Dossiê

A HISTÓRIA DE VIDA DE DUAS PROFESSORAS DE MÚSICA DAS ESCOLAS PARQUE DE BRASÍLIA: Construção de laços pelas experiências

THE LIFE HISTORY OF TWO MUSIC TEACHERS FROM ESCOLAS PARQUE OF BRASÍLIA: Development bonds through experiences

Arthur de Souza Figueirôa

UnB, Brasil

Delmary Vasconcelos de Abreu

UnB, Brasil

Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Continua
vol. 7, núm. 1, 2022
revistaorfeu@gmail.com

 

URL: https://periodicos.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/20898
DOI: https://doi.org/10.5965/2525530406012021e0105

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.


Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.

Resumo: O presente trabalho consiste num recorte de uma pesquisa concluída que teve como tema “Histórias de Vida de Professores de Música das Escolas Parque de Brasília/ DF”. Como objetivo da pesquisa buscou-se compreender como os laços entre as professoras e a escola de educação básica são construídos, tendo como desdobramentos evidenciar como as experiências dessas professoras contribuem na formação desses laços e entender nas narrativas (auto)biográficas como essas professoras se tornam sujeitos da experiência. A abordagem teórico-metodológica é a pesquisa (auto)biográfica, e a fonte utilizada é a entrevista narrativa (auto)biográfica. Os resultados apontam que a construção dos laços foi dada pelas professoras em suas narrativas, entendendo que é a partir do movimento (auto)biográfico que o sujeito constrói e reconstrói novos sentidos para si mesmo, aprofundando suas próprias histórias de vida com aquilo que emerge da sua relação com a escola, sendo, a partir dessas ligações, produzido um dispositivo formativo para o sujeito – o laço.

Palavras-chave: Educação Musical, Pesquisa (Auto)Biográfica, Histórias de Vida de professores de música das Escolas Parque de Brasília/DF.

Abstract: This article consists of excerpts from completed research whose subject was “Life Stories of Music Teachers from the Escolas Parque de Brasília/DF”. This research aimed to understand how the bonds between teachers and the primary school are built and its ramifications are the emphasis on how the experiences of these teachers contribute to their bonding with the school, and the understanding, through (auto)biographical narratives, of how these teachers became the subjects of the experience. The theoretical-methodological approach applied throughout the article is the (auto)biographical research and the source is the (auto)biographical narrative interview. The results reveal that the bonding was started by the teachers themselves in their narratives, understanding that the subject builds and rebuilds new meanings to himself starting from the (auto)biographical movement, going deep in their own life stories with what emerges from their relationship with the school. From these connections a formative device is created to the subject – the bond.

Keywords: Music Education, (Auto) biographical research, Life Stories of Music Teachers from the Escolas Parque de Brasília/DF.

Introdução

O interesse pelo tema História de Vida de Professores de Música surge nos estudos empreendidos pelo Grupo de Pesquisa Educação Musical e Autobiografia, coordenado pela pesquisadora coautora deste texto, em conexão com as minhas interações no espaço escolar desenvolvidas durante a graduação. Iniciei minha trajetória acadêmica na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, no curso de Licenciatura em Música, curso esse escolhido pela minha identificação com o exercício da docência de música. Construí durante esse período experiências significativas de aprendizagem da docência no que tange à princípios pedagógico-musicais, propostas e projetos musicais que poderiam ser desenvolvidos na prática de sala de aula.

Após o terceiro semestre no curso de licenciatura em música, candidatei-me a uma vaga de estágio numa escola pública municipal de Recife/PE, a Escola Municipal de Arte João Pernambuco, que oferece aulas de diversas modalidades artísticas como música, dança, artes cênicas e artes visuais. Nesse contexto, atuei durante um ano como professor de canto coral, percepção musical, prática de conjunto e trombone. Embora estivesse inclinado a seguir o caminho da docência, nesse mesmo período fui convidado por um amigo a concorrer ao concurso público para músico militar da Força Aérea Brasileira – FAB. Fui aprovado e designado para Brasília, transferindo o curso de licenciatura ainda incompleto para a Universidade de Brasília – UnB. O desejo por continuar a trajetória acadêmica persistiu e, com ele, o desejo de compreender mais sobre a profissão professor de música.

Essa aproximação com o exercício da docência me levou a repensar a sala de aula como um espaço de partilhas de experiências musicais entre professores e alunos, considerando ainda as experiências compartilhadas por demais profissionais da educação que atuam no contexto escolar (ABREU, 2011, p.106). Para continuar praticando a profissão professor de música, procurei ampliar esses laços profissionais me inserindo em outros contextos educativo-musicais em que se requer um profissional dessa área. Tenho atuado em projetos vinculados a igrejas que envolvem a musicalização infantil com flauta doce para crianças de quatro a onze anos de idade, bem como o ensino de instrumentos harmônicos como violão, teclado e baixo elétrico para idades variadas.

Assim, com as experiências da docência e realização de pesquisas científicas, aprofundei questões iniciais sobre os desafios da profissão docente de música em contextos escolares, tais como: como é ser professor de música na educação básica, e por que existe escassez de professores de música atuando nesse contexto? E o que faz alguns docentes de música continuar no exercício da profissão nesse espaço escolar? Busquei, a partir dessas questões, encontrar na literatura o que autores têm abordado sobre o assunto.

A educação musical escolar tem sido investigada por diferentes enfoques como políticas educacionais, formação de professores, concepções e práticas de ensino, o trabalho docente de música, e história de vida de professores de música em contextos escolares, esse último, foco do meu interesse de pesquisa. Ao investigar o que esses trabalhos produziram de conhecimento na área de educação musical, na perspectiva das Histórias de Vida, narrativas e memórias de professores, encontrei ressonâncias com a minha pesquisa nos trabalhos de Torres (2003), Abreu (2014, 2013, 2011), Anezi e Garbosa (2013), Gaulke (2017; 2013) e Almeida e Louro (2016).

Partindo do diálogo construído juntamente com tais pesquisas, compreendo que suas contribuições mostram que é nesse ato de narrar, de se “biografizar” com a música, que os professores têm dimensões compreensivas do quanto as suas narrativas são formativas. Esse processo pode ser aclarado com as palavras de Ricoeur (1994), que para se ter consciência daquilo que se configura torna-se necessário reconfigurar as narrativas. E, isso se torna possível quando, segundo Delory-Momberger (2012) acontecimentos, ou motivos recorrentes, tematizados pelos professores são organizados em suas próprias narrativas na qual ajustam suas histórias de vida profissional implicadas com o contexto escolar.

Diante disso, para pensar a construção de laços com a escola, tomei as seguintes questões norteadoras da pesquisa: que acontecimentos tramaram a vida dessas professoras com a escola, que experiências contribuíram para a constituição desses laços e como essas experiências são reconfiguradas em suas narrativas. A partir dessas questões, tomei como objetivo geral da pesquisa compreender na história de vida de professores de música como constroem laços com a escola de educação básica. Esse objetivo se desdobrou nos seguintes objetivos específicos: evidenciar como as experiências dessas professoras contribuem na formação desses laços e entender nas narrativas (auto)biográficas como essas professoras se tornam sujeitos da experiência.

História de Vida: tecendo laços

Neste tópico discorro sobre os conceitos que nortearam a pesquisa, aclarando como os autores com os quais dialoguei podem contribuir para que as teorias explicativas, que possam emergir das narrativas dos sujeitos da pesquisa, farão avançar no processo de análise e nos achados da pesquisa que respondem aos objetivos delineados previamente.

Os pressupostos teóricos da pesquisa estão fundados na pesquisa (auto) biográfica, mais especificamente, na História de Vida. Dentro dessa perspectiva, e de acordo com Josso (2006), a história de vida oportuniza revisitar sua história para extrair dela o que pensamos ter contribuído para nos tornarmos o que somos, o que sabemos sobre nós mesmos e nosso ambiente humano e natural e tentar compreendê-la melhor (JOSSO, 2006, p. 376). No que se refere à História de Vida de professores, Abrahão (2007) nos ajuda a pensar que, à luz da História de Vida, conhece-se a história da Educação do próprio estado, neste caso, da Escola Parque como um lugar em que se constroem os laços. A História de Vida constitui-se de relatos produzidos com o objetivo de remontar a memória individual ou coletiva num período da história, cujo pesquisador está também unido ao processo, participando na elaboração desse memorial, pois a História de Vida não é uma transmissão, mas uma construção (ABRAHÃO, 2007).

A história de vida se constrói junto com a narrativa, diferenciando-se do relato de vida. O relato de vida é a narração de uma história exatamente como quem a viveu conta, valorizando a fidelidade dos acontecimentos narrados, ao passo que na história de vida a pessoa ao relatar poderá nesse processo ressignificar o relatado, dando a sua compreensão do presente para percursos vividos (PUJADAS, 1992 apud ABRAHÃO, 2007, p. 167). Ela consiste no próprio relato da história contada, juntamente com fontes documentais que permitam reconstruir essa história o mais fielmente possível. Estas fontes podem ser: a) documentos pessoais-diários, correspondências, fotografias, vídeos, matéria publicada etc., além de documentos oficiais e b) registros biográficos, História de Vida e relatos cruzados. “Em se tratando de pesquisa na área educacional pode-se explorar, por meio do método de Histórias de Vida, a dinâmica de situações concretas pelas narrativas em que aflorem as percepções de sujeitos históricos” (ABRAHÃO, 2007, p. 167).

A História de Vida nessa perspectiva se constrói a partir de cenas de uma história plural do sujeito, cuja compreensão não se preocupa em entender uma história linear, mas como um repertório de cenas, para que se tenha uma construção global dessa história (ABRAHÃO com base em MARINAS, 2016, p. 04). Essa perspectiva focada nesse repertório de cenas me faz lembrar as palavras de Josso (2006), que para se tomar consciência das dimensões individuais da existencialidade, é preciso abordar a vida das pessoas na globalidade de sua história, compreendendo as variações dos registros nos quais elas se exprimem, e as múltiplas facetas que elas evocam de seu percurso. Essa história representada por cenas é uma forma de elaboração mental, pois ao narrar sua própria trajetória, uma vez que, no momento da enunciação, o sujeito (re)significa o vivido, “pelo esforço de trazer os acontecimentos à memória, sopesando uns, destacando outros, esquecendo ou reprimindo alguns” (ABRAHÃO, 2016, p. 265).

Para tanto, dois construtos são de fundamental importância nesse processo: a escuta e a palavra dada. Essa escuta se refere a uma escuta atenta, de qualidade, em que a narrativa do sujeito está em evidência para que se identifiquem e se organizem essas estruturas cênicas. A palavra dada é algo que deve estar combinada com a escuta, pois exerce um vínculo entre o que narra e o que “escuta”, se constituindo de um valor moral e de um rigor metodológico dessa escuta (ABRAHÃO, 2016). Para a autora, esses dois conceitos estão ligados pelo compartilhamento da memória no contexto da narração, acarretando num momento de máxima implicação entre o investigador e investigado, possibilitando significados para as narrativas numa construção rica da história, pois “certamente, as narrativas são ressignificadas no momento da narração (a invenção de si/a invenção da personagem) dada a natureza reconstrutiva e seletiva da memória que permeia a relação narrador/ouvinte. Mas vai além.” (ABRAHÃO, 2016, p. 284).

A História de Vida de professores de música que constroem laços com a Escola Parque pode ser melhor compreendida a partir dos construtos apresentados por Abrahão (2016) no que concerne à compreensão cênica com a inclusão dos correlatos palavra dada e escuta atenta; e a compreensão dos laços apresentada por Josso (2006), ao afirmar que “não haveria vida sem uma multiplicidade de ligações biopsicossociais e, ainda menos, história sem constituição de ligações entre acontecimentos materiais e psíquicos de nossas vidas em suas dimensões individuais e coletivas” (JOSSO, 2006, p. 375).

Para tratar do sensível nas histórias de vida e formação, dialoguei com o conceito de dimensões do ser no mundo. De acordo com Josso (2007), nosso existir histórico e social é engendrado por diversas formas de ligações de várias dimensões. Estamos biologicamente ligados a uma herança genética de nossos pais, mesmo sem haver outras ligações envolvidas, como laços afetivos; estamos psicologicamente ligados àquelas pessoas que estão intimamente próximas a nós, mesmo que distantes fisicamente; e estamos socialmente ligados, por exemplo, com nossos vizinhos, amigos, companheiros de trabalho, com pessoas que nunca vimos antes, mas que estiveram conosco nalguma interação.

Entendo que as figuras de si – Dimensões do ser no mundo, entrelaçadas com as Dimensões das Histórias de Vida ligadas a contextos sócio-históricos propiciam a compreensão desses laços que se tramam ao longo da vida do indivíduo que se tornaram professores de música de escolas de educação básica. Para uma melhor compreensão desse indivíduo, desse ser, que se torna professor, apresento a seguir as dimensões do sujeito da experiência a fim de tornar clara a compreensão do conceito-experiência utilizado ao longo desse trabalho.

Para pensamos no professor como sujeito da experiência, tomamos os construtos teóricos de Passeggi (2016) que tematiza o sujeito da experiência entrelaçando as noções de sujeito epistêmico e sujeito empírico, “como concepções propícias ao exercício da biografização”. Essas noções de sujeito ajudam na compreensão do “sujeito biográfico que enlaça nas narrativas da experiência razão e emoção, público e privado, padecer e empoderamento” (PASSEGGI, 2016, p. 67). O termo “experiência” utilizado em pesquisas em Educação é tratado por Contreras (2016, p. 15) como “relatos de experiência, em busca de um saber pedagógico”. Segundo Josso (2006), a origem da experiência é, em primeiro lugar, “algo que se vive”, entendendo que o viver a educação [musical] é um convite para prestar a atenção naquilo que nos faz compreender as “dimensões do ser” (JOSSO, 2006, p. 376 acréscimos meus).

Podemos, a partir disso, pensar para que serve essa experiência senão para pensar com ela, o sujeito da experiência. Contreras (2016) nos convida a refletir sobre o “pensar com os acontecimentos, para, a partir deles, intentar elucidar o que nos estão dizendo, o que nos estão pedindo para refletir”. Nesse sentido, compreender o sujeito da experiência, neste caso o professor de música, que estando ligado ao contexto educacional constrói a experiência na relação com os acontecimentos das situações de ensino, como um movimento que o torna sujeito da experiência com a escola.

E, se esse movimento do que acontece com o sujeito é tombado como experiência, abre-se então possibilidades para ampliar a forma como se vê a si mesmo em relação com aquilo que se experimenta. Nesse sentido, Contreras (2016) sinaliza “o caminho da pesquisa com experiência: continuar e ampliar o que nos pede a experiência, estar pensando, seguir pensando” (p. 21, tradução nossa). Para seguir pensando na experiência como conceitos operantes da pesquisa, trago a seguir o referencial teórico-metodológico da pesquisa fundamentada no método da pesquisa (auto)biográfica.

Referencial teórico-metodológico da pesquisa (auto)biográfica

Neste trabalho trago, de forma sucinta, compreensões a respeito da pesquisa (auto)biográfica no que se refere à sua conceituação teórica. A forma como o termo “(auto)biografia” vem ecoando nas pesquisas têm sugerido uma pluralidade de termos para se referir a pesquisa (auto)biográfica, e isso pode causar certa confusão se não for bem esclarecido, principalmente para uma área como a educação musical, em que a pesquisa (auto)biográfica é bastante recente. Por isso, tomei como pertinente esclarecer os termos adotados para a pesquisa. E, para tanto, parto da indagação: O que seria (auto)biografia? Em qual campo da ciência ela atua? Método ou Teoria?

A técnica utilizada nessa pesquisa é a Entrevista Narrativa (Auto)Biográfica – ENAB ou Biográfico-Narrativa (SOUZA, 2016). Para Souza (2016), a técnica de Entrevista Narrativa consiste em apreender dispositivos de formação vinculados às trajetórias sociais e coletivas, e aos percursos individuais de cada sujeito. Seu termo, assim como a pesquisa (auto)biográfica, tem sido utilizado de forma plural, destacamos que para essa pesquisa utilizamos o termo para se referir à entrevista narrativa (auto)biográfica. No entanto, gostaria de trazer compreensões a respeito dessa técnica a fim de aclarar os caminhos metodológicos adotados na pesquisa no que concerne às especificidades dessa forma de entrevista.

Tomando como ponto de partida para essa compreensão, a ENAB possui como finalidade apreender a singularidade de uma fala e de uma experiência. Trata-se de colher e ouvir, em sua singularidade, a fala de uma pessoa num importante momento de sua experiência em sua existencialidade. Para essa técnica é importante estar atento aos acontecimentos, sejam históricos, sociais ou políticos, bem como para as formas de representações que o indivíduo faz de si mesmo. Importante ainda perceber na experiência do sujeito suas formas de narrar sua própria história, pois “o fato de ser uma fala de sua época e de sua sociedade é plenamente reconhecido pela pesquisa biográfica que vai mais além: faz dela uma dimensão constitutiva da individualidade” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 526). Para que se tenha uma compreensão mais ampla do que essa técnica possibilita, Delory-Momberger (2012) faz questionamentos importantes: Quem entrevista quem na entrevista de pesquisa biográfica? Em outras palavras: de que (de quem?) é constituído o espaço de pesquisa, o espaço heurístico da entrevista? Quem é o verdadeiro perguntador numa entrevista biográfica?

Essas questões nos ajudam a refletir sobre como os colaboradores da ENAB, investigador e investigado, se constroem nesse processo. Para a autora pelo menos três componentes estão agindo e interagindo da ENAB, os quais são: duas pessoas, o entrevistador e o entrevistado, que ocupam posições diferentes; e o que se passa, o que “se mantém” entre essas duas pessoas: atitudes, colocações, formas de intercâmbio e de ação recíprocas. A ENAB possibilita um duplo espaço heurístico, o espaço do entrevistado na posição de entrevistador de si mesmo e o espaço do entrevistador, cujo objeto próprio é criar as condições e compreender o trabalho do entrevistado sobre si mesmo (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 527). A perspectiva colaborativa da pesquisa que se utiliza da ENAB implica aprendizagens e teorizações sobre as práticas docentes, cujas experiências narrativas possibilitam compreender e ampliar as trajetórias de formação e a própria história dos diferentes sujeitos vinculados ao projeto de formação (SOUZA, 2016, p. 74). No caso da ENAB, o investigador “deixa o narrador expandir-se da maneira mais ampla e mais aberta possível o espaço da fala e das formas de existência de si, quando ele se coloca na posição de seguir os atores” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 528-529). Nessa perspectiva, seguir os atores requer um cuidado específico do investigador, pois exige maior atenção para as formas do discurso do sujeito, de suas representações de si, para uma configuração singular de acontecimentos, e de interpretações que ele faz de sua experiência.

O processo de realização das primeiras entrevistas foi demasiado desafiador para mim, pois me sentia no início do processo de construção como pesquisador. Refiro-me a esse processo, uma vez que é necessário, na entrevista narrativa (auto)biográfica, entender as minúcias na forma de discurso do entrevistado, e, como pesquisador perceber com o sujeito como se dá a reconfiguração de sua experiência e como a ressignifica. E isso é uma tarefa muito complexa, pois exige do pesquisador uma afinidade com o aporte teórico-metodológico da abordagem escolhida, neste caso a pesquisa (auto)biográfica. Por isso, retomei o encontro com as duas entrevistadas aprofundando com elas as nuances dos relatos transcritos e organizados por mim.

Nessa etapa procurei reconfigurar com elas o meu primeiro processo de análise, pois como questiona Delory-Momberger (2012) “o que se faz com essa palavra do outro?”. Como se analisa isso? Entendo que, primeiramente, é saber conduzir bem o processo de entrevista explorando, nas formas do discurso do entrevistado as relações que os sujeitos estabelecem entre os discursos que produzem de si para agir biograficamente. E esse processo entre pesquisador e pesquisado se torna colaborativo, quando “coletamos, ordenamos, organizamos, vinculamos as situações e os acontecimentos de nossa existência, damos a eles uma forma unificada e associada a uma vivência [...] e, através dessa formatação, interpretamos e outorgamos sentido ao que vivemos” (DELORY-MOMBERGER, 2012).

Outro aspecto a ser considerado no processo de entrevista narrativa (auto) biográfica, é a atitude que os entrevistados adotam de forma recorrente nas narrativas (auto)biográficas, a sua relação com as situações e acontecimentos, e na forma como agem e reagem. Esse esquema de ação é um processo que deve ser explorado pelo pesquisador no ato da entrevista, pedindo ao entrevistado que conte um pouco mais sobre determinados esquemas de ação que foram relatados, para que possa emergir tais acontecimentos e o modo como lidam ou lidaram com esses acontecimentos. Além dessa exploração pelo pesquisador no ato da entrevista, isso pode ser adensado no retorno das narrativas para o entrevistado para reeditar esses esquemas de ação.

Os assuntos ou temas trazidos na entrevista, por eles próprios, aos quais se referem de forma recorrente, podem e devem ser aprofundados pelo pesquisador no momento da entrevista narrativa (auto)biográfica. Esse aspecto da entrevista, e que posteriormente é utilizado no processo de análise, faz parte dos construtos teórico-metodológicos de Delory-Momberger (2012, p. 535). A autora entende que os “motivos recorrentes ou topoi: tematizam e organizam a ação do relato, agindo nele como lugares de reconhecimento e chaves de interpretação da experiência. No topoi os entrevistados constroem sentidos de si”. Assim, o pesquisador poderá, a partir das narrativas (auto)biográficas, da palavra do outro, isto é, do entrevistado, analisar como “ocorre a confrontação e a negociação entre os topoi, as disposições e restrições de recursos pessoais e coletivos com tomadas de posições avaliativas em que os sujeitos ajustam sua ação com a realidade, a gestão biográfica dos topoi” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 528-535).

E foi com base nesses pressupostos teórico-metodológicos que construí o segundo momento da entrevista narrativa (auto)biográfica com as duas professoras colaboradoras da pesquisa. Esse segundo momento se constituiu em alguns passos: o primeiro passo foi dar um tratamento analítico para as narrativas e, na sequência, devolver essas narrativas às professoras colaboradoras para que estas pudessem ler as escritas de si e terem a oportunidade de reconfigurar suas narrativas. Durante as entrevistas observei atentamente os relatos das professoras que narravam sua história. Comecei a ter consciência de que minha presença na condução das entrevistas estava sendo também um exercício formativo como pesquisador. Entendi que essa relação pesquisador e entrevistado na pesquisa (auto)biográfica é um processo formativo para ambos.

Para Ferrarotti (2010), toda narrativa de acontecimentos ou de uma vida é, por sua vez, um ato, a totalização sintética de experiências vividas de uma interação social. Toda entrevista biográfica é uma interação social completa, ela esconde tensões, conflitos e hierarquias de poder. “Nós não contamos a nossa vida e os nossos “Erlebnisses” a um gravador, mas a outro indivíduo” (FERRAROTTI, 2010, p. 46). Ou seja, contar nossas experiências a outro indivíduo não é transmitir algo a ele, mas é uma construção para ambos.

O exercício de ir a campo e ouvir as experiências de professores de música enriqueceu o meu aprendizado, principalmente, após as primeiras entrevistas e suas transcrições, quando pude ler e reler atentamente para compor temas das análises e interpretação das narrativas. Para adensar as fontes orais oriundas das entrevistas, busquei algumas fontes documentais que trazem registros das professoras de música como: documentos, fotos, vídeos, facebook, sites da escola, registros de alunos, dissertação, artigos, PIBID, blogs, etc. Essas fontes secundárias corroboram na escrita da história contada por elas no processo de entrevista narrativa, ou seja, na fonte primária, conforme aponta Ferrarotti (2010). Tomando os pressupostos teórico-metodológicos de Delory-Momberger (2012) e as categorias de análise utilizadas pela autora, é preciso esclarecer como se deu o processo de análise das ENAB. Para analisar as entrevistas nessa perspectiva, a pergunta geradora é: “O que se faz com essa palavra do outro?” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 528). Essa questão proposta pela autora nos fez refletir sobre o compromisso que se deve ter com aquilo que fazemos com a narrativa do outro. A autora afirma que “é preciso tentar compreender bem o que está em jogo da relação com o real, com o vivido, no relato que o narrador faz” (Ibidem). Nesse sentido, a autora apresenta categorias de análise das entrevistas, das produções (auto)biográficas.

A primeira categoria é a das formas do discurso, na qual ela se refere ao modo como o narrador organiza seu discurso (narrativo, descritivo, explicativo, avaliativo) e às relações que se estabelecem entre eles. Cada uma dessas formas do discurso é suscetível, por sua vez, de ser categorizada. É o caso, em particular, do modo narrativo que se pode articular em diversos tipos de relato segundo os modelos biográficos de referência. A segunda categoria é a do esquema de ação que o narrador utiliza, isto é, da atitude que adota de forma recorrente na sua relação com as situações, com os acontecimentos, e na forma como agem e reagem.

A terceira categoria é a dos motivos recorrentes ou topoi (do grego tópos, lugar-comum), que tematizam e organizam a ação do relato, agindo nele como lugares de reconhecimento e chaves de interpretação da vivência, embora o narrador não tenha necessariamente consciência disso. É particularmente na escrita desses topoi, desses lugares privilegiados, que o narrador constrói um sentimento de si próprio e das suas formas próprias.

A quarta categoria apresentada por Delory-Momberger (2012) refere-se à gestão biográfica dos topoi em virtude da realidade socioindividual. Essa categoria concerne à confrontação e à negociação entre os topoi, as disposições e recursos efetivos (pessoais e coletivos), e as restrições socioestruturais. No discurso propriamente narrativo, essa confrontação pode traduzir-se por “choques” entre padrões biográficos veiculados pelos mundos sociais e as biografias de experiência. Ela é também observável nas fases deliberativas e avaliativas no decorrer das quais os autores apreciam, negociam e ajustam sua ação a realidade socioindividual.

Esse processo da análise narrativa consistiu em colher e sopesar, preliminarmente, o material biográfico fornecido pelas duas professoras de música. Foram utilizados os registros escritos de suas dissertações de mestrado e artigos científicos publicados e suas narrativas transcritas. Seguindo nesse processo, os primeiros excertos desse processo de análise foram devolvidos para ambas as professoras separadamente para que lessem, modificassem, e ampliassem o que achassem pertinente. Por último foi feita uma abstração daquilo que as professoras analisaram.

Dimensões da compreensão da vida-formação

Tematizando a Vida-formação como alunas de Escola Parque, a análise evidenciou as dimensões compreensivas de como as professoras de música foram construindo laços com as Escolas Parque de Brasília. Na medida em que analisei os materiais biográficos em suas Histórias de Vida, tive compreensões no que tange aos objetivos delineados na pesquisa. Os primeiros escritos dessas análises foram devolvidos para as professoras separadamente, cujas interpretações de suas narrativas foram ressignificadas por elas em uma segunda narrativa, configurando-se num processo de análise (auto)biográfico, da qual as professoras participaram e (re)configuraram assim o que acharam necessário.

As professoras organizaram o seu relato inicial a partir de sua infância na Escola Parque. Percebi, nas primeiras leituras das Entrevistas Narrativas, que as professoras tematizaram as suas vidas como alunas da escola, trazendo acontecimentos relacionados às aulas de música. Suas vidas-formação são entendidas nesse capítulo de análise, que se introduz, com momentos de seu percurso formativo como alunas de Escola Parque, e as escolhas profissionais para a docência serão tratadas no próximo capítulo de análise.

A nomenclatura “movimento (auto)biográfico”, utilizada ao longo dessa pesquisa, refere-se ao ato do sujeito mover-se na busca de memórias relacionadas àquelas experiências formativas que produziram sentido no instante que são ligadas pela narrativa. Existe um ir e vir nesse processo, por exemplo: o sujeito pode criar um laço com uma determinada experiência evocando memórias, porém pode ficar apenas na dimensão abstrata e não produzir novos sentidos. O ir e vir do movimento (auto)biográfico faz-se necessário para que o sujeito construa os sentidos. Nesse caso, o laço não tem a mesma função do movimento (auto)biográfico, mas está em função deste, uma vez que o laço é construído para fazer ligações de memórias formativas no sujeito que fará produzir os sentidos, contextualizando-os no presente da narrativa. Esse movimento (auto)biográfico pode ser entendido também como processos de (auto)biografização musical (FIGUEIROA, 2017), atualmente aprofundado por Abreu (2020) como processos de musicobiografização. Porém, para manter coerência com os estudos de Josso (2006), referencial da pesquisa, seguirei com o termo.

Esse movimento que as professoras fazem é contextualizado no presente, gerando sentidos da experiência. Os laços constituídos na vida-formação constroem um topoi em sua História de Vida, cuja construção é apresentada nessa pesquisa como nós ligantes. Esses ligantes indicam o movimento (auto)biográfico que o sujeito faz com suas memórias ao narrá-las e, por sua vez, os pontos representam o laço produzido ao se formarem com essas memórias. Quando retorna para si mesmo, esse processo produz um novo sentido para esse sujeito no instante da narrativa. É, portanto, uma ligadura que constroem em si mesmas com a música e a escola. Significa dizer que essas professoras constroem esses laços num movimento (auto)biográfico, cuja ligação se dá com um momento específico em sua memória escolhido por elas no ato da enunciação – o momento aluna de Escola Parque – e quando se contextualizam no tempo presente das suas narrativas passam a produzir os sentidos da experiência para si.

Tematizando a Vida-formação de professoras de música de Escola Parque, as professoras trouxeram em seus relatos o contexto onde atuaram, em que a Escola Parque ganha fundamental destaque a respeito de seu percurso formativo com música e a construção dos laços que trato nessa pesquisa. Compreender esse contexto é também compreender esse movimento (auto)biográfico que as professoras fizeram para se constituir com essa escola. As professoras percebem com clareza a especificidade que emana desse contexto, pois sua imbricação com ele implica na liberdade de desenvolver projetos musicais, favorecendo o seu fazer musical; revela a necessidade de um corpo docente especializado nas disciplinas artísticas; revela também que o professor de música de Escola Parque se depara com a natureza especial desse contexto.

Esses pontos elucidados ajudam na compreensão dessa complexa dimensão do Ser professor de música. Suas Histórias de Vida nos ajudam a ter dimensões da compreensão de como essas professoras se tornaram o que são e como construíram laços pelas experiências com a Escola Parque. Compreendemos por suas Histórias de Vida aquilo que foi formativo em seus percursos com a música, cujas experiências são evidenciadas pelas professoras em sua narrativa. O contexto e os momentos charneira presentes nos relatos de experiências das professoras de música constituem essa dimensão do Ser professor de música. Tais momentos charneira ocorrem quando o sujeito busca por uma mudança na sua maneira de se comportar, e/ou na sua maneira de pensar o seu meio ambiente, e/ou de pensar em si por meio de novas atividades (JOSSO, 2010). Os laços e os sentidos construídos por elas dizem respeito a essa dimensão, pois configuram e orientam seus percursos profissionais, cujas experiências produzem conhecimento para elas. Entendo que ter dimensão da compreensão sobre esses pontos elucidados contribui para que se conheça como as professoras construíram laços com a sua experiência com a Escola Parque de Brasília.

Intento trazer como resultado dessa análise da vida-formação de professora, as colaboradoras Verônica e Olívia buscando (re)construir suas Histórias de Vida a partir de suas narrativas (auto)biográficas, bem como fontes documentais sobre as professoras de música. Trago novamente a compreensão de que o termo “laços” é para essa pesquisa um dispositivo formativo, cujos sentidos estão implícitos no contorno criado por essas histórias. Compreendo esses contornos em suas singularidades como algo que pode ser generalizável como conhecimento, constituindo Histórias de Vida de sujeitos singulares-plurais.

Abstraio desse processo de análise narrativa a condição de autoria de ambas as professoras de música das Escolas Parque do Distrito Federal que implicam suas vidas com o contexto escolar, e que tomam consciência dos seus papéis nos cenários de suas vidas com a escola. A construção dos laços foi dada pelas professoras em suas narrativas, e com tais narrativas é possível dizer que as professoras assumem a autoria do seu texto, de uma história que passa a existir pelos registros que fazem de si, quais sejam: 1) Pela formação com a música; 2) Pela História de Vida implicada com o contexto escolar; 3) Pelas práticas musicais de vida. Esses resultados serão discutidos no último capítulo desse trabalho, cujas Histórias de Vida e as Dimensões do Ser professor de música trarão o fechamento dessa pesquisa.

Algumas considerações analíticas

O presente tópico se constitui dos achados da pesquisa mediante análise das Histórias de Vida de duas professoras de música de Escola Parque, na cidade de Brasília/DF. Retomo para esse momento os objetivos da pesquisa concluída, respondidos na análise dos resultados encontrados. Os objetivos consistiram em compreender na História de Vida de professores de música, como constroem laços com escola de educação básica, trazendo os seguintes desdobramentos: evidenciar como as experiências dessas professoras contribuem na formação desses laços e entender nas narrativas (auto)biográficas como essas professoras se tornam sujeitos da experiência. Procurei responder a esses objetivos de três formas: 1) pela formação com a música; 2) pela História de Vida imbricada com o contexto; 3) pelas práticas musicais de vida.

Para compreender esses resultados retomo algumas dimensões da compreensão presentes na análise. Para se conhecer a história de um contexto de educação musical, entendo que é possível pelo caminho que se faz ao buscar o sentido daquilo que se faz com a música pelas Histórias de Vida dos sujeitos desse contexto. Parte dessa história consiste em perceber as singularidades dos laços que são construídos pelo professor de música e o contexto, a partir do movimento (auto)biográfico do sujeito. Acredito que é a partir desse movimento de ir e vir em si mesmo que o sujeito constrói e reconstrói novos sentidos para si mesmo. E isso não tem um fim no sujeito que se “biografiza”, mas os seus efeitos são percebidos em suas próprias práticas musicais de vida.

Acredito que essas são propriedades do sujeito (auto)biográfico, que o torna um sujeito capaz de ampliar a compreensão que tem de si mesmo, ao passo que vai criando laços da experiência com sua própria História de Vida. Entendo que na dimensão do ser professor de música estes se ligam com o passado para produzir sentidos dessa experiência para pôr-se novamente para frente, para avançar em conhecimentos. Esse movimento (auto)biográfico faz a diferença na vida de professores ao conectar com o que está no presente e projetar-se no futuro com uma nova perspectiva.

Os laços aqui compreendidos são um dispositivo formativo. E é nesse dispositivo que os sentidos são construídos e reconstruídos por essas histórias que são trazidas à tona, e esse movimento (auto)biográfico que faz emergir os relatos de experiência. Portanto, é a partir desse movimento (auto)biográfico que professores de música constroem laços, quais sejam: pela sua formação com a música, pela História de Vida imbricada com o contexto escolar e pelas práticas musicais de vida. Nesse triplo movimento (auto)biográfico, é possível perceber primeiramente uma ligadura que constroem em si mesmas com a música e a escola.

No segundo ponto, compreendo que as professoras de música constroem laços pela História de Vida imbricada com o contexto escolar pelos relatos de experiências em que a escola aparece na vida de professores ligando laços nessa trajetória escolar desde o tempo de alunos até se tornarem professores e, neste caso, pesquisadores com foco na educação musical escolar. Essa História de Vida imbricada com o contexto só é possível se há um reconhecimento do entrelaçamento de si mesmo com o que representa a escola como propiciadora e como constituidora de laços, comportando aquilo que foi vivido e o que filtram das relações sociais vividas.

No caso desta pesquisa, entendo que o fato do contexto da Escola Parque compor a narrativa das professoras indica que houve uma sustentação para que os laços pudessem ser construídos pelas professoras. Compreendo que essa escola proporcionou os meios de construção dos laços, mas quem decidiu criá-los foram as professoras de música. Dito de outra forma, construir laços que se sustentem pela Escola é uma ação mútua em que cada contexto propicia de forma peculiar os meios e o sujeito produzem os laços. Além disso, as professoras evidenciam seus momentos charneira no contexto e que isso as levou a realizar pesquisas de mestrado sobre o contexto. Isso mostra que houve uma preocupação por parte dessas professoras de provocar mudanças em seus contextos a partir de sua “biografização” com a Escola Parque, buscando encontrar respostas para aquilo que as intrigava. Entendo que a Escola Parque está entrelaçada em suas Histórias de Vida, revelando os laços que as professoras construíram pelas experiências nesse contexto.

Como terceiro e último ponto, é possível trazer compreensões de construção de laços pelas práticas musicais de vida. O conhecimento produzido na “biografização” de professores, incorporado àquilo que está ligado às suas ações, diz respeito ao que professores fizeram e fazem de música para construir a docência de música. Entendo isso como práticas musicais de vida, não são somente práticas musicais escolares, pois há uma “biografização”, uma reflexividade em torno dessas práticas musicais de vida. As práticas musicais de vida são produto da “biografização”, pois são construídas pelos conhecimentos gerados pelos laços e o movimento (auto)biográfico. Compreendo que as práticas musicais de vida são permeadas de laços e também estimulam professores a permanecerem construindo laços, pois essas práticas musicais de vida não se configuram como meras repetições, mas sim como produtos dessa “biografização” de professores. Com os resultados da pesquisa retomo da análise crítica empreendida na revisão de literatura com autores da área de educação musical para pensar em seus avanços. Nesse sentido, ao retomar o diálogo com a área e com os achados desta pesquisa, me instiga a pensar que, na construção dos laços entre os professores com a música na escola, as suas (auto)biografias musicais dão sentido para o seu fazer musical no espaço escolar.

Acredito que as (auto)biografias musicais de professores trazem a vida-formação em diferentes redes formativas construídas ao longo da vida. E é essa a figura de ligação das dimensões do Ser professor de música. Porém, a construção de si com o lugar chamado escola permite que o sujeito reconfigure essas ligações (auto)biográficas para e com o contexto. Assim, a História de Vida de professores é aprofundada por eles mesmos com o que emerge da sua relação com a escola, sendo essas ligações produzidas um dispositivo formativo para o sujeito – o laço.

As pesquisas com as quais dialoguei têm mostrado que as fontes orais, memórias e lembranças de professores trazidas no processo de entrevista contribuem na apreensão das experiências e processo formativo de pessoas. Porém, seria o processo de recordação das lembranças musicais e a análise das narrativas o suficiente para capturar essa tomada de consciência?

Com a abordagem teórico-metodológica utilizada nessa pesquisa foi possível perceber que nem toda narrativa é (auto)biográfica, e que talvez para além da entrevista se faz necessário devolver ao entrevistado o processo analítico para com ele o pesquisador construir uma análise narrativa. O olhar das colaboradoras da pesquisa para o processo de análise narrativa (auto)biográfica, foi reconfigurado por elas na releitura de suas narrativas vistas em três perspectivas diferentes: como narraram, como foram vistas no processo de análise e como se veem na análise narrativa. Nesse processo, pode-se perceber nas dimensões do Ser professora de música a capacidade de gerar uma tomada de consciência do sujeito na análise narrativa.

Na análise narrativa, um aspecto a ser considerado é o trabalho cointerpretativo do pesquisador. Isso exige escuta e capacidade de compreender como os colaboradores da pesquisa compreendem e interpretam determinados acontecimentos. O que o pesquisador faz é ir além da descrição do desenrolar de acontecimentos, isto é, ao fazer uma análise hermenêutica estabelece uma rede de sentidos, estruturadas pela narrativa.

Retomando o diálogo produzido com autores da educação musical trazidos nesse trabalho, acredito que os achados dessa pesquisa corroboram na questão: a quem compete dar visibilidade senão ao próprio professor, um sujeito que faz ligaduras de si com aquilo que se vive e que se escolhe narrar ao pesquisador, um trabalho colaborativo no qual o verdadeiro entrevistador é o próprio sujeito. Além disso, trazer o colaborador para participar no processo de análise contribui para que o enredamento da análise narrativa transforme as sequências de ação em sequências argumentativas que implicam em uma posição argumentativa e avaliativa do próprio colaborador.

Diante do exposto, compreendo a partir desses estudos, e com a força das palavras de Ricoeur (1994), que para se ter consciência daquilo que se configura nas narrativas, torna-se necessário reconfigurar com análises narrativas (auto) biográficas. E, isso se torna possível quando, segundo Delory-Momberger (2012), acontecimentos, ou motivos recorrentes, tematizados pelos professores são organizados em suas próprias narrativas na qual ajustam suas histórias de vida profissional implicadas com o contexto escolar.

Com isso, como um professor de música que sou, reflito sobre que laços temos produzido com nossas Histórias de Vida e que sentidos há na construção desses laços para se pensar a educação musical escolar. Acredito que a escola se faz com currículos, com projetos, mas principalmente, com vida de professores e de alunos e com aquilo que eles enxergam, vivem, experenciam e passam a se constituir.

Compreendi com a História de Vida de duas professoras de música de escola de educação básica a necessidade de o professor ter a clareza dos laços que os constituem como docentes de música. Os laços se constituem como dispositivos que podem ser utilizados para fazer o movimento (auto)biográfico, tornando-se um processo composicional, de arranjos e rearranjos de si. A composição desses arranjos e rearranjos é o que torna a vida como obra de arte.

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Autor notes

Mestrado em Música pela Universidade de Brasília (2017) e graduação em Música pela Universidade de Brasília (2014). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Instrumentação Musical, e atua profissionalmente como músico instrumentista da Orquestra Sinfônica da Força Aérea Brasileira. Participou como tutor e professor orientador do curso de Especialização em Música pela UAB-UnB (2017 – 2018).

Docente de música da Universidade de Brasília (UnB), com doutorado em música pela UFRGS, mestrado em linguagem (UFMT), graduação em letras (Unemat) e graduação em música (IPA/RS). Possui pós-doutorado em educação na linha cultura, escrita e linguagens pela UFPel. Atualmente é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Música da UnB e líder do grupo de pesquisa Educação Musical e Autobiografia.