Dossiê – Artes, Moda e Cultura Visual
V.16, N.38 — 2023
DOI: E-ISSN 1982-615x
ModaPalavra, Florianópolis, V. 16, N. 38, p. , jan./jun. 2023
A Garota Kodak: imagens
publicitárias da mulher
no apogeu da fotograa
analógica
Sandra Maia Rodrigues Pereira
Mestre, Universidade do Estado de Minas Gerais / sandra.rodrigues@uemg.br
Orcid: 0000-0003-0623-1136/ Lattes
Eduardo Romeiro Filho
Doutor, Universidade Federal de Minas Gerais / romeiro@dep.ufmg.br
Orcid: 0000-0002-5574-5312/ Lattes
Adriana Sampaio Leite
Doutora, Universidade do Estado de Minas Gerais / adriana.leite@uemg.br
Orcid: 0000-0003-0623-1136/ Lattes
Enviado: 29/07/2022 // Aceito: 30/11/2022
http://dx.doi.org/10.5965/1982615x16382023014
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A Garota Kodak: imagens publicitárias
da mulher no apogeu da fotograa
analógica
RESUMO
O artigo investiga as transformações na representação da imagem
da mulher retratada nas peças publicitárias da Kodak, para suas
câmeras domésticas, do nal do século XIX aos anos 1980 -
período que reete o apogeu da fotograa analógica. O estudo foi
realizado por meio de uma revisão de literatura e levantamento
iconográco, que subsidiaram uma avaliação da evolução da
publicidade da empresa e da forma como a mulher é retratada.
Os resultados demonstraram uma evolução da percepção sobre o
papel social da mulher, que partiu de uma proposta empoderada e
“libertária” no início do século passado, seguindo para uma visão
que progressivamente transformou a mulher em objeto do produto
que a empoderava a partir da década de 1930, até chegar a uma
abordagem que reforçava princípios de uma visão estereotipada da
mulher, a partir dos anos 1960.
Palavras-chave: Publicidade. Representação da mulher. Fotograa.
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The Kodak Girl: publicity images of
women in the heyday of analogue
photography
ABSTRACT
The article investigates the transformations in the representation
of the image of women portrayed in Kodak’s advertisements for
their domestic cameras, from the late 19th century to the 1980s - a
period that reects the heyday of analogue photography. The study
was carried out through a literature review and iconographic survey,
which supported an evaluation of the evolution of the company’s
advertising and the way in which women are portrayed. The results
showed an evolution of the perception of the social role of women,
which started from an empowered and “libertarian” proposal at
the beginning of the last century, moving towards a vision that
progressively transformed women into an object of the product that
empowered them from the 1990s onwards. 1930s, until reaching
an approach that reinforced principles of a stereotyped view of
women, starting in the 1960s.
Keywords: Advertising. Representation of woman. Photographie.
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La chica Kodak: imágenes publicitarias
de mujeres en el apogeo de la fotografía
analógica
RESUMEN
El artículo investiga las transformaciones en la representación de
la imagen de la mujer retratada en los anuncios de Kodak para
sus cámaras domésticas, desde nales del siglo XIX hasta la
década de 1980, período que reeja el apogeo de la fotografía
analógica. El estudio se realizó a través de una revisión bibliográca
y levantamiento iconográco, que apoyó una evaluación de la
evolución de la publicidad de la empresa y la forma en que se retrata
a la mujer. Los resultados mostraron una evolución de la percepción
del rol social de la mujer, que partió de una propuesta empoderada
y “libertaria” de principios del siglo pasado, transitando hacia una
visión que transformaba progresivamente a la mujer en objeto del
producto que la empoderaba desde la década de 1930, hasta llegar
a un enfoque que reforzó principios de una visión estereotipada de
la mujer, a partir de la década de 1960.
Palabras clave: Publicidad. Representación de mujer. Fotograa.
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1. INTRODUÇÃO
As “sete irmãs” formam um conjunto de penhascos
situados na costa sul da Inglaterra, entre as cidades de Brighton
e Eastbourne, no condado de Sussex, sendo considerado como
uma das mais belas paisagens da região e visitado por milhares de
turistas todos os anos (MORTIMORE et al., 2004). É interessante
como um cartaz produzido em 1911 pelo ilustrador inglês John
Hassall (1868 1948) com as sete irmãs ao fundo e uma bela
mulher em seu vestido listrado de azul e branco (Figura 1), tornou-
se uma peça icônica da publicidade e sinônimo de produtos Eastman
Kodak Company (WEST, 2000). A frase Take a Kodak with you (ou
“Leve uma Kodak com você”) expressa com eciência a mensagem
publicitária e combina com a leveza da cena.
Figura 1. A Garota Kodak, publicada em Australasian Photographic Review, 1911.
Fonte: Palmer (2005, p. 97).
Nota-se neste cartaz (Figura 1) algumas referências
interessantes, relacionadas a dois aspectos principais: (1) uma
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unidade estilística compatível com outras peças da época, porém
menos “rebuscada” que exemplos da art nouveau de uma época
imediatamente anterior (nal do século XIX) e (2) uma interessante
abordagem sobre o papel da mulher, que não aparece como objeto
da fotograa ou como um modelo a ser fotografado, mas como a
principal agente da atividade fotográca, de maneira independente
e ao ar livre. As primeiras décadas do século XX é marcada por
inovações tecnológicas como a bicicleta que revolucionaram o
papel da mulher na sociedade (STRANGE, 2002). Desta forma
torna-se oportuno observar como a tecnologia fotográca e uma
de suas representantes mais signicativas, a máquina fotográca
“doméstica” da Kodak, são associadas ao público feminino.
Este artigo tem por objetivo realizar uma avaliação do perl
feminino apresentado por peças publicitárias da Kodak, do nal do
século XIX e início do século XX até a década de 1980. Este período
reete o apogeu da fotograa em câmara escura, justamente a
tecnologia que a Kodak ajudou a disseminar. O estudo foi realizado
por meio de uma revisão de literatura e levantamento iconográco,
que subsidiaram uma avaliação da evolução da publicidade da
empresa e da forma como a mulher é representada. O livro Martha
Cooper Collection descreve a notável trajetória da Garota Kodak
(Kodak Girl) (JACOB, 2012), uma das campanhas mais duráveis e
bem-sucedidas da história da publicidade. Esta coleção é utilizada
como base para a avaliação proposta neste artigo. Analisou-se
todos os cartazes presentes na coletânea e posteriormente foram
selecionadas as imagens em que foi possível perceber com nitidez
a marcação do tempo através da indumentária e da linguagem
gráca.
2. A CENTRALIDADE FEMININA NA PUBLICIDADE DA
KODAK EASTMAN
Embora seu surgimento não possua uma data precisa, a
publicidade tem notável crescimento vinculado ao desenvolvimento
técnico, econômico e social da segunda metade do século XIX. Com
efeito, a primeira agência de publicidade do mundo foi fundada nos
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EUA, na década de 1840 (VOS, 2013). A partir dos anos 1950, com o
trabalho de Drucker (1954), marketing e publicidade se consolidam
de forma marcante como instrumento de aumento de vendas e
disseminação de um modo de vida predominantemente ligado ao
chamado american way of life (KRUGLER, 2000). Associada aos
meios de comunicação de massa também dominantes no século
(como cinema, rádio e televisão), a publicidade ajudou a moldar um
estilo de vida que, a partir de uma percepção estadunidense, torna-
se dominante em todo hemisfério ocidental e, mais tarde, por todo
o mundo (YOUNG, 2005). Nesta situação, as formas de expressão
dos papéis sociais atribuídos a cada gênero reetem não somente
a evolução da sociedade, mas também, e principalmente, a visão
da classe, dominante, no período (SCANLON; SCANLON, 2000). É
razoável observar que, desde a revolução industrial, a publicidade
representa e se utiliza de uma visão burguesa da sociedade, com
papéis denidos e aparente ausência de conitos em uma situação
de “consumo, logo existo” (BAUDRILLARD, 1996; KOTLER, 2015).
A ideia de peças grácas impressas (como cartazes) para
anúncios não é nova. em 1609 era possível encontrar cartazes
ingleses promovendo a migração para a América (O’BARR, 2010).
Entretanto, somente a partir da revolução industrial é que as formas
de divulgação de produtos e serviços tornam-se sistematizadas e
têm sua importância ampliada, com a crescente valorização de
artistas para sua concepção e busca de resultados mais ecazes e
esteticamente sosticados. São bastante conhecidos os cartazes e
trabalhos grácos da art noveau realizados na virada do século XIX
para o século XX. Imagens femininas são apresentadas de forma
idílica e extremamente elegante em trabalhos de Chéret, Mucha,
Tiariet ou Moser. Esta representação é muitas vezes dissociada de
uma vinculação a situações reais da vida cotidiana, mesmo em
anúncios como o célebre pôster de uma bicicleta criado por Tiariet,
onde se “esconde literalmente a bicicleta para se concentrar na
graciosidade feminina em movimento” (HARDY, 1986, p. 122).
É interessante observar tal “graciosidade” presente no trabalho
gráco de Hassall.
No Brasil, a aplicação de recursos grácos em geral, e em
publicidade de forma particular, tem suas origens no século XIX.
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Um evento marcante dessa época é a origem do registro
de marcas em 1875 (REZENDE, 2005), que difunde a ideia da
proteção ao direito autoral e reforça a expansão da produção
gráca da época. Camargo (2003) apresenta como um dos marcos
da publicidade gráca no Brasil uma campanha de cartazes lançada
em 1861, no Rio de Janeiro, anunciando a criação de uma nova
revista, a “Semana Ilustrada”. De modo geral, os exemplos dos
primórdios da indústria gráca no Brasil apresentados pelo autor
não representam a mulher de forma marcante, com exceção dos
produtos voltados para o público feminino e, curiosamente, dos
cigarros. De forma similar, observa-se no trabalho de Accioly et al.
(2007), sobre as mais tradicionais marcas do mercado brasileiro,
que a presença da mulher na publicidade concentra-se naqueles
produtos dedicados ao público feminino (como cosméticos) ou “à
família” (como produtos alimentícios). Nestes casos, observa-se o
reexo do “papel social” da mulher burguesa, como esposa ou dona
de casa, preocupada com o casamento (reexo de sua preocupação
com a aparência) e a família.
Existe uma longa lista de anúncios que retratam a mulher
como um estereótipo de inferioridade em relação ao homem,
em uma perspectiva de “coisas de meninas” versus “coisas
de meninos”. Um exemplo clássico é uma peça publicitária da
Volkswagen apresentada nos Estados Unidos em 1964 e publicada
no Brasil em 1965. Tal publicidade, que Saleh (2014, p. 93) utiliza
para discutir a “identidade de gênero tomando como foco o modo
como homens e mulheres são representados na publicidade”,
possui o layout clássico dos anúncios da Volkswagen denidos no
nal dos anos 1950 pela agência publicitária estadunidense Doyle
Dane Bernbach: uma imagem ocupando (“sangrando”) a página
na parte superior, um título e um texto em letra “futura” na parte
inferior. O anúncio apresenta uma fotograa de um Volkswagen
parcialmente amassado, com o título “Mais cedo ou mais tarde
sua mulher irá dirigir” (SALEH, 2014, p. 99). O texto publicitário
a seguir se inicia com a frase “Caso sua mulher venha a bater
em algo com o seu Volkswagen, isto não lhe custará muito. Peças
VW são fáceis de trocar. E baratas” (SALEH, 2014, p. 100). Neste
mesmo contexto, Reis Jr. (s.d.) apresenta uma série de anúncios
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veiculados nos anos 1950 e 1960 que denotam um viés (hoje
considerado) extremamente machista e misógino para venda de
roupas masculinas, bebidas ou artigos para o lar.
2.1 A fotograa simplicada e a mulher modernizada
Um dos marcos da difusão da fotograa doméstica foi o
lançamento, pela Eastman Kodak Company, de uma câmera portátil
de baixo preço (PASTER, 1992) em 1900 (em seu lançamento, o
custo era de apenas US$1). A Brownie (nome inspirado em um
duende do folclore escocês) foi projetada de modo a ser simples
o suciente até para seu uso por crianças, embora seu manual de
instruções totalizasse 44 páginas. Nessa época, a Kodak lançou o
slogan “Você pressiona o botão, nós fazemos o resto”, anunciando
um dispositivo simples e amigável que deu início a uma rápida
popularização da fotograa amadora nos Estados Unidos (KING,
2018). A câmera Kodak funcionava com um sistema de lme em
rolo, também criado pela empresa, e teve como objetivo tornar
a fotograa acessível às massas (ROSENBERG, 2021). Projeto do
designer Frank A. Brownell, a câmera consistia basicamente em
uma caixa de papelão retangular e, para seu uso, bastava inserir
o cartucho de lme, segurar a câmera na altura da cintura, mirar
olhando pelo visor no topo e girar um botão.
Havia também uma importante inovação em termos
de serviço, pois os usuários enviavam o lme (ou a própria
máquina) para a revelação na Kodak, eliminando a necessidade de
equipamentos e conhecimento técnico para revelação e ampliação
fotográca. A popularização da câmera fotográca ocorreu em
um momento de grande efervescência sociocultural e intenso
desenvolvimento tecno cientíco cujo nome, Belle Époque, faz jus
à atmosfera de modernidade e otimismo dominante sobretudo no
mundo ocidental, sendo chamada por Hobsbawm (2015), de “a era
dos impérios”. Foi neste período, mais precisamente entre o nal da
Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) e o início da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), que invenções como o automóvel (1987), a
locomotiva a vapor (1814), o telégrafo (1837) e o telefone (1876)
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impactaram profundamente na dinâmica social (HOBSBAWN,
1987,1995).
O entusiasmo com o progresso perpassa a vida cotidiana dos
grandes centros urbanos principalmente no continente europeu,
como Paris, Londres e Viena e era visto na moda, nos cafés, no
teatro, nas praças e parques públicos, nas galerias de arte etc. De
acordo com Stevenson (2011) o estilo de vida da mulher, no que
se refere ao seu papel/lugar social, passa também por importantes
transformações, expressas em movimentos como o Sufragista e
ideias de emancipação feminina, que anunciam os primórdios do
feminismo. É neste ínterim que surge o ideal da mulher moderna,
a New Woman americana construída a partir das narrativas de
escritoras como Pauline Hopkins, Edith Wharton, Sui Sin Far, Mary
Johnston, Ellen Glasgow, Willa Cather e encarnada na imagem
das icônicas Gibson Girls (Figura 2) de Charles Dana Gibson
(PATTERSON, 2005). As Gibson Girls traduziam o que para Gibson
(1867-1944) representava a mulher americana perfeita: conante,
independente e resiliente.
Figura 2. Gibson Girls
Fonte: LIFE Photo Collection (2022)
Este modelo de feminino é bastante difundido por meio de
calendários, perfumes, cigarros etc., representando uma importante
inuência para a imagem (ou representação) da mulher, provocando
um fenômeno de identicação generalizada (BASTID, 2014).
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2.2 A construção da imagem publicitária da Kodak
Girl
Como referido anteriormente, as imagens estudadas a seguir
foram retiradas da coleção Martha Cooper Collection. A partir
de um análise foram selecionadas as que apresentavam marcos
temporais a partir da indumentária e da linguagem gráca: do ano
de 1890 até a década de 1980. As imagens publicitárias da Kodak
Eastman se utilizaram do universo feminino para divulgar seu
produto. Percebendo nas mulheres uma oportunidade de público
consumidor para sua nova tecnologia do lme fotográco, a Kodak
retrata-as como protagonistas de sua campanha onde as câmeras
são admiradas, desejadas e facilmente utilizadas. É interessante
notar que a admiração e o desejo por possuir o objeto faz parte das
primeiras peças publicitárias como demonstrado na Figura 3 (um
cartaz de 1890), onde as mulheres claramente apreciam a câmera
que se localiza em cima da mesa e no centro da cena. Esta ideia é
reforçada pela frase logo abaixo da ilustração: Oh! Isn’t lovely! I
must have a Kodak! (ou “Oh! Não é adorável? Eu preciso de uma
Kodak!” em tradução livre).
Figura 3. Cartaz publicitário da Kodak Eastman, 1890.
Fonte: Kodak Girl (2022)
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A cena (Figura 3) ainda permite interpretar que não são
todas as mulheres que apenas admiram a câmera. Elas cumprem
diferentes papéis construídos pelo posicionamento, atitude e
vestimenta de cada uma. Espacialmente estão separadas pela
mesa onde se encontra o objeto de desejo; à esquerda apenas
uma senhora. Sua postura é altiva, ereta e conante. Seu traje
menos ornamentado, seus cabelos em coque e sem enfeites e
excessos. Permanece atenta, olhando para as demais senhoras
à sua frente que, diferente dela, se apresentam em trajes mais
pomposos com adornos na cabeça e vestidos com peles nas golas
e punhos. As três senhoras estão divididas em suas reações:
duas se curvam tocando delicadamente a câmera. Uma atitude de
interesse que parece ilustrar a fala escrita logo abaixo no cartaz. A
terceira se destaca das demais se mantendo distante e com feição
não tão receptiva. Esta contraposição parece indicar que existe
ali não uma diferença de classes, mas também de ‘tempos’.
A mulher a esquerda se aproxima do estilo moderno da primeira
década do século XX e, é justamente ela que, supõe-se, estar
apresentando a câmera Kodak às outras três senhoras. Esta nova
tecnologia é apresentada pela modernidade, mais precisamente
pela mulher moderna que começa a despir-se dos excessos, como
rendas, babados etc. e que se anuncia ao nal do século XIX.
A facilidade de uso é outra característica que a campanha
relaciona ao universo feminino. Em outro cartaz de 1890, a
mulher aparece fotografando sua lha. Sua postura expressa
certa tranquilidade e leveza. No texto que acompanha a cena a
mãe é questionada por seu lho (ao se lado) sobre a qualidade da
fotograa uma vez que a irmã, por ser pequena, não se manterá
imóvel tempo suciente. A mãe o explica que a Kodak conseguirá
fotografá-la ainda que se movimente, pois é tão rápida quanto um
piscar de olhos.
Sua fala, além de indicar a facilidade proporcionada pela
câmera, revela também o potencial de sua tecnologia que está
a serviço da mulher empenhada em registrar momentos de sua
família. A ideia da facilidade ainda é reforçada pela frase “You
press the button, we do the rest” (ou “Você pressiona o botão, nós
fazemos o resto”), que aparece no canto superior esquerdo.
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O termo Kodak Girl surge pela primeira vez, na coletânea
estudada, em um cartaz de 1893 (Figura 4), onde duas senhoritas
“bem apresentadas” em ricas vestimentas e adornos se posicionam
com uma câmera pendurada no pescoço. Para Kara (2020) a moda
é utilizada como elemento estratégico retratando jovens “estilosas”
que neste cartaz utilizam vestidos com detalhes listrados e mangas
“pé-de-carneiro” que viraram moda por permitirem maior liberdade
de movimentos.
Figura 4. The Kodak Girls, 1893.
Fonte: Jacob (2012, p. 72).
As duas jovens parecem avistar algo interessante que capta
sua atenção e merece ser registrado. Ao fundo uma grande construção
em arquitetura neoclássica margeia um largo rio. Juntamente a essa
imagem a frase The Kodak Girl at the world’s fair anuncia o local
onde estão. As feiras internacionais (world’s fair) eram grandes
vitrines do poder econômico e desenvolvimento tecnológico das
nações industrializadas. Em 1893, data de publicação do cartaz em
análise, ocorria a Feira Mundial de Chicago, exposição americana
de grande magnitude que rearmou a capacidade tecnológica e
industrial do país.
Aqui nasce a ideia da “Garota Kodak, que visivelmente
incorpora a juventude e seu gosto pela novidade e aventura.
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A partir de então a campanha ganha outra dimensão; o desejo e
admiração apresentados no primeiro cartaz, é deslocado do objeto
para a personagem que utiliza a câmera. Ao utilizar a câmera
você se torna Kodak Girl ou, se você é uma “garota” com tais
características modernas então você deve ter uma Kodak. Para
além de vender um objeto, a Kodak passa a vender um estilo de
vida feminino personicado pela imagem de diferentes mulheres,
anônimas em sua maioria. O destaque recai sobre ‘o que’ aquela
personagem estava fazendo e ‘o que’ ela inspirava nas mulheres
que a apreciavam. Para Munir e Phillips (2005), a Kodak Girl é
símbolo da mulher moderna que estrategicamente foi utilizada para
criar novos papéis femininos, legitimando desta forma a adoção
da nova tecnologia por novos usuários. No início do século XX,
a Kodak Girl aparece trajando seu emblemático vestido listrado
azul e branco; tal indumentária é bastante distinta daquela em que
estreia em 1893 como elemento central da campanha da Eastman
Kodak (Figura 5).
Figura 5. O vestido listrado em diferentes épocas: à esquerda (1920), 3 à direita
(1930).
Fonte: Jacob (2012, p. 88-179).
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A simbologia das listras perpassa sentidos variados ao longo
da história. Pasteureau (1947, p. 11) inicia sua historiograa sobre
o tema referenciando o slogan de uma campanha publicitária
parisiense amplamente divulgado: “Neste verão, ouse a elegância
das listras”. O autor destaca a palavra “ouse” demonstrando que
utilizar roupas listradas não é um ato neutro nem natural.
Para isso, é preciso demonstrar uma certa
audácia, vencer diferentes pudores, não
temer se pôr em evidência. Mas quem
ousa é recompensado: atinge a elegância,
isto é, a distinção das pessoas livres,
desenvoltas e renadas (PASTEUREAU,
1993, p. 11).
Apesar do forte simbolismo do vestido listrado, a campanha
prossegue utilizando diferentes trajes e estratégias para comunicar
a modernidade de seu produto. Contemporâneos ao vestido listrado
veiculam cartazes onde a Kodak Girl assume tanto a imagem da
mulher extremamente ornamentada e moldada pelo espartilho
em S própria da Belle Époque, quanto da mulher que retoma a
silhueta Império do início do século XIX (Figura 6).
Figura 6. Vestido Belle Époque (esquerda) e Vestido império (direita), 1902.
Fonte: Jacob (2012, p. 74).
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A forma em T do vestido Império é composta pela cintura
alta e corte reto que surge no período pré-revolucionário (1790-
1810), rompendo com a opulência e suntuosidade das roupas
que caracterizavam a moda feminina do século anterior. O traje
é reconhecido mais por sua informalidade e ausência do uso do
espartilho. Existe, assim, algo de transgressor neste anúncio de
1902 e que está alinhado com as futuras ideias do conforto e
liberdade de movimentos necessários à mulher que desempenha
diferentes papéis na vida social.
Os cartazes da primeira década do Século XX exploram
uma série de circunstâncias onde a mulher é protagonista de sua
vida. A Kodak Girl pertencia a diferentes classes, transitava por
vários lugares. Podia ser uma mulher que ia às grandes feiras
internacionais, a mulher que dirigia um carro, apreciava passeios
ao ar livre, praticava esportes, viajava para lugares exóticos ou
simplesmente registrava momentos do cotidiano (Figura 7). Ou
ainda a mulher que era mãe, que acompanhava o crescimento de
seus lhos.
Figura 7. A mulher do início do século XX em diferentes situações.
Fonte: Jacob (2012, p. 159-162).
Em todos esses casos, observa-se o diálogo com os ideais
de uma sociedade em visível modernização. Câmeras operadas
por mulheres aparecem junto a automóveis ou em situações
em espaço aberto (COWAN 1997 apud MUNIR; PHILLIPS, 2005,
p. 166). Talvez uma das imagens mais emblemáticas e que
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sintetize bem as ideias até aqui apresentadas seja a do cartaz de
1915, constituído basicamente por uma silhueta, uma imagem
enigmática de estrutura delicada (feminina) trajada em um tailleur.
É incontestável que o cenário da Primeira Grande Guerra (1914-
1918) impõe transformações nos trajes femininos que, adaptados
à nova realidade de trabalho das mulheres, apresentam-se mais
práticos e funcionais. Entre os cartazes das décadas de 1930 e
1940, observa-se um percurso onde as cenas representadas
perdem sua amplitude para enquadrarem apenas a mulher e a
câmera. Da ilustração à fotograa, as peças publicitárias afastam-
se do discurso engajado na gura feminina moderna. Em foco
a câmera, o rosto e o belo sorriso de uma mulher. Nesta cena
reduzida, a mulher mira algo a ser fotografado, uma simulação
através de seu olhar. Apesar deste enfoque, os trajes e estilo que
sustentam a personagem continuam cumprindo um importante
papel. No cartaz de 1935, por exemplo, a Garota Kodak veste uma
peça ícone da moda masculina que viria a se tornar um símbolo de
rebeldia no pós-Guerra (1939-1945), a jaqueta de couro (Figura
8). Considerando a data do cartaz, percebe-se que este item está
mais relacionado aos aviadores de 1927 do que propriamente aos
movimentos subversivos dos anos posteriores.
Figura 8. Cartaz de 1935.
Fonte: Kodak Girl (2022).
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