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Apropriações da literatura na pesquisa em educação musical: algumas questões

USES OF LITERATURE FROM DIFFERENT SOURCES IN MUSIC EDUCATION RESEARCH: Some issues

Silvia Cordeiro Nassif 1

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil

Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Continua
vol. 7, núm. 1, 2022
revistaorfeu@gmail.com
Recepção: 18 Setembro 2021
Aprovação: 10 Abril 2022

 

URL: https://periodicos.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/20043
Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.

Resumo: Este texto, de natureza ensaística, discute a pesquisa em educação musical com foco em questões relativas às formas de apropriação da literatura especializada nos trabalhos. A partir de uma discussão inicial sobre a noção de teoria científica e seu valor acadêmico, discorre também sobre a questão da coerência epistemológica como um dado importante para a confiabilidade da pesquisa. Problematizando o estatuto das diversas fontes bibliográficas mobilizadas em um trabalho investigativo, propõe um modo de organização desse material que permita que as diferentes funções dos diferentes textos usados fiquem explicitadas inclusive no modo de escrita. Sem nenhuma intenção de fornecer um modelo como o melhor, muito menos fechar a questão, acredita-se, porém, que uma preocupação com as questões aqui abordadas poderá qualificar as pesquisas e avaliações de pesquisas na área.

Palavras-chave: Pesquisa em Educação Musical, Teoria Científica, Epistemologia.

Abstract: This essay discusses research in music education regarding the use of specialized literature in the works. From an initial discussion on the notion of scientific theory and its academic value, it also raises the question of epistemological coherence as an important aspect for research reliability. Inquiring the status of the texts mobilized in an investigative work, this essay proposes a way of organizing this material. The objective is to allow different functions of different texts used to be made explicit even in the way of writing. There is no intention of providing a model as the best, much less closing the question. However, it is believed that a concern with the issues addressed here may qualify research and research evaluations in the area.

Keywords: Music Education Research, Scientific Theory, Epistemology.

Introdução

Como orientadora e avaliadora de trabalhos de pesquisa nos níveis de graduação e pós-graduação já há certo tempo, venho notando uma dificuldade grande em relação ao modo como a literatura em geral (teorias científicas, artigos, relatos de pesquisas etc.) é usada nas análises de dados e na estruturação geral dos textos de pesquisadores em formação (não apenas graduandos, como também mestrandos e mesmo doutorandos).

Com bastante frequência, as diferentes fontes bibliográficas estudadas são abordadas sem qualquer distinção de estatuto em relação à sua função exercida nos trabalhos[2]. Assim, por exemplo, muitas vezes dados aparecem analisados à luz de pesquisas iniciantes sobre o tema em questão, e as teorias “de peso”, que constituem o referencial teórico assumido em determinada pesquisa, ficam em segundo plano, aprisionadas no item ou capítulo que lhe foi destinado ou diluídas em notas de rodapé e em outros trechos sem nenhum destaque. Na minha avaliação, isso acaba fragilizando pesquisas que potencialmente poderiam trazer contribuições substanciais à área.

Para além dessa indissociação entre as várias fontes bibliográficas consultadas, a própria noção de que todo trabalho científico precisa estar fundamentado em alguma teoria científica sólida e reconhecida parece não ser tão clara, pois alguns trabalhos se limitam a estabelecer articulações entre seus objetos, seus dados e outros textos publicados, sem que necessariamente esteja presente entre eles alguma teoria. Parece haver, em suma, tanto um desconhecimento sobre a importância dos aportes teóricos quanto sobre os diferentes estatutos que textos de naturezas distintas possuem em um trabalho.

Consultando algumas das obras sobre pesquisa bastante usadas na área de educação musical, percebemos, com efeito, que essa não é uma questão muito considerada e, quando isso ocorre, geralmente se trata de uma abordagem que apenas tangencia o problema do uso efetivo da literatura. O foco, em várias dessas obras, geralmente se concentra na questão dos procedimentos metodológicos técnicos a serem realizados no trabalho. Apenas a título de exemplo, vejamos como alguns desses textos apresentam e fazem indicações sobre a questão bibliográfica e seus modos de apropriação nas pesquisas.

Talvez o mais citado texto sobre pesquisa em educação e áreas afins, o livro Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas, de Lüdke e André (1986), apresenta de modo muito claro uma discussão sobre pesquisa científica, distinguindo-a de outras formas de pesquisa e destacando o papel das teorias como as lentes através das quais é possível interrogar os dados e “construir o conhecimento sobre o fato pesquisado” (p.4). Há ainda no texto uma discussão sobre os paradigmas epistemológicos que embasam as pesquisas em educação e um aprofundamento nas abordagens qualitativas e suas técnicas de coleta de dados. No capítulo destinado à análise do material coletado, destaca-se novamente a importância do referencial teórico na categorização dos dados, sem entrar, contudo, em nenhum momento, nos modos possíveis como esse referencial contribuirá para a teorização final.

Também bastante referido na área, o livro Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais, de Antonio Chizzotti (1991), apresenta rapidamente os grandes paradigmas de pesquisa e, em seguida, desenvolve todo o texto a partir da diferenciação entre pesquisa experimental e pesquisa qualitativa, seus pressupostos, métodos, processos e possíveis contestações. Não há nenhuma menção aos modos de uso das teorias em questão.

Amplamente lido e adotado em graduações e pós-graduações, a obra de Antônio Joaquim Severino (2016) Metodologia do Trabalho Científico aborda diversos tópicos sobre o trabalho acadêmico na universidade, passando, ainda que rapidamente, por todas as questões aí envolvidas, em especial pelas relativas à pesquisa. Há um capítulo específico sobre “Teoria e prática científica” (p.105) no qual são apresentados os paradigmas epistemológicos usados nas ciências humanas. A despeito desse destaque para a questão teórica, esta é abordada apenas de modo genérico e abstrato, não sendo o objetivo entrar no uso concreto das teorias na elaboração da pesquisa (muito embora isso esteja presente de modo indireto no texto).

Em uma linha um pouco distinta dos trabalhos anteriores, Metodologia da Pesquisa Educacional, livro organizado por Ivani Fazenda (1991) e com textos de vários autores, discute a questão da metodologia de um ponto de vista prioritariamente epistemológico. Nessa direção, o capítulo de Sérgio Luna (“O falso conflito entre tendências metodológicas”) discorre sobre a inseparabilidade entre o referencial teórico e toda a construção da pesquisa. Aponta ainda alguns problemas comuns em relação a essa questão, como, por exemplo, as técnicas de pesquisa serem pensadas de modo autônomo em relação às abordagens teóricas. Apesar do grande destaque dado à questão teórica no livro como um todo, a proposta claramente também é discutir o problema em um nível conceitual e não entrar no uso prático das teorias nas análises e escrita do trabalho.

No âmbito da bibliografia sobre pesquisa especificamente voltada para a música e educação musical, o livro Horizontes da Pesquisa em Música, organizado por Vanda Freire (2010), vem sendo uma importante fonte de consulta na área e destaca em dois capítulos na parte inicial a questão epistemológica e o problema do referencial teórico. Entre as questões discutidas está o atrelamento da consistência da pesquisa à base teórica:

A confiabilidade dos resultados das pesquisas qualitativas está, em grande parte, assim como nas quantitativas, relacionada à consistência e coerência de sua base teórica, tanto quanto ao emprego consistente e sistemático de procedimentos metodológicos pertinentes (FREIRE, 2010, p.46).

Também aqui a proposta é uma discussão geral sobre o tema e não há referências diretas sobre o modo como isso poderia ser feito.

Por último, mas obviamente longe de esgotar as inúmeras obras que têm embasado pesquisas em educação musical, temos o livro Construindo o primeiro projeto de pesquisa em Educação e Música, de Maura Penna (2015). Voltado prio ritariamente para a graduação, esse livro tem efetivamente contribuído também em outros níveis acadêmicos, pois apresenta de modo muito claro um percurso possível de pesquisa, desde a formulação da questão inicial até a análise dos dados. Embora se proponha a ser uma obra de “caráter mais operacional” (p.21), aborda a importância da questão teórica em vários capítulos, desde a discussão inicial sobre os critérios de cientificidade de uma pesquisa, passando pela função da revisão bibliográfica e pela necessidade de confrontar os dados com o referencial teórico e com outros estudos. Chama ainda a atenção sobre o fato de que “o levantamento e o estudo de fontes teóricas e bibliográficas pode (e deve) se estender por toda a pesquisa, procurando atender, inclusive, à necessidade de compreender a realidade empírica revelada pelos dados coletados” (p.155). Há, portanto, nessa obra, um destaque especial para a importância das teorias e da literatura em geral na pesquisa, a despeito do fato de não entrar nos meandros e sutilezas das formas como a apropriação desse material será realizada.

Podemos perceber, por meio desses poucos exemplos, que, embora as obras sobre pesquisa em geral abordem a questão teórica e/ou epistemológica, há poucas indicações sobre o uso efetivo das fontes bibliográficas na análise dos dados e organização do texto final da pesquisa (relatório, monografia, dissertação ou tese). Os diferentes modos como a apropriação dessas fontes será feita, entretanto, pode resultar em trabalhos consistentes, que darão a sua contribuição, ainda que pequena, ao avanço do conhecimento na área, ou podem levar a um desperdício de materiais empíricos, muitas vezes ricos, pela inconsistência com que são tratados teoricamente.

Visando dar uma contribuição em relação a essa questão, este texto, pensado originariamente como um subsídio aos meus próprios alunos e orientados, sintetiza parte do que vem sendo colocado sobre o tema por diversos autores e, ao mesmo tempo, busca sua ampliação e aprofundamento. Estruturado a partir de três tópicos, vai tentando, por aproximações, cercar o problema de uma maneira relativamente abrangente, ainda que não exaustiva, estabelecendo um diálogo com algumas práticas que são comumente observadas nas pesquisas em educação musical. Sem nenhuma intenção de oferecer receitas prontas e fechadas, o texto não se exime, no entanto, de apontar possíveis direções.

Assumindo a neutralidade absoluta como impossível, enfatizo que não posso deixar de olhar esse objeto específico a partir da minha própria concepção de pesquisa, mas faço um esforço para tentar separar, na medida do possível, o que considero aspectos gerais, válidos para um grande número de pesquisas, em diferentes abordagens teóricas, de aspectos específicos da linha por mim assumida. Tomo como ponto de partida uma reflexão sobre a noção de teoria científica e sua importância nas pesquisas que se pretendem científicas.

O que são e para que servem as teorias científicas

Para começar a pensar em teorias científicas, creio ser importante distinguir esse conceito da ideia mais ampla de “saber” e “pré-saber”. Segundo Japiassu (1977), o termo “saber” tem um sentido amplo e engloba “todo um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos sistematicamente organizados e susceptíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino” (p.15). Para o autor, o saber engloba tanto os saberes “especulativos”, não científicos (como a filosofia e a teologia), quanto os saberes “não especulativos”, representados pela ciência em suas diversas disciplinas. Além disso, todo saber científico se articula ao que ele denomina “pré-saberes”:

Antes do surgimento de um saber ou uma disciplina científica, há sempre uma primeira aquisição ainda não científica de estados mentais já formados de modo mais ou menos natural ou espontâneo. No nível coletivo, esses estados mentais são constitutivos de uma certa cultura. Eles constituem as “opiniões primeiras” ou pré-noções, tendo por função reconciliar o pensamento comum consigo mesmo, propondo certas explicações. Podemos caracterizar tais pré-noções como um conjunto falsamente sistematizado de juízos, constituindo representações esquemáticas e sumárias, formadas pela prática e para a prática, obtendo sua evidência e sua “autoridade” das funções sociais que desempenham (JUPIASSU, 1977, p.17-18, grifos e aspas do autor).

Nessa linha, podemos conceber as teorias científicas como sistematizações de saberes científicos dentro de uma disciplina específica (Psicologia, Sociologia, Antropologia etc.), que superaram de alguma maneira essas “pré-noções” ou “opiniões primeiras” que circulavam coletivamente em determinado momento histórico. Formadas e legitimadas por meio de pesquisas metodologicamente orientadas e embasadas em teorias anteriores (as quais provavelmente foram afirmadas, expandidas ou negadas), as teorias científicas pressupõem uma ampla aceitação por cientistas especialistas naquele campo.

Nas pesquisas em geral, as teorias exercem, segundo Luna (1991, p.31), dois papéis importantes: indicam lacunas no conhecimento da realidade, gerando novos problemas de pesquisa, e servem “de referencial explicativo para os resultados que vão sendo observados” (p.32). Nas palavras do autor: “O referencial teórico de um pesquisador é um filtro pelo qual ele enxerga a realidade, sugerindo perguntas e indicando possibilidades” (p.32). Por essa razão, a adoção de teorias precisa estar alinhada a toda a construção da pesquisa, seus métodos e técnicas, de forma a buscar o que se chama de coerência teórico-metodológica[3]. O fazer musical e, por decorrência, os processos de ensino e aprendizagem da música são atividades essencialmente práticas (ainda que essas práticas sempre carreguem, de modo subjacente, pressupostos teóricos). Isso tem levado muitas vezes a educação musical a adotar posturas a meu ver equivocadas em relação à importância delegada e ao modo de apropriação das teorias nas pesquisas. Em bancas de avaliação, por exemplo, já vi diversas vezes candidatos terem seus trabalhos teoricamente frágeis elogiados em nome da prática educativa de excelência que desempenham. Aprova-se o pesquisador por ser um bom educador, deslegitimando ainda mais a já pouco valorizada pesquisa[4].

Justamente pelo caráter prático da atividade musical, comumente as pesquisas feitas em campo conseguem coletar um material empírico bastante volumoso e de grande interesse. Na ausência de teorias sólidas dando suporte às análises desse material, porém, muitas vezes não há sequer a construção de dados, limitando-se o pesquisador a uma descrição do material bruto que foi coletado. Sem as lentes de uma teoria não há como selecionar o que é relevante para a pesquisa em questão, correndo-se o risco de que a leitura do trabalho gere “a sensação de que a resposta estava pronta antes da pesquisa e teria sido oferecida independentemente das informações coletadas e das análises realizadas” (LUNA, 1991, p.29). Com efeito, não é incomum alunos solicitarem auxílio no sentido de que os orientadores forneçam citações que corroborem ideias que eles já tinham em mente. Ou seja, eles já sabiam o que queriam dizer desde o início, mas precisavam de teorias que legitimassem suas suposições (por vezes crenças). Isso, do meu ponto de vista, não é fazer pesquisa, pois dessa forma não se avança em relação às “pré-noções” adquiridas e validadas na prática. Fazer pesquisa é refletir teoricamente sobre a prática e não transferir exclusivamente para os sujeitos a responsabilidade sobre o conhecimento em construção:

A crescente valorização da prática e da subjetividade parece estar levando a uma tendência à reificação da prática e do sujeito, em prejuízo da construção de conhecimentos relevantes e do diálogo com os autores que já se ocuparam do tema. Aparentemente para fugir ao equívoco de aceitar a teoria como verdade, cai-se no equívoco de transferir para os sujeitos a posse da verdade (ALVES-MAZZOTTI, 2001, p.43-44).

No extremo oposto da desvalorização da teoria em prol dos dados e/ou dos sujeitos, está o seu excessivo enaltecimento. Nessa linha, podemos encontrar alguns trabalhos que tomam como ponto de partida as teorias e que se limitam a “encaixar” os dados nelas, de certa forma procurando demonstrar sua validade. As teorias científicas, até adquirirem esse estatuto, passam pelo crivo de inúmeros especialistas e não estão, pois, sub judice, já têm sua legitimidade garantida, ainda que provisoriamente em termos históricos[5]. Não há necessidade, portanto, de que as nossas pesquisas exemplifiquem ou ilustrem os conceitos teóricos com dados suplementares. Embora esse tipo de exemplificação possa ser importante nas pesquisas, sobretudo no momento da escrita, não podemos confundi-lo com a análise propriamente dita. O movimento, a meu ver, na etapa analítica, deve ser justamente o contrário, ou seja, usar as teorias como perspectiva de análise dos dados, os quais são o ponto central do trabalho, embora pouco úteis sem as referidas análises.

Ainda outro procedimento que pode ser encontrado com frequência e que procura fugir de uma possível falta de fundamentação teórica é a adoção de um número excessivo de teorias. Muitas vezes os pesquisadores em formação acabam tendo acesso a diversas teorias que se relacionam com o seu objeto em estudo. Na ânsia de não deixar perder nada do que foi estudado, acabam construindo um quadro teórico volumoso e no qual algumas teorias por vezes até se contradizem entre si. Isso nos leva à segunda questão.

A coerência teórica no trabalho de pesquisa

As pesquisas em educação musical têm se valido tanto de teorias do campo da música quanto da educação, além, obviamente, de teorias originadas na própria área. A educação, por sua vez, realiza pesquisas também a partir de diversas outras ciências humanas, as quais possibilitam olhares para essa área sob pontos de vista específicos[6]. O leque de possibilidades teóricas que possam fundamentar uma pesquisa em educação musical é, portanto, muito grande e o perigo de se perder nessa vastidão também. Pensar a questão da coerência teórica nesse campo, a meu ver, pede uma reflexão sobre duas questões interligadas: a) até que ponto as teorias que se constituíram em outros campos do saber servem para fundamentar pesquisas em educação musical? e b) até que ponto podemos, em uma mesma pesquisa, nos valer do conhecimento de diferentes disciplinas científicas? Começarei pela segunda.

Toda teoria científica, independentemente da área do conhecimento, tem uma base filosófica, constrói-se a partir de pressupostos filosóficos (ou epistemológicos) tomados como verdades a priori (os chamados axiomas, que são aceitos mesmo sem comprovação). A filosofia é, portanto, o ponto de partida da ciência, e, numa definição bastante simplificada, “a Epistemologia é uma disciplina filosófica que reflete criticamente sobre o conhecimento científico” (OLIVEIRA, 2016, p.18, negritos da autora). Entre as premissas que embasam as teorias científicas, estão a própria concepção de ciência e os critérios de cientificidade (objetividade ou subjetividade, por exemplo), as concepções de sujeito e objeto e sua relação na pesquisa, as diferentes noções de ser humano, história, realidade etc. (GAMBOA, 1991). A coerência teórica numa pesquisa, nesse sentido, é garantida quando as teorias mobilizadas como fundamentação partilham de pressupostos filosóficos semelhantes, filiam-se a um mesmo campo epistemológico, embora não necessariamente a uma mesma disciplina científica.

Essa questão tem sido alvo de equívocos frequentes nas pesquisas em educação musical, pois é muito comum encontrarmos, por exemplo, trabalhos fundamentados na Psicologia que adotam teorias psicológicas conflitantes do ponto de vista epistemológico. Não é possível fundamentar uma pesquisa ao mesmo tempo na teoria social cognitiva, na psicologia interacionista piagetiana e na psicologia histórico-cultural, por exemplo, pois cada uma dessas teorias possui pressupostos filosóficos diferentes e, consequentemente, entende a questão do desenvolvimento humano de modo distinto. Nessa linha de raciocínio, podemos, sim, colocar em diálogo trabalhos oriundos de diferentes linhas teóricas, mas não analisar nossos dados à luz de todas elas, sob o risco de cairmos, a meu ver, em um ecletismo teórico insustentável (voltaremos a essa questão no próximo item). A coerência teórica, em suma, não está ligada à disciplina científica em questão, mas ao paradigma epistemológico que é tomado como base, e, nesse sentido, diferentes disciplinas (Psicologia, Sociologia etc.) poderão ser acionadas desde que guardem pressupostos comuns e, sobretudo, desde que o discurso do pesquisador seja capaz de estabelecer essa conversa de modo consistente.

Quanto à primeira questão (até que ponto teorias surgidas fora do campo da educação musical são legítimas para fundamentar pesquisas nessa área), esta parece já ter sido razoavelmente abordada e, até certo ponto, resolvida, embora nem sempre essas reflexões sirvam para balizar avaliações de trabalhos, por exemplo. Em artigo publicado em 2003, Del-Ben ressalta, com base em Kraemer (2000), a multidimensionalidade das práticas educativas musicais e a impossibilidade de que todas essas dimensões possam ser compreendidas “pelo viés de somente uma ou outra disciplina, quer específica do campo da Música, quer específica do campo da Educação ou das Humanidades” (DEL-BEN, 2003, p.79). O que precisa ser garantido, segundo a autora, é a especificidade do objeto de estudo, que não pode ficar diluído nessas teorias: “tendo em mente nosso objeto de estudo, não há porque temer o diálogo da Educação Musical com outras áreas do conhecimento” (DEL-BEN, 2003, p.79)[7]. Em trabalho posterior (DEL-BEN, 2010), a mesma autora ressalta também a importância da construção de teorias a partir do campo pedagógico-musical, fato sinalizado naquele momento pelo aumento de citações, nas pesquisas, da própria área. Não tendo como discordar dessa preocupação, deixo, contudo, uma reflexão sobre o perigo contrário, ou seja, sobre a possibilidade de que, na ânsia de consolidar cientificamente a área de educação musical, acabemos nos aprisionando em teorias da área, perdendo a oportunidade de nos aprofundarmos nas questões epistemológicas.

Como orientadora adepta da fundamentação nas ciências humanas, venho percebendo o quão enriquecedor é para a formação do pesquisador o esforço de enxergar sua própria área e seu próprio objeto em teorias que não estão necessariamente falando deles. O movimento mais indireto do pensamento nesse caso contribui, no meu ponto de vista, para a formação de pesquisadores com uma maior capacidade reflexiva. Além disso, o contato com as matrizes teóricas que deram origem às teorias em educação musical permite um aprofundamento nessas próprias teorias e, por vezes, sua expansão para objetos não pensados no momento de sua construção. A esse argumento soma-se ainda o pouco tempo de existência da educação musical como campo de pesquisa acadêmica no Brasil. A Associação Brasileira de Educação Musical, principal marco na consolidação da área, completou recentemente três décadas, enquanto muitas das ciências humanas já acumulam mais de cem anos de pesquisas e construções teóricas. É natural que tenhamos aí um leque de opções teóricas muito maior e mais consolidado. E, mesmo considerando teóricos da educação musical fora do Brasil que são disseminados por aqui (como Keith Swanwick e outros), é sempre válido ir às matrizes teóricas desses autores para um maior aprofundamento de suas formulações, especialmente nas pesquisas em níveis de mestrado e doutorado.

Considero que uma maior clareza quanto às questões teóricas e epistemológicas pode não apenas adensar e dar mais coerência às pesquisas, como também ajudar a qualificar as avaliações de trabalhos. Considerando o pluralismo de paradigmas epistemológicos que caracteriza as ciências humanas (SEVERINO, 2016, p.112), é saudável que as avaliações sejam feitas por pesquisadores oriundos de diferentes correntes. Entretanto, acredito ser importante que a avaliação seja feita dentro dos parâmetros dos diferentes referenciais. Como alerta Luna: “Fora disso, corremos o risco de criticar um pesquisador por não ter feito a pesquisa como nós a faríamos ou, pior, a avaliação da produção científica dependerá da crença em valores compartilhados por iniciados em uma mesma confraria” (1991, p.33).[8] Para além das questões sobre fundamentos teóricos e epistemológicos aqui em discussão, a literatura mobilizada por um pesquisador quando da realização da pesquisa, do projeto inicial ao texto final, envolve muitos outros textos de naturezas diversas. Penso que os mesmos cuidados na apropriação desses textos, no sentido de compreensão de seus paradigmas de sustentação, formas e momentos ideais de uso, deverão ser tomados. No item a seguir, nosso olhar se voltará para a literatura no sentido mais amplo e, sobretudo, para seu uso prático na pesquisa.

Os diferentes textos e seu estatuto em um trabalho de pesquisa

Nos tópicos anteriores, tratamos com algum cuidado de questões relacionadas ao que costuma ser denominado “referencial teórico”, que é constituído pelas teorias científicas consolidadas em determinado campo do conhecimento que fundamentam uma pesquisa. Nas pesquisas em educação musical, o referencial teórico pode ser composto tanto de teorias próprias da área quanto de suas matrizes epistemológicas (teorias no campo das ciências humanas que foram tomadas como base para a construção dessas teorias) ou ainda das diversas teorias da educação (SAVIANI, 2007).

Além desses que serão os alicerces da pesquisa, porém, inúmeros outros textos ajudarão a compor o trabalho, e é importante que o pesquisador tenha a dimensão exata da participação de cada um deles no seu próprio texto, evitando colocá-los todos no mesmo nível de importância. Nesse sentido, a primeira distinção importante diz respeito à diferença entre referencial teórico e revisão da literatura. Nas palavras de Freire (2010),

O referencial é a base teórica sobre a qual a pesquisa se constrói. É constituído pelos conceitos ou teorias que irão servir de base para a análise interpretativa dos dados da pesquisa.

[…]A revisão da literatura se destina a realizar uma leitura crítica da literatura especializada, buscando situar o tema da pesquisa no atual estado de conhecimento da área. A revisão da literatura pode até incluir alguns trabalhos que não têm a mesma linha de abordagem adotada na pesquisa, mas que enriquecem o conhecimento sobre o assunto por outros ângulos. Já o referencial teórico decorre de um posicionamento específico, de uma escolha do pesquisador …] (FREIRE, 2010, p.43).

Fica claro aqui que a literatura consultada no decorrer da pesquisa será muito mais ampla do que as teorias tomadas como fundamento. Nessa literatura ampliada, poderão constar, inclusive, textos teoricamente conflitantes entre si e/ou com o referencial, o que deverá ficar claro na exposição dessa revisão no texto. Isso não significa que essa literatura não possa ser colocada em diálogo em determinados momentos, por exemplo comparando resultados obtidos em pesquisas que partiram de outras bases com os resultados obtidos na pesquisa em questão. Uma vez pontuado de modo claro no texto que as bases são outras, não vejo problema em trazer essa literatura. Esse foi, aliás, um procedimento muito usado por teóricos adeptos do chamado pensamento dialético, os quais costumavam trazer para o diálogo teorias diversas, as quais seriam negadas dialeticamente[9], muitas vezes apresentando outras explicações para fatos semelhantes por meio da introdução, por exemplo, de um conceito que em alguma medida procurava superar supostas limitações dessas teorias face aos novos problemas que surgiam[10]. É importante ressaltar, porém, que esse diálogo precisa ser feito com muito cuidado, pois a ideia de usar de cada teoria apenas a parte que interessa, desconsiderando completamente suas bases epistemológicas, é sempre tentadora e tem sido um procedimento comum em pesquisas na educação musical. Se levarmos a sério a questão da coerência epistemológica discutida anteriormente, porém, veremos que isso não é possível, pois os conceitos teóricos só têm validade como fundamento quando são tomados dentro das teorias. Mesmo que estas não sejam usadas na sua totalidade no trabalho (e geralmente não o são), não podemos trair seus pressupostos e, oportunisticamente, usá-las de modo superficial e descoladas deles. Esse tipo de procedimento, a meu ver, fragiliza teoricamente a pesquisa, por vezes deslegitimando as análises efetuadas.

Além de outras teorias (que não as do quadro teórico do trabalho), fazem parte da literatura estudada também outras pesquisas sobre o tema em questão ou sobre temas afins. O diálogo com esses trabalhos muitas vezes é importante não apenas no momento da revisão bibliográfica, mas também na discussão dos resultados, na medida em que vai situando melhor o alcance e a contribuição da pesquisa em relação a pesquisas anteriores. Trata-se, nesse caso, de uma relação de interlocução mais horizontal, uma vez que alguns desses trabalhos podem ser, inclusive, bastante iniciantes. É preciso não confundir, no entanto, esse diálogo horizontalizado com a adoção desses textos como fundamento, procedimento que pode gerar muita confusão. Esse tipo de relação dialogada é diferente, por exemplo, do diálogo com o referencial teórico, pois este fornece as ferramentas de análise e, em grande medida, submete as análises a essas ferramentas, criando uma relação, a meu ver, mais vertical. Quando as teorias basais selecionadas não fornecem os princípios explicativos, os conceitos necessários às análises, significa que escolhemos as teorias erradas ou que precisaremos ampliar nosso quadro teórico com a incorporação de outras teorias. Recorrer a textos que não chegam a consolidar uma nova teoria com esse objetivo de fundamentar análises não me parece uma opção.

Ainda outro procedimento que ocorre com frequência nas pesquisas em educação musical e que merece uma reflexão é a adoção dos chamados “Métodos Ativos” como fundamentação teórica. Como o próprio nome diz, esse importante movimento na história da educação musical tinha como objetivo a proposição de práticas educativas com música, e não a consolidação de teorias sobre o ensino da música. Seus proponentes eram educadores musicais que exploraram, na prática, possibilidades inovadoras de ensino de música das quais se pode extrair alguns princípios que são válidos até hoje. A intenção da maior parte desses educadores não era, contudo, sistematizar uma filosofia da educação musical nem construir teorias aderindo ao rigor de métodos científicos. Assim, a despeito do seu enorme valor histórico e como ferramenta prática, esse material não tem o estatuto científico necessário para ser adotado como fundamento teórico em pesquisas. Obviamente esses autores são importantes interlocutores nos trabalhos, podem e devem ser trazidos à discussão sempre que necessário, mas não dispõem da consistência teórica desejável a um quadro referencial. Mesmo os que deixaram escritos teóricos sobre pedagogia o fizeram de uma maneira bastante livre, por vezes até apresentando contradições entre as reflexões sobre educação musical e as propostas práticas efetivas.

Em síntese, podemos dizer que as formas de apropriação da literatura mobilizada em um trabalho investigativo variam bastante e devem se realizadas com cuidado. Uma maneira prática de tratar essa questão que venho adotando é pensar essas formas de uso da literatura em diferentes planos. Num primeiro plano estão as teorias científicas que fundamentam a pesquisa, que fornecem as bases e os princípios explicativos que servirão para analisar os dados, sejam eles de qualquer natureza. A adesão a essas teorias deve ser feita com muita consciência, uma vez que seus pressupostos serão assumidos direta ou indiretamente no trabalho e servirão para identificar de maneira mais profunda a linha epistemológica à qual se vincula.

Num segundo plano creio estarem, se for o caso, outras teorias vinculadas ao mesmo campo epistemológico ou mesmo a outros e que servirão como interlocutoras no trabalho para estabelecer um contraponto entre as ideias, análises e conclusões apresentadas e outras possibilidades de interpretação para as questões em foco. A ideia aqui não é “complementar” possíveis lacunas das quais as teorias fundamentais não deram conta, mas talvez demonstrar uma consciência de que as verdades postas no trabalho não são as únicas possíveis, embora sejam as melhores nas condições específicas dessa pesquisa. Esse movimento de dialogar com outras fontes teóricas não é absolutamente obrigatório, mas mostra uma maturidade do pesquisador em relação à própria concepção do que é ciência. Além disso, apresentar outras possibilidades interpretativas pode colaborar também no sentido de fortalecimento de suas próprias escolhas teóricas e de sua argumentação.

Finalmente, num terceiro plano, temos as pesquisas empreendidas em diversos níveis cujos resultados de alguma forma podem ser comparados aos nossos, seja por afirmação ou negação. Por abordarem temas próximos ao objeto em questão, esses trabalhos são leitura obrigatória na revisão da literatura e poderão também ser trazidos em outros momentos, sobretudo na análise dos dados. Conforme já dito, a relação que se estabelece aqui é mais horizontalizada, é um diálogo entre pares que visa situar de modo mais claro a abrangência do nosso trabalho.

Esses diversos planos, mesmo que não estejam estabelecidos no início (e geralmente não estão), precisam ir ficando claros para o pesquisador ao longo do período de realização da pesquisa e estar definitivamente resolvidos no momento da redação final do texto. Do mesmo modo, penso que o leitor do trabalho deveria, ao final da leitura, ser capaz de reconhecer qual o estatuto desses múltiplos textos referidos ao longo do texto e listados ao seu final. Chegar a tal clareza, porém, é importante frisar, implica em um longo processo de aprendizado, dificilmente sendo uma conquista em uma primeira pesquisa. Já o pesquisador maduro talvez não precise se preocupar demasiadamente com essa questão, uma vez que na densidade e consistência do seu discurso argumentativo estará a garantia do trabalho. Trata-se, portanto, de uma preocupação que diz respeito prioritariamente à formação de um pesquisador.

Considerações finais

A educação musical como objeto de reflexão e construção de conhecimento científico é relativamente recente no Brasil e tem crescido muito com a abertura de novos programas de pós-graduação. É preciso, no entanto, que esse crescimento se dê não apenas quantitativamente, mas principalmente qualitativamente. Creio que uma maneira de qualificar melhor esses inúmeros trabalhos que surgem e são publicados a cada ano seria o seu adensamento teórico.

O fato de a atividade pedagógica musical ter um caráter eminentemente prático tem frequentemente levado a educação musical a uma incompreensão em relação ao valor de reflexões teóricas. Mesmo trabalhos acadêmicos no nível de pós-graduação por vezes permanecem em um nível reflexivo muito superficial, que não vai além do estabelecimento de algumas articulações entre teorias, outras pesquisas e dados concretos da realidade. Embora esse seja realmente um movimento inicial, penso que aprender a olhar a realidade através de lentes teóricas para ser capaz de elaborar novas teorizações sobre ela é a finalidade última de qualquer pesquisa no âmbito das ciências humanas, área bastante próxima à nossa e que nos tem sido de grande auxílio no campo reflexivo[11]. Nessa direção, o enfrentamento de questões como as tratadas neste texto talvez seja um primeiro passo.

 

 

 

REFERÊNCIAS

ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Relevância e aplicabilidade da pesquisa em educação. Cadernos de Pesquisa, n. 113, p. 39-50, 2001.

CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 1991.

DEL-BEN, Luciana. A pesquisa em educação musical no Brasil: breve trajetória e desafios futuros. PER MUSI: Revista de performance musical, Belo Horizonte, v. 7, p. 76-82, 2003.

DEL-BEN, Luciana. (Para) Pensar a pesquisa em educação musical. Revista da ABEM, Porto Alegre, n. 24, p. 25-33, 2010.

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Notas

2 Considerandoo gênero ensaístico e os objetivos deste texto, não foi realizado nenhum levantamento sistemático das produções científicas na área e, portanto, não serão apresentados dados concretos de qualquer natureza. As reflexões aqui colocadas são oriundas exclusivamente da minha experiência como orientadora, avaliadora e leitora de trabalhos científicos, vista sob a ótica da bibliografia que me apoia.

3 A esse respeito, Freire (2010, p.44-45) chama a atenção, por exemplo, para a necessidade de que os próprios termos e conceitos usados na pesquisa sejam coerentes com o referencial teórico, uma vez que termos iguais podem ter sentidos muito distintos em diferentes teorias.

4 Penso que, mesmo quando a pesquisa em questão é uma reflexão sobre o trabalho educativo do pesquisador, o que está em jogo é sobretudo essa análise, e não a pedagogia em si.

5 É bem verdade que toda teoria científica pode ser revista, expandida ou mesmo refutada com base em novos dados. Vale assinalar, contudo, que a refutação de uma teoria “por dentro”, ou seja, pondo em questão suas premissas, é um trabalho coletivo, que envolve tempo, várias pesquisas e pesquisadores, e geralmente culmina na criação de um novo paradigma. Nesse sentido, penso que nem mesmo uma pesquisa de doutorado teria o fôlego e a maturidade necessários para essa empreitada. Pode-se, no máximo, nos limites de uma pesquisa, apontar algumas parcialidades ou mesmo vulnerabilidades de uma teoria, mas não colocá-la em julgamento.

6 Questões sobre o desenvolvimento humano ou os modos de funcionamento de uma sociedade, por exemplo, afetam diretamente a educação, e, por essa razão, as contribuições de áreas como a Psicologia ou a Sociologia são imprescindíveis para uma compreensão mais globalizante de tudo o que está envolvido nas práticas educativas, musicais ou não.

7 Posição semelhante é defendida por Souza (2007) também com base no mesmo autor, destacando a necessidade do diálogo da área com as Ciências Humanas. Ao argumento da multidimensionalidade, Souza acrescenta ainda a questão da emergência de temas específicos na educação musical na contemporaneidade que pedem teorias específicas. Em trabalho posterior, contudo, Souza (2020) retoma essas ideias dando maior ênfase à autonomia da Educação Musical e deixando claro que esta não deve ser vista como uma área interdisciplinar. Há um questionamento da autora, inclusive, em relação à possibilidade de que a teorização da educação musical possa ser realizada “a partir de um olhar pedagógico com arcabouços teóricos da educação ou por outros campos (Pedagogia, Sociologia, Antropologia, Psicologia)” (p. 18). Nota-se, portanto, que, por um lado, há a defesa do diálogo com as Ciências Humanas, mas, por outro, um receio em relação ao modo como essa interlocução será feita, ou talvez, ao peso que teorias de outros campos terá nas elaborações teóricas da área.

8 A título de exemplo, alunos meus já tiveram trabalhos, escritos no âmbito teórico do materialismo dialético, criticados por não se fundamentarem em teorias pós-modernas, as quais estão em um paradigma epistemológico distinto. Uma consideração pelo paradigma que estava em jogo naquele momento evitaria esse tipo de análise.

9 A negação dialética é uma negação por incorporação. Assume-se que determinada teoria (ou parte dela) traz avanços ao conhecimento, mas de um modo parcial, e procura-se superar essa parcialidade buscando novas ferramentas teóricas, que levem a uma visão mais totalizante do problema em questão.

10 Essa postura pode ser vista, por exemplo, na obra de Vigotski em relação a Piaget, um dos seus principais interlocutores. Partindo de outras premissas epistemológicas, Vigotski fez uma leitura de Piaget que não assumia nem descartava completamente sua teoria, mas procurava superá-la em pontos que considerava limitados ou equivocados.

11 Embora a educação musical esteja em alguns documentos oficiais no Brasil mais próxima da Música, que pertence à grande área “Linguística, Letras e Artes”, a proximidade com as ciências humanas tem sido defendida por diversos autores. Além de Souza (2007), já mencionada, ver também Penna (2015) e Nassif-Schroeder e Schroeder (2004).

Autor notes

1 Livre-docente na área de Licenciatura/Artes, doutora em Educação, graduada em Letras e Música, todos pela UNICAMP. Atualmente é docente do Departamento de Música do Instituto de Artes da UNICAMP, atuando no curso de Licenciatura em Música e no Programa de Pós-Graduação em Música dessa instituição. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Música, Linguagem e Cultura (MUSILINC/CNPq), desenvolve pesquisas em educação musical na sua interface com a linguagem, a cultura e o desenvolvimento humano.