Resistência e criação: arte e moda em Fernanda Yamamoto

Milena Mayuri Pellegrino Ogushi

Mestra, Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil / milenaogushi@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4126-2491 / Lattes: http://lattes.cnpq.br/1589286686946842

Andréa Vieira Zanella

Doutora, Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil / avzanella@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8949-0605 / Lattes: http://lattes.cnpq.br/2409769589523805

Enviado: 20/12/2022 // Aceito: 25/05/2023

Resistência e criação: arte e moda em Fernanda Yamamoto

RESUMO

Este artigo tem por objetivo compreender de que modo se conectam criação e resistência na produção de Fernanda Yamamoto, estilista brasileira reconhecida nacional e internacionalmente, voltada para a edição n.52 do São Paulo Fashion Week, ocorrida em novembro de 2021. O processo de produção de informações para a pesquisa resultou da imersão no ateliê da artista no período que antecedeu ao desfile, e foram registradas em diário de campo. As discussões sobre o sistema hipermoda tecidas por Gilles Lipovetsky, somadas às ideias da arquitetônica da criação artística de Mikhail Bakhtin, dentre outras contribuições, fundamentam as análises que entretecem a criação de Fernanda Yamamoto com o campo da moda e o campo artístico. Os modos de criar, fazer e mostrar uma coleção marcam o posicionamento ético-estético-político da artista e sua equipe em relação à participação na semana internacional de moda de São Paulo e, numa perspectiva ampliada, ao grande contexto hipermoda.

Palavras-chave: Resistência; Arte; Fernanda Yamamoto.

Resistance and creation: art and fashion in Fernanda Yamamoto

ABSTRACT

This article aims to understand how creation and resistance are connected in the production of Fernanda Yamamoto, a Brazilian stylist recognized nationally and internationally, focused on the 52nd edition of São Paulo Fashion Week, which took place in November 2021. The production process of information for the research resulted from the immersion in the artist’s studio in the period that preceded the fashion show, and were recorded in a field diary. Discussions on the hyperfashion system woven by Gilles Lipovetsky, added to the ideas of the architectonics of artistic creation by Mikhail Bakhtin, among other contributions, underlie the analyzes that intertwine Fernanda Yamamoto’s creation with the field of fashion and the artistic field. The ways of creating, making and showing a collection mark the ethical-aesthetic-political positioning of the artist and her team in relation to participation in the international fashion week in São Paulo and, from a broader perspective, to the great hyperfashion context.

Keywords: Resistance; Art; Fernanda Yamamoto.

Resistencia y creación: arte y moda en Fernanda Yamamoto

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo comprender cómo la creación y la resistencia están conectadas en la producción de Fernanda Yamamoto, estilista brasileña reconocida a nivel nacional e internacional, enfocada en la edición n.52 de la Semana de la Moda de São Paulo, que tuvo lugar en noviembre de 2021. El proceso de producción de información para la investigación resultaron de la inmersión en el estudio de la artista en el período previo al desfile, y fueron registradas en un diario de campo. Discusiones sobre el sistema hipermoda tejido por Gilles Lipovetsky, sumado a las ideas de la arquitectónica de la creación artística de Mikhail Bakhtin, entre otros aportes, subyacen en los análisis que entrelazan la creación de Fernanda Yamamoto con el campo de la moda y el campo artístico. Las formas de crear, hacer y mostrar una colección marcan el posicionamiento ético-estético-político de la artista y su equipo en relación a la participación en la semana internacional de la moda de São Paulo y, en una perspectiva más amplia, al gran contexto de la hipermoda.

Palabras clave: Resistencia; Arte; Fernanda Yamamoto.

1. INTRODUÇÃO


À palavra moda não se avizinham as ideias mais reconhecidas ao inscrevê-la dentre os feitos culturais que a humanidade historicamente produziu. A maneira pela qual o fenômeno se imiscuiu aos modos de vida modernos manteve as rédeas curtas, ao longo do século XX, para que suas questões permanecessem atadas a valores superficiais, banais e levianos.

Ao quebrarem a casca aparentemente adornadora da moda, alguns intelectuais atentaram-se à difusa mobilidade e destreza com que ela se dinamiza compassadamente às condições capitalistas (Barthes, 1981; Simmel, 2014; Souza, 1987). Dentre eles, propõe-se um diálogo mais detidamente com o filósofo Gilles Lipovetsky (2005; 2009; Lipovetsky; Serroy, 2015), uma vez que suas reflexões são caras à compreensão das estratégias pelas quais a moda adentra o século XXI e se atualiza em relação às lógicas mercantis e de individualização, desdenhando algumas práticas pregressas ao mesmo tempo em que se renova por outras mais afinadas à extensão tecnológica que alcança nossos modos atuais de existir.

O presente artigo apresenta resultados de uma pesquisa realizada com Fernanda Yamamoto, estilista brasileira reconhecida nacional e internacionalmente. Ao analisar o processo de criação de obras para participação da artista na edição n.52 do São Paulo Fashion Week (SPFW), ocorrida em novembro de 2021, objetivou-se compreender de que modo se conectam criação e resistência na produção da artista voltada para esse evento internacional e, por conseguinte, para o contexto global da moda. As discussões sobre o sistema hipermoda tecidas por Gilles Lipovetsky (2005; 2009; Lipovetsky; Serroy, 2015), somadas às ideias da arquitetônica da criação artística de Mikhail Bakhtin e seu Círculo e contribuições de autores como Moacir dos Anjos (2014) e Nicolas Bourriad (2009), entretecem o diálogo entre a criação de Fernanda Yamamoto, o campo da moda e o campo artístico, ao mesmo tempo em que nos possibilitam compreender o modo como, por meio de uma participação que tensiona (acorda, nega, negocia), resiste aos paradigmas de um evento consagrado no mundo da moda.

2. CAMINHO METODOLÓGICO


O processo de produção de informações para a pesquisa teve como lócus a experiência imersiva entre os dias 09 e 19 de novembro de 2021, no ateliê de Fernanda Yamamoto, localizado na cidade de São Paulo. Na ocasião, sua equipe preparava as criações que seriam apresentadas no desfile/exposição SPFW N.52, em sua primeira edição presencial pós-pandemia. Além da vivência no ateliê, o processo de pesquisa envolveu também uma ida prévia ao local do desfile, o Centro Cultural São Paulo (CCSP), junto com Fernanda Yamamoto, e o acompanhamento do desfile propriamente.

No ateliê, conviveu-se intensamente e diuturnamente com o espaço no qual são elaboradas as criações artísticas e comerciais: compartilhou-se dos instrumentos que utilizavam, compreendeu-se os modos de trabalho e, principalmente, conviveu-se com as pessoas que “fazem tudo acontecer”. Além de Fernanda Yamamoto, diretora criativa da marca, conheceu-se o pessoal que integrava a equipe e trabalhava entre ateliê e loja, a saber: um coordenador de estilo e modelagem, duas modelistas, uma coordenadora de produção, um estilista, uma pessoa no atendimento da loja física e outra no atendimento da loja online, uma organizadora dos espaços ateliê e loja, um cortador, uma assistente de produção e duas piloteiras. Outras pessoas também frequentaram o ateliê, no período em que lá esteve uma das pesquisadoras, na condição de colaboradores/as ocasionais da preparação do desfile (modelista, bordadeiras, costureira, dentre outras). Pode-se dizer que a pesquisadora também atuou como colaboradora ocasional nesse processo, pois a formação em moda possibilitou o desenvolvimento de atividades que lhe oportunizaram fazer parte, de certo modo, da equipe.

A intensidade da experiência foi traduzida nos registros imagéticos e em diário de campo, sendo transformada em escrita da pesquisa, entretecida com reflexões teórico-metodológicas desenvolvidas na perspectiva bakhtiniana (Jobim; Souza; Albuquerque, 2012; Machado; Zanella, 2019). Investigar em ciências humanas, afirmam Jobim; Souza e Albuquerque (2012), é compreender a pesquisa como um acontecimento singular, feito de encontro e confronto, de enunciados em tensão.

Bakhtin (2018) propõe compreender o que se ouve, vê e lê na condição de enunciados concretos que estão a comunicar alguém sobre alguma coisa do mundo, valorando-a. Trata-se, assim, de trabalhar, na pesquisa, com enunciados proferidos em determinadas condições como resposta a discursos outros, em uma cadeia de comunicação intensa, incessante e ininterrupta. Sendo assim, para compreender um enunciado, seja ele verbal, gestual, imagético ou objetivado de outra forma, faz-se necessário considerá-lo em relação, enformado pelas condições de possibilidade de contextos imediatos e mais amplos, históricos e sociais. Todo e qualquer enunciado está entretecido com vozes sociais de variados tempos e espaços (Jobim; Souza; Albuquerque, 2012).

Do acontecimento vivido em campo, foram selecionadas cenas, montados recortes e alinhavadas peças que organizaram e unificaram o acontecimento da pesquisa, dando-lhe um acabamento estético. Este acontecimento-texto expressa uma escolha de narrar e contar o mundo e, ao mesmo tempo, produzi-lo (Bakhtin, 2014). O conteúdo especifica-se, assim, na singularidade dos saberes produzidos na interação com vários outros, enformado em texto de pesquisa. Não há, pois, como admitir ser esta uma pesquisa neutra: o saber produzido está imiscuído de sentidos aos quais o/a pesquisador/a é parte ativa tanto na sua produção em campo como também na escolha que faz dos fragmentos dessas interações de múltiplas vozes que a pesquisa proporcionou compreender.

3. O EMARANHADO DO SISTEMA HIPERMODA

A figura do estilista foi fundamental para a estruturação da moda como sistema moderno ocidental, bem como de sua contínua atualização às reformulações do regime capitalista globalizado. À similitude de pintores, poetas, escultores e outros profissionais do campo artístico, porém alguns séculos mais tarde, já no século XIX, costureiras/os reivindicavam o reconhecimento social de sua condição de artistas. Ao abrir a própria casa de moda em Paris, em 1857/58, Charles-Frédéric Worth enalteceu seu “talento artístico singular”, criando novos modelos periodicamente; o costureiro apresentava-os à clientela em ocasiões específicas em que mulheres jovens portavam os exemplares; ao mesmo tempo, apresentava à moda um estilo de criação e comercialização do vestuário feminino inéditos à organização vigente – na qual “modelos fixos” eram ligeiramente alterados pela cliente, conforme gostos e preferências, e executados sob encomenda pela/o costureira/o (Lipovetsky, 2009; Lipovetsky; Serroy, 2015).

O gesto de Worth, contudo, representava menos um ato revolucionário individual do que o marco de uma configuração social e historicamente constituída das condições de uma época. Vigotski (2018) ensina a esse respeito:

Qualquer inventor, mesmo um gênio, é sempre um fruto de seu tempo e de seu meio. […] Nenhuma invenção e descoberta científica pode surgir antes que aconteçam as condições materiais e psicológicas necessárias para seu surgimento. A criação é um processo de herança histórica em que cada forma que sucede é determinada pelas anteriores (Vigotski, 2018, p. 44).

Foi apenas em uma sociedade que se transformava em direção à adoção de ideais individualistas, igualitários e de liberdade, ao passo que se distanciava progressivamente das normas da tradição, da moral religiosa e de valores aristocráticos – compondo um cenário amplo no qual mudanças políticas e avanços tecnológicos igualmente operavam – que firmava-se a possibilidade de a/o costureira/o impor-se como artista, assinar seus modelos (a exemplo dos artistas modernos) e obter reconhecimento como tal pôde emergir.

O culto da moda e de seus criadores encontrou espaço para existir e proliferar quando os novos valores erigidos significavam a dignificação do humano e de suas coisas terrenas, expressavam o desejo pelo novo, o interesse pelas questões da aparência, maior sensibilidade aos detalhes e às frivolidades. Foi nessa atmosfera que a moda moderna instituiu-se em sua primeira versão, denominada Alta Costura: casas de luxo legitimadas pela tradição do domínio de um ofício artesanal, o savoir-faire, associada à consagração do talento original do criador (surge a tradição de um nome, uma marca); produção concentrada principalmente em Paris, com exportação para outras partes do mundo, ditando e renovando as regras do vestuário elegante, com exclusividade, até meados do século XX (Lipovetsky, 2009; Roux, 2005).

Ainda que essa organização da moda moderna estivesse, inicialmente, circunscrita a um restrito mundo privilegiado ocidental, torna-se relevante a recapitulação de sua origem precisamente porque são seus traços elementares que se expandiram progressivamente aos quatro cantos do mundo e permitem compreender o atual estágio da moda como um sistema “hiper”: o ritmo de criação acompanhando as estações do ano, as coleções apresentadas por modelos vivos e, especialmente, uma nova qualidade para o ofício da/o costureiro, cuja competência associou-se ao mérito artístico e à inovação, permanecem arquitetando a moda contemporânea (Lipovetsky, 2009). As semanas internacionais de moda, as Fashion Weeks, por exemplo, representam a planetarização desses mecanismos, e o aparecimento das ditas “capitais da moda” (Paris, Milão, Londres, Tóquio e Nova Iorque) validam tanto os centros concentradores de posições de poder, decisão e de atenções midiáticas quanto a dinâmica hierarquicamente estruturada desse sistema (Ogushi; Zanella, 2022; Volonté, 2012).

Desfazendo seu contrato de exclusividade com o luxo ostentatório, fundiu-se a moda à produção em série, porém estilizada. Presunçosa em seu livre-arbítrio, pegou essas linhas gerais que a sistematizaram e, sem dever nada aos que lhe “deram vida”, aqueles criadores da elegância, prolongou-as, finda a Segunda Guerra Mundial, às novas condições tecnológicas, culturais, econômicas e sociais emergentes (Lipovetsky, 2009; Vincent-Ricard, 1989).

Ascenderam os estilistas e, em colaboração com a indústria, passaram a oferecer produtos de moda inspirados nas últimas tendências, com maior qualidade, a preços mais ou menos baixos. Eles alcançaram o status dos criadores pioneiros, personalizaram a produção em série com um nome, uma imagem de marca, disseminaram os pólos criativos e a pluralidade das inspirações – desatrelaram-se da imitação barata do chique, inventaram seus próprios temas, inspiraram-se nos novos valores erigidos: a juventude, o esporte, o lúdico, a urbanidade, o novo, a vontade de viver o presente – e usufruíram do poder da publicidade, exibindo-se em revistas, vitrines, eventos e nas próprias estampas e etiquetas. Sem pedir licença, a partir de meados do século XX, as roupas prêt-à-porter (ou ready to wear1) invadiram a passarela, antes reservada às elaborações suntuosas do luxo. As regras de legitimação do criador de moda desconectaram-se do ofício que fundava a tradição para desregrar-se: já não há normas estritas que garantam ou excluam um nome do palco, elas afrouxaram-se em direção à novidade do espetáculo oferecida na ordem do dia (Lipovetsky, 2009; Lipovetsky; Serroy, 2015; Vincent-Ricard, 1989).

Diversificação, inovação, personalização, estetização: esses processos, despontados com o prêt-à-porter, elevaram-se estratosfericamente ao longo das últimas décadas, afirmam Lipovetsky e Serroy (2015). E aqueles princípios gerais de regulação da moda, herdados de seu período inaugural, foram remodelados. Em nossa era “hiper”, possibilitada pelas novas condições de criação, comunicação e fabricação computadorizadas, nada mais representativo do que as fast fashions. É o tempo da criação rápida, produção rápida, exibição rápida, consumo rápido; sem intervalo, o fluxo é contínuo.

O calendário sazonal e bianual que organizava o lançamento de tendências e modelos no mundo da moda não se sustenta mais sozinho, agora ele é movido também pelas microtendências apresentadas em tempo real e por “qualquer pessoa”. Em 2021, a C&A, grupo holandês de fast fashion, anunciou a criação de coleções em 24 horas, surfando na onda de influenciadoras/es digitais pescados por analistas de microtendências em alerta ininterruptamente. Com essa pressa, a peça usada por uma vencedora do programa televisivo Big Brother Brasil ficou disponível para venda no dia seguinte (Istoé, 2021).

O cronograma do SPFW também correu: a partir de 2017, as datas dos desfiles foram reorganizadas para que ocorram simultaneamente ao lançamento dos modelos no varejo, abandonando, inclusive, a nomenclatura relacionada às estações do ano e adotando o número da edição. E vai além: no mesmo ano, imediatamente após o desfile, a Riachuelo, fast fashion brasileira, colocou à venda na própria passarela todas as peças da coleção assinada por Karl Lagerfeld (1933-2019), estilista de grifes como Chanel e Fendi). A empresa vendeu duas mil peças em quarenta minutos (VejaSP, 2017).

A passarela, agora, estende ainda mais o seu tapete e não garante qualquer exclusividade aos criadores; estes, se quiserem, que dividam o espaço com as fast fashions, com influenciadores digitais e com os próprios consumidores. Contudo, atenta-se para o jogo sorrateiro no qual a moda atua: não são quaisquer consumidores, pois participam de tais eventos um seleto grupo de convidados; ademais, uma empresa fast fashion só caminha sob os holofotes porque há uma assinatura estilística à frente. Ou seja, ainda que o prêt-à-porter e o sistema fast fashion tenham revolucionado e popularizado a produção e o consumo em moda, eventos como o SPFW não são de e para todos ou qualquer pessoa; continuam sendo passaporte de escalada das estrelas, entusiasmando o culto das celebridades ao passo em que conservam a devoção do público, como argumenta Walter Benjamin (2016). É preciso, afinal, dar uma cara ao anonimato da hiperprodução e do hiperconsumo; é preciso plasmar figuras conhecidas, laços afetivos ao universo mercantil estéril da renovação incessante, como reiteram Lipovetsky e Serroy (2015).

E, ainda, a imposição das grifes de luxo já não funciona mais como outrora. Isso não quer dizer, no entanto, que elas desapareceram. Ao contrário, aliaram-se, somaram-se a grandes conglomerados multimarcas, concentrando em um pequeníssimo número de empresas a capacidade de criar, produzir, comunicar e distribuir moda por todo o planeta. A gigante Louis Vuitton Moët Hennessy (LVMH), líder mundial em produtos de luxo, acumula mais de setenta marcas; e chegou em 2021 em dupla comemoração: o ducentésimo aniversário de nascimento de seu fundador e um aumento de 48% de sua receita em relação ao ano anterior, em pleno cenário pandêmico (Valor Investe, 2021). O mercado de luxo exibe mais que a glorificação de suas tradições, ostenta glamourosamente seu sucesso em penhorá-las à nova dobra capitalista, melhor ainda, em prosperar a despeito de uma crise mundial, como a pandemia ocasionada pelo coronavírus (COVID-19).

E engana-se quem acredita que seus produtos restringem-se a uma clientela rica tradicional em escala global, pois fazem parte de suas estratégias de conciliação à economia neoliberal e de enfrentamento à concorrência projetos de expansão entre a classe média – como investimento nos setores de acessórios, cosméticos e perfumes – e o público mais jovem. A grife italiana Gucci, por exemplo, lançou no ano de 2021 um tênis digital por doze dólares (ELLE, 2021). A marca, atenta à transformação tecnológica em nossas vidas, alastrou seu filão até os meios virtuais e criou roupas digitais apelando aos jovens que não podem comprar seu produto físico, na casa dos milhares de dólares, mas podem gastar doze dólares, ou cerca de sessenta reais, para “luxar” nas redes sociais. Iniciativas como essa notabilizam a movimentação de um luxo que “já não é tão destinado apenas à clientela de ‘elite’ quanto à parte ‘elitista de cada um’” (Roux, 2005, P. 94).

Nem diferenciação de classe, nem tendência homogeneizadora. O sistema de moda contemporâneo funciona mais como um grande maestro da desunificação e pluralidade que direcionam escolhas, afinando-se pelo tom do “individualismo desregulamentado” (Lipovetsky; Serroy, 2015, p. 361). Ou seja, orquestra-se a proliferação dos estilos (quais, quantos, de que modo), enquanto se pratica a renovação constante para dar conta de sujeitos voláteis, que se sentem “livres” para compor seus gostos e expressá-los por meio de sua aparência.

“Você tem seu estilo. A Renner tem todos” é o slogan da fast fashion brasileira Renner, que espalha toda essa pluralidade em mais de 400 lojas pelo país. Tem mesmo? Todos os estilos? Se as pessoas não se conformam mais à “última moda”, a maneira pela qual realizam-se na promoção de sua imagem pessoal circunscreve-se ao que consta nas prateleiras (e aí encontramos a tendência do momento diversificada em linhas específicas) e captura-as emocionalmente ou, em outras palavras, à capacidade do mercado em oferecer estilos que subjetivamente, afetivamente façam sentido para que sirvam à sua expressão individual.

A moda conversa agora com consumidores hipermodernos, que por sua vez usam-na para expressão (ou prisão?) de si; o contexto é o da bricolagem da tendência, do chique, do barato, do velho, da novidade, do descuidado, do feito à mão, da marca top de linha, da assinatura do luxo e do anonimato do grande consumo (Roux, 2005). Parece que tudo pode coexistir na composição de um estilo de aparência singular, como parte da elaboração de uma mensagem individual: um boné do Movimento Sem Terra (MST) e uma jaqueta jeans estampada “Planet Hollywood” podem vibrar no mesmo corpo, como observou-se certa vez em um evento musical.

Trata-se de um exemplo que chega a ser caricato dos tempos ultra flexíveis, onde os arranjamentos de signos que se colam ao corpo – e os valores que se movimentam com eles – podem ser tão contraditórios quanto aleatórios. E vale, inclusive, questionamentos como: quais sentidos podem produzir combinações como essa? O que dizem a respeito da constituição de sujeitos do mundo contemporâneo? O que se sabe sobre os valores que vêm associados às roupas que penduramos em nós? Quais pistas são dadas sobre modos coletivos de vida atuais?

Entre a aglutinação arbitrária e a repetição condicionada pelo mercado – manifestações subjetivas em matéria de aparência – persiste o jogo dissimulado de cerceamento da sensibilidade e da potência de criação humana que o atual regime estimula em prol de sua sobrevivência. Quer dizer, qualquer coisa, ideia, desejo, mobilização social, fantasia, pode ser “mercadorizada”, serializada e descolada de seu lugar de pertença, e isso “cola” justamente porque os processos de subjetivação foram penhorados à engrenagem capitalista: dessensibilizados, alienados, estancados num atoleiro de imagens, consumo e pixels, é uma luta encontrar caminhos de subjetivação que nos reconectem às afecções, a outros significativos e à própria vida; que desconformem modos de pensamento reproduzíveis em larga escala e contribuam para expandir nossa capacidade de imaginar e resistir (Rolnik, 2019).

O lamaçal alienante que engolfa corpos e subjetividades também costura as roupas, descolore a capacidade crítica do indivíduo acerca da outra pele que vai cobrir a primeira e acinzenta a potência imaginativa que poderia exercitar-se no criar e vestir dos corpos. Mas há fissuras nessa rede subjetivante; há possibilidades de discordar, acordar, encontrar, negar, tensionar, embolar-se no emaranhado em que funciona o sistema “hiper” e a ele de certo modo resistir. A costura da moda que Fernanda Yamamoto e sua equipe produzem oferecem pistas sobre esse possível.

4. Costuras de moda, arte e Fernanda Yamamoto

Benjamin (2016, p. 185) afirma que “A forma mais originária de inserção da obra de arte no contexto da tradição se exprimia no culto”. O SPFW é o culto dos tempos atuais, um semblante “hiper” renovado dos vestígios que a moda conserva; ele é a própria expressão da globalização desse sistema. Quando uma das pesquisadoras aceitou o convite de Fernanda Yamamoto para ir ao ateliê acompanhar a elaboração da performance/exposição YAMA, não era a temática de sua inserção em um evento midiático da moda o que atraia a sua atenção em primeiro plano, mesmo ciente de que a participação na referida semana de moda era a condição que despertava a produção daquele projeto.

O aceite ao convite levou ao envolvimento em um projeto que se inspirava em quimonos vindos da Comunidade Yuba, uma comunidade rural localizada no interior de São Paulo, fundada há 100 anos por imigrantes japoneses, onde conservam e cultivam, até os dias atuais, as tradições e costumes nipônicos. De um total de dez peças, três quimonos originais, feitos com saco de ração na década de 1960, foram retrabalhados, e a eles somaram-se sete outros quimonos criados e confeccionados no próprio ateliê. Organza de seda e algodão crú, principalmente, somados a técnicas têxteis japonesas (como o capitonê, o sashiko e o origami) e outras técnicas manuais, constituíram materiais e métodos de elaboração da coleção.

Apreende-se com Bakhitn (2020, p. 5) que pesquisar o ato de criação é deparar-se com um processo que “não escuta nem vê a si mesmo, escuta e vê tão somente o produto que está sendo criado ou o objeto a que ele visa”; assim, a pesquisadora se lançou em busca de sua (in)completude no conjunto das relações que iam se realizando e se fixando na materialização das peças em criação (Voloshinov, 2013), deixando-se afetar pelo que acontecia, pelo ritmo acelerado da produção e a intensidade dos encontros. Tais pressupostos teórico-epistemológicos abriram passagem para que ela se dedicasse a uma temática preliminarmente inesperada, mas que se sobressaiu ao favorecer o diálogo entre o trabalho da artista e sua equipe e os contextos mais amplos que configuram sentidos aos processos e obras produzidas, ao tempo e espaço nos quais se constituem as relações imanentes à criação de sua moda. Afinal, a destinação das peças – o corpo que ela vai cobrir, o chão onde pisará, a cena que irá compor – também participa ativamente da trama e da teia de relações que se tecem no processo de criação.

Uma conversa com Netto (profissional freelancer contratado para auxiliar na produção do desfile) forneceu pistas desse enredamento:

– Quanta gente daria tudo para estar no seu lugar. (Netto)

– Você acha? (pesquisadora)

– Com certeza! Tanta gente que vai trabalhar de graça no SPFW, pra poder dizer depois que “já fez SPFW”. Você pode colocar no seu currículo já! (Netto)

O lugar ocupado pela pesquisadora era cobiçado, segundo Netto. Nesse quesito, a função de pesquisadora importava menos que acompanhar e participar da elaboração de um desfile para o SPFW. Erguiam-se, em suas palavras, as relações perpétuas da moda com a exclusividade, o espetacular e a celebrização, condições tanto da emergência como da sua manutenção sistemática. Se, hoje, tecnologizaram o espetáculo, diversificaram os temas e as pautas, globalizaram o alcance de um nome ou uma marca, ampliaram os centros de comando, transmutaram a função diretamente comercial à comercial-midiática, o privilégio e suas cenas restritas glamorizadas permanecem organizando o funcionamento da moda e seus meios de midiatização.

A edição N.52 do SPFW, realizada em novembro de 2021, é ilustrativa: abriu, pela primeira vez, um lote de ingressos para venda ao público em geral. Contudo, os ingressos limitavam o acesso a desfiles específicos, apenas a lugares “em pé” (“categoria stand”) e o ingresso de menor valor disponível (R$ 100,00) não dava acesso à sala dos desfiles, apenas à entrada no espaço do evento (VOGUE, 2022). Avança-se na compreensão das táticas pelas quais a moda midiática se prolonga: para conseguir um passe de entrada nesse seleto circuito profissional, as pessoas chegam a se “voluntariar” ao trabalho. Fazer parte do show, mesmo por trás dos holofotes, é brilhar com ele e suas estrelas criativas, brilho que ofusca, e normaliza, os “sacrifícios” em prol do acesso ao círculo dos privilegiados, como já constatava Angela McRobbie (2003) em uma pesquisa sobre egressos do curso de moda, na década de 1990.

Na trama das circunstâncias que comprometiam a criação das peças, o evento-destino dos quimonos produziu também a oportunidade de uma ida prévia ao Centro Cultural São Paulo, acompanhando Fernanda Yamamoto. No caminho, ela contou:

– O processo de fazer dois desfiles por ano era uma loucura, muito corrido. (…) Não dava tempo, tinha que entregar daquele jeito. Hoje, eu olho e falo “nossa…” e, na época, também não… E, aí, ninguém fazia isso de participar do SPFW uma vez só por ano e eu falei pra eles ‘se vocês quiserem que eu participe, vai ser uma vez por ano ou a cada ano e meio’ porque se é pra fazer, é pra fazer do jeito que a gente acredita, com trabalho manual, com pesquisa… (Fernanda Yamamoto)

A arte, diz Cecília Almeida Salles (2011, p. 141), “tem o poder de aumentar a compreensão do mundo. A criação pode, assim, ser vista como processo de produção de conhecimento” e, por isso, sua natureza é investigativa, realiza-se com pesquisa, como disse Fernanda. Ao resguardar sua produção da feitura às pressas, sob pressão do calendário bianual do evento, Fernanda a associa a uma característica fundamental do acontecimento artístico: a demanda por “tempo de maturação mental” (Salles, 2011, p. 149), pois é no processo de testagem e avaliação contínuas que a obra vai se materializando.

Simultaneamente, Fernanda Yamamoto comunica que elege as processualidades da criação aprofundada e da atividade manual, às quais empenha esforço e experimentação por meio de construções de pensamento e de materialidades compartilhadas, em detrimento da repercussão midiática a qualquer preço, de mais um produto resultante da rapidez, da ação mecânica, do fazer reificado, da requisição pela inovação.

Percebeu-se, nos dias em que a pesquisadora esteve presente no ateliê, que a materialização dos quimonos ocorria por meio de uma rede que conectava inúmeras tarefas, percepções criativas e profissionais habilidosas/os; erguiam-se em um processo coletivo de criação e execução. É assim que a artista institui um tempo próprio à criação: persegue processos outros como alicerces de seus modos de trabalho, de criar e fazer moda, de participar da semana de moda de São Paulo.

O resultado alcança uma interseccionalidade artística com o campo da moda. Valentin Voloshinov (2013) ensina que uma obra é artística somente no processo da interação entre criador/a e receptor/a, sendo precisamente nesta relação que se realiza o acontecimento essencial da arte. Aqui, é importante salientar que o autor se refere ao receptor (ou ouvinte) como aquele que participa do discurso interno do/a criador/a; não se trata do público real que conhece a obra, mas de um elemento que representa internamente o grupo social com quem o/a criador/a dialoga e que, nessa medida, orienta e estrutura o acontecimento da criação artística. Isso é especialmente relevante porque possibilita compreender a condição artística que compromete Fernanda a preparar suas obras vestíveis: uma produção que se vivifica na interação estética realizada “plenamente na criação da obra e nas suas constantes recriações mediante a contemplação criativa conjunta, e não necessita de nenhuma outra objetivação” (Voloshinov, 2013, p. 76).

Portanto, Fernanda e equipe firmam suas criações eminentemente pela comunicação artística, à diferença da profusão de apresentações que acessamos no mesmo evento, cuja constância se regenera em incansáveis criações estruturadas por especulações e demandas mercantis “que nascem, vivem e morrem nas folhas das revistas, (…) sem nos conduzir a nada que se encontre além dos seus limites”, como Bakhtin (2014, p. 37) argumenta ao discutir a problemática do conteúdo do objeto estético. E, ainda que, recentemente, algumas criações encarnem temas urgentes aos quais a moda tardou em se filiar, como discussões raciais, corporais, dentre outras, as peças em si, comumente, confundem-se ou reduzem-se a comunicações políticas, ideológicas ou morais, combinadas ao interesse mercadológico. Entre estas e as criações comerciais cosmeticamente concebidas e compelidas ao impacto visual, entregam-se produtos e, como tais, adiantam na passarela o que visam as vitrines. Aí, com raras surpresas, não se encontra desígnio artístico.

Diversamente, quando Fernanda Yamamoto substitui produtos ordinariamente desfilados por peças artísticas, com elas exerce o “dever crítico” da arte, como Nicolas Bourriaud (2009, p. 94) auxilia a compreender: desloca os conteúdos fixados pelas diretrizes mercadológicas habitualmente iluminados pelos holofotes da passarela. Em vez de rostos ocidentais, modelos-corpo-padrão, cortes, cores, tecidos e formas propondo tendências ou apostando no sucesso da estação, atravessando a passarela ao som de mais um novo hit, no desfile de sua marca caminham pelos corredores suspensos do vão central do CCSP rostos orientais, moradores e ex-moradores da comunidade Yuba vestindo quimonos tradicionais japoneses, enquanto um grupo de taiko1 ressoa tambores nipônicos.

Símbolo da cultura japonesa, os quimonos mantém vivos, para imigrantes japoneses que vivem no Brasil, como os integrantes da comunidade Yuba, os laços com a tradição e seus ancestrais. Preservá-los, recriá-los e levá-los à passarela da moda ecoa uma valorização tanto das culturas tradicionais, especificadas ali pelas expressões vestimentares nipônicas, como dos modos de viver instaurados na própria comunidade Yuba, confrontantes à uniformização cultural que o capitalismo faz alastrar ao redor do globo. Ainda, notabiliza o processo de ocidentalização despontado no próprio Japão em meados do século XIX e que levou seus costumes à progressiva substituição da seda, do cânhamo, do quimono, do chapéu de bambu trançado, das sandálias e da feitura manual, ao paletó, camisa, gravata e sapato; à tecelagem mecânica e à produção serializada (Ribeiro; Santos, 2017).

Esquemas sensíveis são tensionados com a arte/criação de Fernanda Yamamoto e sua equipe, em desfile na SPFW: gestos, imagens e percepções fundem-se em uma e outra via de apresentação de roupas e de moda, e vão (re)produzindo sentidos. É justamente na relação com o sensível que está imbricada a criação de sentidos, atentam Ana Maria do Valle e Jô Gondar (2014, p. 652): o sensível é, por assim dizer, “um conjunto de forças sem significação verbal”, sua apreensão é da ordem intuitiva, sensorial, extrapola o raciocínio lógico e a representação simbólica. Enquanto o conteúdo da obra de arte pertence ao campo ético, exprime uma posição valorativa em relação ao fragmento de realidade que o/a artista identifica, isola e encarna em seu objeto estético, o sensível é inerente ao conjunto arquitetonicamente arranjado entre material, forma e conteúdo.

Com a diligência de Fernanda Yamamoto e equipe, a composição de seda, algodão, linhas e quimonos condensa uma relação axiológica de seus criadores com aquele mundo-tema e a Comunidade Yuba. Em seu conjunto, são capazes de deslocar conteúdos ao mesmo tempo em que desestabilizam os/as espectadores/as do “conforto perceptivo” (Valle; Gondar, 2014, p. 652) instaurado na vida e em um evento midiatizado consagrado no mundo da moda.

Retoma-se a ida de Fernanda Yamamoto e pesquisadora ao Centro Cultural São Paulo e prossegue-se com um pouco mais da conversa:

– Por que você escolheu não fazer o desfile no Ibirapuera, junto com os demais? Por que quis trazer para o Centro Cultural São Paulo? (Pesquisadora)

– Porque no Ibirapuera não alcança as pessoas, fica só no mundo da moda. A gente cogitou também o Farol Santander, alcançaria muito mais pessoas, tem uma circulação muito maior de gente. Mas o espaço do Centro Cultural é melhor. (Fernanda Yamamoto)

O Centro Cultural São Paulo é uma instituição pública, próxima ao centro da cidade e ao lado de uma estação de metrô; concentra diversos projetos culturais, exposições e atividades educativas com acesso gratuito. Ao optar por apresentar seu trabalho nesse espaço, a artista distanciava-se das salas de culto do estrelato para o público do marketing-moda, abrindo fissuras que a possibilitaram escapar dos rituais explicitamente forjados pelas relações de consumo, de produtos, de imagens do glamour; construía, assim, ainda que provisoriamente, um espaço para sua arte acontecer e ser acessada pelas pessoas da cidade, pelo público em geral que ocasionalmente circula por ali, transferindo-a para um local de convívio legitimado, donde podem advir “modos heterogêneos de socialidade”, como sugere Bourriaud (2009, p. 44).

Com essa escolha, nota-se que conteúdos, sensibilidades e, compassadamente, o formato e a própria funcionalidade do evento foram de certo modo deslocados. A proposta de Fernanda Yamamoto estendeu a efemeridade do caminhar da passarela à duração de uma exposição artística na sequência do desfile, que permaneceu por quinze dias no CCSP, exibindo quimonos e outros objetos produzidos pela Comunidade Yuba lado a lado com suas próprias criações, cunhadas em diálogo com a tradição. Em seu conjunto, o trabalho de Fernanda e equipe desacomodou o eixo de funcionamento midiático-comercial como veia principal do SPFW, resistiu a práticas instituídas no mundo da moda e afirmou-se como resistência, possibilitando ao artístico emergir como centralidade naquele contexto.

Por outro lado, se tensionamentos que se forjam na/pela participação da artista no SPFW são percebidos, faz-se importante observar também que a marca Fernanda Yamamoto, ao se integrar nesses meios tradicionais de midiatização da moda deles participa e com eles contribui (mesmo afastando-se em conteúdo, em proposta ou no espaço). Integrar a SPFW garante visibilidade, fortalece e glamoriza sua imagem, o que acontece com todos/as que constam nas programações oficiais desses eventos.

As semanas internacionais de moda alcançam os tempos atuais como um meio espetacular primordialmente a serviço da repercussão midiática e de comunicação de um nome com o mundo. Nesses termos, Fernanda Yamamoto negocia uma entrada outra para o mesmo show: o SPFW configura-se como o “necessário contexto extratextual” (Bakhtin, 2020, p. 406) de sua arte, envolve-a ao enredo maior do campo da moda e dá contorno à complexidade da produção cultural contemporânea.

E a compreensão de Bourriaud (2009) sobre a flexibilidade da arte soma nessa discussão: no mundo das mercadorias, a arte adquire um valor de troca comercial, mas não perde sua “natureza comunicativa”, ou melhor, conserva aquilo que lhe confere valor artístico, uma potência de transformação, a despeito de como o mercado a manipula. Trata-se a arte de “atividade de troca que não pode ser regulada por nenhuma moeda (…): ela é distribuição de sentido em estado selvagem” (Bourriaud, 2009, p. 59), uma vez que é a prática do artista e o próprio objeto artístico que circunscrevem as relações que a obra produzirá com as pessoas e o mundo.

Parece que Fernanda Yamamoto usa a potência de reverberação desses eventos glamorizados e institucionalizados, produzindo uma torção, estilhaçando-a e desestabilizando sua função primeira, comercial-midiatizada-espetacularizada, bem como elevando seu projeto artístico ao primeiro plano. É seu modo de resistir à lógica de processos subjetivadores em moda que, deliberadamente ou não, capturam indivíduos nas teias do próprio capital, contribuindo assim para reproduzi-lo.

A inserção da estilista brasileira nesse universo da moda celebrizável não alcança o consenso, não se entrega conformadamente; Fernanda Yamamoto o aceita no limite de sua possibilidade artística, enquanto oportunidade de realizá-la no tempo que comporte seu processo criativo, de comprometer-se ao acontecimento de uma criação conectada à vida, de reverberar um olhar em relação à moda e uma visão de mundo a partir do entrelaçamento ético de sua produção. Sua participação nesse universo é acompanhada de insistentes recusas e desentendimentos, e, nelas e por elas, anuncia um posicionamento que é político ao ocupar e ao mesmo tempo resistir a esses “espaços da moda”. É como Moacir dos Anjos (2014, p. 11) compreende, à espreita do pensamento de Jacques Rancière, que o conceito de política seria:

[...] todo movimento de corpos, todo gesto feito, toda palavra dita, todo som emitido ou toda imagem criada que abre fendas e cria brechas nos consensos e nas convenções que organizam a vida em um determinado lugar e em um dado tempo.

Por estes ângulos, a movimentação de Fernanda Yamamoto no contexto da moda espetacular é expressão de sua condição axiológica no mundo: provoca fissuras nas práticas, valores e estratégias convencionalmente estabelecidas que asseguram o funcionamento regrado de tais eventos em níveis nacional e internacional. Sua arte posiciona-se politicamente porque opera numa dimensão estética que abre fendas possíveis à alimentação de outras imagens, à emanação de outros sons, à marcação de outros chãos, à composição de outros ritmos, à instauração de outras sensibilidades.

Não é possível dimensionar o potencial transformador destas operações artísticas, não cabem em planos ou planilhas o que a arte é capaz nos abalos de nossas certezas (Anjos, 2014). Arte e política se dissipam com a mesma facilidade, ou dificuldade, com que aparecem, mas ao desestabilizarem os referenciais do dizível e do visível destes espaços, os visibilizam; e criam, assim, oportunidades de localizar e questionar as próprias normas que os convencionam e sutilmente operam no funcionamento da moda.

Assim, o comprometimento ético-político-estético de Fernanda Yamamoto e equipe faz de sua arte a possibilidade de uma moda disruptiva ao instaurá-la como condição para dialogar com a moda midiática, convida ao encontro com sua leitura de mundo singular e, ao mesmo tempo, à aventura pelo desconcerto que é experienciá-lo quando visto, ouvido e percebido pelas maneiras sensíveis da arte.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O acompanhamento do trabalho no ateliê de Fernanda Yamamoto possibilitou recolher e analisar vestígios de processos de criação e resistência no campo da moda. Os modos de criar, fazer e mostrar uma coleção marcam o posicionamento ético-estético-político da artista e sua equipe em relação à participação na semana internacional de moda de São Paulo e, numa perspectiva ampliada, ao grande contexto hipermoda. Entre consensos, recusas e tensionamentos, esse posicionamento traz a possibilidade de uma moda disruptiva.

Fernanda Yamamoto poderia firmar-se na recusa em perambular pelo meio espetacular. Mas não. A criadora condiciona a preparação de um desfile à criação de uma obra com significado artístico; ela e equipe produzem arte e a levam ao epicentro da moda. Ao fazê-lo comunica arte à moda, moda à arte e arte vestível ao mundo; veicula também seu nome, o faz por outras lentes, contudo. Desafiando convenções e regras, bagunçando o conforto perceptual que ancora um dos principais eventos de marketing da moda global, a artista intersecciona arte, moda e política. O mais interessante é que se, com isso, amplia as possibilidades de aprendermos seu nome, nos oferece amalgamado a ele a oportunidade de tensionar o que é (re)conhecido como moda.

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