A vida social do vestido de noiva: casamento e investimento emocional

Solange R. Mezabarba

Doutora em Antropologia (UFF), Faculdade de Design de Moda do Senai Cetiqt / solange_riva@hotmail.com
Orcid: 0000-0002-5079-2996/ Lattes:
http://lattes.cnpq.br/0192046886850391

Enviado: 30/07/2023// Aceito:01/02/2024

A vida social do vestido de noiva: casamento e investimento emocional

RESUMO

A partir de um estudo qualitativo, este trabalho procura entender o significado do casamento como instituição e ritual para um grupo de mulheres. Entendendo que o vestido de noiva, enquanto cultura material, é um elemento fundamental na concepção do ritual, a questão que se coloca, tendo como premissa o ensaio de Kopytoff sobre a biografia das coisas, é o que ocorre com o vestido após a cerimônia? Para a geração entrevistada, mulheres na faixa etária de 50-60 anos, o casamento é uma instituição que inspira dúvidas e o que ocorre com o vestido tem uma relação estreita com a história de cada casamento e como cada mulher percebe o significado dessa instituição.

Palavras-chave: ritual. cultura material. vestido de casamento.

The social life of the bride dress: marriage and emotional investment

ABSTRACT

Based on a qualitative study, this work aims to understand the meaning of marriage as an institution and ritual for a group of women. Understanding that the wedding dress, as a material culture, is a fundamental element in the conception of the ritual, the question that arises, based on Kopytoff’s essay on the biography of things, is what happens to the dress after the ceremony? For the interviewed generation, women between 50-60 years old, marriage is an institution that inspires doubts and what happens to the dress has a close relationship with the history of each marriage and how each woman perceives the meaning of that institution.

Keywords: ritual. material culture. wedding dress.

La vida social del vestido de novia: matrimonio y inversión emocional

RESUMEN

A partir de un estudio cualitativo, este trabajo busca comprender el significado del matrimonio como institución y ritual para un grupo de mujeres. Entendiendo que el vestido de novia, como cultura material, es un elemento fundamental en la concepción del ritual, la pregunta que surge, a partir del ensayo de Kopytoff sobre la biografía de las cosas, ¿qué pasa con el vestido después de la ceremonia? Para la generación entrevistada, mujeres con entre 50-60 años, el matrimonio es una institución que inspira dudas y lo que sucede con el vestido tiene una estrecha relación con la historia de cada matrimonio y cómo cada mujer percibe el significado de esa institución..

Palabras clave: ritual. cultura material. vestido de novia.

1. INTRODUÇÃO

O título deste artigo foi inspirado no hoje clássico livro de Arjun Appadurai intitulado “A vida social das coisas”, publicado pela primeira vez em 1986, e cuja edição em língua portuguesa foi lançada no Brasil em 2008. Appadurai reúne diversos artigos que confluem para a ideia de que as coisas, imbuídas de significados, são importantes elementos no estabelecimento de vínculos sociais. Logo o primeiro artigo do livro, escrito por Igor Kopytoff, intitulado “A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo”, sugere uma abordagem biográfica das coisas. A premissa se baseia na importância das biografias para entender culturas e sociedades, pois nos levam à compreensão de significados atrelados a reações e opiniões acerca dos objetos. Gonçalves et. al. (2013) vão além. Eles afirmam que as coisas são portadoras de uma “alma”, um “espírito”, e recordam que “elas (as coisas) existem (...) como parte de uma vasta e complexa rede de relações sociais e cósmicas (...)” (2013, p. 8). A ideia de hau, em Mauss (2003), se aproxima da proposição da alma dos objetos. De acordo com Mauss, o hau designa “(...) a alma e o poder das coisas inanimadas e vegetais (...)” (2003, p. 198). Na perspectiva de Miller (1987 e 2013) nós os produzimos (objetos), mas eles nos modificam. Stallybrass (2008), em ensaio que foi traduzido como “a vida social das coisas: roupas, memória e dor”, revela a estreita relação entre nossos corpos e as roupas que vestimos, mas o faz à luz do uso das roupas no contexto da vida cotidiana. O vestido de noiva, dotado de significados que atravessam a dimensão emocional é, portanto, para este artigo, meu objeto de estudo, mais precisamente, trato da vida social do vestido e sua biografia no sentido dado por Kopytoff (2008). Este autor propõe examinar a biografia das coisas, uma vez que, se as biografias consideradas bem sucedidas de pessoas, nos fazem perceber o que é valorizado numa dada cultura, ao trabalharmos com a abordagem biográfica para os objetos, estaremos entendendo uma singularização das coisas que vai além do sentido de mercadoria. O que os objetos representam para as pessoas, portanto, pode estar no âmbito emocional. Entendemos que, para muitas mulheres, o casamento e o objeto mais marcante do ritual, o vestido, recebem uma carga emocional, especialmente diante da construção social do amor romântico como motivador para o casamento.

As emoções são alvo de debates entre diferentes campos de conhecimento, sendo que, para antropólogos como Mauss (1980) e Le Breton (2019) a expressão das emoções tem origem no processo de formação cultural no interior de um grupo social. Casamentos acontecem em todas as sociedades, mas sua celebração é peculiar em diferentes culturas, e motivam expressões emocionais também diversas. Assim, considero um exercício profícuo o entendimento da biografia do vestido de noiva para entender o significado do casamento para mulheres, mas especialmente, observo os momentos que se seguem ao apogeu do “vestido de noiva”, a festa que celebra o ritual. Ou seja, a questão que move esta reflexão é: dado o investimento emocional (e também financeiro) na celebração e, em especial, no vestido de noiva, que destino as noivas dão a seus vestidos quando termina a cerimônia? Será que esse apontamento pode nos sinalizar algo sobre o significado do casamento para diferentes gerações de mulheres?

Para desenvolver essas questões, planejei entrevistas em profundidade com mulheres que se casaram em cerimônias tradicionais e que usaram vestidos especialmente planejados para a data. O projeto, recém iniciado, prevê a análise de duas diferentes gerações de mulheres no Rio de Janeiro, mas, por ser um trabalho ainda em andamento, para este artigo, trago alguns apontamentos das entrevistas com oito mulheres na faixa etária de 50 a 60 anos, ou seja, casaram-se entre os anos 1980 e 1990. A perspectiva qualitativa, como aponta McCracken (1989), nos municia com a compreensão sobre como a cultura media a ação humana. Assim, as histórias de vida dessas mulheres atravessam especialmente valores e significados da instituição e da cerimônia, mas também do vestido que escolheram usar. Embora esteja trabalhando com um recorte geracional, privilegiando um determinado período em que as cerimônias aconteceram, é possível entender um pouco sobre as expectativas em relação à união, à relação emocional (ou não) com o vestido, e o quanto ao vestido se pode atribuir um papel metonímico como elemento material simbólico da união. Uma especificidade sobre essa geração de mulheres pode ser inferida a partir da etnografia de Erika Pinho (2017) sobre casamentos. Essas mulheres eram crianças nos anos 1970, período em que Pinho reconhece forte desinteresse pelo casamento, especialmente por conta de uma participação maior das mulheres no mercado de trabalho, bem como, acrescentaria, à autonomia em relação à gravidez herdada pelo advento da pílula anticoncepcional na década anterior. Por outro lado, a antropóloga, ao investigar casamentos na contemporaneidade, identifica um novo modelo de cerimônia, que denominou “casamento espetáculo”. Esse modelo está alinhado com uma forte cultura de consumo que se vale da materialidade e da liturgia do ritual como marcador social para o casal de noivos e suas famílias. A autora reconhece, no entanto, que, embora os rituais tenham sido enriquecidos com pompa e forte predisposição ao consumo de bens materiais e serviços específicos, a instituição parece estar “enfraquecida”. Minha hipótese, é que seja apenas uma nova forma de se relacionar com as uniões e a família. Assim, a geração de mulheres que participaram desse trabalho de campo está entre aquela que passou a desconsiderar o casamento em seus aspectos institucionais e rituais como ideal de vida, e aquela que valoriza, na celebração do ritual, a espetacularização e distinção.

Num primeiro momento, farei o esforço de refletir sobre o casamento enquanto instituição e como cerimônia ritual. Na etapa subsequente trarei algumas notas sobre os vestidos de casamento e o papel que desempenham na cerimônia. Em seguida, tratarei das histórias das mulheres entrevistadas sobre seus casamentos e vestidos. Finalmente, traçarei alguns comentários finais, deixando questionamentos que me levarão a um segundo momento desse estudo, quando pretendo buscar outro grupo geracional.


2. CASAMENTO: A INSTITUIÇÃO E O RITUAL

Ao discorrer sobre o casamento, é importante diferenciar os aspectos que o regem enquanto instituição, e enquanto celebração ritual que é reproduzida dentro de diferentes contextos sociais. Longe do objetivo de problematizar o conceito de “instituição”, procuro a definição apenas como fundamentação para a análise. Por isso, vou me valer dos apontamentos de Berger e Berger (2004). Para esses autores, a instituição é “uma programação da conduta individual imposta pela sociedade” (2004, p. 193), ou seja, ela, a instituição, traça um controle que se reproduz socialmente, e orienta nossa compreensão do mundo. Já os rituais, conforme obra seminal de Gennep (2013), funcionam como marcadores de etapas de ciclos a serem revelados e compartilhados dentro de uma sociedade. Uma vez apoiada nessas conceituações, sigo com um rápido panorama sobre casamentos.

Os estudos sobre casamentos e a formação de famílias são basilares nos campos da sociologia e antropologia. Engels (1984), ao discutir a formação da família, da propriedade privada e do Estado, assenta seu trabalho em estudos prévios de antropólogos evolucionistas como Bachofen e McLennan, mas, em especial, Henry L. Morgan. Nessa perspectiva, discutia-se o caráter promíscuo das uniões em sociedades antigas até que se chegasse à hipótese de matrimônios por grupos. Porém, Engels segue constatando que não há evidências acerca da origem das uniões entre homens e mulheres nas sociedades que ele designa primitivas. Fustel de Coulanges (2004), numa abordagem mais voltada à formação das sociedades ocidentais, tendo como matrizes as culturas greco-romanas, atribui às religiões domésticas a instituição do casamento. Nesse sentido, conclui o autor, é imprescindível à união conjugal a intervenção religiosa. Historiadores da Idade Média, como Duby, Barthélemy e Roncière (2009), Le Goff e Truong (2006) e Brooke (1989) reafirmam o caráter institucional e religioso dos matrimônios naquele período da história ocidental. MacFarlane (1990) analisa, na Inglaterra do século XIX, o que denominou “casamento Malthusiano”, ou uma decisão acerca do casamento que conta com uma ponderação que pesa fatores econômicos, sociais e que envolviam o prazer e o conforto. O autor destaca, portanto, que Malthus via no casamento à sua época “uma combinação de pressão econômica e social (...)” (1990, p.23). Isso ocorre num momento pós industrialização, em que a vida urbana ganha vulto, e a ideia de unidade econômica deixa de ser a família numerosa e passa a estar centrada no indivíduo. Por isso, a decisão de casar-se deveria, adicionalmente, ganhar um componente individual a impulsionar o desejo pela união: o amor. Lobato (2012), ao propor uma antropologia do amor, problematiza o amor como fator desenvolvido no seio das sociedades ocidentais, reconhecendo, a partir da literatura, histórias de amor românticas em culturas orientais. Um marco, nesse sentido, para a autora, foi o que se convencionou chamar de “amor cortês” na Europa do século XII. Seu fundamento eram os poemas de amor elaborados pelos trovadores, e que, segundo a autora, sofreram influência da lírica árabe. Esses cânticos veneravam as mulheres “impossíveis”, pois, em geral, eram casadas ou comprometidas com uniões negociadas pelas famílias, evidenciando uma idealização do amor.

O século XVIII consolida o chamado “amor romântico”, e o torna motivador para as uniões matrimoniais. Giddens (1993) afirma que nesse momento o amor romântico introduz uma narrativa para a vida individual, ou seja, para além de se contar uma história, o “romance” tornava as histórias individualizadas, uma narrativa pessoal, distanciando-se de processos culturais mais amplos. O século XIX, pródigo na produção dessas narrativas, termina por afetar a vida social, tendo reordenado as emoções (idem).

A reprodução do ritual do casamento irá, portanto, reunir numa forma de teatralidade, como na abordagem de Goffman (1985), esses elementos simbólicos representados por uma cultura material bastante específica. Essa panóplia será formada por objetos marcadores e definidores do tipo de casamento que se celebra e de seus elementos materiais, como o cenário onde se celebra, a ornamentação, o cardápio servido e as roupas que podem ser dispostas num sistema de classificação. São aquelas esperadas para vestir os convidados comuns, para destacar aqueles que desempenham um papel especial na cerimônia (pais e padrinhos, por exemplo) e, certamente, as roupas dos noivos – com destaque para a roupa da noiva. Essa reprodução, baseada na instituição, rege o comportamento de noivos e convidados - inclusive no que se refere à apresentação de si – definindo expectativas e garantindo certo nível de previsibilidade do rito (Gennep, 2013; Goffman, 1985). Nesse sentido, o vestido da noiva, como parte da cultura material do ritual de matrimônio, é o objeto mais fortemente percebido como o que caracteriza a festa, como veremos a seguir.

3. O VESTIDO DE NOIVA COMO MARCADOR DO RITUAL

Santos (2009), em trabalho em que analisa a fotografia como ferramenta para recriar a memória do casamento, recorda a importância desse rito e, por isso, também o registro e a memória como fatores de produção da cultura material da cerimônia. Afinal, para quem casa, esse é um momento singular. O autor, ao fim, destaca a figura central da noiva – ela é a protagonista da cerimônia e a figura mais fotografada, pois, “desejam fotografias que as mostre na sua beleza absoluta” (Ferro, 1999, p. 86 apud. Santos, 2009, p. 137-138). A imagem do noivo subordina-se à da noiva, recorda Santos (2009). Afinal, o noivo, apartado do cenário e de todo arcabouço material que constitui uma cerimônia de casamento, não necessariamente é reconhecido como alguém pronto para se casar. Já a noiva, em seu traje especial para o dia, não deixa dúvidas. Por isso, sua apresentação de si é algo esperado, planejado e alvo de registros.

A exposição The Wedding Dress: 300 years of bridal fashion, que ocorreu no Museu Victoria & Albert (Londres) em 2014, gerou rico material sobre o tema, especificamente no que se refere às noivas inglesas, mas destaca, sobretudo, aspectos sociais que influenciaram a moda para noivas (e casamentos). Nesse contexto, não há como não rememorarmos o casamento da Rainha Victória em 1840, que, para muitos, marca a cor branca como padrão para o vestido do casamento. Se até o século XVIII não havia uma cor definitiva para a roupa da noiva, pode-se dizer que algumas preferências marcavam o segmento social do casal de nubentes. Entre a aristocracia, de acordo com Ehrman (2014), o branco, bem como o prateado já estavam entre as cores mais escolhidas. Para outros segmentos sociais, não havia um padrão. Noivas com poucos recursos, simplesmente usavam seus melhores vestidos para a cerimônia. A seda era o tecido mais usado entre noivas com maiores possibilidades econômicas. A seda branca, difícil de ser lavada à mão, era um elemento de distinção entre aquelas mulheres que poderiam ou não ter o recurso para preservá-la. A escolha da Rainha Victória pelo vestido branco, porém, se deu, não só por distinção ou mesmo pelo fator simbólico relacionado com a pureza, mas também, como destaca Ehrman (2014), por ter sido o primeiro casamento real a ser disseminado em matérias de periódicos e outros veículos impressos. O vestido branco, nesse sentido, se destacaria, realçando a noiva, o que reforça o ponto de Santos (2009) sobre a importância da fotografia e o protagonismo da noiva nas cerimônias de casamento, bem como a narrativa de que só a noiva poderia vestir branco. A fotografia exerceu, a partir do casamento da rainha, a função de tornar aquela apresentação de si uma forte referência para as noivas ocidentais a partir de então.

Esses elementos, porém, hoje considerados imprescindíveis à formalidade do rito, não podem ter sua gênese atribuída aos casamentos aristocratas do século XIX. Coulanges (2004) recorda que o banquete, a cerimônia com a família, até mesmo o véu da noiva são componentes desse cenário nos rituais greco-romanos para celebrar os casamentos, portanto, desde a Antiguidade. A cor branca do vestido e o véu já eram um costume, porém, o branco, naquele momento, segundo o autor, está relacionado com o sagrado, com a religiosidade: “O vestido é branco, pois o branco era a cor dos vestidos em todos os atos religiosos” (Coulanges, 2004, p. 48).

Na atualidade, cores suaves começaram a incorporar o universo dos vestidos de noiva. São os chamados “pérola”, “nude”, “bege”, e “rosa chá”. Conforme mostra e exposição sobre noivas ocorrida em 2014 no V & A Museum em Londres, o século XX, com novas possibilidades de casamento, aumentou o repertório de cores para o vestido da noiva burguesa. Noivas ocidentais com inspiração em outras culturas escolheram vestidos com muitas cores e acessórios. Noivas com atitudes reconhecidamente “transgressoras” optaram por cores fortes.

Entre o grupo entrevistado para esse trabalho, porém, é possível perceber uma ancoragem às normas tradicionais do ritual. É importante frisar que, ainda antes da escolha das entrevistadas, levantei com pessoas próximas, através de grupos de afinidade no Whatsapp, quem havia se casado com um vestido especial. Digamos que o comportamento de quem “transgrediu” não foi o de usar cores incomuns, mas sim, o de evitar a cerimônia e simplesmente ir morar com seu cônjuge a iniciar uma família. Em alguns grupos a que recorri, muitas mulheres mostraram com suas palavras grande rejeição à possibilidade de se casarem “vestidas de noiva”. Uma das mulheres abordadas, Maura (61 anos), quando a convidei pelo whatsapp, respondeu: “Nem por nada eu ia usar um troço desses”. Maria Teresa (64), ironicamente, disse: “É triste, mas seu projeto vai ficar sem o meu depoimento”. Melina (56), já negando a participação disse: “Não lembro nem a roupa que estava quando fui assinar a união estável rsrsrsrs”. São discursos que reafirmam que a geração enfocada não mais percebia a instituição e o ritual da mesma forma que a geração anterior, ou seja, como um destino quase inevitável para as mulheres, mais do que uma opção (como no caso dos homens), conforme reflexão de Simone de Beauvoir (1967) já em 1949, ano da primeira edição do hoje clássico O Segundo Sexo. Ao longo do trabalho de campo, no entanto, é possível perceber alguma ambiguidade na relação das oito mulheres entrevistadas com o casamento.

Na sequência, portanto, vamos ver como foi o casamento das mulheres da geração que se casou entre as décadas de 1980 e 1990 e optaram por traços tradicionais da cerimônia, usando um vestido de noiva. Todas pertencem aos segmentos médios urbanos, possuem nível superior de escolaridade, e moram na cidade do Rio de Janeiro. Foram recrutadas na minha rede de relações através de grupos pessoais no whatsapp. Em seguida, foram visitadas para entrevistas face-a-face em profundidade sobre sua história de vida, onde o casamento e sua vida conjugal deveriam ser enfocados, finalizando a interação com a busca pela importância simbólica que cada uma delas atribuiu ao seu vestido de noiva. Quando possível, solicitei que me mostrassem seus vestidos. Nenhuma delas me mostrou a peça, a não ser por fotografia. As entrevistas face-a-face foram gravadas e busquei registrar as poucas referências imagéticas que obtive dos vestidos.

4. O CASAMENTO E A VIDA SOCIAL DO VESTIDO DE NOIVA

Para entender algo sobre o universo dos casamentos, e mais especificamente, sobre as roupas usadas pelas noivas, busquei ouvir as histórias de oito mulheres. Elas pertencem a uma geração que, como mencionei anteriormente, está entre aquela da década de 1970 que não se interessava exatamente pelo casamento como instituição e, menos ainda, como ritual, e a geração que se casa atualmente buscando o que Pinho (2017) denominou “casamento-espetáculo”. O quadro 1 (abaixo) lista os perfis com quem interagi nos últimos meses, com o objetivo de entender o que as moveu ao casamento, como se deu a cerimônia, e o que houve depois dela. Como se trata de um trabalho ainda em andamento, outras entrevistas estão programadas e poderão complementar questionamentos que surgem na medida em que o campo avança. Todas as interlocutoras autorizaram o uso da entrevista para análise num trabalho acadêmico, mas os nomes, para evitar a exposição da identidade dessas mulheres, foram trocados.

Quadro 1: perfil das mulheres entrevistadas

Nome

Idade

Ano em que se casou

Tempo de casada

Carina

58

1988 (tinha 22 anos)

10 anos e dois filhos

Paloma

55

1994 (tinha 27 anos)

1 ano e seis meses – sem filhos

Maria Hosana

60

1995 (tinha 32 anos)

18 anos – uma filha

Priscila

55

1989 (tinha 21 anos)

3 anos - um filho

Denise

55

1993 (tinha 25 anos)

5 anos – um filho

Carolina

59

1990 (tinha 26 anos)

33 anos – 4 filhos

Lilian

56

1994 (tinha 27 anos)

3 anos – sem filhos

Soninha

62

1987 (tinha 26 anos)

15 anos e 2 filhos

Fonte: elaborado pela autora

É importante notar que essa é uma geração que vivia sua infância quando o então Senador Nélson Carneiro redigiu a Emenda Constitucional ٦٥١٥ em ١٩٧٧, a chamada “Lei do Divórcio”. Essas mulheres, portanto, cresceram entendendo que o casamento não necessariamente era algo indissolúvel, o que fica claro na fala de Melina quando ainda estava na fase de recrutamento das interlocutoras (e que não fez parte do grupo entrevistado sobre o casamento porque não se casou com vestido de noiva): “a gente casava, mas se não desse certo, a gente sabia que podia se separar sem drama”. À despeito da legislação, no entanto, veremos como as famílias tiveram papel fundamental na reprodução do ritual.

A influência da família (para o bem ou para o mal) é, portanto, um dos aspectos que mais se repetem nos discursos quando as mulheres são abordadas sobre a decisão de se casar: “eu ‘mirava’ no casamento dos meus avós, dos meus pais, achava que o casamento era algo para sempre” (Carina); “Foi tudo ‘orquestrado’ pela minha mãe, que teve um bom casamento” (Maria Hosana). “Meus pais sempre foram apontados como um casal modelo”, afirmou Paloma. Aliás, com exceção de Paloma, a união dos pais foi uma referência positiva. Para essa mulher, uma “união modelo” como a dos seus pais não lhe servia. Naquela união ela observava o que chamou de machismo estrutural demonstrado pelo pai, e esse não era o ideal de vida que queria para si. No entanto, a influência familiar se deu pela linha da religiosidade – “viver com o namorado ‘em pecado’, como dizia minha mãe, não era aceitável para a minha família”, disse ela sobre a decisão de se casar. Priscila admite que não tinha uma opinião formada sobre a instituição do casamento na época da sua união, mas reconhece que a sua geração ficou entre o ideal de “princesa” e a ideia de libertação feminina, sem o compromisso com uma união para durar “a vida toda”. Casou-se por amor, ela enfatiza, mas não tinha ideia do que seria uma vida compartilhada com alguém. Denise foi a única que admitiu um ideal romântico relacionado com a decisão pelo casamento e a expectativa de uma parceria para a vida. É importante destacar que, das interlocutoras acima, apenas Soninha e Carolina seguem casadas. Todas as outras se separaram dos noivos com quem compartilharam o ritual do matrimônio com seus vestidos de noiva, mas se uniram a outros parceiros de maneira diferente do ritual do primeiro casamento. A família de origem (mas, em especial, a figura materna) foi definitiva para a decisão do ritual, não como exemplos a serem seguidos, mas como uma ideia romântica de “realização” que deve ser compartilhada com a família.

O aspecto religioso é outro elemento a ser destacado. Não só Paloma, como já vimos, o faz por influência do catolicismo professado por sua mãe, como todas as outras reivindicam a raiz sagrada do ritual. O curioso é que Paloma não se casou num ambiente católico, mas num clube, pois, sendo seu noivo à época, divorciado, não foi possível se casar na igreja católica como desejava sua mãe. Ainda assim, mesmo sendo celebrado por uma juíza de paz, a mãe de Paloma procurou dar à cerimônia um aspecto religioso, introduzindo um texto da bíblia. Carina é judia, mas seu casamento ocorreu nos moldes cristãos, pois seu noivo era de família católica. A cerimônia, no entanto, ocorreu num local não religioso, buscando uma neutralidade que contemplasse o sagrado para ambos. Ela, no entanto, lamenta não ter se casado com todos os rituais da celebração tradicional na sua religião. Ela lista, como atos rituais que gostaria de ter praticado, a quebra das taças e a dança como parte do rito religioso do casamento judaico. A figura do sacerdote, para as interlocutoras, não parece ter sido imprescindível ao andamento do ritual, ainda que o acontecimento fosse revestido de uma intenção sagrada. Juízes de paz ou outras figuras de autoridade e afeto puderam ser designadas para a condução da cerimônia. Fora Paloma e Carina, as outras interlocutoras se casaram em igrejas católicas.

A cerimônia é sempre cercada de crenças para aumentarem as chances de uma união “feliz”. “Tem que ter algo emprestado”, “tem que pôr o nome das amigas na barra do vestido”. Nenhuma das informantes foi tão enfática nos aspectos metafísicos que envolvem a cerimônia de casamento quanto Paloma. Seu casamento durou pouco mais de um ano depois de mais de seis anos de namoro. Hoje ela consegue ver os “sinais” que a preveniriam do casamento que, para ela, “não deu certo”. “Recebi o vestido e o botão estava se soltando”, “quando abri a caixa da guirlanda do cabelo, a moça do salão disse que parecia uma coroa de flores”, e, por fim, os registros, as fotografias que foram produzidas por três fotógrafos diferentes, velaram. Ela afirma que durante o ritual se viu num momento de dissociação, buscando apenas se divertir com a festa. Isso, ela diz, descobriu depois de algum tempo de terapia, pois a dissociação é considerada, pela psicologia, um fenômeno que desconecta o indivíduo da realidade. Ao fim da cerimônia e da festa, ela retorna à realidade, e lamenta: “ok, a festa foi linda, está tudo muito bem, mas o pior é que a noiva sou eu”.

Maria Hosana mostra desinteresse pela cerimônia do seu casamento. Ela teve um noivo por quem, segundo o seu relato, era apaixonada, e com quem desejava se casar. O rapaz, no entanto, faleceu em um acidente, quando ela tinha apenas 23 anos. Por isso, talvez, Maria Hosana tenha sido a interlocutora que mais enfatizou a motivação da festa ancorada na figura da sua mãe. Segundo a interlocutora, sua mãe retornou de uma viagem à Itália com um tecido para o seu vestido de casamento. Trouxe também uma bota branca que foi usada na cerimônia. Parecia uma forma de motivar Maria Hosana à decisão de se casar com seu namorado na época. O tecido, ela diz, parecia uma tela, e serviu para confeccionar a manga do seu vestido de noiva. A partir de um elemento, a cultura material da festa foi sendo organizada e harmonizada de acordo com as possibilidades financeiras. Essa harmonização pode ser relacionada com o “efeito Diderot”, um conceito desenvolvido por McCracken (2003). O enciclopedista francês Denis Diderot ganhou de presente uma veste. A partir dela, como uma forma de harmonizar seu gabinete, todos os outros objetos foram trocados – o tapete, a mesa etc. Esse aspecto pode ser observado na produção Sex and the city - o filme, com a atriz Sarah Jessica Parker no papel de Carrie, a noiva que, decidida a fazer uma festa singela, ganha de presente da estilista Vivienne Westwood o seu vestido de noiva, e a partir daí, aporta elementos à cerimônia que harmonizam com o glamour do vestido presenteado, deixando de lado a ideia de uma cerimônia mais “simples”. Maria Hosana, então, a partir do tecido e da bota, cria uma cerimônia, segundo ela, com simplicidade e baixo investimento financeiro. Ainda assim, contava com o cenário da igreja, ornamentação, roupas adequadas à ocasião (Goffman, 1985), almoço para os convidados.

Carina também teve seu vestido, de certa forma, planejado pela mãe. Ela, a mãe, procurou a estilista brasileira Mena Fiala, então uma forte referência nesse mercado no Rio de Janeiro. O vestido foi cuidadosamente confeccionado com estilo princesa, bastante em voga na década de 1980, especialmente por conta do emblemático vestido da Princesa Diana.

De todas as histórias sobre os vestidos, a de Priscila foi a que mais reuniu potenciais componentes para a expressão emocional. Sua avó, em Recife, criou seus filhos como costureira de casamentos, desenhando e confeccionando vestidos de noiva na capital pernambucana. O vestido de Priscila, portanto, não poderia deixar de ser confeccionado pela avó. Ela esteve em Recife uma única vez para as medidas e desenhou o que queria. Sua avó chegou ao Rio com o vestido, que caiu perfeitamente em seu corpo. Também com inspiração no vestido de Diana Spencer, Priscila o descreve como uma roupa com mangas bufantes e saia ampla.

Já o vestido de Denise, num momento em que os brechós ainda não haviam conquistado o público brasileiro, foi emprestado por uma amiga que, por sua vez, o adquiriu numa loja de roupas usadas. Assim, a crença de haver “algo emprestado” estava coberta pelo empréstimo do próprio vestido, recorda, minha interlocutora. Com uma coloração suave (não branco), o vestido, com rendas e babados parece ter uma referência bucólica.

Num momento em que não havia ainda a figura da cerimonialista e nem o “dia de noiva”, todas relatam que se vestiram em casa, usaram maquiagem discreta e a fizeram nos salões de beleza que já frequentavam. Denise foi a única que, para se preparar contou com o serviço da então famosa clínica de estética carioca Socila.

As interlocutoras parecem enfatizar a “simplicidade” da cerimônia, do baixo investimento financeiro, de ser aquele ritual apenas o cumprimento de uma etapa que seria bem vista pela família. Apesar disso, os elementos tradicionais do ritual estavam presentes: uma cerimônia com traços religiosos, realizada numa igreja ou num salão decorado com flores e com um altar, padrinhos, algum tipo de comida e bebida e, claro, um vestido de noiva com traços tradicionais. A percepção do “baixo investimento”, embora não tenha sido elaborada pelas informantes, também pode estar relacionada com a percepção das festas de casamento na atualidade, em que uma indústria poderosa vem emergindo (Pinho, 2017).

Nunca me casei, e por isso, nunca tive um vestido de noiva, mas até hoje, na casa dos meus pais, estão guardados solenemente o vestido da minha avó materna e o do casamento da minha mãe. O vestido da avó (figura 1) foi modificado e usado cotidianamente depois da cerimônia. Hoje, mais curto e com o tecido bem desgastado pelo tempo, ocupa o armário da minha mãe depois da morte da minha avó. Já o vestido da mãe (figura 2), “patrimonializado”, está guardado, segundo ela, como lembrança de uma festa que não foi registrada com imagens fotográficas, e do que era o corpo da noiva à época do seu casamento. Diante disso, iniciei a pesquisa a partir da premissa de que esses vestidos incorporam um patrimônio de herança familiar. Pesquisas sobre o tema, como as de Gutterres (2013) e Rodrigues (2023), se alinham com o trabalho de McDonald, Morgan e Fredheim, intitulado Too many things to keep for the future? Publicado em 2020. Em comum, eles problematizam as heranças materiais que contarão suas histórias de vida no futuro. Assim, a questão sinalizada nos três trabalhos é: diante da profusão de objetos que acumulamos, e da impossibilidade de mantermos todo esse acervo em diferentes momentos de vida, quais são aqueles que escolhemos manter para perpetuar nossa história? Gutterres (2013) analisa a mudança de casa de duas interlocutoras. Ambas iriam para espaços menores e, portanto, teriam que escolher objetos em detrimento de outros. Rodrigues (2023) analisa imigrantes portugueses e seus deslocamentos com enfoque nos objetos que decidem manter e aqueles que descartam em suas malas que circulam pelo mundo. Essa prática de seleção dos objetos que mantemos ao longo da vida (e dos que descartamos) dialoga com as mesmas práticas narrativas dos museus, de acordo com a análise de McDonald, Morgan e Fredheim (2020). Nesse sentido, podemos voltar a Kopytoff (2008) e pensar sobre o quanto a biografia dos objetos pode sinalizar sobre a nossa própria percepção de valor das histórias que eles representam, e sobre o quanto queremos perpetuar essas histórias de maneira significativa. Os vestidos da minha mãe (que se casou em 1965) e da minha avó (que se casou em 1943) seguem contando essas histórias e destacando a importância do ritual e da instituição em suas vidas. Para além disso, se tornaram objetos de afeto envolvidos com lembranças que marcaram uma mudança significativa de vida para elas. Com essa premissa, busquei em minhas redes de contato as mulheres da minha geração que usaram vestidos de noiva em seu casamento. Dentre tantas, como já relacionado, apenas oito delas se manifestaram e se dispuseram a contar suas histórias.

Figura 1: vestido da avó (que se casou em 1943).

Fonte: acervo da autora

Figura 2: vestido da mãe (que se casou em 1965).

Fonte: acervo da autora

Os destinos das roupas das minhas entrevistadas, no entanto, foram mais diversos do que imaginei. Carina conserva o seu até hoje guardado, mas não soube dizer onde ele está. Ela relata que ele ocupa uma caixa grande, e fica guardado em algum canto da casa da mãe, que recentemente faleceu. Para Carina, o divórcio pode ter feito o objeto perder o valor: “não é raiva, mas não há mais uma lembrança carinhosa do vestido”. Carina, no entanto, guarda seu álbum de fotos, e me permitiu fotografar algumas da fotos do álbum. Abaixo (figura 3) a imagem do seu vestido:

Figura 3: vestido de casamento da Carina, confeccionado no ateliê de Mena Fiala

Fonte: álbum da interlocutora

Paloma, apesar do curto período de tempo que permaneceu casada, revela que teria gostado de ter sua roupa até hoje em casa, mesmo que, eventualmente modificada e destacada para o uso cotidiano. No entanto, ela emprestou o vestido para uma conhecida. Isso, ela afirma, a deixa triste. O vestido, para ela, simbolizava “minha juventude, minha inocência, meu romantismo, meu apreço pela beleza”. A moça a quem emprestou nunca devolveu o vestido, e Paloma perdeu o contato com ela: “eu tenho um luto, assim, em relação a esse vestido (...) não queria ter perdido aquele vestido”.

Maria Hosana, como vimos, se casou com o vestido confeccionado com o tecido que a mãe trouxe da Itália (figura 4). Com saia ampla e chapéu, Maria saiu à pé para a igreja usando suas botas brancas que também foram trazidas da Itália. A bota, ela usou até que o calçado se decompusesse. O vestido, deu para uma sobrinha fazer um figurino numa peça de teatro. Em seu discurso, Maria parece não ter uma relação afetiva com o vestido. “Não foi o casamento dos meus sonhos, por isso, não liguei muito para o vestido”. A afirmação revela uma expectativa romântica para a união, e, ao mesmo tempo, e, em alguma medida, um desencanto. “Não sou eu, não foi um projeto meu” (foi um projeto da mãe, de quem ela se via como devedora). “O casamento não existe mais, não tem sentido para mim aquele vestido”. “Já pensei em fazer uma fogueira com as fotos (do casamento)”.

Figura 4: Maria Hosana com seu vestido – a tela nas mangas bufantes.

Fonte: a cervo da interlocutora

Priscila, Soninha e Lilian doaram seus vestidos, que foram usados por outras noivas. Priscila relatou que o vestido havia ficado guardado na casa da sua mãe por muito tempo, dentro de uma caixa de dimensões generosas e envolta em um papel especial para preservar o tecido. Numa das mudanças de casa, ela aconselhou a mãe a doar a peça, mesmo que nela esteja a materialização do trabalho e da história de vida da sua avó, hoje falecida. Segundo ela, sua mãe sentiu mais pela doação do que ela própria. Carolina, que permanece casada com seu primeiro marido, tem seu vestido até hoje e fala dele com carinho, embora reconheça que “está amarelado... nem sei onde guardei...”. Priscila e Lilian se casaram novamente, mas com uniões apenas registradas no âmbito civil. Usaram roupas especialmente confeccionadas para a ocasião, mas, segundo elas, nada de “especial”. Roupas que, afinal, se tornaram parte da vida cotidiana. Denise, que em seu casamento, usou o vestido da amiga, o devolveu para sua dona, que o usou na vida cotidiana (figura 5).

Figura 5: fotografia do vestido de noiva da Denise

Fonte: acervo da interlocutora

As fotografias, para elas, se tornaram a única lembrança da ocasião. Paloma, como já relatei, teve quase todas as suas fotos veladas, sobrando poucas, e com baixa qualidade (figura 6). Embora ela tenha percebido o fato como um “sinal” de que o seu casamento estava “começando mal”, Paloma lamenta não ter nenhuma lembrança da sua festa. Denise mostrou seu álbum com as provas das fotos, e pareceu não trazer consigo um interesse genuíno: “uma amiga ficou de fazer o álbum, mas nunca fez, mas tudo bem”. Carina foi a única que mostrou um álbum com qualidade profissional.

Figura 6: Paloma em seu casamento

Fonte: acervo da interlocutora

Essa geração de noivas sinaliza para um momento em que, mais forte do que o valor emocional, a cerimônia e o vestido foram opções para a reprodução social do rito. Nesse sentido, tentarei tecer alguns comentários finais, com o esforço de analisar as noivas, a biografia dos seus vestidos, e o componente eventualmente emocional (ou não) que o reveste.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para este trabalho não pretendo formalizar conclusões, mas gostaria de tomar algumas notas acerca das interlocutoras e suas relações com o casamento e a cultura material do rito, com destaque para a biografia dos vestidos.

A união entre indivíduos vem sendo celebrada nas diversas sociedades, embora apresentem características diferentes em termos de reprodução social dos rituais e da cultura material envolvidas. As diferentes formas de lidarmos com o casamento também motiva diferentes expressões emocionais. Apoiada em Coulanges (2004), tenho como premissa a ideia de que o casamento ocidental tradicional foi moldado pelas matrizes culturais das sociedades greco-romanas, inclusive no que se refere ao caráter religioso, que foi fortemente percebido entre as interlocutoras. Esse aspecto gera uma atmosfera em que a cultura material envolvida juntamente com as expectativas e a cultura de “realização”, contribuem para produzir em seus protagonistas o que Mauss (1980) definiu como a expressão de emoções. O ritual do casamento parece conter em si a predisposição de ser um momento para mostrar felicidade, mesmo que houvesse a desconfiança da felicidade, como no caso de Paloma que, abertamente, busca no mecanismo de defesa da dissociação, uma maneira de mostrar-se emocionalmente envolvida com a cerimônia. A despeito disso, no entanto, ela conserva um luto em relação ao vestido que se perdeu, não pela união que representou, mas por simbolizar sua juventude e um momento de expectativas românticas.

As mulheres investigadas pertencem a uma geração em que o casamento nos moldes tradicionais estava sendo posto em xeque. Esse aspecto pode ser observado tanto na ironia das repostas obtidas pelas mulheres que não se casaram na forma tradicional, quanto pelo aparente desinteresse mostrado pelas interlocutoras que se casaram usando seus vestidos de noiva ao discorrerem sobre a cerimônia e a cultura material envolvida.

Entre as interlocutoras com quem interagi e que se casaram usando um vestido de noiva, oito casos, apenas duas permanecem casadas com os noivos com quem compartilharam o ritual. Não posso avaliar o peso dessas separações na leitura atual de cada casamento, mas admito que o distanciamento tenha despertado um olhar mais crítico dessas mulheres em seus papeis de noivas na juventude.

Em outras pesquisas (Mezabarba e Goidanich, 2013), percebi que algumas roupas possuem um caráter afetivo e, por isso, se convertem em objetos contemplativos, como os vestidos da minha mãe e avó. Portanto, mesmo que não se prestem ao vestir, sua fruição se dá de outra forma, como memória – o que faz deles objetos para a posteridade, ou a materialização de uma vivência de outra época, transformada em uma espécie de “patrimonialização” desses objetos da mesma forma que ocorre com os museus. Minha expectativa era de haver uma relação de afeto das mulheres entrevistadas com os seus vestidos de noiva. A historiadora Michelle Perrot (1989 e 2017) se debruça em torno da busca de uma história das mulheres, e encontra na memória íntima que vai das roupas e enxovais, às fotografias de família, a perpetuação de histórias de vida. As interlocutoras deste trabalho, porém, lidam com seus vestidos de noiva (após a cerimônia) de formas diversas.

É preciso, no entanto, considerar aspectos de ordem prática. Devido à pompa com que é confeccionado, o armazenamento do vestido de noiva pode demandar espaço e mesmo condições para que a roupa não se deteriore. De modo pragmático, esses percalços talvez tenham contribuído para que o negócio dos alugueis de vestidos tenham tomado vulto, o que anula a possibilidade de guardá-lo como objeto de memória da cerimônia. Neste caso, o registro fotográfico, como bem elabora Santos (2009), é que se prestará a recriar aquele momento singular. O vestido seguiu sendo uma representação metonímica do casamento enquanto ritual, uma roupa na qual há um investimento financeiro e uma elaboração emocional para apenas uma noite, mas pode não permanecer nos armários como objeto de memória afetiva e uma fruição contemplativa pela própria impossibilidade de ser mantido ao longo da vida em espaços limitados. Nesse sentido, os critérios de escolha acerca dos objetos que representarão as histórias de vida dessas mulheres, as direcionaram ao descarte, de diversas formas, do vestido em questão, colocando também em xeque, a memória do ritual. Uma questão que se coloca, no caso específico deste campo, é o fato de que as mulheres que ainda permanecem casadas, falam com apreço dos seus vestidos e os mantêm guardados, ainda que não se lembrem bem onde eles estão. Ainda que encolham os ombros ao dizerem que eles estão amarelados e com o desgaste natural do tempo, não pude vê-los, porque sequer imaginavam onde eles estavam. Já as que se separaram, talvez estejam buscando a desvinculação metonímica do vestido a um estilo de vida que não lhes convém mais. Há porém, depoimentos como o de Paloma que, para além do casamento, o vestido lhe preservaria a memória de quem ela teria sido num passado, para ela, distante.

Ao fim, com um olhar para o casamento bem diverso do que foi a percepção da união de seus pais, essas mulheres afirmaram que a reprodução do rito teve uma conexão forte com o desejo das famílias, sinalizando, em alguma medida, a força da instituição. Essa atitude em relação ao casamento demonstra alguma ambiguidade, o que sinaliza para um “amor romântico” que não se concretizou. Maria Hosana deixa isso claro quando afirma que o namorado que amou não viveu para que se casassem. Assim, a expectativa do amor idealizado se dissolveu em outros relacionamentos, um dos quais, seria aquele com quem iria se casar. Por outro lado, ao pensar em Melina e em como vê a decisão de se casar como algo reversível, podemos inferir que, tanto quanto o vestido pode circular e desmobilizar a memória do ritual do casamento, quanto representar uma instituição já vista pelas interlocutoras como não tão sólida.

Os vestidos e suas biografias, no entanto, revelam a importância que, na ocasião, a cerimônia teria em suas vidas. As escolhas, confecção, o destino dado à peças e até mesmo o modo casual com que se referem, não somente ao vestido, mas a toda a cultura material que eventualmente simbolizou uma união que, contrariando as expectativas do amor romântico, se desfez antes do esperado, parecem acenar para um voto de confiança que essas mulheres deram à instituição do casamento, talvez na certeza de que a transição para um estilo de vida de “mulher casada” pudesse ser reversível.

Notas de fim de texto

Norteada pela posição da ABA – Associação Brasileira de Antropologia - informo que no Brasil, para a área de antropologia social, não sendo uma pesquisa sobre saúde, e sendo a pesquisa realizada com o consentimento dos interlocutores e a garantia de anonimato, sem que suas vidas sejam colocadas em risco, nem seu sustento ou formas de sociabilidade não há obrigatoriedade de submeter os protocolos éticos ao Comitê de Ética em Pesquisa com seres Humanos. Outrossim, ressalto que, como garantia de sigilo, os nomes dos participantes são trocados. Para mais informações ver: http://www.portal.abant.org.br/2013/07/09/comite-de-etica-em-pesquisa-nas-ciencias-humanas/ (acesso em 15/08/2023)

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