. Quando retorna
para si mesmo, esse processo produz um novo sentido para esse sujeito no
instante da narrativa. É, portanto, uma ligadura que constroem em si mesmas com
a música e a escola. Significa dizer que essas professoras constroem esses laços
num movimento (auto)biográfico, cuja ligação se dá com um momento específico em
sua memória escolhido por elas no ato da enunciação – o momento aluna de Escola
Parque – e quando se contextualizam no tempo presente das suas narrativas
passam a produzir os sentidos da experiência para si.
Tematizando a Vida-formação de professoras de música de Escola
Parque, as professoras trouxeram em seus relatos o contexto onde atuaram, em
que a Escola Parque ganha fundamental destaque a respeito de seu percurso formativo
com música e a construção dos laços que trato nessa pesquisa. Compreender esse
contexto é também compreender esse movimento (auto)biográfico que as
professoras fizeram para se constituir com essa escola. As professoras percebem
com clareza a especificidade que emana desse contexto, pois sua imbricação com
ele implica na liberdade de desenvolver projetos musicais, favorecendo o seu
fazer musical; revela a necessidade de um corpo docente especializado nas
disciplinas artísticas; revela também que o professor de música de Escola
Parque se depara com a natureza especial desse contexto.
Esses pontos elucidados ajudam na compreensão dessa complexa
dimensão do Ser professor de música. Suas Histórias de Vida nos ajudam a ter
dimensões da compreensão de como essas professoras se tornaram o que são e como
construíram laços pelas experiências com a Escola Parque. Compreendemos por
suas Histórias de Vida aquilo que foi formativo em seus percursos com a música,
cujas experiências são evidenciadas pelas professoras em sua narrativa. O
contexto e os momentos charneira presentes nos relatos de experiências das
professoras de música constituem essa dimensão do Ser professor de música. Tais
momentos charneira ocorrem quando o sujeito busca por uma mudança na sua
maneira de se comportar, e/ou na sua maneira de pensar o seu meio ambiente,
e/ou de pensar em si por meio de novas atividades (JOSSO, 2010). Os laços e os sentidos
construídos por elas dizem respeito a essa dimensão, pois configuram e orientam
seus percursos profissionais, cujas experiências produzem conhecimento para
elas. Entendo que ter dimensão da compreensão sobre esses pontos elucidados
contribui para que se conheça como as professoras construíram laços com a sua experiência
com a Escola Parque de Brasília.
Intento trazer como resultado dessa análise da vida-formação de
professora, as colaboradoras Verônica e Olívia buscando (re)construir
suas Histórias de Vida a partir de suas narrativas (auto)biográficas, bem como
fontes documentais sobre as professoras de música. Trago novamente a
compreensão de que o termo “laços” é para essa pesquisa um dispositivo
formativo, cujos sentidos estão implícitos no contorno criado por essas
histórias. Compreendo esses contornos em suas singularidades como algo que pode
ser generalizável como conhecimento, constituindo Histórias de Vida de sujeitos
singulares-plurais.
Abstraio desse processo de análise narrativa a condição de
autoria de ambas as professoras de música das Escolas Parque do Distrito
Federal que implicam suas vidas com o contexto escolar, e que tomam consciência
dos seus papéis nos cenários de suas vidas com a escola. A construção dos laços
foi dada pelas professoras em suas narrativas, e com tais narrativas é possível
dizer que as professoras assumem a autoria do seu texto, de uma história que
passa a existir pelos registros que fazem de si, quais sejam: 1) Pela formação
com a música; 2) Pela História de Vida implicada com o contexto escolar; 3)
Pelas práticas musicais de vida. Esses resultados serão discutidos no último
capítulo desse trabalho, cujas Histórias de Vida e as Dimensões do Ser
professor de música trarão o fechamento dessa pesquisa.
Algumas considerações analíticas
O presente tópico se constitui dos achados da pesquisa mediante
análise das Histórias de Vida de duas professoras de música de Escola Parque,
na cidade de Brasília/DF. Retomo para esse momento os objetivos da pesquisa
concluída, respondidos na análise dos resultados encontrados. Os objetivos
consistiram em compreender na História de Vida de professores de música, como
constroem laços com escola de educação básica, trazendo os seguintes
desdobramentos: evidenciar como as experiências dessas professoras contribuem
na formação desses laços e entender nas narrativas (auto)biográficas como essas
professoras se tornam sujeitos da experiência. Procurei responder a esses
objetivos de três formas: 1) pela formação com a música; 2) pela História de
Vida imbricada com o contexto; 3) pelas práticas musicais de vida.
Para compreender esses resultados retomo algumas dimensões da
compreensão presentes na análise. Para se conhecer a história de um contexto de
educação musical, entendo que é possível pelo caminho que se faz ao buscar o
sentido daquilo que se faz com a música pelas Histórias de Vida dos sujeitos
desse contexto. Parte dessa história consiste em perceber as singularidades dos
laços que são construídos pelo professor de música e o contexto, a partir do
movimento (auto)biográfico do sujeito. Acredito que é a partir desse movimento
de ir e vir em si mesmo que o sujeito constrói e reconstrói novos sentidos para
si mesmo. E isso não tem um fim no sujeito que se “biografiza”,
mas os seus efeitos são percebidos em suas próprias práticas musicais de vida.
Acredito que essas são propriedades do sujeito (auto)biográfico,
que o torna um sujeito capaz de ampliar a compreensão que tem de si mesmo, ao
passo que vai criando laços da experiência com sua própria História de Vida.
Entendo que na dimensão do ser professor de música estes se ligam com o passado
para produzir sentidos dessa experiência para pôr-se novamente para frente,
para avançar em conhecimentos. Esse movimento (auto)biográfico faz a diferença
na vida de professores ao conectar com o que está no presente e projetar-se no
futuro com uma nova perspectiva.
Os laços aqui compreendidos são um dispositivo formativo. E é
nesse dispositivo que os sentidos são construídos e reconstruídos por essas
histórias que são trazidas à tona, e esse movimento (auto)biográfico que faz
emergir os relatos de experiência. Portanto, é a partir desse movimento
(auto)biográfico que professores de música constroem laços, quais sejam: pela
sua formação com a música, pela História de Vida imbricada com o contexto
escolar e pelas práticas musicais de vida. Nesse triplo movimento
(auto)biográfico, é possível perceber primeiramente uma ligadura que constroem
em si mesmas com a música e a escola.
No segundo ponto, compreendo que as professoras de música
constroem laços pela História de Vida imbricada com o contexto escolar pelos
relatos de experiências em que a escola aparece na vida de professores ligando
laços nessa trajetória escolar desde o tempo de alunos até se tornarem
professores e, neste caso, pesquisadores com foco na educação musical escolar.
Essa História de Vida imbricada com o contexto só é possível se há um
reconhecimento do entrelaçamento de si mesmo com o que representa a escola como
propiciadora e como constituidora de laços, comportando aquilo que foi vivido e
o que filtram das relações sociais vividas.
No caso desta pesquisa, entendo que o fato do contexto da Escola
Parque compor a narrativa das professoras indica que houve uma sustentação para
que os laços pudessem ser construídos pelas professoras. Compreendo que essa
escola proporcionou os meios de construção dos laços, mas quem decidiu criá-los
foram as professoras de música. Dito de outra forma, construir laços que se
sustentem pela Escola é uma ação mútua em que cada contexto propicia de forma
peculiar os meios e o sujeito produzem os laços. Além disso, as professoras
evidenciam seus momentos charneira no contexto e que isso as levou a realizar
pesquisas de mestrado sobre o contexto. Isso mostra que houve uma preocupação
por parte dessas professoras de provocar mudanças em seus contextos a partir de
sua “biografização” com a Escola Parque, buscando
encontrar respostas para aquilo que as intrigava. Entendo que a Escola Parque
está entrelaçada em suas Histórias de Vida, revelando os laços que as
professoras construíram pelas experiências nesse contexto.
Como terceiro e último ponto, é possível trazer compreensões de
construção de laços pelas práticas musicais de vida. O conhecimento produzido
na “biografização” de professores, incorporado àquilo
que está ligado às suas ações, diz respeito ao que professores fizeram e fazem
de música para construir a docência de música. Entendo isso como práticas
musicais de vida, não são somente práticas musicais escolares, pois há uma “biografização”, uma reflexividade em torno dessas práticas
musicais de vida. As práticas musicais de vida são produto da “biografização”, pois são construídas pelos conhecimentos
gerados pelos laços e o movimento (auto)biográfico. Compreendo que as práticas
musicais de vida são permeadas de laços e também estimulam professores a
permanecerem construindo laços, pois essas práticas musicais de vida não se
configuram como meras repetições, mas sim como produtos dessa “biografização” de professores. Com os resultados da
pesquisa retomo da análise crítica empreendida na revisão de literatura com
autores da área de educação musical para pensar em seus avanços. Nesse sentido,
ao retomar o diálogo com a área e com os achados desta pesquisa, me instiga a
pensar que, na construção dos laços entre os professores com a música na escola,
as suas (auto)biografias musicais dão sentido para o seu fazer musical no
espaço escolar.
Acredito que as (auto)biografias musicais de professores trazem
a vida-formação em diferentes redes formativas construídas ao longo da vida. E
é essa a figura de ligação das dimensões do Ser professor de música. Porém, a
construção de si com o lugar chamado escola permite que o sujeito reconfigure
essas ligações (auto)biográficas para e com o contexto. Assim, a História de
Vida de professores é aprofundada por eles mesmos com o que emerge da sua
relação com a escola, sendo essas ligações produzidas um dispositivo formativo
para o sujeito – o laço.
As pesquisas com as quais dialoguei têm mostrado que as fontes
orais, memórias e lembranças de professores trazidas no processo de entrevista
contribuem na apreensão das experiências e processo formativo de pessoas.
Porém, seria o processo de recordação das lembranças musicais e a análise das
narrativas o suficiente para capturar essa tomada de consciência?
Com a abordagem teórico-metodológica utilizada nessa pesquisa
foi possível perceber que nem toda narrativa é (auto)biográfica, e que talvez
para além da entrevista se faz necessário devolver ao entrevistado o processo
analítico para com ele o pesquisador construir uma análise narrativa. O olhar
das colaboradoras da pesquisa para o processo de análise narrativa
(auto)biográfica, foi reconfigurado por elas na releitura de suas narrativas
vistas em três perspectivas diferentes: como narraram, como foram vistas no
processo de análise e como se veem na análise narrativa. Nesse processo,
pode-se perceber nas dimensões do Ser professora de música a capacidade de
gerar uma tomada de consciência do sujeito na análise narrativa.
Na análise narrativa, um aspecto a ser considerado é o trabalho cointerpretativo do pesquisador. Isso exige escuta e
capacidade de compreender como os colaboradores da pesquisa compreendem e
interpretam determinados acontecimentos. O que o pesquisador faz é ir além da
descrição do desenrolar de acontecimentos, isto é, ao fazer uma análise
hermenêutica estabelece uma rede de sentidos, estruturadas pela narrativa.
Retomando o diálogo produzido com autores da educação musical
trazidos nesse trabalho, acredito que os achados dessa pesquisa corroboram na
questão: a quem compete dar visibilidade senão ao próprio professor, um sujeito
que faz ligaduras de si com aquilo que se vive e que se escolhe narrar ao
pesquisador, um trabalho colaborativo no qual o verdadeiro entrevistador é o
próprio sujeito. Além disso, trazer o colaborador para participar no processo
de análise contribui para que o enredamento da análise narrativa transforme as
sequências de ação em sequências argumentativas que implicam em uma posição
argumentativa e avaliativa do próprio colaborador.
Diante do exposto, compreendo a partir desses estudos, e com a
força das palavras de Ricoeur
(1994), que para se ter consciência daquilo que se configura nas
narrativas, torna-se necessário reconfigurar com análises narrativas (auto)
biográficas. E, isso se torna possível quando, segundo Delory-Momberger
(2012), acontecimentos, ou motivos recorrentes, tematizados pelos
professores são organizados em suas próprias narrativas na qual ajustam suas
histórias de vida profissional implicadas com o contexto escolar.
Com isso, como um professor de música que sou, reflito sobre que
laços temos produzido com nossas Histórias de Vida e que sentidos há na
construção desses laços para se pensar a educação musical escolar. Acredito que
a escola se faz com currículos, com projetos, mas principalmente, com vida de
professores e de alunos e com aquilo que eles enxergam, vivem, experenciam e
passam a se constituir.
Compreendi com a História de Vida de duas professoras de música
de escola de educação básica a necessidade de o professor ter a clareza dos
laços que os constituem como docentes de música. Os laços se constituem como
dispositivos que podem ser utilizados para fazer o movimento (auto)biográfico,
tornando-se um processo composicional, de arranjos e rearranjos de si. A
composição desses arranjos e rearranjos é o que torna a vida como obra de arte.
REFERÊNCIAS
ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. Fontes orais, escritas e
(áudio)visuais em pesquisa (auto)biográfica: palavra dada, escuta (atenta),
compreensão cênica. O studium e o punctum
possíveis. In: Anais... VII Congresso Internacional de Pesquisa
(Auto)Biográfica, Cuiabá/MT, 2016.
ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. Profissionalização docente
e identidade – a invenção de si. Revista Educação. Porto Alegre, RS, nº
especial, p. 163-185, out. 2007.
ABREU, Delmary Vasconcelos de.
História de vida de uma intelectual brasileira: Jusamara
Souza e seus desafios epistemológicos com a educação musical. Revista
Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 05, n. 13, p. 243-260,
jan./abr. 2020.
ABREU, Delmary Vasconcelos de. Tornar-se professor de música na educação básica: um estudo a
partir de narrativas de professores. Tese (Doutorado em Música).
Programa de Pós-Graduação em Música, Instituto de Artes, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
ABREU, Delmary Vasconcelos de. A
construção da educação musical escolar no Distrito Federal. In. Encontro anual
da Associação Brasileira de Educação Musical, 17, 2013, Pirenópolis/GO.
Anais... Pirenópolis/GO: ABEM, 2013.
ABREU, Delmary Vasconcelos de.
Aproximações epistemológicas a partir da História de Vida do Maestro Levino Ferreira de Alcântara. Eixo Temático 1: Pesquisa
(Auto)biográfica, fontes e questões, p. 74-91. In: VI Congresso Internacional
de Pesquisa (auto)biográfica, Rio de Janeiro/RJ, 2014. Anais... Rio de
Janeiro/RJ: VI CIPA, 2014.
ALMEIDA, Jéssica de. LOURO, Ana Lúcia. Narrativas de professores
de música: entrelaçando vivências com a música e seu ensino e a atuação na
educação básica. Revista da ABEM. Londrina, v. 24, nº 37, p. 67-80, jul./dez.
2016.
ANEZI, Franciele Maria. GARBOSA, Luciane Wilke
Freitas. Memórias de formação musical e construção docente de Monica Pinz Alves. Revista da ABEM. Londrina, v. 21, nº 31, p.
77-90, jul./dez. 2013.
CONTRERAS, José Domingo. Relatos de experiência, en busca de ún saber pedagogico. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v. 01, nº 01, p. 14-30, jan./abr.
2016.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Abordagens metodológicas na
pesquisa biográfica. Revista Brasileira de Educação, Vol. 17, nº 51, set./
dez., 2012.
FERRAROTTI, F. Sobre a autonomia do método biográfico. In: (Orgs) NÓVOA, Antônio. FINGER, Matthias. O método (auto)
biográfico e formação. Natal. UFRN: EDUFRN, 2010.
FIGUEIRÔA, Arthur S. A construção de laços com as Escolas Parque
de Brasília: Narrativas (auto)biográficas com professores de música.
Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
GAULKE, Tamar. O desenvolvimento profissional de professores de
música da educação básica: um estudo a partir de narrativas autobiográficas.
Tese (Doutorado em Música). Programa de Pós-Graduação em Música, Instituto de
Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.
GAULKE, Tamar. Aprendizagem da docência em música na educação
básica: um estudo a partir de narrativas de professores de música da educação
básica. Dissertação (Mestrado em Música). Programa de Pós-Graduação em Música,
Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2013.
JOSSO, Marie-Christine. As figuras de ligação nos relatos de
formação: ligações formadoras, deformadoras e transformadoras. Revista Educação
e Pesquisa. São Paulo, v. 32, nº 2, p. 373-383, maio./ago.
2006.
JOSSO, Marie-Christine. A transformação de si a partir da
narração de histórias de vida. Revista Educação. Porto Alegre, nº 3 (63), p.
413-438, set./dez. 2007.
JOSSO, Marie-Christine. Da formação do sujeito...ao sujeito da
formação. In: (Orgs)NÓVOA, Antônio. FINGER, Matthias.
O método (auto) biográfico e formação. Natal. UFRN: EDUFRN, 2010.
PASSEGGI, Maria da Conceição. Narrativas da experiência na Pesquisaformação: do sujeito epistêmico ao sujeito
biográfico. Revista Roteiro. Joaçaba, v. 41, nº 01, p. 67-86, jan./abr. 2016.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa: Tomo I. Campinas/SP. Editora
Papirus, 1994.
SOUZA, Elizeu Clementino de. Biografar-se e empoderar-se:
entrevista autobiográfico-narrativa e percursos de formação da professora Dilza
Atta. In: ABRAHÃO, M. H.M.B Destacados educadores brasileiros suas histórias,
nossa história. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2016, p. 65-95.
TORRES, Maria Cecília A. R. Identidades
Musicais de alunas de pedagogia: músicas, memória e mídia. Tese
(Doutorado em Educação) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: UFRGS, 2003.
Autor notes
Mestrado em Música pela Universidade de Brasília (2017) e
graduação em Música pela Universidade de Brasília (2014). Tem experiência na
área de Artes, com ênfase em Instrumentação Musical, e atua profissionalmente
como músico instrumentista da Orquestra Sinfônica da Força Aérea Brasileira.
Participou como tutor e professor orientador do curso de Especialização em
Música pela UAB-UnB (2017 – 2018).
Docente de música da Universidade de Brasília (UnB), com
doutorado em música pela UFRGS, mestrado em linguagem (UFMT), graduação em
letras (Unemat) e graduação em música (IPA/RS). Possui
pós-doutorado em educação na linha cultura, escrita e linguagens pela UFPel. Atualmente é coordenadora do Programa de
Pós-Graduação em Música da UnB e líder do grupo de pesquisa Educação Musical e Autobiografia.