Investigações sobre treinamento e composição: busca pela liberação de automatismos do corpo vocal nas artes da cena e no fazer teatral

    Daiane Dordete Steckert Jacobs, Maria Rachel de Souza Chula

Investigações sobre treinamento e composição: busca pela liberação de automatismos do corpo vocal nas artes da cena e no fazer teatral

 Investigations on training and composition: search for the liberation of automatisms of the vocal body in the performing arts and in the theater

Daiane Dordete Steckert Jacobs

Doutora em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) – ddordete@gmail.com –

 orcid.org/0000-0003-3145-8017

Maria Rachel de Souza Chula

Mestrado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) – rachelchula0408@gmail.com – orcid.org/0000-0002-9284-0335

Resumo

O presente artigo apresenta uma revisão teórico-conceitual sobre o treinamento de atrizes e atores nas artes cênicas para o desenvolvimento técnico e artístico com vistas à potencialização e à ampliação das ações do corpo vocal. A Redução Fenomenológica (époché) é abordada como conceito chave de reflexão para a liberação dos automatismos do corpo vocal na prática teatral inspirada em Antonin Artaud. A questão é investigar as possibilidades de improvisação, de criação em devir-consciente, em suspensão, na busca por um Corpo Vocal sem Órgãos.

Palavras-chave: Artaud, Antonin, 1896-1948. Performance (Arte). Voz na arte. Comunicação na arte. Fenomenologia e arte.

Abstract

This paper presents a teorical and conceptual review about actor’s training in performing arts for technical and artistic development with a view to potentializing and expanding the vocal body actions. The phenomenological reduction (époché) is approached as a reflexion’s key concept in liberation of the vocal body’s automatisms. It is focused on scenic artists interested in a theatrical practice inspired by Antonin Artaud. The question is to investigate the possibilities of improvisation, devir-conscious creation and suspension in the research for a Vocal Body without Organs.  

Keywords: Artaud, Antonin, 1896-1948. Performance art. Voice in art. Communication in art. Phenomenology and art.

Recebido em: 17/09/2019

Aceito em: 10/06/2020


1 INTRODUÇÃO

O texto aqui apresentado se configura como uma investigação teórica e conceitual sobre o treinamento de atrizes e atores nas artes cênicas, com vistas à liberação de automatismos, ampliação e potencialização das ações do corpo vocal através da suspensão pré-judicativa de valores, visando uma prática inspirada em Antonin Artaud (1896 – 1948).  O conceito de epoché será a chave das reflexões ora apresentadas, a partir das considerações de Natalie Depraz, Francisco Varela e Pierre Vermersch (2006). Também o conceito de Corpo sem Órgãos, confabulado por Guilles Deleuze e Félix Guattari (1997) a partir da obra de Antonin Artaud (1975, 2006), guiará nossa argumentação, em uma atualização do termo em diálogo com o pensamento de Adriana Cavareiro (2012).

Este artigo traz excertos da dissertação de Mestrado em Teatro de Maria Rachel de Souza Chula, defendida em 2019 no Programa de Pós-graduação em Teatro da UDESC, sob orientação da Professora Dra. Daiane Dordete Steckert Jacobs, sob o título Investigações sobre treinamento e composição: busca pela liberação de automatismos do corpo vocal nas artes da cena e no fazer teatral inspirado em Antonin Artaud. Neste sentido, cabe dizer que a pesquisa realizada também contou com práticas de laboratório, mas que aqui focaremos em alguns aspectos teóricos que guiaram a investigação, atualizando, inclusive, alguns termos e problematizações.

Refletir sobre o treinamento de atrizes e atores nas artes cênicas demanda também refletir sobre os conceitos que operam as diretrizes destas práticas e processos. Para tal, partimos da compreensão de que corpo e voz são intrínsecos, sendo estas palavras nomenclaturas que identificam diferentes produções de corporeidade, mas que necessitam muitas vezes da exposição da dicotomia contraditória para a afirmação de sua unicidade.

Assim, partiremos aqui do conceito de corpo vocal trazido pela filósofa feminista italiana Adriana Cavarero, que emprega o termo em diálogo com as pesquisas do medievalista suíço Paul Zumthor, atrelando-o à ideia de unicidade.

Segundo Cavareiro,

A voz é tão inerente ao corpo humano que o corpo pode ser considerado seu instrumento. Os pulmões, traqueia, laringe, boca e outros órgãos da respiração e alimentação transformam-se em órgãos de fonação (Tomatis 1991). O primeiro grito do recém-nascido é a voz e a respiração: um anúncio sonoro, vital de uma singular existência corporal. Como cada corpo é sempre único, então, cada voz difere de todas as outras. E como é típico de um ser vivo cada voz se desenvolve ao longo de um arco temporal de existência e marca os pontos fisiológicos sobre esta trajetória. Desde a infância até a maturidade e a velhice, a voz permanece exclusiva, mas muda como o corpo muda, mais visivelmente no caso da puberdade masculina. O desenvolvimento do corpo, especialmente do corpo engendrado, manifesta-se vocalmente. Embora predisposto para a percepção do som em geral, o ouvido humano está, acima de tudo, sintonizado com esta emissão vocal que revela corpos singulares uns aos outros. (CAVARERO, 2012, p.77)[1].

Portanto, a partir do conceito de Cavarero, fica latente a noção de que somos seres que engendram a realidade nas ações do nosso corpo vocal, em seu movimento pela vida, na escuta do acontecimento, no acolhimento das experiências vivenciadas em nosso fazer pelo mundo.

Partindo desta concepção de integração entre corpo e voz, procuramos refletir conceitualmente neste texto sobre caminhos para o treinamento de atrizes e atores concebidos a partir da ideia de improvisação em suspensão, de criação em devir-consciente e de experimentação das várias possibilidades do corpo vocal que estão colocadas na noção de potencialização e ampliação de suas ações através da Redução Fenomenológica (epoché).

O conceito de epoché é, primeiramente desenvolvido por Husserl[2] , e posteriormente revisitado por Natalie Depraz[3] , Francisco J. Varela[4]  e Pierre Vermersche[5]  (2006), que trazem uma contribuição genuína ao estudo da atenção partindo do devir-consciente na investigação da experiência humana que se dá no ato, no viver para além da própria experiência. O devir-consciente em ato explicita clara e intuitivamente o que nos habita de modo afetivo, opaco, pré-reflexivo e envolve reconhecer a experiência humana como algo de caráter fluído e mutável, pois viver é uma atividade prática.

Criar potências virtuais que a qualquer momento podem vir a se tornar reais, mostrando o poder da afecção dos corpos, está no âmago de questões como: O que pode o corpo? Que corpo é esse que pode o quê? Qual o é poder de afetar e ser afetado desse corpo? O que diminui ou aumenta sua potência de ação? Que corpo é esse que me habita ou que eu habito? E o que move esse corpo? Que hierarquias de poder padronizam os movimentos desse corpo que eu construo? E como desconstruí-lo? Somos seres padronizados? É possível quebrar um padrão? Quando quebramos um padrão logo outro se forma? Nossa cognição se dá na padronização do conhecimento? Qual a diferença entre padrão e automatismo?

No intuito de apontar caminhos teóricos que possam auxiliar práticas de treinamento de atrizes e atores, seguimos procurando refletir a partir destas questões inicialmente apresentadas.

Liberação de automatismos: suspensão (epoché), ampliação e potencialização do corpo vocal

O conceito de suspensão ou epoché com o qual dialogaremos se baseia no artigo A redução à prova da experiência, de Natalie Depraz, Francisco J. Varela, e Pierre Vermersche (2006), e traz uma abordagem revigorada da epoché, realizando uma mudança paradigmática e filosófica que conduz da hermenêutica à pragmática, reivindicando uma fenomenologia que se caracteriza por seu “funcionamento concreto, sua dimensão operatória, processual ou performativa logo, sua práxis” (DEPRAZ; VARELA; VERMESCHE, 2006, p.1).

Quando criamos estamos em um estado de suspensão? O que é suspensão, a epoché da redução fenomenológica?

Husserl (1859 - 1938) formula a epoché como método de redução fenomenológica com vistas à colocação entre parênteses do juízo de valores, considerando o sujeito como transcendental. Os três autores, ao revisitarem o método de redução fenomenológica, indicam que o ato redutivo, ou seja, a suspensão pré-judicativa, coloca-se como obstáculo para a efetivação da epoché como Husserl a concebeu. Por isso, Depraz, Varela e Vermesche propõem uma pragmática fenomenológica, e desmembram o ciclo básico da redução em três atos que seriam: suspensão, redireção e deixar vir como um acolhimento da experiência. É como uma dobra que tem duas vertentes: a primeira que se caracteriza por um retorno sobre si é reflexiva e expressiva, e a segunda, que leva ao acolhimento, ao deixar vir. Esse ato tem um duplo movimento correlato que são as dobras do processo, uma dupla dobra da reflexão cognitiva e da afecção que se encadeiam, dando lugar ao devir-consciente.

Portanto, a epoché ou redução fenomenológica pode agir como fonte criadora de novas ações do corpo vocal da artista da cena que, apoiada em exercícios específicos que fazem emergir o que habita no intuitivo, no pré-reflexivo, desloca a atenção do exterior para o interior, aguçando a escuta em uma suspensão, um devir-consciente na busca por uma ampliação da ação criativa, da atividade cognitiva, na potencialização das ações do corpo vocal.

Pensamos, então, que, por suas contribuições potenciais, a redução fenomenológica pode ser usada como suporte conceitual e diretriz prática para o treinamento técnico e artístico dentro das artes cênicas.

Na prática em laboratório, em sala de ensaio, procuramos trabalhar a improvisação como uma forma de liberação dos automatismos dos movimentos do corpo vocal, utilizando jogos teatrais, jogos corpóreo-vocais e de composição. O intuito é que as experimentações façam reverberar o vivido, e nesse reverberar com a atenção sustentada e ao mesmo tempo desfocada, possa-se encontrar o gatilho para a ação da cognição inventiva (KASTRUPP, 2004), muito necessária no processo criativo vivenciado nas artes da cena.

Com o suporte de estratégias pedagógicas e propostas de ampliação de paradigmas estéticos inseridos no ato criativo, no jogo, na improvisação que envolve a composição, podemos procurar desenvolver os sentidos do corpo e aprofundar a propriocepção pelo fluxo contínuo do movimento do corpo vocal da artista. Esse contínuo de fruição pode gerar um estado alterado de consciência pela afecção das subjetividades do corpo vocal, que é sensório e motor, que age e reage, que afeta e é afetado pelo devir. Ocorre, dessa forma, uma dilatação da percepção, do tempo/espaço no aqui e agora da presença, no acolhimento da ação, aguçando assim a atenção e a escuta.

No artigo A aprendizagem da atenção na cognição inventiva, Virginia Kastrup (2004) faz uma análise da relação entre atenção e aprendizagem na prática do devir-consciente que está inserida na proposta de Depraz, Varela e Vermersche (2006). A partir da obra destes três autores, Kastrup destaca a “suspensão da atitude natural, a atenção a si e uma mudança na qualidade da atenção, que passa de um ato de busca de informações para um ato de encontro com a dimensão de virtualidade do si” (KASTRUP, 2004, p.7).

Partindo do princípio que a questão da improvisação no jogo entre artistas da cena e na composição de partituras corpóreo-vocais passa pelo movimento da atenção, que sofre uma dobra e “essa dobra do exterior para o interior não aciona um processo de consciência de si nem de reflexão” (KASTRUP, 2004, p.8), o que ocorre através desse recolhimento é “um movimento de saída de si” (KASTRUP, 2004, p.8). E nesse agir do ato redutivo “cada gesto ultrapassa, ao mesmo tempo em que conserva o anterior” (KASTRUP, 2004, p.9), gerando assim um movimento circular. Portanto, a prática do devir-consciente pode ser tomada como uma busca pela transformação de si, sendo que “trata-se antes de saber fazer (know how) do que saber algo (know that)” (KASTRUP, 2004, p.10). O seu aprendizado se dá no ato, na ação, no fazer, “no trabalho atento (learning on the job) e não através do exercício mecânico” (KASTRUP, 2004, p.10).

Esse fazer artístico desenvolve uma atitude que mantém a atenção concentrada e aberta a um só tempo. É um deixar-se afetar pela experiência, é um acolhimento dos seus efeitos, das suas afecções. Esse, no nosso entendimento, é o estado de suspensão.

Mas esse estado não é algo dado, bastando apenas querer gerá-lo para que ele se estabeleça. É preciso disponibilidade e treinamento. Para algumas pessoas, talvez seja um estado difícil de alcançar, e para outras pode ser de fácil acesso. Mas, como disparar esse gatilho? Como provocar o estado suspensório, como “entrar” em suspensão?

Podemos dizer, a partir de nossas experiências, que quando este estado é alcançado, existe um pico máximo onde ele se mostra em toda a sua potência e, há uma oscilação entre esse máximo e um mínimo onde o estado se enfraquece. Isso ocorre quando o pré-judicativo, nossa atitude natural, sobrepõe-se ao estado de devir consciente. Com o treinamento, pretende-se que esse estado possa ser mantido durante todo o processo criativo, de modo que possamos fazer uso de nosso potencial criativo e promover a cognição inventiva na liberação dos automatismos, na ampliação das ações do corpo vocal em sua totalidade.

Ao provocarmos a suspensão através das afecções, para que o devir seja acolhido e transformado em poética, damos lugar ao imanente e religamos os corpos transdimensionais[6] em um movimento contínuo de fruição, em uma espiral infinita onde a arte habita.

No livro A voz articulada pelo coração: ou a expressão vocal para o alcance da verdade cênica (2013), a professora e pesquisadora Meran Vargens nos apresenta uma definição sobre os vários corpos que nos habitam. Segundo Vargens, somos compostas por:

Corpo físico: constituído de ossos, músculos, sangue, linfa; de órgãos organizados em sistemas: respiratório, circular, digestivo, linfático, glandular, nervoso; e de órgãos do sentido: visão-olhos, audição-ouvidos, olfato-nariz, paladar-língua, tato-pele, [...] Portanto o corpo físico será para nós aqui um corpo bio-químico-físico;

Corpo etérico: o duplo energético do corpo físico. Estende-se mais ou menos dois ou três dedos além da pele e penetra o corpo até os ossos. Nele estão impressas muitas memórias individuais, coletivas e ancestrais, como um duplo de toda a matéria que nos compõe. É através dele que as energias sutis que nos circundam ganham a possibilidade de penetrar no corpo físico. Por isso também funciona como escudo de proteção e elo de comunicação energética entre o corpo físico e o meio. [...] Através do corpo etérico toca-se no físico e através do físico toca-se no etérico. Eles se interpenetram como pares;

Corpo emocional: localiza-se ao redor do corpo etérico e em muitos estudos é chamado de corpo astral. [...] O centro energético catalizador do corpo emocional é o plexo solar situado à altura do estômago. Por isso nossas reações físicas às emoções afetam logo os órgãos situados nessa área do corpo e têm uma relação direta com o diafragma, que afeta e é afetado pela respiração;

Corpo espiritual: nem me atrevo a tentar defini-lo. Ficará sempre a critério da experiência de cada um. [...] Para a voz, em português ou inglês, gosto de espírito/spirit. Ela é a raiz para a palavra inspiração/inspiration. Conexão direta com o ato de respirar. A entrada do ar no corpo. A entrada do espírito no corpo? Inspiration: in (para dentro), spirit (espírito), action (ação): assim a palavra traduz a ação de trazer para dentro o espírito. Inspiração também é a palavra que define o contato com a fonte da criação. Inspirar-se. (VARGENS, 2013, p. 34 – 38).

A definição de Vargens nos auxilia a visualizar a complexidade constitutiva do corpo vocal, e a pensar também nas práticas de treinamento de atrizes e atores como uma forma de meditação ativa na qual pode ocorrer a ampliação da consciência em busca da liberação de automatismos.

Casiano Sydow Quilici faz uma aproximação entre as práticas meditativas e a ideia de suspensão do juízo de valores no artigo Artes performativas: modos de percepção e práticas contemplativas (2018). Para o autor,

A meditação está mais próxima do exercício de suspenção dos julgamentos para a abordagem dos fenômenos (epoché), proposto pela fenomenologia. A diferença reside na proposição de um método minucioso de investigação não conceitual e não discursiva, que operaria numa velocidade maior do que o pensamento. Para esclarecer, poderíamos fazer uma aproximação do tipo de atenção requerida nas artes marciais, em que “pensar”, por vezes, pode nos colocar numa situação de vulnerabilidade. Neste caso, deve-se trabalhar uma qualidade de consciência em que a atenção tenta apreender os fenômenos no momento exato do seu surgimento, o que pode ser traduzido genericamente como ‘habitar o momento presente’ (QUILICI, 2018, p.8).

Estar no aqui e no agora, “habitar o momento presente” é o foco dessa prática que busca a suspensão, acolhendo o imanente, o momento. Dessa forma, acreditamos que se possa construir uma prática de treinamento de atrizes e atores que libere automatismos do corpo vocal.

Quando falamos em liberação de automatismos não nos referimos apenas aos atos automáticos que são necessários para a nossa existência cotidiana, como se levantar, caminhar, sentar-se, correr, dirigir, comer, escovar os dentes, os cabelos etc. Não precisamos pensar para executar essas ações, elas são automáticas e assim o devem ser para viabilizar o bem viver. Mas também não podemos passar a vida no automático, como autômatas, sem prestar atenção no nosso agir. Liberação de automatismos, no nosso entendimento, é um caminho possível dentro da auto-observação, do autoconhecimento que envolve o fazer teatral e a vida cotidiana. Acreditamos que na arte, assim como na vida, quanto mais conscientes estivermos das nossas ações/sensações/pensamentos mais liberdade de ação, reação e criação alcançaremos.

“Dançar às avessas”: por um Corpo Vocal sem Órgãos

Mas o que é o Corpo sem Órgãos? O que queria Artaud quando se referia ao Corpo sem Órgãos? Por que Deluze e Guattari e outros intelectuais se interessaram tanto por essa ideia, fazendo com que ela acabasse se tornando um conceito filosófico?

Para ilustrar a ideia de Corpo sem Órgãos, trazemos as palavras do seu idealizador:

Colocando-o de novo, pela última vez, na mesa de autópsia para refazer sua anatomia.

                                                  Eu digo, para refazer sua anatomia.

O homem é enfermo porque é mal construído. É preciso desnudá-lo para raspar esse animalúnculo que o corrói

                                                  mortalmente,

                                                  deus

                                                  e juntamente com deus

os seus órgãos.

Pois, amarrem-me se quiserem,

mas não existe coisa mais inútil que um órgão.

Quando tiverem

Conseguido fazer um corpo sem órgãos,

então o terão libertado dos seus automatismos

e devolvido sua verdadeira liberdade.

Então o terão ensinado a dançar às avessas

como no delírio dos bailes populares

e esse avesso será

seu verdadeirEm seu poema original, Artaud lança a ideia da liberação dos automatismos através do desnudamento do corpo e gera uma grande questão filosófica que mais tarde será formulada por Deleuze e Guattari. De acordo com os autores:o lugar (ARTAUD, 1975, p.194).

Em seu poema original, Artaud lança a ideia da liberação dos automatismos através do desnudamento do corpo e gera uma grande questão filosófica que mais tarde será formulada por Deleuze e Guattari. De acordo com os autores:

Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO [7] não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. [...] Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.10).

A busca pelo Corpo sem Órgãos pode ser interpretada, deste modo, como a busca pela liberação dos automatismos de movimento e pensamento incutidos em nossas ações cotidianas, um desfazer do eu socialmente organizado em busca do avesso de nós mesmas.

Traçamos um paralelo com as ideias contidas nos escritos de Artaud e nas apropriações de Deleuze e Guattari na busca por um entendimento do trabalho da artista da cena sobre si mesma. Neste sentido, pensamos o treinamento como espaço de encontro de corpos vocais repletos de singularidades, constituídos pelas suas alteridades, podendo estes corpos vocais se tornarem Corpos Vocais sem Órgãos se lançados à ideia de Artaud da liberação dos automatismos, em uma “dança às avessas” onde o avesso seria o verdadeiro lugar do corpo vocal.

Desfazer o eu para encontrar o Corpo Vocal sem Órgãos pode ser um caminho semelhante a uma dobra, que vai de fora para dentro e de dentro para fora, em um acolhimento da experiência, um devir-consciente, pois:

O campo de imanência não é interior ao eu, mas também não vem de um eu exterior ou de um não-eu. Ele é antes como o Fora absoluto que não conhece mais os Eu, porque o interior e o exterior fazem igualmente parte da imanência na qual eles se fundiram (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.15 - 16).

Os corpos físico, mental e imanente (talvez etérico e espiritual), em sobreposição, fundem-se em um uno, um corpo multidimensional, ou transdimensional. É como o Duplo em Artaud, que está imbricado no conceito de devir-outro, pois assim como o teatro é o duplo da vida, a atriz é o duplo de si mesma, a pessoa é o duplo da persona que habita o pré-egóico e emerge da suspensão, criando um Corpo Vocal sem Órgãos.

A busca pela ampliação das possibilidades de ação do corpo vocal na liberação dos automatismos também pode ser relacionada aos conceitos de Crueldade e Peste de Artaud. Manifesta-se na noção de ampliação das possibilidades do corpo, na liberação das ações do corpo vocal das formas estereotipadas de ser, dos seus lugares-comuns, através de um fazer teatral visceral, cruel em seu rigor de ação que “toma gestos e os esgota: assim como a peste, o teatro refaz o elo entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada” (ARTAUD, 2006, p.24), tornando visível o invisível.

José Gil questiona:

[...] Por que esta expressão de um corpo que não tem órgãos? Por que compõe esse corpo um plano de imanência? Digamos simplesmente, que o corpo habitual, o corpo-organismo é formado de órgãos que impedem a livre circulação da energia. A energia é investida e fixada nos sistemas de órgãos do organismo [...]. Desembaraçar-se deles, constituir um outro corpo onde as intensidades possam ser levadas ao seu mais alto grau, tal é a tarefa do artista e, em particular do bailarino (GIL, 2001, p.73).

O movimento fluido leva as intensidades a percorrerem o corpo livremente, circulando as energias e potencializando-as, portanto, o corpo que dança constrói seu CsO. A sensação de fluxo é muito presente no corpo dançante. O fruir da energia que percorre o corpo em movimento é a própria transcendência em ato suspensivo.

Para Deleuze e Guattari, o corpo

[...] é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. [...] Ele é a matéria intensa e não formada, não estratificada, a matriz intensiva, [...]. Por isto tratamos o CsO como o ovo pleno anterior à extensão do organismo e à organização dos órgãos, [...] (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 20).        

A ideia das intensidades que passam pelo corpo e que são anteriores à organização dos órgãos ou à extensão do organismo nos remete à seguinte questão: o Corpo Vocal sem Órgãos não poderia ser então uma forma ontológica de afecção em suspensão?

As artes da cena em diálogo com a antropologia, a filosofia e as ciências buscam um entendimento do comportamento humano e seus paradoxos: o que é a nossa humanidade, do que somos realmente feitas enquanto seres que sentem e pensam e, portanto, que têm a capacidade de criar (e de destruir), de modificar, de transformar. Essa fusão entre as várias áreas do conhecimento se faz no processo, nesse percorrer caminhos que se entrelaçam, se laçam e se lançam em outros tempos/espaços, em outros eus e tantos, nos duplos artaudianos, nos devires outros, nas experiências que vivenciamos.

A experiência nos produz uma afecção que causa, por sua vez, uma suspensão, dilatando o tempo e a percepção. Requer paciência e disponibilidade para um trabalho sobre si mesma, uma observação atenta de si, um suspender das ações para ver e reparar no que está no aqui e no agora, o que é o momento presente e o que somos no mundo que engendramos. Mas, na contemporaneidade, o que nos falta é tempo para parar, olhar, sentir e vivenciar verdadeiramente uma experiência.

Talvez as artes da cena sejam o lugar essencialmente da experiência, pois o que importa é que “a sensibilidade seja colocada num estado de percepção mais aprofundada e mais apurada, é esse o objetivo da magia e dos ritos, dos quais o teatro é apenas um reflexo” (ARTAUD, 2006, p.104) e onde podemos mergulhar nas águas abissais do nosso oceano interior, nos recônditos mais profundos de nós mesmas, em uma religação com o todo.

O que está sendo abordado é a possibilidade de uma prática que leve a alcançar estados alterados de consciência, uma suspensão do juízo de valores dentro do processo de criação da artista da cena, para que invada claramente à consciência alguma coisa da própria artista que a “habitava de modo confuso e opaco, afetivo, imanente, logo, pré-refletido” (DEPRAZ; VARELA; VERMESCH, 2006, p.02). Buscamos uma abertura para o que está no devir e que envolve o processo de criação de um Corpo Vocal sem Órgãos.

Afecção e contaminação da Peste Artaudiana

No contexto abordado neste artigo, pensamos uma artista em um treinamento técnico e criativo, que procura se comunicar com a ambiência e se deixar afetar. Alguém que busca não pré-julgar, que procura uma suspensão pré-judicativa de sua prática.

Essas ideias abarcam a duplicidade artaudiana com sua multiplicidade de devires e possibilidades de criação. A potência criativa dá à artista a “qualidade quântica de pular de estados” e traz também a noção de contaminação da peste artaudiana, base do teatro que, segundo Artaud, é como a peste, não por seu poder de contagio, “mas porque, como a peste, ele é a revelação, a afirmação, a exteriorização de um fundo de crueldade latente através do qual se localizam num indivíduo ou num povo todas as possibilidades perversas do espírito” (ARTAUD, 2006, p.27). Seria um teatro dos paradoxos revelados, das transgressões humanas afloradas e dos males purgados. E como a peste,

Também o teatro é um mal porque é o equilíbrio supremo que não se adquire sem destruição. Ele convida o espírito a um delírio que exalta suas energias; e para terminar pode-se observar que, do ponto de vista humano, a ação do teatro, como a da peste, é benfazeja pois, levando os homens a se verem como são, faz cair as máscaras, põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, o engodo; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros dos sentidos. E, revelando para a coletividade o poder obscuro delas, sua força oculta, convida-as a assumir diante do destino uma atitude heroica e superior que, sem isso, nunca assumiriam (ARTAUD, 2006, p.29).

Um desnudar-se, um cair de máscaras, essa é a intensão contida na ideia da Peste, um modo de transformação da sociedade através desse fazer visceral e cruel que se constitui no desejo de contaminação do teatro vislumbrado por Artaud.

Performar em improvisação, em um treinamento criativo, é um modo de contaminação não pela forma, mas sim, pelo impulso, por uma afecção que mova, que leve o corpo à ação, como em um “espelho tátil”, pois “nossos corpos são possuídos pelo movimento” (MASSUMI, 2016, p.14). Somos movimento, ação incorporada[8]. A artista busca através da empatia, compondo a imagem material com a virtual, criar uma experiência sinestésica/cinestésica, já que o sentido, sentido está.

Para que haja uma contaminação, é necessário criar uma atmosfera e, para tanto, é preciso deixar reverberar no corpo vocal as percepções e afecções da ambiência, para que se manifeste algo que está na imanência, ou seja, apreender o que está no devir, na eminência do porvir, pois a matéria de fato é a sensação, não o limite em si, e é ela que cria as afecções que são os “devires não humanos do homem, com os perceptos” (DELLEUZE, GUATTARI, 1992, p.220). Estes tornam “visíveis as forças invisíveis que povoam o mundo, e que nos afetam, nos fazem devir” (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p.234), energias que nos perpassam, transpassam e muitas vezes nos movem. Estas forças mobilizam-nos e através da mobilidade emerge o evento, pois “tudo é visão, devir. Tornamo-nos universo. Devires animal, vegetal, molecular, devir zero” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.220). Tornamo-nos unos com o todo.

Peter Pál Pelbart corrobora com o pensamento de Deleuze e Guattari ao afirmar que

[...] somos um grau de potência, definido por nosso poder de afetar e ser afetado e não sabemos o quanto podemos afetar e ser afetados, é sempre uma questão de experimentação. Não sabemos ainda o que pode o corpo, diz Espinosa. Vamos aprendendo a selecionar o que convém com o nosso corpo, o que não convém, o que com ele se compõe, o que tende a decompô-lo, o que aumenta sua força de existir, o que a diminui, o que aumenta sua potência de agir, o que a diminui, e, por conseguinte o que resulta em alegria, ou tristeza. Vamos aprendendo a selecionar nossos encontros, e a compor, é uma grande arte (PELBART, 2011, p.01).

Assim é o jogo da improvisação, uma experimentação de possibilidades de afecção, um diálogo entre alteridades e singularidades que aumentam ou diminuem a potência de agir da performer.

Portanto, na improvisação e na composição podemos desenvolver os sentidos do corpo vocal e aprofundar a propriocepção pelo fluxo contínuo do movimento. Esse contínuo de fruição gera um estado de suspensão pela afecção das subjetividades do corpo que é sensório e motor, que age e reage, que afeta e é afetado pelo devir. Ocorre dessa forma, uma dilatação da percepção, do tempo e sua duração, e da presença no acolhimento da ação, aguçando assim a atenção. Insere-se no limiar fronteiriço entre arte e filosofia e instaura-se no corpo vocal pelo movimento na imanência do tempo e sua duração.

Segundo Deleuze e Guattari (1992, p. 226), o artista é “mos-trador de afectos eventos de afectos, criador de afectos em relação com os perceptos[9] ou as visões que nos dá”. Sendo assim, experimentamos nas experiências que envolvem a criação uma forma de afecção, de suspensão, ao deixar-nos permear, deixarmos vir o que pulula na imanência, no acolher da experiência e nesse acolhimento do vivido. Emerge, assim, o evento, que é uma multiplicidade de tudo que está no tempo, na duração que é fluxo, movimento, jorro criativo.

A ideia de que a realidade é constituída pela permanência e também pelo fluxo, pela transcendência e pela imanência do Mundo e do Universo, atesta que a passagem da natureza é um fluxo de transformação, nessa transição o que é permanente flui, tornando imortal a coisa ou o ser em si.

Então, podemos dizer que o Universo é um processo orgânico de realizações e de intensidades que unem os seres humanos, os não humanos, e a natureza, em uma retroalimentação criativa do mundo, que é o próprio processo em si.

Ximena Dávila Yánêz e Humberto Maturana Romesin no livro Habitar Humano em seis ensaios de biologia-cultural (2009, p.19) dizem que:

[...] todo ser vivo, todo o cosmo existe num presente cambiante contínuo, como uma frente de onda de sucederes que ocorrem num devir contínuo de entrelaçadas transformações. Nós, seres humanos, existimos assim num presente cambiante contínuo em que passado e futuro são modos de viver o contínuo presente cambiante que se vive. O passado é nosso modo de explicar com as coerências do presente que vivemos o contínuo surgir do presente que viemos; e o futuro é o nosso modo de viver o presente que vivemos, imaginando sua contínua transformação numa extrapolação das coerências dos fazeres e sentires que estamos vivendo.

Assim sendo, talvez sejamos um processo que se irradia nas associações do humano e do não humano que se atualiza na permanência o que traz a ideia de que não somos um eu e sim, um “Nós”. Somos, mas ainda estamos no porvir.

Somos como uma consciência que está em processo, consciência que é coletiva e instala-se no ciclo infinito do presente que está sempre se atualizando. Um processo de conexão em constante alteridade, em constante movimento, em suspensão, na arte e na vida.

Pensamentos em devir

Neste artigo, procuramos tecer uma trama conceitual e teórica com diversas autoras e autores, tendo a epoché como eixo central na reflexão sobre o treinamento de atrizes e atores em busca da liberação de automatismos e ampliação das potencialidades do corpo vocal.

Dialogamos com Cavarero e sua definição de corpo vocal; Vargens e seus múltiplos corpos; com  Depraz, Varela e Vermesch  sua releitura da epoché; com Kastrup e sua cognição inventiva; Deleuze e Guattari com o conceito de Corpo sem Órgão a partir da obra de Artaud; Artaud com os conceitos irmãos do CsO, como Duplo, Peste e Crueldade; Pelbart com a afecção, que se origina em Spinoza; e, por fim, com  Yánêz e Romesin, que nos apresentaram a ideia de sermos entes de uma história na qual o tempo não é cronológico, e os seres não são, estão em devir.

Também traçamos uma relação entre treinamento artístico e vida cotidiana. Para nós, estamos sempre em treinamento, o tempo todo. Sempre que nos percebemos e nos auto observamos, aprimoramos habilidades, hábitos e práxis que nos levam a uma ampliação da consciência, e nos fazem entrar em contato com nossa subjetividade e poder de criação, afecção e transformação de nós mesmas e do mundo em que agimos e nos movemos como seres biológicas, sociais e culturais que somos nós, seres humanas.

O trabalho técnico e criativo com o corpo vocal pode ser uma fonte de transformação, de cura e libertação. Nosso corpo vocal é singular, expondo nossa unicidade e individualidade ao mesmo tempo que nos conecta com as outras pessoas e o mundo, tanto na arte quanto na vida.

Assim, acreditamos que a liberação de automatismos através da epoché, ou suspensão do juízo de valores, pode oferecer uma ampliação da consciência criativa, ou cognição inventiva, tanto em nossas ações artísticas quanto cotidianas.

REFERÊNCIAS

ARTAUD, A. Para Acabar de Vez Com o Juízo de Deus e o Teatro da Crueldade. Lisboa: Ed. & Etc., 1975.

ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. 3ª. Ed. Tradução de Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

CAVAREIRO, A. The Vocal body: extract from A Philosophical encyclopedia of the body. In: Qui Parle: journal of critical humanities and social sciences. Transladed by Matt Langione. Lincoln: University of Nebraska Press, 2012, n. 01, col. 21, p.71-83.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia? Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. Editora 34. São Paulo: Editora 34, 1992. Coleção TRANS

DELEUZE, G.; GUATTARI, F.  Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed.4, 1997. v.2-4

DEPRAZ, N.; VARELA, F.; VERMERSCH, P. A redução à prova da experiência. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 58, n. 1, junho 2006.

GIL, J. Movimento Total: o Corpo e a Dança. Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Editora Relógio D’Água, 2001.

KASTRUP, V.  A Aprendizagem da Atenção na Cognição Inventiva. In: Psicologia & Sociedade, Pernambuco, v. 16, n. 3, p. 7-16, setembro/dezembro, 2004.

 

MASSUMI, B.  A arte do corpo relacional: do espelho-tátil ao corpo virtual. Galáxia, São Paulo, n. 31, p. 05-21, abril 2016. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/26462. Acesso em:  11 ago. 2019.

PELBART, P. P. Indivíduo e potência. In: NEUPARTH, S.; GREINER, C. (org.). Arte agora: pensamentos enraizados na experiência. São Paulo: Annablume, 2011.

QUILICI, C. S.  Artes performativas, modos de percepção e práticas contemplativas.  PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes - EBA /UFMG, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, maio 2018.

VARELA, F.; THOMPSON, E.; ROSCH, E.  A mente incorporada: ciências cognitivas e experiência humana. Porto Alegre: Artmed, 2003.

VARGENS, M.  A Voz articulada pelo coração: ou a expressão vocal para o alcance da verdade cênica. São Paulo: Perspectiva, 2013.

YANEZ, X. D.; ROMESIN, H. M.   Habitar humano em seis ensaios de biologia cultural. Tradução de Edson Araújo Cabral. São Paulo: Palas Athenas, 2009  

 

DAPesquisa, Florianópolis, v. 15, n. 25, p. 01-16, set. 2020.

DOI: http://dx.doi.org/10.5965/1808312915252020e0008


[1] “Voice is so inherent to the human body that the body can be considered its instrument. The lungs, trachea, larynx, mouth and other organs of respiration and alimentation transform into organs of phonation (Tomatis 1991). The fi rst cry of the newborn is voice and breath: a sonorous, vital announcement of a singular bodily existence. As each body is always unique, so each voice differs from all the others. And as is typical of a living being, each voice develops along a temporal arc of existence and marks the physiological points on this trajectory. From infancy to maturity to old age, the voice remains unique but changes as the body changes, most conspicuously in the case of male puberty. The development of the body, especially that of the gendered body, manifests itself vocally. Though predisposed to the perception of sound in general, the human ear is, above all, tuned to this vocal emission that reveals singular bodies to one another. In contrast to speech, the voice puts hearing in play even before listening.”. (Tradução nossa)

[2] Edmundo Husserl (1859 -1938) era filósofo, matemático, cientista, pesquisador e professor das faculdades de Göttingan e Freiburg, na Alemanha.

[3] Natalie Depraz é PhD em filosofia, professora da Filosofia Alemã Contemporânea na Universidade de Rouem. Membro dos Arquivos Husserl (ENS-CNR), Paris.

[4]  Francisco J. Varela (1946-2001) PhD em Biologia (Harvard 1970). Foi diretor de pesquisa no CNRS-Centro de Pesquisas Científicas no Laboratório de Neurociências Cognitivas do Hospital Universitário da Salpêtière em Paris.  

[5] Pierre Vermersch, Psicólogo, Psicoterapeuta e Pesquisador CNRS.

[6] O termo corpo transdimensional ocorreu a Maria Rachel durante a disciplina Estudos do Corpo na Arte, Filosofia e Ciências, ministrada pela professora doutora Sandra Meyer Nunes no PPGT/UDESC no ano de 2015. O termo refere-se à ideia de que o nosso corpo é constituído pelo corpo físico, mental e imanente (etérico e espiritual) que ao sobreporem-se se tornam uma unidade, fundem-se num uno, num corpo multidimensional, mas talvez esse corpo multidimensional, seja um corpo transdimensional, já que as dimensões física, mental e imanente ao se fundirem acabam por se transpassarem, formando uma unidade.

[7] CsO é a abreviatura de Corpo sem Órgãos

[8] A ideia de “mente incorporada” está relacionada com o conceito de ação incorporada desenvolvido por Varela, Thompson, Roach e Lakoff e se refere ao fato de que a “cognição depende dos tipos de experiências decorrentes de se ter um corpo com várias capacidades sensório-motoras [...] embutidas em um contexto biológico, psicológico e cultural [...]. utilizando o termo ação queremos enfatizar novamente que os processos sensoriais e motores – a percepção e a ação – são fundamentalmente inseparáveis na cognição vivida. De fato, os dois não estão apenas ligados contingencialmente nos indivíduos; eles também evoluíram jutos” (VARELA, THOMPSON, ROACH, 2003, p.177).

[9] “Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e afectos. A obra de arte é um ser de sensações, e nada mais: ela existe em si” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.213).