Revolução grisalha: identidade e aparência feminina a partir da experiência de Daniela De Bonis Coutinho

Revolution gray: female identity and appearance based on the experience of Daniela De Bonis Coutinho

Revolución gris: identidad y apariencia femenina a partir de la experiencia de Daniela De Bonis Coutinho

Bárbara Santos Aires

Mestre, Universidade de São Paulo / barbara.aires@usp.br
Orcid: 0000-0003-1820-8734/ Lattes:  https://lattes.cnpq.br/1130166055282192


Andrea Lopes

Doutora, Universidade de São Paulo / andrealopes@usp.br
Orcid: 0000-0002-7680-8618/ Lattes: http://lattes.cnpq.br/1418645481026778

Entrevista realizada online pela plataforma Google Meet, em São Paulo, nos dias 05, 08 e 09 de setembro de 2022.

Enviado: 29/01/2024 // Aceito: 19/XX/2024

APRESENTAÇÃO

Daniela De Bonis Coutinho é a fundadora e administradora da comunidade fechada no Facebook Brasil “Grisalhas Assumidas e em Transição”. A iniciativa foi criada em 2016, quando passava pelo processo de transição da cor dos cabelos aos 36 anos. O intuito foi reunir mulheres que vivenciavam a mesma experiência, visando compartilhar histórias, desafios e fomentar apoio mútuo. Daniela se considera uma ativista do autocuidado feminino na maturidade e da construção da aparência grisalha.

Atualmente, a comunidade reúne cerca de 125,8 mil participantes. A visibilidade ocasionou a certificação do Facebook e a seleção para participar de diversos programas da Meta Plataforms, conglomerado de tecnologia e mídia social.

As publicações na comunidade retratam formas de construção da aparência feminina na contemporaneidade. Entende-se por aparência o “conjunto de aspectos físicos, comportamentais, atitudinais, estéticos e simbólicos construídos e externalizados pelos indivíduos ou grupos, compondo sua apresentação pessoal ou coletiva” (YOKOMIZO; LOPES, 2019, p. 239). Outra observação é o surgimento de um movimento social feminino de caráter identitário, político e individual, denominado Revolução Grisalha.

Aires e Lopes (2023) apontam que este movimento é composto por mulheres de diversas idades, perfis e nacionalidades. As principais bandeiras são o rompimento e a libertação. Neves (2016) assinala que as participantes questionam o chamado escravizante processo de tingimento. Envolve uma resistência emancipatória, a partir de escolhas individuais (FIALHO; MIRANDA, 2021). A construção e a ressignificação da aparência são utilizadas como caminho e linguagem.

As ações que desafiam os padrões estéticos relacionados aos mitos em torno da noção de beleza, segundo Naomi Wolf (1992, p. 11-24), envolvem o rompimento da obrigação social de manter um tipo de beleza idealizado, composto por um corpo magro, definido e jovem. As mulheres, em geral, são os principais alvos dessas crenças. Esta é uma dinâmica social cultivada pela indústria da moda (LIPOVETSKY; SERROY, 2015).

No entanto, na contemporaneidade, edifica-se um debate sobre o etarismo, ou preconceito e discriminação com base na idade cronológica, especialmente voltado para as pessoas idosas (DADALTO; MASCARENHAS; MATOS, 2020). Ainda, mobiliza estereótipos do envelhecimento e da velhice (ASSIS et al, 2023).

O presente texto deriva de um processo reflexivo, que envolveu a discussão em grupo focal das respostas inicialmente emitidas pela entrevistada. Com sua permissão, as entrevistadoras editaram e ampliaram a estrutura argumentativa, a partir da análise teórico-conceitual da experiência compartilhada.

ENTREVISTA

Quais são as maiores dificuldades em assumir os cabelos brancos e grisalhos?

Passar pela transição da cor, porque ainda choca as pessoas. Eu parei de pintar o cabelo quando engravidei. Ao final da licença maternidade, eu estava na transição do castanho para o grisalho. O meu gestor disse: “Eu te conheço há bastante tempo, conheço seu trabalho, mas cabelo branco não dá. Você precisa pintar esse cabelo”. Então, a transição que incomoda muito. Acho que ela é o que impede a maioria das pessoas de assumirem os cabelos brancos.


Que tipos de preconceitos e enfrentamentos as participantes da comunidade que você administra relatam enfrentar?

Elas relatam que quando estão no supermercado ou no banco ouvem: “o preferencial é ali”. Isso para mulheres de 30 e 40 anos. São ofertados lugares no ônibus para elas se sentarem. Relatam preconceito na hora de procurar emprego. Mulheres são chamadas de velhas, quase como um xingamento, só em função da cor do cabelo. Quando meu filho nasceu, uma enfermeira me chamou de avó dele porque eu sou grisalha. Eu tinha 41 anos na época.

Com a pandemia pela Covid-19 e o isolamento social, houve um aumento no número de participantes no grupo?

Sim, aumentou bastante, principalmente para as pessoas que recorriam ao salão. Na pandemia se sentiram obrigadas a manter os cabelos grisalhos, ou se deram a chance de experimentar. Existem mulheres que já tinham vontade, mas não tinham coragem.


Existe alguma diferença entre os termos adotar e assumir cabelo branco e grisalho?

Eu entendo que adotar é quando você pega algo que não é seu para você. Eu acho que é assumir, porque quando você pinta o cabelo, você esconde o cabelo branco, mas quando o deixa vir, você está assumindo que tem cabelo branco. Essa é a base do movimento revolução grisalha, libertar-se para fazer escolhas a respeito de si.

Assumir os cabelos brancos envolve outras mudanças na aparência?

Eu acho que a forma de olhar a minha aparência ficou mais leve, menos crítica. Eu também percebo essa transformação nas participantes da comunidade, em relação à autoaceitação.


Transicionar trás sentimento de autenticidade?

Hoje eu me sinto mais dona de mim: “eu não preciso esconder” ou “eu não tenho segredos”, pois “eu sou verdadeira”. Assumir os cabelos grisalhos me ajudou a materializar o amadurecimento de quem eu sou hoje, quem eu me tornei ao longo do meu processo de envelhecimento. Eu transmito mais confiança porque não estou atrás de uma maquiagem superpesada ou de uma tinta no cabelo.

Cabelo branco está associado com desleixo ou decadência, envelhecimento e/ou velhice?

Durante a transição, as pessoas me falam: “eu sou sua amiga e preciso te dizer que você está envelhecida com esse cabelo”; ou, “olha, eu quero te dizer que não está bem para você esse cabelo”. Observo que associam cabelo branco, envelhecimento e velhice e levam ao nível do insulto. Como se velhice fosse um demérito e não uma fase da vida. Há uma alienação quanto ao fato de que o processo de envelhecimento perpassa todas as idades. A negação da velhice e a exaltação do mito da eterna juventude ainda geram uma luta incansável contra nós mesmos.

Ainda existem muitos estereótipos em torno das mulheres grisalhas?

Eu acho que hoje nem tanto. Antes, a gente tinha de forma mais presente no imaginário a figura da vovozinha de cabelos brancos bem curtos tricotando e fazendo bolinho de chuva dentro de casa. Na atualidade houve uma ampliação dessa percepção da aparência e dos espaços vivenciados pelas mulheres mais velhas. Nós estamos relativizando os modelos rígidos e estereótipos da performance do feminino com a crescente veiculação de mulheres cada vez mais jovens e mais ativas assumindo o grisalho e seu próprio processo.

Por outro lado, também existem estereótipos positivos em torno da presença na sociedade desta nova percepção da mulher grisalha?

Eu acho que sim. As pessoas falam: “nossa, você é corajosa por ter deixado o cabelo grisalho”. Independente se a pessoa pinta ou não o cabelo, percebo uma admiração frente às mulheres que assumem e ostentam o cabelo grisalho, sem se preocuparem com quem está olhando. Mas essa nova percepção pode não vir isenta de cobranças e expectativas.

Os estereótipos positivos atribuídos a essas mulheres também criam crenças e expectativas, restringindo ou exaltando novos padrões?

Sim, pois as pessoas dizem: “eu queria muito deixar de pintar o cabelo, mas eu não tenho o seu estilo”. Ou, ainda: “você é um mulherão, você se impõe, fala alto. Mas eu sou assim, pequenininha”. Então, há uma prisão porque entende-se que assumir é precedido por uma série de requisitos. Os estereótipos positivos podem enfraquecer o próprio movimento. Isso é especialmente notável quando eu escuto: “o teu grisalho sempre é mais bonito que o meu”. Em razão dos estereótipos diversos, devemos exercer o ativismo em prol do exercício das subjetividades.

Qual o principal motivo das mulheres da comunidade em parar de tingir e assumir os fios brancos?

meu primeiro motivo foi: “cansei desse negócio de pintar o cabelo. Eu estou exausta dessa rotina”. Passada essa fase, o motivo mudou: “agora eu vou romper, não interessa. Eu sou o que eu quiser, o cabelo é meu, a vida é minha”. Existe um sentimento de rompimento total nesta segunda fase de consciência, quando a gente pensa sobre significados e atitudes que que queremos assumir.


Você entende a expressão revolução grisalha como um movimento social feminino contemporâneo, tanto individual, como coletivo?

Eu não gosto muito de rotular porque acho que quando se fala revolução grisalha eu associo ao ato de queimar o sutiã coletivamente em praça pública. Observo na comunidade que não é bem isso, apesar de entender que o impulso individual e a força feminina de hoje derivam desse contexto de lutas. Eu uso o meu cabelo grisalho porque assim eu decidi e se você não usa o seu, para mim está tudo bem. Não há ditadura do cabelo branco. Eu acho que é muito mais interno, individual, autoconhecimento. Não deixa de ser um ato de militância em causa própria que reverbera em diversas direções, pessoais e coletivas.

Assumir os cabelos brancos e grisalhos trata-se de uma revolução feminina, uma tendência de moda ou um movimento midiático?

Eu considero mais uma revolução feminina: “me engulam porque eu sou assim, essa sou eu, meu cabelo é desse jeito, dessa cor, formato (...) e está tudo certo”. Porém, observo que no âmbito da moda e das mídias ainda muitas mudanças devem acontecer.

O chamado movimento revolução grisalha pode se tratar de um ato de rompimento dos padrões estéticos patriarcais de gênero, de caráter feminino e político?

Sim, porque representa não sucumbir, caso não se queira, aos padrões e procedimentos de beleza. Portanto, é um ato de resistência. O tempo todo as redes sociais e a televisão te mostram que você tem que ser alta, magra e ter 25 anos. Qualquer coisa fora disso é, de fato, um ato de revolução, um ato político, seja no plano coletivo ou individual, os quais se influenciam mutuamente a todo tempo. É também um ato de equidade de gênero. Se o homem pode, por que a mulher não pode? O homem com cabelo grisalho é charmoso, elegante, um bom partido. A mulher com cabelo grisalho atingiu o prazo de vencimento.

Para concluir, trata-se de um ato identitário?

Eu acho que esta é a melhor definição em termos da abrangência do que vivemos; para além da possibilidade de ser um ato midiático, de mercado, de consumo, de moda ou de gênero. Trata-se de algo do tipo: “essa sou eu. Não importa o que você pense. Essa sou eu, não importa se você não gosta do meu cabelo. Está tudo bem. Se você não gosta do meu cabelo, não faça igual com o seu e está tudo certo”.

REFERÊNCIAS

AIRES, B. S.; LOPES, A. “Revolução grisalha: libertação e midiatização”. Revista Mídia e Cotidiano, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 135-159, jan.-abr. 2023.

DADALTO, L.; MASCARENHAS, I. de L.; MATOS, A. C. H. Salvem também os idosos: etarismo e a alocação de recursos na realidade brasileira de combate à COVID. Revista Civilistica.com. Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 1-19, jul. 2020.

ASSIS, C. P., et al. Mitos e estereótipos em periódicos brasileiros de gerontologia: uma revisão de escopo. Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento, v. 28, 2023.

FIALHO, C.; MIRANDA, T. Grisalhas: identidade e liberdade feminina. São Paulo: Barn Editorial, e-book Kindle, 2021.

LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. (2015). A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

NEVES, D. F. das. Mulheres de cabelos brancos: reflexões sobre desvio e padrões de feminilidade. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Velho é lindo! 1.ed. Rio de Janeiro: Editara Civilização Brasileira, 2016. p. 39-78.

WOLF, N. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1992.

YOKOMIZO, P.; LOPES, A. Aparência, uma revisão bibliográfica e proposta conceitual. Revista dObra[s], São Paulo, v. 12, n. 26, p. 227-244, 2019.