Pode o empreendedorismo de moda ser feminista? Reflexões a partir da experiência de mulheres negras e periféricas da Feirinha de Boa Viagem
RESUMO
O artigo explora o empreendedorismo de moda entre mulheres negras e periféricas que atuam na Feirinha de Boa Viagem, um mercado popular em Recife, Brasil. O objetivo é entender as percepções, motivações e narrativas das mulheres de baixa renda sobre seus percursos para o empreendedorismo e o mercado informal. O debate reflete como se estabelecem essas dinâmicas à luz de teorias em torno do empreendedorismo de mulheres e das economias barrocas latino-americanas. O recorte metodológico foi demarcado pela coleta de dados através de entrevistas narrativas em profundidade, analisadas por meio da análise temática. No levantamento da prefeitura realizado em 2018, a feirinha contava com 178 barracas, sendo 144 comandadas por mulheres. Foram entrevistadas 10 empreendedoras de moda. Como resultado, foram encontradas duas macro categorias que se subdividem em: 1. motivações para o empreendedorismo; e 2. percepções sobre o empreendedorismo.
Palavras-chave: empreendedorismo de mulheres; empreendedorismo feminista; mulheres negras; economias barrocas; Feirinha de Boa Viagem.
Can fashion entrepreneurship be feminist? Reflections from the experience of black and peripheral women from the Boa Viagem Fair
ABSTRACT
The article explores fashion entrepreneurship among black and peripheral women who work at Feirinha de Boa Viagem, a popular market in Recife, Brazil. The goal is to understand the perceptions, motivations and narratives of low-income women about their paths to entrepreneurship and the informal market. The debate reflects on how these dynamics are established in the light of the theory of women’s entrepreneurship and Latin American baroque economies. For the methodological approach, data was collected via in-depth interviews and subsequently analyzed through thematic analysis. A survey carried out by the municipal administration in 2018 indicated that the market comprised 178 stalls, 144 of which were operated by women. Ten female fashion entrepreneurs were interviewed. The results yielded two overarching categories, subsequently divided into: 1) motivations for engaging in entrepreneurship and 2) perceptions regarding entrepreneurship.
Keywords: women’s entrepreneurship; feminist entrepreneurship; black women; baroque economies; Boa Viagem Fair.
¿Puede el emprendimiento de moda ser feminista? Reflexiones desde la experiencia de las mujeres negras y periféricas de la Feria de Boa Viagem
RESUMEN
El artículo explora el emprendimiento de la moda entre las mujeres negras y periféricas que trabajan en Feirinha de Boa Viagem, un mercado popular en Recife, Brasil. El objetivo es comprender las percepciones, motivaciones y narrativas de las mujeres de bajos ingresos sobre sus caminos hacia el emprendimiento y el mercado informal. El debate reflexiona sobre cómo se establecen estas dinámicas a la luz de la teoría del emprendimiento femenino y las economías barrocas latinoamericanas. El enfoque metodológico se delimitó por la recolección de datos a través de entrevistas narrativas en profundidad, analizadas a través del análisis temático. Un estudio llevado a cabo por la administración municipal en 2018 indicó que el mercadillo comprendía 178 puestos, 144 de los cuales eran operados por mujeres. Se entrevistó a diez emprendedoras en el sector de la moda. Los hallazgos arrojaron dos categorías generales, subsiguientemente divididas en: 1) Motivaciones para el emprendimiento y 2) Percepciones en torno al emprendimiento.
Palabras-clave: emprendimiento de mujeres; emprendimiento feminista; mujeres negras; economías barrocas; Feria de Boa Viagem.
1 INTRODUÇÃO
A moda sempre teve um papel significativo na expressão da identidade e na resistência cultural de grupos sociais. No caso de grupos considerados “de segunda classe” no escopo social (Emecheta, 2018), como é o caso das mulheres negras, periféricas e de baixa renda, a moda e o empreendedorismo podem ser meios de afirmação e resistência contra as condições de exploração do capital e as limitações impostas pela sociedade (Gago, 2018). Segundo Sara Kaiser e Denise Green (2022), a moda serve como um meio de comunicação visual, permitindo que indivíduos e grupos articulem sua identidade e suas experiências de maneira que palavras sozinhas não conseguiriam. Este artigo dirige o olhar para o entrelaçamento do fazer/comercializar moda – ou seja, criar e/ou vender peças de vestuário e acessórios – com os saberes e fazeres artesanais, buscando compreender as possibilidades de se gerir iniciativas que visem projetos focados na subsistência e transformação da realidade social, cultural, econômica e política de grupos sociais.
A entrada da mulher no mercado de trabalho sempre esteve presente no debate feminista sobre a igualdade de gênero (Gago, 2018) que, de forma geral, foi e é vista como um marco social e econômico relevante para a emancipação das mulheres, amplamente debatido no feminismo de segunda onda, ainda que sua divisão em ondas não seja consensual entre os feminismos (Schild, 2016). Vale salientar que a visão construída em torno desta perspectiva considera especialmente as mulheres brancas e que possuem uma condição econômica privilegiada. As mulheres pretas e vulneráveis socialmente já estavam trabalhando muito mais horas e ganhando muito menos que os homens negros e/ou operários. Sobre isso, a partir da realidade estadunidense, bell hooks (2019) elabora sua crítica ao aclamado trabalho de Betty Friedan (1971), “A mística feminina”, que tratou a questão da entrada da mulher no mercado de trabalho como um problema universal feminino, quando na verdade era um recorte de mulheres brancas, de classe média, nascidas em família tradicionais, enquanto as mulheres negras e indígenas sempre pertenceram à força de trabalho.
O tema em torno do empreendedorismo de mulheres vem sendo debatido ao longo do tempo sob duas lógicas díspares. Por um lado, há uma romantização que beneficia mulheres brancas de classes privilegiadas. Por outro, romantiza a precarização e a informalidade, especialmente vivida por mulheres negras e periféricas. Pouco se dialoga com esse segundo grupo.
Neste sentido, este estudo tem como objetivo ouvir e refletir sobre as percepções das mulheres de baixa renda, empreendedoras populares de moda, da cidade do Recife. Longe de defender a lógica empreendedora como elemento de salvação de mulheres periféricas, busca-se compreender criticamente como as feirantes observam o seu percurso pelo empreendedorismo. Como recorte, foram selecionadas mulheres empreendedoras que expõem seus produtos na “Feirinha de Boa Viagem”, uma feira popular e turística criada em 1966, um dos cartões postais do Recife, Patrimônio Turístico e Cultural do Povo de Pernambuco.
2 DO EMPREENDEDORISMO AO FEMININO(ISTA)?
O termo empreendedorismo foi concebido por Joseph Schumpeter ([1942] 2013). Segundo o economista, o conceito trata de algo realizado por pessoas proativas e versáteis, com habilidades para produzir e organizar recursos financeiros. O autor também afirma que o empreendedorismo atua como um fator que impulsiona processos de transformação, tanto reformistas quanto revolucionários, nas formas de produzir. A construção do empreendedorismo exalta a individualidade do empreendedor, isto é, o sujeito com capacidade criativa que “assume” os riscos do processo de criatividade, inovação e iniciativa (Leite, 2017). Mas quem pode “assumir” esses riscos? De que privilégios estamos dialogando quando se fala do “sujeito com capacidade criativa”? Estamos pensando em oportunidades e formação tradicional? Há claramente um recorte de classe bastante delimitado.
O Relatório Mundial da Global Entrepreneurship Monitor (GEM), realizado em 2023, já mostrava uma queda no crescimento de empreendedoras mulheres no Brasil: se em 2011 eram 49%, no relatório de 2017 as mulheres ultrapassaram levemente em pouco mais de 50% os homens empreendedores. Com efeito, hoje as mulheres representam 40% do total de empreendedoras no país, um declínio de pouco mais de 10 pontos percentuais em relação a 2017. São dados que suscitam análises cuidadosas e embasadas em uma lógica localizada, que observa os contextos de cada grupo de mulheres e suas realidades.
É possível afirmar que a mulher empreendedora pode ter a oportunidade de conquistar e de transformar seu contexto e sua realidade, processo de grande importância na sua configuração subjetiva (Furtado; Rey, ٢٠٠٢). Todavia, é sabido que o mercado empreendedor é demarcado por uma intensa relação com o mercado informal. Neste sentido, compreende-se o setor informal como “um conjunto de formas de organização da produção que ocupam um lugar intersticial na economia, que operam ‘juntas’ com as formas propriamente capitalistas, mas não fazem parte delas” (Beloque, 2007, p. 8). O Brasil e o mundo já vinham em um processo de precarização do trabalho, seja na perda de direitos trabalhistas, seja na chamada uberização do trabalho (Abílio, 2019), que consiste em um formato de ocupação sob demanda, precarizando condições de trabalho, exploração da mão de obra por grandes conglomerados de empresas, e concentram o mercado junto às plataformas digitais e ao comércio eletrônico.
Com efeito, o empreendedorismo de mulheres é um tema que precisa sair da abordagem romantizada que tem sido operada nos últimos anos. As análises sobre o trabalho informal no Brasil (IBGE, 2019) demonstram que uma grande parcela da atividade empreendedora é protagonizada por mulheres de baixa renda, que vem, especialmente, de uma realidade sobrecarregada, jornada tripla, desemprego, assimetrias de gênero no aspecto do cuidado familiar e da vulnerabilidade social. Dessa forma, outras perspectivas precisam ser observadas, como as dinâmicas de resistência (Gago, 2018), da qual será falada à frente, que tem apresentado também resultados e mudanças significativas na vida de muitas mulheres, sobretudo em sua autonomia financeira.
Ao refletir que as questões de gênero e a prática empreendedora são produções subjetivas, buscamos oportunizar que o debate não se apresente de forma antagônica, repleta de dualismos e dicotomias. São muitas as mulheres com realidades distintas e distintos tipos do que se chama de empreendedorismo. Não podemos deixar de notar que as questões de gênero e práticas de empreendedorismo estão abarcadas por construções sociais, bem como simbolismos e significações individuais.
Dessa forma, é pertinente ressaltar que o processo de empreender abraça uma lógica neoliberal. De forma breve, o neoliberalismo pode ser definido por um sistema econômico, no qual o sujeito vira um commodity, é transformado em mercadoria (Goldman, et al. 1991). Há uma visão do indivíduo como capital humano e “empreendedor de si”, que prospera caso consiga adaptar-se ao modelo neoliberal. O sujeito se vê como culpado do seu fracasso ou de seu sucesso. Dessa forma, no regime neoliberal o sujeito se acredita “livre”, empreendedor, capaz de determinar suas ações a partir de uma lógica mercadológica, quase meritocrática, fomentada pela ideia de custo e benefício. Não se sente assujeitado, nem percebe o isolamento em que se instala (Rago, 2019, p. 8).
Laura Galloway, Isla Kapasi e Katherine Sang (2015), ao argumentarem que o empreendedorismo foi construído na percepção do comportamento dos homens, chamam atenção para duas questões na compreensão do empreendedorismo pelo senso comum: 1) o essencialismo presente na própria construção da categoria “mulher empreendedora”, que prioriza a dimensão de gênero como elemento estratificador; e 2) as hierarquias que atravessam as relações entre gênero, ocupação e posição na estrutura organizacional, impactando homens e mulheres de maneiras distintas. As premissas construídas na presença das mulheres no empreendedorismo são produções sociais, fomentadas pelos significados atribuídos na e pela cultura. Entretanto, deve-se colocar todas as formas de empreendedorismo numa mesma perspectiva? Pautas sociais mais amplas poderiam pensar em outras formas de empreendedorismo? Soraya Barreto Januário (2022) observou a possível existência de um empreendedorismo feminista na percepção das mulheres que empreendem também como produtoras de sua realidade e de uma comunidade. Este debate é observado na pesquisa considerando toda a carga associada a questões de classe, gênero e raça, numa perspectiva interseccional (Collins; Bilge, 2021), que será debatida adiante. Barreto Januário (2022) explica que este é um conceito em construção, mas podemos ressaltar que a ideia do empreendedorismo feminista encontra abrigo em iniciativas coletivas de mulheres, buscando o seu sustento e fomentando o crescimento de outras mulheres. É pertinente pontuar que é possível enxergar a possibilidade de um empreendedorismo de premissas feministas, como propostas que podem mudar a realidade de suas criadoras e que auxiliam o crescimento social e/ou econômico de outras mulheres, e não necessariamente concebido por mulheres que se autodeclaram feministas.
Marta Calás, Linda Smircich e Cristina Bourne (٢٠٠٩) propõem a reformulação do conceito de “empreendedorismo como atividade econômica positiva” para “empreendedorismo como mudança social”, repensando o conceito por meio de lentes analíticas feministas e na compreensão da historicidade enraizada no masculino no mundo dos negócios. As autoras salientam algumas características importantes ao observarem o empreendedorismo numa lógica feminista, tais como: mulheres que crescem com outras mulheres; mulheres que oportunizam chances a outras mulheres; práticas empresariais pautadas na equidade e valorização do feminino. São nesses preceitos que a pesquisa abarca suas crenças, num empreendedorismo com premissas feministas que visa não só o crescimento pessoal e coletivo, mas que também visa o lucro, aliado a práticas sociais de crescimento e desenvolvimento de outras mulheres.
A prática empreendedora precisa ser observada e estudada caso a caso, sob novas bases. Violina Rindova, Daved Barry e David Ketchen (2009) argumentam que o desejo de emancipação tem sido a mola propulsora e motivadora para que os indivíduos invistam na prática empreendedora. Sem dúvida, o desejo em emancipar-se parece uma pauta importante no cerne do debate feminista, com os devidos questionamentos e aprofundamentos inescapáveis para todas as mudanças de paradigma. É preciso ponderar, inclusive, se as mulheres envoltas sob o escopo de empreendedoras estariam mais assertivamente observadas pela economia feminista, já que a mesma se propõe a repensar as relações econômicas e sociais, a partir de valores além do financeiro e do lucro, visando ponderar e reconfigurar o pensamento econômico (Simon, 2020), ou se pode falar, em muitos casos, especialmente para mulheres de baixa renda, da inescusabilidade da sobrevivência, da necessidade. Importa validar ainda que o intuito da pesquisa é o de observar o fenômeno de forma crítica, todavia apontar apenas para fatores negativos e/ou positivos que empobrecem o debate. Trata-se de um tema e conceito complexo, escorregadio.
Dessa forma, é preciso ouvir as perspectivas dessas mulheres, entender suas narrativas e percursos, para avaliar, de forma preliminar, se o empreendedorismo pode ser feminista.
2.1 Do consumo às economias barrocas
A lógica de produção e consumo vem sendo pautada na atomização do mercado, isto é, numa reformulação do Estado e na supervalorização do indivíduo como o responsável pelo seu próprio sucesso. Pierre Dardot e Christian Laval (2016) entendem o neoliberalismo como uma racionalidade que depende da atuação ativa do Estado e que atravessa diferentes esferas da vida social, influenciando o comportamento individual, a organização das instituições e as formas como os problemas sociais são compreendidos e enfrentados. Visando fabricar sujeitos que almejam a competitividade e se autorresponsabilizam, “consiste em promover uma ‘reação em cadeia’, produzindo ‘sujeitos empreendedores’ que, por sua vez, reproduzem, ampliam e reforçam as relações de competição entre eles” (Dardot; Laval, 2016, p. 328 – grifos dos autores). Esse é um dos grandes ganhos da reflexão dos autores, que partem do conceito de governamentalidade de Foucault para pensar o neoliberalismo. Os discursos de empreendedorismo e do empoderamento feminino são exemplos atuais deste processo.
Sobre isso, Verónica Gago (2018, p.238) salienta que “a chave foucaultiana é justamente esta: a força do neoliberalismo como governamentalidade é incluir a ‘liberdade’, essa ideia que modernamente colocava em perigo toda ordem, inclusive dentro do próprio núcleo de um novo dispositivo de ordem livre”. Na obra “A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular”, Gago (2018) reflete sobre a conexão entre os chamados “governos progressistas”, movimentos sociais e a financeirização da vida popular, que forjou um cenário no qual a produção de direitos e a inclusão social são mediados através de aspectos financeiros e do consumo. E se pauta no debate em torno da economia informal e dos bairros periféricos, em Buenos Aires, refletindo sobre como o neoliberalismo se fixa nas subjetividades populares e observa a sua manutenção na América Latina. A pesquisa se baseia especialmente no conceito de “economias barrocas” forjado pela autora para pensar as lógicas empreendedoras destas mulheres.
Gago analisa o neoliberalismo sob duas topologias: a de cima para baixo e a de baixo para cima. A de cima para baixo observa os agentes dominantes como os governos, corporações e organismos internacionais. Já o de baixo para cima “é a proliferação de modos de vida que reorganizam as noções de liberdade, cálculo e obediência, projetando uma nova racionalidade afetiva coletiva.” (Gago, 2018, p. 15). Ao refletir que o neoliberalismo não vem só “de cima”, a autora afirma que o regime neoliberal se faz persistente justamente porque consegue expropriar vidas e vivências que operam produzindo valor, tirando recursos onde não existem. Dessa forma, a pesquisadora observa que “o neoliberalismo está enraizado em territórios e fortalecido nas subjetividades populares, se expandido e proliferando pela organização das economias formais” (Gago, 2018, p. 17). Importa destacar que Gago propõe uma abordagem metodológica atenta às práticas de sociabilização próprias das classes populares, mostrando que essas práticas também operam a partir de subjetividades que podem ser compreendidas como neoliberais.
Nessa perspectiva, Luci Cavallero (2020) evidencia que a abordagem de Gago, sob a ótica da crise que atravessa o neoliberalismo, é argumentada uma perda de legitimidade no campo político e institucional do neoliberalismo, sobretudo em países com governos ditos progressistas, evidenciando também as transformações que o sistema capitalista global experimenta em decorrência da própria crise neoliberal. Todavia, o neoliberalismo segue persistindo e se incorpora de forma efetiva como parte integrante das ações coletivas de ordem popular que, muitas vezes, emergiram o contestando (Gago, 2018, p. 14).
É nesta perspectiva que Gago (٢٠١٨) reflete sobre o conceito supracitado de “economias barrocas” e propõe “pensar essas ensamblagens como economias barrocas para conceituar um tipo de articulação de economias que misturam lógicas e racionalidades geralmente vistas como incompatíveis pelas teorias econômicas e políticas” (Gago, ٢٠١٨, p. ٢٩). A seguir, a autora define o que seria uma economia barroca latinoamericana, que “persiste como conjunto de modos entrelaçados de fazer, pensar, perceber, lutar, trabalhar, que supõe a sobreposição de termos não reconciliados e em permanente recriação” (Gago, 2018, p. 23).
Neste âmbito, o debate sobre as estratégias de elementos associados às empreendedoras ou microempresárias com progresso popular ligadas não somente por vínculos familiar, territorial e de gênero, ganha corpo e inclui também formatos contratuais não tradicionais (Gago, 2018, p. 23-24). Verónica Gago soma a essa perspectiva outros elementos que compõe a economia barroca latino-americana, primeiramente o mercado informal como elemento fundador, isto é, esse tipo de atividade econômica lança mão de meios não tradicionais, sejam produtivos, comerciais e/ou relacionais, de dinâmicas sociais específicas que permite que elementos heterogêneos afetem a criação do valor, forjando novas maneiras de obter e conferir valor, desenvolvendo mecanismos de reconhecimento e inscrição institucional socialmente legitimados. A autora destaca também o caráter comunitário, fator que é corroborado pelo Sebrae (2024) na perspectiva brasileira. Raquel Aguilar (2019) apresenta um pensamento semelhante sobre essa lógica, ao falar da reprodução da vida comunitária, que vai além da lógica capitalista e da acumulação, destacando práticas que garantem a subsistência por meio da cooperação, reciprocidade e interdependência entre pessoas e territórios. Uma perspectiva que valoriza os saberes indígenas, populares e femininos como potências criativas que escapam às relações coloniais e ao mercado formal.
Ao observar as estratégias de sobrevivência, Gago (2018) e Aguillar (2019) observam também a forte feminização dessa dinâmica. Este processo se deve à maior presença de mulheres no mercado informal e às mudanças delas para a esfera pública trazendo consigo características específicas da domesticidade, do saber e fazer do trabalho doméstico para o meio pelo qual se irá garantir a subsistência e, portanto, possibilitando o surgimento de uma reorganização do papel atribuído às mulheres, garantindo, em especial, um maior intercâmbio entre lar e trabalho (Federici, 2017).
Ao analisar contextos de vulnerabilidade social em suas pesquisas empíricas, Gago (2018) forjou um olhar distinto ao observar as pessoas em situação de extrema precariedade como “agentes em resistência”, e os retrata de certa forma como protagonistas de movimentos que questionam a ordem estabelecida, com características anti-hegemônicas. Dessa forma, a autora refere ainda que essas resistências e questionamentos nem sempre ocorrem pelas vias políticas tradicionais, por exemplo. E pontua que esta contestação pode se dar, inclusive, na aspiração de desejos, pela ironia e nas formas de enfrentar a expropriação social e estatal.
Dessa forma, Verónica Gago (2018), Luci Cavallero (2020) e Raquel Aguilar (2019) corroboram sobre observar o mercado informal latino americano, mesmo considerando toda a sua precariedade e exploração. Ao ouvir as pessoas migrantes em La Salada, Gago (2018) se deparou com outro olhar, a perspectiva de quem decide não se juntar ao sistema dominante e resiste de formas que destoam das que o mercado formal impõe. É sob essa outra linha de raciocínio que a pesquisa se debruça: a de ouvir e refletir sob a perspectiva dessas mulheres.
2.1.1 Moda como resistência
Como observado, o neoliberalismo enquanto ideologia econômica defende a desregulamentação dos mercados, desde a privatização de serviços públicos até a “atomização” e redução do papel do Estado na economia. David Harvey (2005) argumenta que o neoliberalismo promove a acumulação por despossessão, ou seja, a transferência de riqueza das camadas populares para as elites. Nesse cenário, as indústrias criativas, incluindo a moda, são frequentemente capturadas pelas grandes corporações, deixando pouco espaço para a diversidade e a inovação oriundas das periferias, por exemplo.
Num sentido inverso, a moda também tem sido um poderoso instrumento de resistência e expressão para as mulheres ao longo da história. Desde a escolha de vestimentas que desafiam normas sociais até o uso de roupas como símbolos de movimentos políticos, a moda tem desempenhado um papel crucial na luta pela igualdade e na reivindicação de identidade. Ela também pode ajudar a perpetuar ou desafiar normas de gênero e beleza - corpos até então considerados abjetos e marginalizados (Barreto Januário, 2022) vem se tornando nichos de consumo, como é exemplo a moda plus-size e genderless, conhecidas como moda sem gênero. Ícones como Coco Chanel e Marlene Dietrich popularizaram o estilo andrógino, promovendo a ideia de que a moda pode transcender as barreiras de gênero (Jenkins, 2006).
Não é de hoje que a moda vem sendo usada como bandeira de diferenciação, identidade ou protesto (Kaiser; Green 2022). A diversidade na moda celebra a riqueza das diferenças humanas, o que inclui não apenas a variedade de corpos, mas também a diversidade de culturas, identidades de gênero, origens étnico-raciais, idades, dentre outras. Cabe ressaltar que desde o movimento sufragistas, que fazia uso de faixas e broches com as cores do movimento (branco, roxo e verde). Passando pelas feministas estadunidenses de segunda onda, com a adoção de roupas simples e utilitárias, como jeans, numa simbolização de igualdade. Até denúncias, como atrizes adeptas ao Movimento Me Too que se vestiram de preto no tapete vermelho como forma de protesto contra o assédio sexual e a desigualdade de gênero na indústria fílmica. Tais exemplos reforçam que a moda não é apenas uma questão estética, de estilo ou economia, mas uma poderosa ferramenta de comunicação e resistência.
Apesar das complexidades e incoerências que o tema faz emergir, o empreendedorismo na moda, especialmente quando estamos falando de mulheres de baixa renda, segue repleto de desafios. Estes obstáculos vão desde barreiras que incluem falta de acesso ao crédito, educação inexistente ou inadequada em gestão empresarial até as desigualdades e os preconceitos de gênero. Aline Oliveira et al. (2021) realizou um estudo de caso sobre empreendedoras de baixa renda no sul do Brasil e observou que a moda não só incide sobre a autoestima das mulheres, mas também contribui para a formação de redes de apoio comunitário.
Dessa forma, Simone Machado e Ketle Paes (1999) ao observarem o empreendedorismo de mulheres no Brasil, apontam que os desafios podem ser facilitados ou superados através de políticas públicas que promovam a inclusão financeira e programas de capacitação específicos para mulheres, especialmente se forem observados numa lógica interseccional (Collins; Bilge, 2021), já que a maioria das mulheres no mercado informal são negras e periféricas. A predominância desse grupo de mulheres na informalidade pode e deve ser compreendida por meio do conceito de interseccionalidade, ao observar como as diferentes formas de discriminação e opressão (como racismo, sexismo e classismo) se sobrepõem e se intensificam mutuamente. A falta de políticas públicas eficientes, bem como o racismo estrutural e institucional, são propulsores desta realidade.
3 METODOLOGIA
A pesquisa parte de um fazer científico abarcado pelas epistemologias feministas, que visa uma transmissão de conhecimento e produção científica calcada por saberes situados. Optou-se por uma pesquisa exploratória e empírica de cunho qualitativo, utilizando como método entrevistas narrativas (Muylaert, 2014), que tratam de uma coleta de dados concentrada em obter relatos detalhados e contextualizados sobre experiências vividas pelas entrevistadas. Visando compreender de forma mais profunda a perspectiva destas mulheres sobre o significado do empreendedorismo.
As entrevistas narrativas se caracterizam como ferramentas não estruturadas, visando a profundidade de aspectos específicos, a partir das quais emergem histórias de vida, tanto do entrevistado como das entrecruzadas no contexto situacional (Muylaert, 2014). Esse tipo de entrevista visa encorajar e estimular o sujeito entrevistado (informante) a contar algo sobre algum acontecimento importante de sua vida e do contexto social. O acontecimento e contexto norteador da pesquisa foram: o ato de empreender (percursos e trajetórias) e as suas percepções sobre empreendedorismo. A entrevista narrativa tem como base a ideia de reconstruir acontecimentos sociais a partir do ponto de vista dos informantes, a influência do entrevistador nas narrativas deve ser mínima. Nesse caso, empregamos a comunicação cotidiana de contar e escutar histórias (Muylaert, 2014, p. 184).
Para chegar às informantes, foi iniciado um mapeamento recolhendo dados da prefeitura do Recife, a Feira de Boa Viagem contava com 178 barracas, agrupadas em 11 segmentos: couro; bordado; confecção; moda praia; camiseta; bijuteria; madeira; cerâmica; brinquedos; tapeçaria e artes plásticas (Recife, 2018). Fizemos uma primeira seleção observando as barracas comandadas por mulheres, que eram 144 segundo a prefeitura. Destas, 83 se identificaram como pretas ou pardas. Tal conclusão demonstra que o recorte racial persiste nas relações de trabalho, especialmente associadas à informalidade, e segue impactando o acesso ao emprego formal, autonomia e liberdade econômica.
Ao observar o mundo do trabalho informal, é pertinente ponderar que, segundo a ONU Mulheres (2020) 54% das mulheres na América Latina tiram seu sustento do setor informal. Essa realidade foi ampliada pela pandemia do coronavírus, deflagrada em 2020, na qual as mulheres ficaram mais sujeitas aos impactos econômicos. Segundo o IBGE (2019), 41,3% da população tira sua renda do trabalho informal. Sob a ótica do marcador de gênero, o trabalho informal sobe um pouco da média geral e representa 42% do emprego feminino. Já o trabalho masculino representa menos da metade, 20%. No tocante à questão da renda, se compararmos aos homens brancos, as mulheres pretas ou pardas recebem menos da metade dos rendimentos (44,4%). É pertinente destacar também que 47,8% do corpo de trabalho informal feminino são de mulheres negras e pardas. Ao observar estes dados, é possível afirmar que o mercado informal tem gênero, cor e classe social numa perspectiva interseccional (Collins; Bilge, 2021). São mulheres racializadas, em sua maioria, e vulneráveis economicamente.
A pesquisa observou três segmentos: moda, alimentação e artesanato, todavia para este artigo apresentaremos os resultados das entrevistas realizadas por mulheres que trabalham com moda (confecção, bordado, camiseta, moda praia, bijuteria). Os segmentos foram selecionados ao entendermos que 92 das 144 barracas comandadas por mulheres diversas em suas interseccionalidades, estavam distribuídas nestes bens e serviços, elementos que se adequam à divisão social do trabalho e do artesanato como ofício feminino (Soares Júnior; De Carvalho, 2021), associados às premissas patriarcais dos papéis de gênero.
A partir do universo recortado da amostra, foram selecionadas 30 mulheres utilizando o método bola de neve (Vinuto, 2014), que trata de uma amostra não probabilística que utiliza cadeias de referência, isto é, a primeira entrevistada indica a próxima e assim sucessivamente. Tomamos como amostra para o diálogo em profundidade, 10 mulheres de cada segmento analisado (moda, artesanato e alimentação).
Cabe ressaltar que durante a entrevista narrativa não houveram questionamentos diretos sobre raça/etnia, a identidade racial foi algo que emergiu de suas falas, especialmente notada, no entendimento delas, para a justificativa sobre a falta de oportunidade no mercado formal. As entrevistadas foram nomeadas por letras em organização alfabética na ordem da realização das entrevistas, conforme a tabela abaixo:
Tabela 1. Descrição entrevistadas

Fonte: elaboração própria (2024).
A análise dos dados foi realizada por meio de interpretação das informações das narrativas apresentadas com base no método de análise temática (AT) (Clarke; Braun, 2017). A análise temática é uma abordagem de análise de dados qualitativos frequentemente usada na pesquisa social e na análise de conteúdo. Segundo Clarke e Braun (2017), a análise temática é um método sistemático para identificar, analisar e relatar padrões temáticos (temas ou categorias) dentro de um conjunto de dados qualitativos. O método ajuda a identificar padrões, tendências e insights nos dados qualitativos, permitindo uma compreensão mais profunda do fenômeno estudado.
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Após uma leitura flutuante das transcrições e escuta atenta das falas das entrevistadas, alguns pontos temáticos se tornaram mais evidentes em suas narrativas. Observamos duas macro categorias de análise proeminentes nas falas nas narrativas das entrevistadas.
1) Sobre as motivações para o empreendedorismo: foi possível perceber dois tipos de causas para o percurso das mulheres até o empreendedorismo, que acabaram por tipificar o ato de empreender: 1. por necessidade; 2. por oportunidade; 3. ética feminina do cuidado.
1.1) Empreendedorismo por necessidade: ocorre quando uma pessoa inicia um negócio porque não tem outras opções viáveis de emprego ou de geração de renda (Nassif; Ghobril; Amaral, 2009). Mesmo que a abordagem do trabalho seja qualitativa, chama a atenção o fato de que, das 10 mulheres, sete evidenciaram a falta de oportunidades no mercado formal. O dado reforça os números apresentados pelo IBGE (2019) e pela ONU Mulheres (2020) de que o mercado informal denota da necessidade de sobrevivência, que acaba resvalando na informalidade. E demonstra a narrativa falaciosa e romantizada por trás de muitas iniciativas empreendedoras. A maioria delas gostaria da segurança dos direitos trabalhistas, já outras observam que encontraram formas próprias de sustento e de escape do sistema posto.
1.2) Empreendedorismo de oportunidade: apenas duas mulheres utilizaram em suas narrativas, com muita ênfase, a oportunidade como elemento do empreendedorismo. A entrevistada G, por ser costureira e artesã, entendeu como oportunidade de trabalhar para si e fazer uma renda maior, mesmo que instável. Já a empreendedora F, relembrou que começou a confeccionar roupas de praia nas horas vagas e a renda retirada desta atividade passou a ser maior que o salário do emprego formal que detinha, ela buscou formação no Sebrae e além das vendas na feirinha, tem uma loja virtual.
1.3) Ética feminina do cuidado: foi possível notar o cuidado como fator motivador para empreender. Carol Gilligan (2013), ao refletir sobre a ética do cuidado, reconhece a importância dos sentimentos, das emoções e da empatia no desenvolvimento moral das pessoas. A ética feminina do cuidado é baseada na perspectiva clássica na qual se valoriza as relações humanas, papel central que historicamente tem sido impingido às mulheres. De forma evidente, a maioria das mulheres falou do cuidado com os filhos, parentes e a casa como fator preponderante para o empreendedorismo como caminho. B evidenciou:
Eu precisava comer e alimentar a família, mas não tinha vaga na creche ou com quem deixar. Dei meu jeito e comecei a me virar aqui na feirinha, assim quando ele tá na escola eu costuro e de tarde e à noite ele vem comigo.
A fala escancara a sobrecarga doméstica/privada e pública, bem como o papel solitário de cuidadora. Passagens similares foram notadas na fala de quase a totalidade das mulheres.
2) Percepções sobre o empreendedorismo: essa categoria foi subdividida nas seguintes narrativas: 1. empreendedorismo como resistência; 2. empreendedorismo com premissas feministas: moda como empoderamento; 3. afroempreendedorismo.
2.1) Empreendedorismo como resistência: nas narrativas das mulheres empreendedoras, houve um elemento que foi evidenciado, o fato de que a maioria delas, seja compreendidas no empreendedorismo por necessidade seja por oportunidade, elas se veem como “agentes em resistência” (Gago, 2018). A empreendedora G, com uma entonação enérgica, diz:
Estamos aqui por sobrevivência sim, mas também somos insistência. Dizem que brasileiro não desiste nunca, mas somos nós, as mulheres pobres que não desistem. Eles não querem gente como a gente nas empresas chiques deles. Eu me virei e revirei várias vezes e o meu ponto [de venda] foi o que me tirou da lama, alimentar meus filhos, ter uma vida decente.
Além de citar a questão de classe no discurso, G gesticula com os braços mostrando sua cor, sua pele. Fica evidente a compreensão dela de que a raça é um marcador importante para o lugar que ela ocupa socialmente, mas especialmente o que deixa de ocupar (hooks, 2019). Seguindo a lógica elencada por Gago (2018), G se enxerga como agente de resistência, que mesmo ciente das interseccionalidades que a excluem, ela “se vira” e fomenta uma lógica própria, que enfrenta o modelo posto. Ela complementa: “[...] tenho meu MEI, trabalho pra mim e ainda tenho tudo certinho”, referindo-se aos benefícios previdenciários advindos de políticas públicas para quem empreende de forma individual. Seguindo esta lógica, “A” complementa: “Aqui eu me encontrei, fiz amigas e parceiras. Eu era invisível no meu trabalho de carteira. Agora faço parte disso aqui, ó, sou alguém”. Ela fala de reconhecimento e pertencimento, mas acima de tudo, de ser sujeita (Gago, 2018).
2.2) Empreendedorismo com premissas feministas - moda como empoderamento: seja nas entrevistas propriamente ditas, seja no ato de indicação ou enquanto rede de negócios, um fator se tornou evidente – mulheres que trabalham em rede. Há uma economia de recomendação entre elas, e algumas falam manifestamente dessa economia entre mulheres. Tal perspectiva se evidencia no trecho de fala da empreendedora A, citado acima. Ainda sobre isso, a empreendedora I, ao falar sobre elementos que complementariam as peças de roupa que ela tentava vender, diz à cliente: “Posso te mostrar o trabalho de uma colega. Tem um cara ali que também vende, mas mulé tem que ajudar mulé, né não?”. Em outro momento, a feirante B chama a entrevistadora: “Moça, eu te levo ali na empreendedora J, ela tem esses acessórios, uns brincos dessa cor [apontando para a blusa]. Sempre levo minhas clientes nela, porque ela tem coisas lindas”. Já a entrevistada C é enfática e argumenta:
[...] essas barracas sempre foram chefiadas por mulheres, especialmente na parte de comida e roupa, mas tem muito feirante homem e de fora que chega com coisas da Shopee e quer dominar a feirinha. Aqui não, a gente se junta e manda ver. Uma leva pra outra.
Importa observar que apenas uma entrevistada, a empreendedora G, utilizou a palavra “feminista”. Ela diz:
Me disseram que sou feminista, porque não me baixo pra hômi. Porque tomei a frente em organizar a gente pra se ajudar. Não sei se sou isso, mas sei que me garanto muito mais sendo mulher do que qualquer macho desse aí. E se isso é ser uma mulher que se junta com as outras, somos quase todas aqui assim.
Ficou explícito um trabalho que é individual e coletivo ao mesmo tempo, um processo que escapa às narrativas individualistas da lógica neoliberal. Apesar de apenas G usar a palavra feminismo, ficou evidente que elas se unem por se reconhecerem, com suas dores e talentos, mesmo nas diferenças. Foi possível observar premissas feministas na forma de trabalharem, especialmente nas redes de negócio (Barreto Januário, 2022).
Somado a isso, ao perceber esse modelo de trabalho em rede, coletivo, e majoritariamente de mulheres negras, pardas e periféricas – especialmente no recorte de moda e alimentação, relembra o que observa bell hooks (2019) sobre o valor do verdadeiro sentido de empoderamento, que envolve mudanças sociais a partir de uma perspectiva antirracista, antielitista e contra o sexismo, promovendo transformações nas instituições sociais e na consciência individual. O reconhecimento de que suas identidades raciais inferem em diversos obstáculos para a prática e chegada ao empreendedorismo revela a consciência que elas têm do racismo institucional presente na formalidade. Sobre isso, Jurema Werneck (2016, p. 541-542) observa que esse tipo de racismo “garante a exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados, atuando como alavanca importante da exclusão diferenciada de diferentes sujeitos nesses grupos”.
As empreendedoras de moda, em sua totalidade, usaram o termo “empoderamento”. Sobre isso, foi possível inferir que essas falas se subdividem em duas lógicas distintas. Primeiramente, algumas delas dialogam com o feminismo de mercado (Goldman, et al., 1991; Barreto Januário, 2022), numa lógica neoliberal e superficial, isto é, relatando como o mercado incorporou premissas feministas como argumento de venda. Já outras tratavam a moda como elemento de resistência (Gago, 2018), evocando o caráter de rede que envolve essas mulheres, seja confeccionando, produzindo ou vendendo as mercadorias. A entrevistada C argumenta que “a moda que a gente vende aqui é uma forma de poder, a gente ganha o nosso pão e ainda vende o que a gente usa e gosta e trabalha com a autoestima delas”. A fala sugere que elas veem a moda como um veículo de empoderamento, especialmente quando se percebem enquanto sujeitas que foram excluídas pela indústria da moda hegemônica.
2.3) Afroempreendedorismo: ao entender que as “raízes do empreendedorismo afro-brasileiro encontram-se na lenta erosão do sistema escravista” (Nogueira; Mick, 2013, p. 101), é possível compreender a densa participação das mulheres pretas no mercado informal. A empreendedora D diz: “Aqui a moda da comunidade é exaltada, minha barraca é a moda das pretas e um monte de gringa compra”. Sobre isso, a entrevistada I observou: “Olha, as minhas estampas e roupas, é moda de preto. É com a minha cultura que ganho o pão”. Além do orgulho da identidade racial e de perceber as oportunidades acionadas pelo debate social em torno da cultura negra e sua monetização. Pode-se sugerir também que há uma lógica de aquilombamento. “Aquilombar como estratégia de resistência e coletividade e designar experiências de organização e intervenção social protagonizadas pela população negra na atualidade” (Souto, 2020, p. 141).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa dialogou com mulheres empreendedoras, buscando compreender suas narrativas e percursos rumo ao empreendedorismo. Foi possível notar que a maioria delas são motivadas pelo empreendedorismo por necessidade. Mesmo que em casos mais específicos, em que seus talentos lhe conferiram oportunidades de melhoria de renda e qualidade de vida.
A maioria delas alega como vantagem principal a flexibilidade que o trabalho confere, associada à ética feminina do cuidado (Gilligan, 2013), que implica o sustento e cuidado com filhos e família. A sobrecarga de trabalho e as assimetrias de gênero passam ao lado de forma quase que naturalizada, o silêncio sobre isso denota a cortina de fumaça do machismo, estando também esta realidade atrelada a uma lógica interseccional (Collins; Bilge, 2021), como demonstram as pesquisas censitárias (IBGE, 2019). O recorte da pesquisa se demonstrou abarcado por uma totalidade de mulheres pretas e pardas, provenientes de bairros periféricos da capital pernambucana. Num forte sentido afroempreendedor.
Apesar da criticidade que deve ser conferida ao mercado informal, há uma narrativa fortemente demarcada pela maioria delas que se veem como “agentes em resistência” (Gago, 2018). Através de falas críticas e potentes sobre como o mercado formal opera, observam o cunho racista, classista e que as trata como cidadãs de segunda classe (Emecheta, 2019). Com efeito, não parece haver, da parte delas, uma visão romantizada do ato de empreender. Apontaram a falta de crédito, instabilidade e insegurança como fatores negativos, todavia também chamam a atenção para a flexibilidade que a atividade confere e o reconhecimento de suas identidades e talentos por seus pares. Processo que se assemelha à perspectiva das economias barrocas observada por Gago (2018).
Outro ponto foi a ordem coletiva e a organicidade dos trabalhos. A feirinha possui uma demarcação e lógica estrutural que, aparentemente, forja uma lógica individualista. Todavia, as empreendedoras operam numa intensa economia de recomendação, bem como numa dinâmica de rede e protetiva. Foi possível notar que há valores e narrativas associadas aos feminismos abarcadas pelo desenvolvimento comunitário entre mulheres (Oliveira et al, 2021). É possível sugerir que há a possibilidade de associar uma lógica de resistência, potência e coletividade própria das pautas feministas ao empreendedorismo praticado por essas mulheres, numa ideia de aquilombamento (Souto, 2020), potente e necessário. Não observamos que o empreendedorismo poderia ser efetivamente feminista, mas de premissas feministas. A pesquisa deixa clara a necessidade de escuta crítica de grupos historicamente invisibilizados, permitindo trazer inferências de vivências e realidades socialmente distintas.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo apoio à pesquisa por meio da concessão da bolsa de produtividade em pesquisa.
CRÉDITO DE AUTORIA
Concepção e elaboração do manuscrito; Coleta de dados; Análise de dados; Discussão dos resultados; Revisão e aprovação: S.M.B. Barreto Januário
REFERÊNCIAS
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