O ciclo de vida de produtos artesanais têxteis e a sustentabilidade



Livia Teixeira Duarte

Mestre, Universidade de São Paulo / liviatduarte@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7309-9238/ Lattes: http://lattes.cnpq.br/5807647717335355


João Paulo Pereira Marcicano

Doutor, Universidade de São Paulo / marcican@usp.br
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-8509-8259 / Lattes: http://lattes.cnpq.br/5855243848367851

Enviado: 20/09/2022/ Aceito: 06/07/2023

O ciclo de vida de produtos artesanais têxteis e a sustentabilidade

RESUMO

O artigo tem como objetivo analisar os aspectos sustentáveis presentes no ciclo de vida de produtos artesanais têxteis. Os dados foram obtidos por meio de revisão de literatura e a metodologia da História Oral, sendo realizadas entrevistas com artesãs da região de Ipameri, Goiás. A análise dos dados ocorreu segundo modelo proposto por Lima et al. (2017). Existem diversas pesquisas que discutem a relação do meio de produção artesanal e a sustentabilidade, mas ao que se saiba, a análise do ciclo de vida dos produtos que foram produzidos de forma artesanal no Brasil é inédita. A pesquisa é importante para o registro histórico dos fazeres artesanais têxteis e para se repensar os paradigmas atuais de produção têxtil e do vestuário. No estudo foram apresentados e sistematizados os procedimentos e materiais utilizados na produção dos têxteis. A análise do ciclo de vida foi feita de forma qualitativa e demonstrou que vários critérios do modelo de sustentabilidade seguido, referentes à dimensão ambiental, são atendidos. Assim, é possível afirmar que o ciclo de vida analisado possui aderência aos ideais da sustentabilidade e que o produto artesanal têxtil carrega muitas contribuições para se pensar um modelo de produção mais sustentável.

Palavras-chave: Produção Artesanal Têxtil; Sustentabilidade Têxtil; Análise de Ciclo de Vida.

The life cycle of textile craft products and sustainability



ABSTRACT

The article aims to analyze the sustainable aspects present in the life cycle of handcrafted textile products. Data were obtained through a literature review and the methodology of Oral History, with interviews conducted with artisans from the region of Ipameri, Goiás. Data analysis took place according to the model proposed by Lima et al. (2017). Several studies discuss the relationship between handcrafted production and sustainability, but as far as is known, the analysis of the life cycle of products that were produced in an artisanal way in Brazil is unprecedented. The research is important for the historical record of textile crafts and for rethinking the current textile and clothing production paradigms. In the study, the procedures and materials used in the production of textiles were presented and systematized. The life cycle analysis was carried out qualitatively and demonstrated that several criteria of the sustainability model followed, referring to the environmental dimension, are satisfied. Thus, it is possible to state that the analyzed life cycle adheres to the ideals of sustainability and that the handcrafted textile product carries many contributions to thinking about a more sustainable production model.

Keywords: Artisanal Textile Production; Textile Sustainability. Life Cycle Analysis.

El ciclo de vida de productos textiles artesanales y la sostenibilidad

RESUMEN

El artículo tiene como objetivo analizar los aspectos sustentables presentes en el ciclo de vida de productos textiles artesanales. Los datos fueron obtenidos a partir de una revisión de la literatura y de la metodología de la Historia Oral, con entrevistas realizadas con artesanos de la región de Ipameri, Goiás. El análisis de los datos se realizó de acuerdo con el modelo propuesto por Lima et al. (2017). Hay varios estudios que discuten la relación entre la producción artesanal y la sostenibilidad, pero hasta donde se sabe, el análisis del ciclo de vida de productos producidos de forma artesanal en Brasil es inédito. La investigación es importante para el registro histórico de la artesanía textil y para repensar los paradigmas actuales de la producción textil y de confecciones. El estudio presenta y sistematiza los procedimientos y materiales utilizados en la producción de textiles. El análisis del ciclo de vida se realizó cualitativamente y demostró que se cumplen varios criterios del modelo de sostenibilidad seguido, referidos a la dimensión ambiental. Así, es posible afirmar que el ciclo de vida analizado se adhiere a los ideales de la sostenibilidad y que el producto textil artesanal puede contribuir para un modelo productivo más sostenible

Palabras clave: Producción Textil Artesanal; Sostenibilidad Textil; Análisis Del Ciclo De Vida.

1. INTRODUÇÃO

No Brasil, as práticas artesanais têxteis foram registradas por cronistas viajantes (Leal, 1892), folcloristas (Cascudo, 2015) e estudiosos (Holanda, 1994) ao longo dos anos, mas só na década de 1980 começam a se tornarem mais frequentes pesquisas acadêmicas sobre o tema. Possivelmente incentivados por uma política institucionalizada de preservação da cultura (Borges, 2011), vários estudos passam a abordar unicamente esses fenômenos, tendo a tecelagem artesanal como destaque (Garcia, 1981; Geisel; Lody, 1983; Marconi, 1981). São obras que enfocam os aspectos antropológicos e sociológicos de práticas têxteis. A partir de então, os processos artesanais têxteis não são contados somente por vestígios materiais, relatos escritos ou estudiosos do tema, mas também por quem os faz.

O presente artigo pertence a esta categoria de estudos. Utiliza a literatura já existente sobre o tema e o método da História Oral para entender a tecnologia artesanal têxtil realizada na região de Ipameri (GO), em contexto campesino, a partir dos relatos de mulheres que praticaram a tecelagem, a costura, a fiação, entre outros processos.

Por séculos o modelo de produção manual foi predominante em todo mundo. Ferramentas para limpeza de fibras, fiação e tecimento das tramas eram quase que unicamente movidos pelo esforço humano. Somente com o advento da Revolução Industrial, no século XVIII, esse cenário se alteraria. Como se sabe, foi a partir desse momento que o trabalho dos homens começou a ser amplamente substituído pelo das máquinas, ocasionando uma mudança de paradigma radical na produção têxtil. Modificações nos dispositivos de fiação e o próprio tear permitiram um aumento substancial na velocidade da produção (Tortora e Eubank, 2005).

Hoje, menos de três séculos desde este momento, já vemos indícios concretos que o modo de produção atual não se sustenta nesses moldes. Esgotamento de recursos naturais, extinção de espécies, aumento de desigualdade socioeconômica e crescimento desenfreado da população humana são alguns dos sinais. Assim, a sociedade tem buscado formas mais sustentáveis de produção de têxteis (Salcedo, 2014).

A produção artesanal então voltou à pauta. Com efeito, atualmente vemos uma tendência de resgate de tecnologias ancestrais muito motivada pela insustentabilidade dos modelos de produção têxtil e do vestuário vigentes. Roupas artesanais, tingimento natural, entre outros processos, aparecem como alternativas importantes para uma moda mais sustentável. Pensando em termos sistêmicos, o movimento slow fashion propõe não só uma produção industrial mais lenta, mas também mais consciente de suas responsabilidades quanto à sustentabilidade e a importância dos fazeres tradicionais (Fletcher; Grose, 2011).

Buscando contribuir com a construção de novos caminhos para a produção de itens têxteis, o presente estudo tem como objetivo registrar os processos que envolvem a produção de um artigo artesanal têxtil em contexto campesino, e analisar qualitativamente se eles estariam alinhados aos ideais da sustentabilidade.

Dados apontam que há uma importante lacuna no que se refere aos estudos de têxteis nas áreas de cultura, museologia, história e patrimônio (Sobreira, 2019). Assim, a presente pesquisa contribui com o campo da história da tecnologia têxtil e da moda. Apesar de haver uma quantidade considerável de fontes bibliográficas sérias e bem fundamentadas sobre as técnicas têxteis no Brasil, acredita-se que ainda haja pontos a serem registrados. Hoje muitos processos sobrevivem somente nas mãos e memórias daqueles que os praticaram. Dessa forma, em vias de serem esquecidos, registrar esses conhecimentos ancestrais é fundamental. A extinção desse patrimônio representaria a perda de uma parte rica da história e cultura do país.

O artigo inicialmente discorre sobre os temas sustentabilidade, ciclo de vida do produto e ciclo de vida dos produtos artesanais têxteis no contexto definido, importantes para a compreensão da pesquisa. A seguir descreve-se a metodologia, para então ser realizada a análise do ciclo de vida sob o ponto de vista da sustentabilidade ambiental e então são realizadas as considerações finais.

2. Sustentabilidade

Na presente pesquisa a sustentabilidade é entendida como um conjunto de pensamentos e ações que coincidem com os objetivos do desenvolvimento sustentável. Não existe um consenso sobre a definição deste último, mas o conceito mais difundido é aquele que o determina como a busca por um desenvolvimento global comprometido com as questões econômicas, sociais e ambientais Sachs (2017).

Contudo, outras definições são possíveis. Sachs (1986, apud Silva, 2006), por exemplo, adiciona as dimensões espaciais e culturais nessa discussão. O autor argumenta que é: “[...] preciso não somente respeitar e observar a relação urbana vs. rural, mas, principalmente, procurar manter os valores culturais nesse processo”. Para ele não haveria um desenvolvimento sustentável que desconsiderasse as raízes culturais da sociedade.

O certo é que, para que se possa compreender o desenvolvimento sustentável, é essencial se conhecer o processo de conscientização do homem das questões ambientais. Apesar de ter se intensificado com o advento da Revolução Industrial, a degradação do meio ambiente pelo homem acontece desde tempos remotos. No momento em que o ser humano inicia o cultivo de plantas e passa a criar animais, o que ocorre há menos de 10.000 anos, passa também a criar ecossistemas cultivados, ou seja, artificializados. A partir de então torna-se o principal agente de transformação da ecosfera (Mazoyer; Roudart, 2010). Um exemplo são os indícios de que o grande desflorestamento dos morros que circundavam a Mesopotâmia causou a rápida desertificação da região, por volta de ١٠٠٠ A.C, contribuindo para o declínio dessa civilização (Jarzombek, ٢٠١٤).

Contudo, ainda que os resultados danosos da interação homem-natureza ocorram há milênios, a reflexão sobre o assunto ao longo da história foram pontuais. Camargo (2005) registra que em todas as épocas houve pessoas preocupadas com questões ambientais. Filósofos, santos cristãos, pensadores e cientistas já se debruçaram sobre o tema. Mas a grande tomada de consciência veio somente no século XX. Para tanto, colabora o fato de que na época essas questões deixarem de afetar somente proletários, para impactar também as classes mais favorecidas. Outro fator seria a ocorrência de eventos de alcance mundial, como as duas grandes guerras, que impactaram o planeta em todos os aspectos, inclusive no ambiental.

Não sem motivo, nos anos do pós-guerra foram criadas inúmeras organizações transnacionais, muitas das quais atuantes até os dias de hoje, para que se debatesse como o mundo poderia se desenvolver de forma responsável, evitando os revezes do capitalismo. Com relação aos problemas do crescimento econômico, Porto-Gonçalves (2006) afirma que sociedades capitalistas se desenvolveram com base na exploração de países em todos os continentes, tendo por base a extração de matéria prima e distribuição de seus excedentes, produziram guerras civis, etnocídios, genocídios e destruição do meio ambiente de maneira a colocar em alerta a própria sobrevivência no planeta. Tais mazelas da insustentabilidade não são exclusividade do capitalismo; a abertura econômica da China, país socialista, e sua enorme participação no mercado mundial, a partir de 1978, foi acompanhada de injustiças socioeconômicas e piora das crises ambientais (Lau, 2017).

Guattari (1990, p. 9) adverte que “uma finalidade do trabalho social regulada de maneira unívoca por uma economia de lucro e por relações de poder só pode, no momento, levar a dramáticos impasses» e que para se remediar os males da globalização tais como a crise ecológica, somente medidas em âmbito mundial surtiriam efeito. Dessa forma, a criação de organizações transnacionais se fez necessária e urgente naquele momento do pós-guerra. Somente um alinhamento de objetivos entre as nações poderia ser efetivo no combate aos problemas do capitalismo, por isso foi necessário estabelecer o que se define como governança global. Assim foi criada, entre outras, a ONU, Organização das Nações Unidas (Veiga, 2013).

O surgimento dessas instituições foi fundamental para a disseminação da consciência ecológica nos âmbitos científico e global. Em 1948 um grupo de cientistas ligados à ONU criaram a União Internacional Para a Conservação da Natureza (UICN), uma das primeiras entidades dedicada às discussões sobre o tema. No ano seguinte, 1949, foi realizado o primeiro grande evento relacionado ao ambientalismo global, a Conferência Científica das Nações Unidas sobre a Conservação e a Utilização de Recursos, que abriria caminho para importantes eventos do tipo, como a Conferência de Estocolmo (1972), a Cúpula da Terra ou Rio-92 (1992) e o mais recente Rio + 20 (2012) (Camargo, 2005).

Esses eventos foram importantes para a elaboração de documentos cientificamente pautados que demonstrassem os danos causados pelo homem à Terra, como os relatórios Limites para o crescimento (1972), Brundtland ou Nosso Futuro Comum (1987) e a Agenda 21 (1992) (Camargo, 2005; Silva, 2006).

Enquanto organizações mundiais se reuniam de forma oficial, escritores e ativistas tentavam preencher as brechas de discussões que estavam sendo ignoradas ou eram analisadas sem as devidas atenções. A bióloga e escritora Rachel Carlson publica em 1962 o bestseller Primavera Silenciosa, em que denuncia os efeitos negativos do uso do pesticida DDT e abre caminho para o debate popular de ampla escala das questões ambientais. Nas décadas de 1960 e 1970 nascem, respectivamente, as organizações não-governamentais World Wildlife Fund, WWF, e o Greenpeace, que ainda atuam ativamente em prol do meio ambiente (Camargo, 2005).

Hoje as questões ambientais deixaram de ser preocupação exclusiva de ambientalistas e adentram discussões em diversos campos, entre eles o da moda (Salcedo, 2014).

2.1 Ciclo de vida do produto

O conceito de “ciclo de vida do produto” surgiu no campo dos estudos do marketing nos anos 1950. Baseado em um modelo inspirado nos ciclos biológicos, defendia que os produtos, ao serem lançados no mercado, passavam por fases: nascimento, crescimento, maturidade e declínio. Na década de 1980, o termo “ciclo de vida do produto” ganha uma nova definição, mais ligada aos estudos da engenharia. Nessa nova acepção, ainda inspirada pela biologia, o produto não é analisado somente após a sua inserção no mercado, mas desde a sua ideação, passando pela produção até o seu descarte (cradle to grave). Ainda que o primeiro conceito continue sendo utilizado, o último tem ganhado cada vez mais destaque na academia (CAO; FOLAN, 2012). Além disso, tem obtido também amplo emprego nos estudos relacionados à sustentabilidade, sendo a partir dele que vários outros conceitos se desenvolveram, como o Life Cycle Assessment (LCA)1, o Cradle to cradle2 e a economia circular3.

Na presente pesquisa, o uso da expressão “ciclo de vida do produto”, se refere ao conceito mais recente e segue a definição coincidente com Vezzoli e Manzini (2011). Em “O desenvolvimento de produtos sustentáveis”, os autores, tratando do contexto industrial, entendem “ciclo de vida de produto” como o conjunto de processos envolvidos ao “nascimento”, “vida” e “morte” de um produto e os fluxos ocasionados por essas atividades. Os autores propõem que o ciclo de vida seja dividido nas seguintes fases: Pré-produção, Produção, Distribuição, Uso e Descarte. Cada uma dessas fases é composta por distintos processos que ocasionam trocas entre a produção e a biosfera (conjunto de ambientes onde existe vida); e produção e a geosfera (conjunto de ambientes inertes da Terra, como terras e água). A Figura 1 ilustra o conceito, mostrando as fases.

Figura 1. Esquema de ciclo de vida do produto segundo Vezzoli e Manzini (2011)
Fonte: Vezzoli e Manzini (2011, p. 92).

O objetivo, ao se analisar o produto sob essa perspectiva, é obter uma visão sistêmica da produção, de forma a possibilitar a avaliação dos impactos ambientais, sociais e econômicos por ela causados (Vezzoli; Manzini,2011).

Apesar de o presente estudo analisar um produto artesanal, que apresenta as mesmas etapas de ciclo de vida de um produto industrial (pré-produção, produção, distribuição e uso), julgou-se pertinente adotar o modelo de Vezzoli e Manzini (2011).

2.3 O ciclo de vida de um produto artesanal têxtil na região Ipameri, Goiás

As peças têxteis produzidas de forma artesanal pelas artesãs de Ipameri podiam ser confeccionadas utilizando tecidos artesanais ou industrializados. Como a presente pesquisa parte da tecelagem artesanal para entender o ciclo de vida dos têxteis artesanais e os tecidos industrializados compreendem aspectos técnicos que fogem ao escopo do estudo, o ciclo de vida apresentado será referente a um tecido produzido de forma artesanal. Também optou-se por incluir as etapas de corte e costura, mesmo que certas peças prescindam delas, objetivando uma visão mais abrangente das possibilidades de um ciclo de vida nesses termos. A Figura 2, baseada em conceitos de Vezzoli e Manzini (2011) e nos esquemas gráficos de produção da tecelagem artesanal de Garcia (1981) e Mirandola (1993), apresenta, de forma simplificada, o ciclo de vida de um produto artesanal têxtil:


Figura 2. Ciclo de Vida de produto artesanal têxtil

Fonte: Elaborado pelos Autores (2023).

A opção por excluir a fase de distribuição se deu pelo fato de que a maior parte dos têxteis tinham como destino o próprio local onde era produzido, ou seja, o ambiente doméstico. Mesmo quando as peças eram feitas para outras pessoas, não havia processos que justificassem serem chamados de distribuição, como acontece com os industrializados. Também optou-se por considerar como produção todos os processos desde a limpeza das fibras até a confecção do objeto costurado, pois são os processos desse ciclo nos quais ocorre a transformação de um produto em outro. O ciclo de vida do produto têxtil acontecia, de forma resumida, da maneira descrita a seguir:

Na Pré-Produção eram obtidas as matérias primas. O algodão e a paina eram colhidos e a lã retirada das ovelhas. Esses produtos também podiam ser obtidos por meio de compra, troca ou doação com pessoas conhecidas.

Na Produção acontecia a transformação da matéria prima têxtil em produtos. Primeiro o material era limpo. Do algodão se retirava o caroço e suas fibras eram batidas com instrumentos próprios, de forma a serem afofadas. A lã era lavada para retirar a sujeira. Depois as fibras passavam pelo processo de cardação, para que suas fibras fossem paralelizadas, facilitando o processo seguinte. Na fiação eram formados os fios, que eram enovelados ou transformados em meadas (caso fossem tingidos). Como a paina servia apenas para o enchimento de travesseiros, não passava por esses processos e somente precisava ser limpa de resíduos.

Ainda na Produção, a quantidade de fios necessários para um produto era medida e o material era inserido no tear. Os fios que constituiam a trama eram enrolados e acoplados a uma lançadeira. Os fios do urdume precisavam antes passar por uma urdideira e depois eram passados pelos orifícios do liço, mecanismo ligado aos pedais, que controlava quais fios subiam ou desciam durante a tecelagem. Por fim acontecia a tecelagem propriamente dita, momento em que o tecido era confeccionado. Ao fim desta tarefa o tecido era tirado do tear e arrematado e podia ser considerado um produto, como no caso de toalhas e baixeiros, uma espécie de tapete para montaria. Caso se tratasse de um item do vestuário, por exemplo, ele precisaria passar pelas fases de corte (modelagem e corte da peça) e costura. Finalizados esses processos, o produto estava pronto para o uso.

Na fase de Uso o produto desempenha a função pela qual foi confeccionada ou outra para a qual ele seja adequado. A partir do momento em que ele não está mais apto para uso, ele pode seguir alguns caminhos. Se está apenas sujo, pode ser lavado e passado. Se apresenta algum defeito, pode ser reparado. Nos dois casos ele se torna um têxtil novamente apto para a utilização e permanece na fase de Uso.

Caso não seja mais possível utilizá-lo do modo como se encontra em nenhuma atividade, ele passa para a fase de Eliminação. A partir deste ponto pode ser utilizado como matéria prima para a produção de outro artigo, iniciando um novo ciclo de vida, ou ser descartado, tornando-se um resíduo. Como no campo não havia serviço de coleta de lixo, as maneiras mais utilizadas de eliminação do produto eram a queima ou o simples descarte no terreno da propriedade rural.

3. METODOLOGIA

A história oral é uma matriz metodológica que propõe a utilização de entrevistas gravadas como ferramentas de obtenção de dados para o entendimento da sociedade (Meihy, 2002). Como o objetivo da pesquisa era compreender como se davam os processos artesanais têxteis em contexto campesino, julgou-se pertinente coletar o depoimento de pessoas que desenvolviam esses processos e a história oral serviu como referência para o planejamento dessas interações e registro de dados.

A pesquisa de campo ocorreu nos meses de novembro e dezembro de 2019, após a aprovação pelo Comitê de Ética. Nesse período foram realizadas sete entrevistas, algumas com mais de uma participante, com pessoas que realizaram alguma prática artesanal têxtil na zona rural da região de Ipameri. As participantes eram mulheres, tendo em sua maioria mais de 70 anos. Todos os depoimentos foram transcritos para facilitar a posterior análise de dados.

Entendendo que o objetivo do presente estudo é verificar de forma qualitativa a conexão do ciclo de vida de um produto artesanal têxtil aos ideais da sustentabilidade, optou-se por utilizar como ferramenta os critérios propostos por Lima et al. (2017). Esses critérios foram obtidos por meio de sistematização e condensação das abordagens de Fletcher e Groose (2011), Gwilt (2014) e Salcedo (2014) e da certificação criada por Braungart e McDonough (Braungart; Mcdonough, 2013). Nessa pesquisa somente foi utilizada a tipologia dos critérios de avaliação, que foram empregados na categorização dos aspectos sustentáveis. Os indicadores de 1 a 4, que mensuram o nível de adequação dos critérios à sustentabilidade, não foram utilizados, pois acredita-se que se aplicam apenas ao contexto industrial atual. Devido a questões de limitação de aprofundamento do tema no formato de artigo, somente foi analisada a dimensão ambiental.

4. ANÁLISE DA SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL PRESENTE NO CICLO DE VIDA DE ARTIGOS ARTESANAIS TÊXTEIS

Lima et al. (2017) propõem que a dimensão ambiental de um processo seja analisada segundo os seguintes critérios: uso de materiais não nocivos, baixo desperdício, reutilização de materiais, uso consciente da água na produção, uso eficiente de energia e uso de baixo impacto. A partir desses critérios as autoras elencam vários itens, apresentados no Quadro 1, que informa também se esses critérios e seus subitens estão presentes no ciclo de vida do produto artesanal têxtil analisado no presente estudo:

Quadro 1. Análise dos critérios da sustentabilidade ambiental presentes em um produto artesanal têxtil genérico

DIMENSÃO AMBIENTAL

CRITÉRIO

ITEM

PRESENÇA NO CICLO DE VIDA DO PRODUTO ARTESANAL TÊXTIL

Materiais não nocivos

1- Materiais de baixo impacto

Sim

2- Materiais biodegradáveis

Sim

3- Fibras renováveis

Sim

4- Tintas e corantes; naturais, ou de baixo impacto, ou certificadas

Sim

Baixo desperdício

1 - Priorizar modelagens que objetivem maior aproveitamento de tecido ou zero waste

Sim

2 - Uso consciente de aviamentos

Sim

Reutilização de materiais

1- Reutilização de tecidos

Sim

2 - Reutilização de aviamentos

Sim

Uso consciente da água na produção

1 - Baixo consumo de água na produção

Sim

2 - Lavagem de baixo impacto

Sim

3 - Processos de beneficiamento sem liberação de químicos

Não

4 - Captar e tratar efluentes no processo

Não

Uso eficiente de energia

1 - Uso eficiente de recursos

Sim

2 - Redução do uso de energia na produção

Sim

3 - Redução do transporte

Sim

4 - Gestão do estoque

Sim

Uso de baixo impacto

1- Reduzir a necessidade de lavar

Parcial

2 - Reduzir a necessidade do uso de amaciantes na lavagem

Sim

3 - Reduzir a necessidade de passar a roupa

Não

4 - Design para facilitar reparos

Parcial

Fonte: Adaptado de Lima et al., (2017).

4.1 Materiais não nocivos

Os materiais escolhidos na confecção de um produto estão entre os pontos mais relevantes para sua sustentabilidade, pois os processos relacionados à obtenção de matéria prima podem ser extremamente poluentes e demandarem alto gasto energético (THOMPSOM, 2015). No caso dos produtos têxteis, como as fibras são suas principais matérias primas, estas têm um papel fundamental quando se busca uma peça mais sustentável.

Tendo em vista o critério de Materiais não nocivos, o ciclo de vida do produto analisado possui correspondência a todos os itens. O uso de fibras de algodão, lã e paina provindas de plantações não irrigadas satisfaz os itens 1 - Materiais de Baixo Impacto, 2 - Materiais Biodegradáveis e 3 - Fibras renováveis.

Todos esses materiais são renováveis, portanto possuem um potencial quase infinito de serem renovadas, apenas dependendo da existência de animais e vegetais que lhes produza. Outras fibras, como as derivadas do petróleo, não apresentam essa mesma propriedade, pois a renovação leva muito mais tempo para acontecer, por volta de um milhão de anos. Além disso, as fibras renováveis, ao serem descartadas, são assimiladas mais rapidamente pelo meio ambiente, evitando que os resíduos se acumulem por longos períodos de tempo. Fibras sintéticas, como o poliéster, não são consideradas biodegradáveis, pois os microrganismos decompositores existentes no meio não são capazes de degradar suas moléculas (Fletcher e Grose, 2011).

Podemos citar outros pontos de aderência à sustentabilidade relacionados ao item 1. Primeiro o fato de a plantação não ser irrigada, demandando menos uso de água. Segundo que no contexto rural de Ipameri citado pelas entrevistadas, o uso de agrotóxicos e pesticidas não existia ou era reduzido. Dessa forma, as fibras empregadas nos têxteis artesanais eram muito mais seguras de serem obtidas, trabalhadas e utilizadas. O gasto energético era baixo, pois as plantações, quase sempre apresentavam pouca mecanização. Como as entrevistadas comentam, a plantação e a colheita eram feitas manualmente.

Em relação ao item 4 - Tintas e corantes; naturais, ou de baixo impacto, ou certificados, mesmo que a produção analisada empregasse por vezes corantes sintéticos, como o da marca Guarany, a quantidade de produção era muito reduzida para causar efeitos comparáveis ao da produção industrial. Também era muito comum o uso dos corantes naturais, obtidos a partir de recursos locais e não tinham efeitos tóxicos bem menores ao meio ambiente e produtores.

O branqueamento de fios e tecidos, um dos processos têxteis que mais poluem, por usarem muitas vezes, substâncias químicas danosas ao meio ambiente e aos seres vivos (Fletcher e Grose, 2011), não ocorria, já que o processo analisado não fazia o uso de alvejantes, portanto não causava consequências negativas do uso deste produto.

Outra questão é que o tingimento nem sempre era necessário, pois o algodão do tipo ganga já era naturalmente colorido.

4.2 Baixo desperdício


Os artigos têxteis produzidos no contexto pesquisado tendiam a ser confeccionados com a maior economia de recursos, pois esses costumavam ser escassos. Quanto ao item
1 - Priorizar modelagens que objetivem maior aproveitamento de tecido ou zero waste, a modelagem de uma roupa costumava levar em consideração quanto tecido seria empregado e quais as formas de aproveitamento das sobras do corte na confecção de outras peças. Itens como mantas, panos para montaria e toalhas não necessitavam de corte nenhum, pois já eram produzidos nas dimensões desejadas.

Sobre o item 2 - Uso consciente de aviamentos, podemos citar a mesma justificativa do item 1, escassez de recursos materiais. Segundo o relato das entrevistadas sobre o modo que as roupas eram feitas, os aviamentos se resumiam a botões e fechos de metal. Os zíperes só foram adotados mais tardiamente.

4.3 Reutilização de materiais

A reutilização de materiais era uma prática bastante comum no ambiente campesino da região de Ipameri, satisfazendo os itens 1 - Reutilização de tecidos e 2 - Reutilização de aviamentos. Sobras de tecidos eram transformadas em colchas de retalhos, utilizadas no corte de peças que demandassem menor metragem ou na confecção de itens como panos de chão. Os aviamentos também eram reutilizados, assim como roupas inteiras, que eram descosturadas e serviam como matéria prima para confecção de novos produtos.


4.4 Uso consciente da água na produção

Tratando do item 1 - Baixo consumo de água na produção, o consumo de água era necessário apenas na etapa de tingimento, seja do fio ou do tecido. Nesse processo, o consumo de água correspondia às quantidade utilizada no recipiente que continha o material têxtil com a tintura, à água necessária para a lavagem do excesso de tinta/fixador e a água utilizada na produção do fixador dicuada (lixívia). Por se tratar de uma produção em pequena escala, pode-se dizer que havia um baixo consumo de água na produção (item 1) e lavagem de baixo impacto (item 2).

Quanto aos itens 3 - Processos de beneficiamento sem liberação de químicos e 4 - Captar e tratar efluentes do processo, pode-se dizer que o ciclo de vida analisado não cumpria esses critérios. Na etapa de tingimento havia liberação de corantes naturais e sintéticos no meio ambiente sem a preocupação com os efluentes contaminados com essas substâncias. Contudo, novamente por se tratar de uma produção pequena escala, os danos ambientais eram bastante reduzidos, pois a concentração desses materiais nos efluentes era baixa.


4.5 Uso eficiente da energia

Durante a Produção do têxtil artesanal analisado, o consumo de energia era bastante reduzido e se resumia à etapa de tingimento, quando esta acontecia. Alguns tipos de tingimento, como os obtidos por meio da ferrugem, não necessitavam de calor, mas a grande maioria demandava. Assim, os têxteis precisavam ser imersos na solução contendo os corantes aquecidos em recipientes como tachos e panelas. A energia necessária para o aquecimento era proveniente de fogões a lenha. Contudo, pensando que o tingimento não era realizado em todos os materiais têxteis e que a escala de produção era baixa, podemos dizer que o item 2 - Redução de uso de energia é satisfeito.

Os itens 1 - Uso eficiente de recursos e 4 - Gestão de estoque também são observados, pois a escassez de alguns recursos materiais, principalmente os industrializados, obrigava as entrevistadas a economizá-los. Desperdícios eram raros e caso houvesse excesso de algum recurso, esse era doado para a comunidade. Uma prática que ajudava na gestão de estoques era o mutirão, evento em que conhecidos eram convidados a comparecer à residência de uma determinada família, para realizarem tarefas em conjunto, como colher o algodão ou fiar um estoque de lã excessivo.

Sobre o item 3 - Redução de transporte, por se tratar de uma produção local, que utilizava em sua maioria matérias primas da própria propriedade ou quando muito das vizinhas, o uso de transportes era muito reduzido.

4.6 Uso de baixo impacto

Fletcher e Grose (2011) afirmam que na etapa de uso, os cuidados dos usuários com as peças representam uma grande parte dos recursos despendidos em todo seu ciclo de vida, pois demandam energia, água, entre outros. Portanto, é uma etapa extremamente importante para se pensar a sustentabilidade.

Ao se levar em consideração os critérios de Lima et al. (2017) em relação à fase de Uso, o ciclo de vida analisado talvez tivesse seu pior desempenho neste tópico. Quanto ao item 1 - Reduzir a necessidade de lavar, não havia um planejamento ao se criar os produtos para que eles fossem menos lavados. Contudo, alguns artigos, como as colchas e agasalhos, raramente passavam por lavagem. No caso das colchas, porque havia a chance de a cor desbotar e no dos agasalhos, porque eram peças que não estavam em contato direto com o corpo.

Quando havia a necessidade de lavagem, era realizada de forma manual, com água e sabão de bola, feito apenas de sebo e dicuada (lixívia). Não era comum o uso de alvejante e a união do sol/sabão se encarregavam de clarear os tecidos. Tal qual a lavagem, a secagem também não demandava energia elétrica. Amaciantes não eram utilizados, portanto o item 2 - Reduzir a necessidade de uso de amaciantes não se aplica ao ciclo de vida analisado.

A passadoria era provavelmente o processo menos sustentável, pois havia mais gasto energético e emissão de gases no meio ambiente provenientes da queima dos materiais para alimentar o ferro a brasa. Portanto o item 3 - Reduzir a necessidade de passar a roupa não se adequa aos critérios de sustentabilidade no Uso.

Por fim, o item 4 - Design para facilitar reparos acontecia apenas de forma parcial, pois devido à escassez de recursos materiais as peças têxteis costumavam ser feitas de forma a durar muito, por isso possuíam uma qualidade que facilitava a realização de reparos. Contudo, as entrevistadas não pensavam diretamente na questão dos reparos quando produziam suas roupas, assim o item não é totalmente satisfeito.

É possível concluir então, que apesar de alguns itens do uso não serem aderentes aos critérios desenvolvidos por Lima et al. (2017), carregam características relacionadas à sustentabilidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando o do ciclo de vida de um produto artesanal têxtil produzido pelas artesãs da região de Ipameri, é possível perceber que ele satisfaz muitos dos critérios de uma produção ambientalmente sustentável. O produto não emprega materiais nocivos e tem como práticas o baixo desperdício, a reutilização de materiais e o uso eficiente de energia. Pode-se dizer que os pontos menos sustentáveis dizem respeito ao uso consciente da água na produção e do uso de baixo impacto. Contudo, mesmo nestes casos, a escala reduzida de produção torna seus danos pequenos se comparados aos processos industriais, que lidam com um volume de recursos muito maior.

Outras pesquisas corroboram com a presente, analisando a sustentabilidade dos produtos artesanais têxteis e apresentando resultados semelhantes. Assim demonstram que o artesanato é uma forma de, juntamente com a reformulação dos paradigmas de produção industrial, alcançar maior sustentabilidade no mercado da moda.

Em De Carli (2013) a proposta é a utilização dos modelos de economia criativa e economia solidária4 na estruturação de cooperativas de trabalho artesanal têxtil. Já em Schulz e Cunha (2021) e Parode et al.(2016) o enfoque é dualidade design/artesanato como ferramentas de alcance de uma sustentabilidade ambiental, social e econômica.

Como limitações da pesquisa pode-se citar a aplicação de apenas um método de análise. Assim, seria interessante realizar a análise do mesmo ciclo de vida com o emprego de outros indicadores, para posteriormente ser estabelecida uma comparação entre eles. Como sugestão de pesquisas futuras pode-se mencionar, também, a possibilidade de se realizar uma análise do Life Cycle Assessment (LCA) que meça por meios quantitativos os impactos ambientais do ciclo de vida abordado.

Notas de fim de texto

1 Life Cycle Assessment (LCA) ou Avaliação de Ciclo de Vida, em português, é um método quantitativo de análise dos impactos ambientais causados por um produto durante seu ciclo de vida (MANZINI; VEZZOLI, 2011).

2 Cradle to cradle é uma proposta de pensamento em design formulada pelo arquiteto William McDonough e o químico Michael Braungart que questiona o modo de produção linear, em que alguns produtos estão destinados a terminar seu ciclo no lixo (cradle to grave). Os autores propõem como alternativa a preocupação do designer para que ao final de seu ciclo de vida do produto, esse possa ser reaproveitado na confecção de um novo ou descartado de forma a ser reinserido nos ciclos biogeoquímicos (MCDONOUGH; BRAUNGART, 2010).

3 A economia circular é uma corrente de pensamento que defende um modo de produção regenerativo, em que os resíduos de um produto devem servir como matéria prima ou energética na produção de outro, retroalimentando os sistemas (WEETMAN, 2019).

4 Economia criativa é a busca por um paradigma diferente do modelo industrial tradicional, de forma que a cultura e a criatividade sejam os principais pilares e as pessoas trabalhem em uma rede de atores. Já economia solidária visa propiciar às camadas mais baixas de sociedades formas de se unirem e melhorarem suas condições de vida (DE CARLI, 2013).

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