O corpo ficcional na moda: a emoção como estratégia diegética para o figurino
Patrícia Azambuja
Doutora, Universidade Federal do Maranhão / patricia.azambuja@ufma.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4092-3868 / http://lattes.cnpq.br/3336806286084085
Ramon Bezerra Costa
Doutor, Universidade Federal do Maranhão / ramon.bezerra@ufma.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2512-9412 / http://lattes.cnpq.br/2433489969000388
Enviado: 31/07/2023 // Aceito: 01/02/2024
O corpo ficcional na moda: a emoção como estratégia diegética para o figurino
RESUMO
A moda indica modos de vida e inspira mudanças, nos comportamentos, no consumo e nas diversas estruturas materiais que circunscrevem a existência humana, particularmente, a relação entre corpo e vestuário. Presume-se, portanto, complementaridade social e emocional, despertada por meio de sistemas simbólicos. O corpo socialmente integrado assimila os simbolismos do coletivo no qual está inserido, situação precursora das diferenças e do elo social. Pressupostos simbólicos também justificados nas produções audiovisuais, que buscam representar sentidos e experiências diversas. Este artigo tem por objetivo compreender as translações entre estes dois pólos: corpo culturalmente vestido e efeitos diegéticos do figurino. Um trabalho de natureza qualitativa que, por meio da análise fílmica, decompõe algumas estratégias narrativas na estrutura dramática da minissérie Transatlântico (Netflix, 2023). Para tanto, utiliza revisão bibliográfica do campo da moda no vestuário e do âmbito das sensibilidades socialmente instituídas, no intuito de vincular efeitos e decorrências destas para a produção audiovisual.
Palavras-chave: moda. análise fílmica. narrativa ficcional.
The fictional body in fashion: emotion as a diegetic strategy for costume designs
ABSTRACT
Fashion indicates ways of life and inspires changes in behavior, consumption and in the various material structures that circumscribe human existence, particularly the relationship between body and clothing. Therefore, social and emotional complementarity is assumed, awakened through symbolic systems. The socially integrated body assimilates the symbolism of the collective in which it is inserted, a precursor situation of differences and social bond. Symbolic assumptions are also justified in audiovisual productions, which seek to represent different meanings and experiences. This article aims to understand the translations between these two poles: culturally clothed body and diegetic effects of costumes. A qualitative work that, through film analysis, decomposes the narrative strategies in the dramatic structure of the miniseries Transatlântico (Netflix, 2023). To do so, it uses a bibliographic review of the field of fashion in clothing and the scope of socially instituted sensibilities, in order to link effects and consequences of these to audiovisual production.
Keywords: fashion. film analysis. fictional narrative.
El cuerpo ficticio de moda: la emoción como estrategia diegética para el diseño de vestuario
RESUMEN
La moda indica modos de vida e inspira cambios de comportamiento, de consumo y de las diversas estructuras materiales que circunscriben la existencia humana, en particular la relación entre el cuerpo y el vestido. Por tanto, se asume la complementariedad social y emocional, despertada a través de los sistemas simbólicos. El cuerpo socialmente integrado asimila la simbología del colectivo en el que se inserta, situación precursora de las diferencias y del vínculo social. Los supuestos simbólicos también se justifican en las producciones audiovisuales, que buscan representar diferentes significados y experiencias. Este artículo tiene como objetivo comprender las traducciones entre estos dos polos: cuerpo culturalmente vestido y efectos diegéticos del vestuario. Un trabajo cualitativo que, a través del análisis fílmico, descompone las estrategias narrativas en la estructura dramática de la miniserie Transatlántico (Netflix, 2023). Para ello, utiliza una revisión bibliográfica del campo de la moda en la indumentaria y el alcance de las sensibilidades socialmente instituidas, con el fin de vincular efectos y consecuencias de éstas a la producción audiovisual.
Palabras clave: moda. analisis de pelicula. narrativa ficticia.
1. MODA, VESTUÁRIO E CORPOS SOCIALMENTE CIRCUNSCRITOS
Este artigo tem como objetivo principal compreender algumas determinações simbólicas estabelecidas por meio do figurino na série Transatlântico (Netflix, 2023). Teorias da moda estão relacionadas aqui ao vestuário como materialização da identidade social dos corpos e elemento fundamental para construção de sentidos nas narrativas ficcionais. As fontes teóricas iniciais buscam introduzir as diferentes estratégias no âmbito dos modos de consumo e de vida, sendo referências fundamentais para compreender alguns parâmetros históricos de representação, tanto sociais quanto narrativos, que serão apreendidos por meio de análise fílmica em trechos da série.
Considerar o conceito de moda instituído após o final da era medieval é fundamental para compreender a transição gradual que acontece entre os modos de vida vinculados às tradições, às estabilidades da herança linear, e os outros modos influenciados pela autonomia estética individual, profundamente marcada pelo capitalismo mercantil, pelas disputas por status social entre burguesia emergente e aristocracia feudal, assim como a instituição da lógica da sedução pela novidade em favor da teoria da distinção social (Svendsen, 2010).
Ao potencializar a criação de novas formas, a estética moderna fica subordinada exclusivamente às inovações, nem sempre dos objetos em si, mas dos modos e hábitos destes. Fazendo referência à filosofia da moda em Georg Simmel (1858-1918), Svendsen (2010, p.41) reafirma as condições cíclica e classista do termo, pois se desenvolve desde então em períodos determinados e orientados pelas demandas das classes mais altas, que rejeitavam tendências já estabelecidas. Tanto a perspectiva sociológica de Simmel no que concerne às distinções entre classes sociais, quanto a tendência psicológica ligada às leis de imitação, acentuam a percepção da moda por seu potencial de simbolizar mudança de ciclos e status: “diferenciação, dirigido às pessoas de nossa própria classe, e [...] imitação, voltado para aquelas da classe acima da nossa” (Svendsen, 2010, p.45). Simmel (2008a, p.164) enfatiza a imitação como uma herança psicológica. “Ela dá ao indivíduo a segurança de que não está sozinho em suas ações [...] o indivíduo se livra do tormento da escolha, fazendo-a aparecer como um produto do grupo”.
Por outro lado, para Simmel (2008b), a moda é um fenômeno recorrente, uma forma de vida entre outras, que se estabelece na divisão de classes, mas possui inúmeras outras configurações, em especial, a necessidade de apoio social, mesmo que sustentado na tensão entre imitação e distinção. Em meio às singularidades psicofisiológicas, o autor justifica entendimentos em torno dos atributos socioculturais dos corpos e das vestes em meio aos processos de interação. Proposições corroboradas por David Le Breton (2019, p.9), ao propor a dimensão simbólica do vínculo social, culturalmente modelada pela diversidade de percepções sensoriais e experiências. O corpo portanto não é resultante simples da fisiologia ou da psicologia: “ambas se incrustam a um simbolismo corporal que lhes confere sentido”.
Estando a vida humana condicionada não apenas à satisfação de necessidades puramente biológicas ou objetivas, Lars Svendsen (2010, p.153) também afirma a capacidade dos corpos em ajustarem-se aos padrões sociais, mesmo quando em repouso, pois “o que pode ser visto como ‘natural’ é tão mutável quanto a própria moda” (Svendsen, 2010, p.95); assim como as convenções da beleza, que são históricas e socialmente variáveis, inclusive simbolizam modos específicos de representação cultural. Para Lúcia Santaella (2004, p.10), o corpo é um sintoma da cultura, socialmente construído. Por meio dele podemos “compreender nosso ser no mundo emotivo, perceptivo e móvel”. Já Helena Katz (2008, p.69), por uma teoria crítica, afirma que o corpo não existe em si, nem mesmo quando está nu. Ele é sempre uma coleção provisória de informações e significados decorrentes: um estado de co-dependência, na medida em que estabelece vínculos e acordos nos ambientes em que habita.
Ao considerar essa condição permanente dos nossos corpos - sua indissociabilidade em relação aos movimentos externos -, é possível pensar as vestes por suas ligações íntimas com a constituição dos sujeitos. Logo, não são peças meramente ornamentais, pois quando usadas incorporam-se ao sujeito, “dialeticamente, moldando sua personalidade e por ela sendo moldada, constituindo um processo de singularização” (Leite e Guerra, 2002, p.30). O ato de vestir-se, como veremos no próximo item, envolve mais que o requisito funcional de proteção do corpo, mas um sistema de significação da cultura na qual os sujeitos estão inseridos, o que nem sempre é um ato consciente, e o figurino encarna essa dinâmica, como será tratado no último item deste estudo.
Autores das mais diversas áreas discutem essas extensões como elementos significantes que precisam ser considerados, quando os sujeitos promovem, por meio do uso de roupas e adereços, rearranjos plásticos no corpo. Em coletividades, o sujeito busca atenção para si com o objetivo de diferenciar-se e dar visibilidade às suas subjetivações: “corpo e roupa tomam parte nas práticas sociais e suas ações na construção identitária do sujeito em suas performances diárias no mundo” (Oliveira, 2009, p.58). Estruturam, assim, suas identidades por meio dessas articulações.
A moda trabalha nesse limiar, quando encadeia os corpos e suas diversas modelações, em diferentes contextos sócio-históricos, “intervenção marcante nas interações sociais quer no âmbito individual, quer no coletivo” (Oliveira, 2009, p.58). Daniela Calanca (2011, p.12) refere-se ao termo como fenômeno social, moldado por alterações cíclicas nos costumes e gostos, isto é, nos modos de ser de uma coletividade.
De fato, há diferentes instâncias para se pensar as roupas nos corpos, como recorte psicossocial, cultural, etnológico, histórico, econômico e, neste trabalho, como objeto da dramaturgia: o figurino tal qual inscrição social, emocional e estética das ficcionalizações (fantásticas ou de fatos históricos). Compreender a moda do vestuário, por consequência suas inscrições na estrutura dramática da ficção, significa mais do que pressupor funcionalidades técnicas situadas no tempo e no espaço, mas compreender os sentidos e valores de uma época. Nessa perspectiva, a roupa será considerada um documento sociocultural e um meio de comunicação: “a imagem do corpo revestida define-se particularmente como uma construção sempre aberta à identidade material, como dimensão mundana da subjetividade” (Calanca, 2011, p.74). Para a autora, não há um corpo puro e simples, algo apartado das tensões sociais, das relações de poder ou das aberturas para as delimitações estilísticas institucionalizadas pelas tradições; tanto na vida cotidiana quanto nas simbologias do corpo nos processos comunicacionais.
Sendo os sistemas simbólicos de comunicação instrumentos potentes para ativar as relações humanas e, ao considerar os autores citados até aqui, também conexões de consumo ou articuladores dos diferentes modos de vida em sociedade, concretiza-se o entendimento dos efeitos performativos da moda para o vestuário, de modelar percepções entre corpos físicos e contextos, bem como, de operar transformações humanas, tecnológicas, culturais e, de forma inevitável, no âmbitos das sensibilidades. Por consequência, estão os corpos sensíveis envolvidos diretamente na configuração dos elos entre indivíduos e seus modos de incorporações socioculturais.
2. EMOÇÕES COMO VÍNCULOS SOCIAIS
Os atributos socioculturais estabelecidos entre corpos e vestes fundamentam-se também no aparato emocional que movimenta os processos de interação. Para David Le Breton (2019, p.9), o simbolismo corporal confere sentido às questões individuais e coletivas, “nutrindo-se ainda da cultura afetiva que o sujeito vive à sua maneira”. De acordo com o autor, “sentimentos e emoções não são estados absolutos”, são referenciados em repertórios também culturais. Este eixo de investigação destaca as emoções humanas como “pensamentos em ação dispostas num sistema de sentidos e valores” (Le Breton, 2019, p.12), subsidiando o que chamou de “cultura afetiva”: um conjunto de configurações simbólicas responsável por modular a compreensão e o compartilhamento das modalidades corporais entre indivíduos. Se o “mundo sem outras pessoas é um mundo sem elo social, destinado à dispersão e à solidão” (Le Breton, 2019, p.42) e a “existência é um fio contínuo de sentimentos mais ou menos vivos ou difusos” (Le Breton, 2019, p.137), as emoções buscam dar conta dos vínculos e das mudanças nas percepções que temos do mundo ao nosso redor, pois são decisões embasadas em significados, valores, expectativas e afetividades.
Maria Claudia Coelho e Claudia Barcellos Rezende (2011, p.113/114) ponderam que as emoções aparecem como objeto de análise e uma categoria de conhecimento responsável pelo entendimento das experiências da vida cotidiana, de natureza coletiva. As autoras enfatizam, por seu viés pragmático, sua ação comunicacional e sua “dimensão micropolítica” (Coelho; Rezende, 2011, p.16/17), a percepção das formas de interação engendradas pelas emoções, analisando modos, contextos e variações distintas a partir das quais os discursos articulados pela emoção são acionados. Assim, buscam entender como se configuram e o que sustentam as trajetórias emocionais desses discursos.
O mesmo pragmatismo imposto pelo sistema de normas sociais que estruturam a interação em diferentes dimensões da vida, para Vladimir Safatle (2019, p.16), tem sustentação no que define como circuito dos afetos: “sistema de reprodução material [que nos faz] assumir certas possibilidades de vida a despeito de outras”. De acordo com o autor, o entendimento de lógicas afetivas e suas corporificações sociais permite analisar efeitos em torno dos comportamentos, assim como, suas reverberações políticas - adesões sociais sustentadas por diferentes regimes de afecção. Percebe-se, neste caso, que as instâncias micropolíticas são amparadas nas sensibilidades e nas capacidades dos corpos de serem afetados, enfim, em um “regime sensível de aisthesis” (Safatle, 2019, p.19). Para Muniz Sodré (2016, p.22), a experiência estética é indissociável da realidade vivida e dos processos comunicacionais, instituindo “um sentimento intenso de comunidade”, conjunção baseada em operadores distintos advindos de campos teóricos também diversos. Safatle (2019, p.20) inclusive sugere que as corporeidades são múltiplas, “algumas são unidades imaginárias, outras são articulações simbólicas, outras são dissociações reais. Cada regime de corporeidade tem seu modo de afecção”. As combinações imaginárias possíveis aos corpos simbólicos vão estar a serviço de sistemas e objetivos diferenciados, neste trabalho objetiva-se compreender a aplicação da moda na dramaturgia.
Roland Barthes (2009), ao analisar a moda por meio de um sistema de signos, identifica três dimensões para o vestuário: vestuário-imagem, vestuário-escrito e vestuário-real - e como atravessamento entre as três, a dimensão representacional ou de significação, fundamental para as relações de consumo. “Barthes insiste, portanto, que é impossível pôr a roupa ‘real’ à frente do discurso da moda” (Svendsen, 2010, p.74). O discurso construído, portanto, é o que subsidia o processo comunicacional e faz a mediação das relações que ali se estabelecem.
Toda a articulação aqui proposta em torno do conceito de moda no vestuário, suas sustentações culturais e a natureza emocional, busca elaborar um arcabouço que permita refletir sobre o figurino na ficção considerando, além de questões produtivas, funcionalistas e históricas, estados psicossociais e emocionais como parâmetros de análise. Sendo as roupas elementos vitais para sustentações tanto individuais quanto coletivas, há de se compreender o contexto e diferentes medidas de representação, ou o que Daniela Calanca (2011, p.129) denomina contexto expressivo-comunicativo, isto é, aquele dirigido ao público e mediado por múltiplas linguagens: “da fotografia à publicidade, do design aos pôsteres de moda e aos desfiles, do teatro, mesmo lírico, ao cinema, do rádio à televisão e, não menos importante, às revistas especializadas”. Calanca (2011, p.144-7) descreve o cinema como indefinível e misterioso, uma maravilha que causa emoção e mistura “o real com a fantasia”. A tecnologia de Hollywood, nos anos 1920, por exemplo, tornou as atrizes e seus corpos vestidos partes indissociáveis da narrativa. Esse conjunto articulado enfatizava o vínculo harmônico entre figurino e cena fílmica, ou entre comportamentos e emoções dos personagens.
Nessa ótica tensionada da moda, o próximo item deste estudo articula as perspectivas levantadas em torno das diferentes expressões do vestir e das possibilidades de transmutar estas percepções em sentimentos expressos nos figurinos cenográficos. Para além da dimensão do sonho na criação de histórias fantásticas, destaca-se aqui relações entre narrativa fílmica, modos de vida e os corpos como experiências emocionais da micropolítica, considerando inclusive o que Vladimir Safatle (2019, p.21) insiste ser um equívoco: “descorporificar o social [ao entender ser] impossível purificar o espaço político de todo afeto”. As conexões a serem observadas entre sujeitos e sociedade em momento histórico específico - Segunda Grande Guerra - são tanto experiências individuais contextualizadas socioculturalmente, como afecções e efeitos diegéticos que visam caracterizar personagens e suas trajetórias ficcionais.
3. JOGOS EMOCIONAIS DOS CORPOS VESTIDOS
NA CENA FICCIONAL
Sendo a narrativa o que dá forma às histórias contadas e a premissa diegética tudo o que supostamente pode ser presumido como verdadeiro na ficção, passa a ser fundamental para esta análise compreender os atravessamentos entre as diferentes maneiras de ser e as escolhas no tocante aos objetos/técnicas que materializam essas existências, fundamentais como efeitos de verossimilhança na conexão entre filme e espectador.
Assim como o corpo tem potencial para inserir o indivíduo no mundo, como “parceiro homogêneo na permanente circulação de sentido [...] e nos ritos de interação” (Le Breton, 2019, p.49/118), a veste complementa essa rede complexa de relações, pois “quando usada, incorpora-se [ao humano], dialeticamente, moldando a sua personalidade e por ela sendo moldada” (Leite e Guerra, 2002, p.23). Já o ato de vestir-se, para Adriana Leite e Lisette Guerra (2002, p.30), simboliza conceitos significativos para cada espaço circunscrito temporalmente. As autoras comparam a história a um jogo vivo, “capaz de transformar a pessoa em personagem, partícipe de um espetáculo aberto. O vestuário incorpora-se tal qual uma segunda pele, com a propriedade de transmutar a figura original”.
Não obstante, o figurino dá vida e particulariza os personagens, que têm existências fugidias e quase sempre mediadas. Mesmo assim, os figurinistas precisam compreender as dinâmicas da moda para caracterizar atores que narram histórias críveis situadas em determinado tempo/espaço, assim como, representar particularidades culturais em seus contextos vividos; e assim conseguir converter matérias plásticas em percepções emocionais ligadas às existências pessoais ou coletivas, criando empatia ou fortalecendo vínculos afetivos com a trama. Transatlântico (2023), minissérie britânica da Netflix criada por Anna Winger e Daniel Hendler, é uma dessas situações no audiovisual em que a plasticidade das cenas se oferece como personagem fundamental no sentido de estabelecer os efeitos diegéticos imprescindíveis ao fazer cinema.
As plasticidades que instituem a linguagem cinematográfica elaboram-se por meio de técnicas específicas - fotografia, composição, movimento, corte, montagem -, entretanto, este trabalho irá se ater aos aspectos materiais da cena, em particular aquele que caracteriza a representação dos corpos no espaço: o figurino. Carolina Bassi de Moura (2015, p.44) afirma que é função do diretor de arte “guiar o espectador a desvendar os personagens e detalhes da história [...] por meio de recursos visuais da cenografia, dos figurinos e da caracterização”. Estas materialidades são compostos fundamentais para a constituição da atmosfera fílmica, isto é, os efeitos decorrentes das visualidades instituídas no espaço cênico. Chamadas por Vera Hamburger (2014, p.19) de matérias da direção de arte, operam “em diferentes camadas da percepção”, assim como sugerem “entendimentos cognitivos ligados diretamente à narrativa, como interpretações simbólicas, históricas, sociais, psicológicas”, atribuindo diferentes significados às experiências com imagens. Questões também levantadas por David Bordwell e Kristin Thompson (2013) em torno do que chamam mise-en-scène: contexto cinematográfico que nos é mais familiar. “Depois de ver um filme, podemos não nos lembrar dos cortes ou dos movimentos da câmera [...] Mas nos lembramos do figurino” (Bordwell; Thompson, 2013, p.205).
Em linhas gerais, tanto a cenografia, os objetos e o figurino, quanto a paleta de cores, são referenciados pelos costumes, gestos, modos de uso, acessórios e suas simbologias, gerando mais intimidade com o universo do filme. São elementos concretos em suas dimensões físicas que buscam atestar comportamentos, personalidades, caracterizações formais e espaciais das representações narrativas, mas vão além, são evidências intangíveis de existências. Para Bassi de Moura (2015, p.50), a paleta de cores é fundamental como camada plástica e sensória, uma “tônica dominante, suas nuances e viradas”, sendo muito útil, portanto, compreender as potencialidades da cor e ter repertório amplo. Já o figurino, é elemento de ligação entre “o ator e o espectador, transmitindo imagens, causando impressões” (Viana, 2021, p.7).
No intuito de compreender aspectos das visualidades de uma obra em particular, isto é, sua estrutura visual baseada em um estilo, relações tempo/espaço, intenções dramáticas, assim como, alguns efeitos emocionais decorrentes, utiliza-se como ferramenta metodológica a análise fílmica (Vanoye; Goliot-Lété, 1994), numa abordagem que envolve preferencialmente a atmosfera concreta (Gil, 2005). Pretende-se decompor a matéria da cena essencial para compreensão dos personagens em suas caracterizações de figurino necessárias para delimitações das personalidades dramáticas que protagonizam na série. Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété (1994) estabelecem que analisar presume dois tipos de obstáculos: o material e o psicológico. Os obstáculos de ordem material são aqueles que, durante a análise fílmica, pertencem ao campo visual, enquanto os de ordem psicológica lidam mais com os significados da obra, ou seja, questionamentos sobre o propósito da forma em que o produto audiovisual foi concebido. Da mesma forma, Malcolm Barnard (2005) aproxima moda e vestuário de duas esferas complementares: denotativa/material e conotativa/ideológica. Por meio dessa dinâmica, busca-se decompor e compreender algumas relações estabelecidas no uso de diferentes materiais, cores, cortes e texturas das roupas, enfim, a caracterização dos corpos dos personagens e associações que estes mesmos corpos anunciam em termos de sentimentos complementares.
Para Vanoye e Goliot-Lété (1994, p. 13), a análise fílmica pressupõe ver, rever e examinar tecnicamente, sobretudo buscar compreender significações, efeitos, impactos e afetos produzidos nas percepções preliminares. Questões centradas no como (não no por quê) devem considerar a produção audiovisual, ou parte dela, por meio de desconstrução, distanciamento, descrição e posterior construção de novos significantes, ao analisar/ interpretar como as partes estão conectadas, ou como buscam fazer sentido em relação ao todo.
Isto posto, destaca-se a importância metodológica de delimitar o estudo por meio de diretrizes fundamentais para os sentidos propostos nas conexões entre efeitos emocionais e caracterização dos personagens. Enfim, ênfases para os desvios emocionais que o figurino traz para a narrativa em si, em especial, para o contexto histórico ali representado. Levando isto em consideração, em particular, a necessidade de delimitar questões simbólicas nos recortes das sequências escolhidas, assim como, alguns efeitos psicológicos específicos, define-se três dimensões de configuração para a matéria de cena em questão: 1) a assimetria evidente dos protagonistas em relação ao momento histórico; 2) a multiculturalidade da expatriação; e 3) os efeitos estéticos de uma festa inspirada no movimento artístico surrealista. Primeiro decompõem-se as três instâncias com vistas a perceber os meios utilizados como estratégias de conexão entre as materialidades da cena e as existências humanas (tanto ficcionais quanto factuais), para a partir daí compreender suas inter-relações e amparos emocionais.
3.1 Assimetria dos protagonistas em relação ao momento histórico: imagética da Era de Ouro de Hollywood
A análise preliminar da série compreende uma história ficcional baseada em fatos e alguns personagens reais1. A minissérie narra, em 7 episódios de 50 minutos em média, a trajetória de dois norte-americanos - o jornalista Varian Fry e a patrona das artes Mary Jayne Gold - e seus aliados, ao encontrarem-se em Marselha, no sul da França, entre 1940 e 1941. A cidade ficou estabelecida naquele momento como importante centro de resistência ao avanço das tropas nazistas; e o Comitê de Resgate de Emergência (ERC, sigla em inglês), criado de fato em 1933, teve como objetivo facilitar a migração da Europa aos Estados Unidos de alguns escritores e artistas, tais como, Hannah Arendt, Walter Benjamin, Max Ernst, André Breton, Marcel Duchamp e Marc Chagall. A série cruza histórias de algumas dessas personalidades proeminentes com figuras (ficcionalizadas) do cotidiano da cidade, que naquele momento estava sendo ocupada pelo Reich. Por se tratar de um dos poucos portos livres da França, passou a concentrar esperanças de fuga dos muitos que chegavam de diferentes partes da Europa. O ERC facilitou fundos emergenciais, documentos e rotas mais seguras para os diversos refugiados de mais de 40 países.
Ao considerar a temática e o contexto da Segunda Grande Guerra, vale destacar a fluidez proposta pelo atmosfera fílmica no geral, pois a série transita entre o drama e a comédia sem grandes reservas, ou mesmo, sem ressaltar a extrema sensação de terror que aquele momento exigia. Por esta razão, o valor estético da produção é o elemento de destaque para este trabalho. Desse modo, há de se considerar como a plástica do exagero na beleza (inspiração em filmes clássicos) parece querer demarcar aspectos importantes: tanto a cidade de Marselha quanto a vanguarda artística eram pontos fora da curva. Como naquele momento, no sul da França, ainda não havia a ocupação de fato do exército nazista, considera-se a sutileza dos sentimentos pairando no ar: o perigo, o medo, a intolerância e a violência estavam, discretos e assustadoramente, presentes em algumas falas; assim como, de forma paradoxal, os comportamentos amenos de personagens em algumas situações circunscritas por meio de fotografias estáveis, leves e luminosas, em ambientes de refúgio bucólicos.
Os minutos iniciais da série (T1E1) apresentam imagens em preto e branco da cidade de Marselha (1940), planos aéreos, pessoas em seus afazeres, outras caminhando, se dirigindo aos portos e soldados; a transmissão de notícias da Europa narra o avanço das tropas nazistas na França e a migração para o sul em busca do último porto livre. Um dos refugiados, o economista Albert Otto Hirschman, e sua irmã chegam a pé de Paris e comemoram a visão do mar. Em cena seguinte, diametralmente oposta, a filha de milionário norte-americano, Mary Jayne Gold, destoa do contexto com seu figurino proeminente e colorido (Figura 1). De acordo com Michael Tambini (1999), as roupas femininas nos anos 30 e 40, épocas de depressão econômica, guerras e escassez de matéria-prima, eram no geral mais sóbrias, apesar dos chapéus com adereços ainda fazerem parte do vestuário. A personagem, ao contrário do contexto apresentado inicialmente - imagens supostamente documentais sem cores de pessoas com roupas amarrotadas em caminhos de terra e carregando seus únicos pertences -, passeia com seu cachorro pelas ruas.
A primeira tomada (plano detalhe) destaca os sapatos altos em dois tons (estilo era do jazz dos anos 20), o movimento de câmera passa pelo vestido acinturado de tecido leve e colorido. Suas curvas ficam marcadas, já conotando o efeito psicológico que se pretendia a priori, uma personalidade frívola e blasé; isto porque, as jóias em pérolas, os óculos escuros (peça popularizada pelos astros do cinema e da música), a bolsa, a maquiagem (também mais hollywoodiana que casual) e o chapéu com identidade própria compõem a caracterização em descompasso com as imagens que abrem o episódio. A fotografia da cena é iluminada, solar, e o vestido amarelo acentua esse efeito sensorial, dando destaque à personagem. O corpo vestido não passa incólume, pois acentua um contraponto à história: a vida sem sobressaltos dos “nobres” em período de parcimônia e guerra iminente.
Figura 1. Tomada de abertura da série: Mary Gold passeia pelas ruas de Marselha
Fonte: Netflix (2023, Ep.1, 2min30seg).
A protagonista tem seu corpo apresentado em acordo com sua condição social, como se ali nada mais estivesse para acontecer. Entretanto, o que há é uma conformação à tradição estabelecida e não às circunstâncias sócio-históricas. Para a diretora de arte Vera Hamburger (2014, p.47), no cinema, o figurino tem o poder de transpassar espaço-tempo e demarcar sensações a partir dos contrastes que promove nas composições, assim como, caracterizar personagens: cada “peça de vestuário é lida, mesmo que inconscientemente, como um signo pertencente a códigos sociais ou até como fetiches pessoais”. Neste caso, o figurino no cinema e a moda como conceito ligado aos costumes sociais convergem ao servir de referência para demarcação dos princípios reguladores da práxis humana e de conservação das tradições.
Daniela Calanca (2011, p.53) discorre sobre a conformação desses modelos, em especial, o de consumir conforme a sua classe, ou o prazer pelo luxo na Baixa Idade Média. O modo de vestir naquele momento espelha, portanto, as rígidas divisões entre classes e a problemática que envolve o “vestuário, visto tanto como instrumento de sedução como símbolo de status”. Por outro lado, Georg Simmel (2008a, p.175-6) apresenta essas pequenas subversões (inclusive na relação entre o corpo vestido e o espaço-tempo ocupado) como jogos de tensão entre a importância dada ao conteúdo singular em contexto coletivo e as satisfações pessoais.
Assim, os protagonistas - tanto Mary Jayne Gold como Varian Fry (Figura 2), representados como pessoas de estilo marcante - destacam-se por sua aparência em desacordo com o contexto vivido. Fry quase sempre utiliza terno em três peças (colete, calças e paletó), em corte com ombros marcados, acessório de ouro, lenço, chapéu, transmite uma sensação muito diferente do estilo “racionamento” que caracterizou os anos 40, ou mesmo, o núcleo representante dos que buscavam refúgio em Marselha naquele momento. Portanto, esta talvez seja a chave de entendimento da dimensão psicológica que envolve a assimetria proposta inicialmente para os protagonistas: a incerteza quanto suas intenções e personalidades, como se nada mais fossem além de reproduções objetivas da alta classe ou ficções idealizadas de heróis pouco prováveis.
Figura 2. Cena com Varian Fry e seu figurino habitual
Fonte: Netflix (2023, Ep.1, 7min25seg).
A figurinista da série, a britânica Justine Seymour, também discorre sobre esses contrastes: o choque ao ver personagens do Holocausto ostentando extravagância, enquanto outros mal conseguiam carregar as vestes nos corpos. A Contradições que chocam, mas que ainda persistem em tempos contemporâneos.
3.2 Multiculturalidade da expatriação: subversões de códigos socialmente instituídos
Na mesma sequência de abertura, o vestido luminoso e com suas marcas subjetivas é oferecido pela Srta. Gold à irmã refugiada de Otto Hirschman, junto com a promessa de embarque dos dois irmãos em um navio para Nova Iorque no dia seguinte. A veste na cor cinza, tecido resistente, modelo farda (os cortes estilo militar para mulheres destacam-se especialmente neste período do anos 40), com menos personalidade e mais apelo popular, está amarrotada e suja, mesmo assim, ao adornar o corpo da personagem aristocrática não avilta sua postura nobre, como se pretendesse demarcar apenas simbolicamente a mudança da imagem preconcebida do início, um efeito psicológico/conotativo fundamental para o entendimento da sua psique/narrativa conflituosa: da filha mimada de milionário à ativista preocupada com vidas humanas (Figura 3).
Figura 3. Mary Gold com a refugiada (acima) e vestindo suas roupas (abaixo)
Fonte: Netflix (2023, Ep.1, 4min23seg e 6min15seg).
A cultura da abundância excessiva na Era Medieval desconhecia a carestia e a escassez, uma contingência que foi sendo imposta pelas camadas populares. Para Daniela Calanca (2011), o pós-modernismo marca o avanço dos movimentos contraculturais, do corpo flutuante, e a derrocada dos paradigmas. Neste sentido, Mary Jayne Gold delimita sua posição na vanguarda, e certa afinidade ao contingencial popular, deixando seu corpo moldar-se às circunstâncias da história vivida, quando sem nenhum apego a sua tradição familiar ou social usa com normalidade as vestes maltrapilhas da expatriada. Assim, a subversão pode ser considerada uma marca sua, uma marca inclusive observada na indústria da moda e na história do vestuário. Diana Crane (2006, p.456), ao considerar que as roupas são destinadas ao espaço público, de onde incorporamos muitas influências, afirma que as pessoas podem escolher usar roupas da moda ou fora dela, “para expressar suas identidades e para fazer declarações subversivas”, o que em muitos momentos foi decisivo para alterar a cultura dominante.
Insubordinações que auxiliam a percepção também de leituras simbólicas para o contexto narrativo. De acordo com Vanoye e Goliot-Lété (1994, p. 51), a interpretação sócio-histórica sugere que um filme quase sempre fala sobre o presente, mesmo quando representa outro contexto na produção: “extraterrestres são na maioria das vezes portadores dos temores e das esperanças da sociedade que os imagina”. O mundo encenado do cinema tem relações profundas com o mundo concreto: como reflexo ou como recusa. Perceber essas conexões pode ser etapa fundamental de análise. A série, de contornos técnicos absolutamente clássicos, manifesta algumas recusas no tocante à coerência dos personagens ou no sentido da urgência imposta pela guerra iminente.
Escolha justificada pela produtora Anna Winger2 que decidiu não apostar em uma obra de época e reforçar uma atmosfera que sugerisse mais apelo emocional. Para ela, o tema refugiados de guerra, a condição de apátrida, trata em sentido metafórico sobre a vida contemporânea: “uma sensação de pesadelo no paraíso”. São muitas as cenas que materializam essa diversidade e confluência entre povos, que ali se encontravam com o objetivo de resistir ao movimento de extinção. Os recepcionistas do luxuoso hotel que servia de abrigo aos que estavam em fuga - sempre vestindo uniformes personalizados, formais, com detalhes dourados e chapéus -, o próprio hotel como um oásis de luxo - em arquitetura clássica ricamente decorada com cristais, cortinas, plantas e mobília seguindo todos os padrões -, a guia caracterizada como membro da resistência, o rico advogado e seu casaco de vison (Figura 4), intelectuais, artistas e/ou pessoas ainda seguindo suas rotinas sem tantos sobressaltos evidenciam de forma objetiva as contradições daqueles tempos, especialmente, as vicissitudes e particularidades da multiplicidade ali instalada. Movimentos de diversidade rompidos por cenas com as fardas de estrutura pesada e cor sóbria dos oficiais alemães (Figura 5), quase sempre sinalizando o perigo possível, espreitando possibilidades de destruição da atmosfera geral de humor e leveza.
Figura 4. A guia (centro), Walter Benjamin (à esquerda) e o advogado seguindo a rota de fuga
Fonte: Netflix (2023, Ep.2, 21min).
Figura 5. Recepção do Hotel Splendide: Otto Hirschman (à esquerda), recepcionistas e oficiais alemães
Fonte: Netflix (2023, Ep.4, 13min20seg).
A produtora e roteirista demonstrou interesse especial em escavar histórias não contadas, que ficaram à margem da narrativa oficial, em especial, sobre a origem da resistência francesa, muitos de origem africana, trazidos das regiões coloniais francesas para lutar contra os nazistas. A dramaticidade do tema comporta-se como uma instância parcialmente encoberta, perceptível nesses descompassos narrativos e incômodos, quando sinaliza-se o contexto histórico. A poética é a da luz, da comédia, da liberdade, tensionada apenas por alguns momentos de contradição e inquietude. De acordo com depoimentos da equipe, o sentido geral era deixar a dignidade brilhar por meio dos atos de pessoas em seu cotidiano.
Considera-se este o grande efeito estabelecido pela multiculturalidade dos inúmeros seres sem pátria que ali tinham suas vidas estacionadas, alguns à espera de ajuda, outros arriscando suas próprias no intuito de ajudar. A diversidade das formas de seus corpos vestidos, por vezes demarcando o estereótipo da escassez do período de guerras, em outras, a ostentação aristocrática (da alienação e insurreição, paradoxalmente), torna possível observar a efervescência contraditória daquele momento. Como afirmou a produtora, buscou-se menos uma reconstituição histórica e mais uma atmosfera emocional, no intuito de denotar o “sem lugar”, espaço sem codificação precisa (mas múltipla), enfim, o lugar para todos os povos que optam pela sobrevivência.
O valor simbólico mais uma vez está nos “elementos heterogêneos que vêm romper a coerência realista” (Vanoye e Goliot-Lété, 1994, p. 56). A linha tênue entre humor e drama, assim como, as dicotomias presentes nas escolhas materiais - figurino sofisticado dos protagonistas em oposição à autoridade dos uniformes ou à singeleza das vestes sem cor dos fugitivos, algumas vezes, desproporcionalmente ostentosos, como o casaco de vison cheio de jóias, fotografias e lembranças, do advogado que segue a pé em rota de fuga pelas montanhas entre a França e a Espanha - colocam inúmeras questões no que concerne à necessidade de subversão dos códigos instituídos. O próprio “não sentido” de se estar lá, naquelas condições. Para o ator alemão Moritz Bleibtreu3 que representou Walter Benjamin, mesmo nos momentos mais sombrios, a série mostra humor, amor e compaixão. O que por si só já destaca: não seria este o papel da arte, dos artistas e dos filósofos ali representados, dar novo sentido e esperança à vida, tornando-a suportável?
3.3 Efeito estético de uma festa surrealista
Seguindo esta mesma linha, outro aspecto do figurino pode ser observado no conjunto de personagens que ocupam de forma temporária a Villa Air-Belle, após serem obrigados a fugir do luxuoso Hotel Splendide. No refúgio, um número incontável de cenas pitorescas acontecem, entretanto, na festa à fantasia em homenagem ao aniversariante e pintor, Max Ernst, o que chama atenção é a criatividade e a atmosfera, que mais uma vez fazem o contraponto ao terror de serem fugitivos da morte (Figura 6). Uma sequência bastante emblemática do espírito de um tempo, neste caso, o tempo-espaço proposto pelo movimento artístico surrealista. A experiência estética do grupo de poetas de vanguarda, que surgiu em Paris no início de 1920, tinha como meta a criatividade e a libertação do inconsciente, ao “descrever acontecimentos de natureza bizarra ou estranhamentos coincidentes” (Farthing, 2011, p.426).
Figura 6. Cena da festa surrealista no contexto da série
Fonte: Netflix (2023, Ep.3, 26min20seg).
Para a figurinista da série, a festa foi um empreendimento monumental que exigiu 120 figurinos, mas para os artistas ali refugiados apenas o prazer de fazer arte e fantasias com o que tinham disponível: jornais, brinquedos, penas de galinhas, talheres, luvas e leques. A coroa de garfos de Peggy Guggenheim (Figura 7) buscava simbolizar a ironia de objetos com pouca utilidade em tempos de escassez de comida. Enquanto as penas no adorno de cabeça de Max Ernst, o personagem mitológico criado por ele, LopLop, deus-pássaro que lhe proporcionava inspiração divina.
Figura 7. Personagens de Max Ernst e sua noiva Peggy Guggenheim (ao centro) e Varian Fry (em pé), com seu figurino destoando da maioria, mas preservando sua identidade marcante e conflituosa
Fonte: Netflix (2023, Ep.3, 28min12seg).
Mary Jayne Gold vestiu espartilho feito de luvas de couro e um chapéu de sapato: fusão entre sofisticação e reciclagem. André Breton, um dos fundadores do movimento surrealista, usou fantasia inspirada em uma foto do artista
Figura 8. Personagens Otto Hirschman e Mary Jayne Gold (acima) demarcando o contraste que havia entre o casal. André Breton (abaixo) representando uma fotografia produzida por Man Ray.
Fonte: Netflix (2023, Ep.3, 29min e 26min9seg).
Assim, o exílio temporário, que pode ser comparado ao escapismo ou à apatia, também representa uma celebração à criatividade em tempos de obscurantismo irracional. Serviria de contraponto? Ironia? Ou um modo também improvável de reação ao horror da guerra? A personagem Lisa Fittko, interpretada pela atriz suiça Deleila Piasko, em cena que lamenta o suicídio de Walter Benjamin4 diz não ter nada para comemorar; enquanto Varian Fry afirma a importância de celebrar a vida, de Max Ernst, dos demais e das pequenas vitórias.
Em alguns aspectos o deboche surrealista à violência instalada pelo fascismo e pela intolerância só equipara-se ao heroísmo improvável de pessoas anônimas, que pareciam saltar das pinturas do próprio André Breton. A tensão simbólica entre ficção e realidade é acentuada por essa estranheza exagerada, de “personagens reais” destoantes com o contexto histórico, da urgência do momento ou da seriedade do projeto como um todo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se a moda nasce de inconstâncias frívolas, como afirma Gilles Lipovetsky (2009), suas reviravoltas também são evidências de novas valorizações sociais que os indivíduos simbolicamente assumem. O pluralismo cultural e a heterogeneidade dos corpos que habitam a série ficcional Transatlântico (Netflix, 2023) são indícios do momento histórico de amplitude mundial, e sobretudo sintomas de um ponto de vista criativo fundado nas percepções emocionais das incoerências dramáticas. Representações em um mundo de possíveis conotações simbólico-afetivas.
Para além de retratar grandes feitos históricos, ou uma grande tragédia, percebe-se a intenção de representar as contradições da vida de pessoas até então desconhecidas. O ator americano Cory Michael Smith, que interpreta Varian Fry, finaliza o making of5 questionando o desserviço que prestamos ao acreditar que heróis são figuras perfeitas e descomplicadas. Para ele, a capacidade de fazer coisas extraordinárias é respaldada por nossas falhas e nossas complexidades. Neste ponto polêmico talvez esteja a questão central da série: como resistir ao horror?
Quando o manifesto surrealista (Breton, 1924, p.1) afirma que só a imaginação dá conta do que pode ser, como o “bastante para suspender por um instante a interdição terrível”, aciona-se a possibilidade de outros discursos emotivos e “seus efeitos micropolíticos” (Coelho; Rezende, 2011, p.24). Desta forma, não reduzir a imaginação à servidão e fazer bom uso dela, afinal Andre Breton (1924) diria: “Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida”.
Aqueles personagens - de quantitativo numérico pouco expressivo, mas enorme impacto cultural para as gerações futuras - com seus corpos de símbolos conflituosos, às vezes desatentos ao perigo iminente e desfrutando dos prazeres da imaginação criativa, fizeram aquelas escolhas. Mesmo quando as cenas parecem demonstrar posição de neutralidade (a mesma escolhida pelos EUA até aquele momento), há um ponto de vista demarcado, bastante emocional e indecorosamente lúdico, de se viver como se sobressaltos fossem apenas ironias do destino, à procura de ressignificações e de coragem para fazer diferente.
Notas de fim de Texto
1. É uma adaptação produzida a partir do romance histórico The Flight Portfolio (2019), da best-seller norte-americana Julie Orringer, mas utiliza também outras referências: Marselha como centro de resistência nazista, assim como, alguns personagens não-fictícios, descritos em livros, tais como: Marseille année 40 (Mary-Jayne Gold); Varian Fry, sauver la culture! (Bertrand Solet); entre outros.
2. Especial Transatlântico Making Of. Direção: Paul Sonntag, Netflix, 2023. (3min55seg)
3. Especial Transatlântico Making Of. Direção: Paul Sonntag, Netflix, 2023.
4. Transatlântico, Netflix, 2023, Ep.3, 25min.
5. Especial Transatlântico Making Of. Direção: Paul Sonntag, Netflix, 2023.
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