Considerações sobre a presença da natureza-morta na arte contemporânea
Milena Regina Duarte Corrêa, Altamir Moreira
Considerações sobre a presença da natureza-morta na arte contemporânea
Considerations on the presence of still life in contemporary art
Milena Regina Duarte Corrêa
Doutoranda em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais,
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) – ilenadc27@gmail.com– orcid.org/0000-0001-7962-7399
Altamir Moreira
Doutorado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) –
altamir@ufsm.br– orcid.org/0000-0002-6251-0079
Resumo
Este artigo baseia-se na dissertação de mestrado do(a) autor(a), a respeito da presença das naturezas-mortas na arte contemporânea. Tem objetivo de examinar como a natureza-morta da história da arte ultrapassa a cronologia do tempo e marca sua presença na contemporaneidade. A partir de uma abordagem metodológica baseada na pesquisa bibliográfica e no estudo iconográfico proposto por Georges Didi-Huberman, o texto apresenta uma análise comparativa entre imagens de diferentes tempos, através dos seguintes elementos: persistência dos motivos, persistência das formas, comunicação e novidade. Dessa forma, conclui-se que, as naturezas-mortas sobrevivem à história e adaptam-se na arte contemporânea de forma contestadora e plural, produzindo outros significados, além dos anteriores e convencionais.
Palavras-chave: Arte moderna - Séc. XX; Natureza-morta na arte; Arte – História; Ídolos e imagens.
Abstract
This article is based on the author's master's thesis about the presence of still lifes in contemporary art. Its purpose is to examine how still lifes in art history go beyond the chronology of time and mark their presence in contemporaneity. From a methodological approach based on bibliographic research and the iconographic study proposed by Georges Didi-Huberman, it presents a comparative analysis between images from different times through the following elements: persistence of motifs, persistence of forms, communication and news. So, it’s concluded that still lifes survive history and are adapted in contemporary art in a contesting and plural way, producing other meanings beyond the previous and conventional ones.
Keywords: Art, Modern - 20th century ; Still-life painting; Art- History; Idols and images.
Recebido em: 21/07/2021
Aceito em: 10/10/2021
Um vaso de flores, algumas frutas e outros objetos inanimados estão sobre a mesa. Um relógio, uma ampulheta e alguns tecidos imediatamente compõe uma natureza-morta. Uma combinação inerte, com a vida em suspenso. Sossegada, à primeira vista, parece não dizer nada, conforme o tempo passa, é como se os objetos nos encarassem e dissessem que a vida tem passado, como se nos observasse envelhecer. As flores murcham, as frutas apodrecem, o mofo corrompe os materiais e o tempo não tarda a passar.
As naturezas-mortas sempre estiveram presentes na história da arte, desde a antiguidade, até nossos dias. Os objetos fazem parte das nossas vivências cotidianas, entretanto, por serem costumeiros e sossegados, custaram a ganhar atenção em um território artístico privilegiado de grandes temas religiosos, retratos e paisagens. Discretas e silenciosas, sem elementos retóricos ou míticos, as naturezas-mortas marcam sua presença no Renascimento Holandês de forma imóvel e impessoal.
No primeiro capítulo da dissertação referenciada, foi apresentada uma revisão histórica concisa dos principais momentos que marcaram as naturezas-mortas da Antiguidade. E, posteriormente, foi discutida a aparição do tema no território da arte contemporânea. A partir disso, foram identificadas as características e objetivos de um mesmo gênero, em tempos diferentes.
O termo “Natureza-morta” deriva do holandês stilleven, em inglês, still-life, que significa uma composição de objetos e/ ou seres inanimados, silenciosos, discretos, incapazes de movimento, com a vida em suspenso. As sensações de quietude e calma caracterizam também a exposição de ambientes íntimos e caseiros, os quais retratam, muitas vezes, o estilo de vida daqueles que aparecem para protagonizar as pinturas.
As primeiras representações tratavam os objetos como decorativismos, acessórios de lugar secundário. De acordo com Michêle-Caroline Heck (1998), as pinturas traduziam, detalhadamente, os elementos cotidianos, mantendo a proporção de seus objetos, cumprindo com o objetivo da arte de imitar a natureza e o real – como na Europa do século XVII. O interesse pelos efeitos na época e a fidelidade ao modelo são características que marcam o início da trajetória das naturezas-mortas na Holanda.
Seguindo pelas linhas da história, os objetos fixos foram conquistando autonomia. Como exemplo, as cenas de mercados e tendas de comida dos anos 1500, época marcada por revoluções econômicas, em que a escassez de bens alimentares fez com que o aumento da produção agrícola fosse escolhido como uma expressão visual dos pintores da época. Posteriormente, depois da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), os países ficaram arruinados pelas enormes despesas; então, as Vanitas começam a ser abordadas (SCHNEIDER, 2009, p. 79).
Vanitas, em latim, significa vacuidade, futilidade, vanitas vanitatum[1]; na história da arte pode ser interpretada como vaidade e compreendida como uma insinuação à efemeridade da vida e da vaidade. A Holanda pré-capitalista, sociedade temente a Deus, criticava aqueles que desfrutavam de riqueza, por isso, os bens de luxo aparecem de forma recorrente nas pinturas. Em contraste, a presença da caveira nas obras de arte lembra o espectador da fugacidade das coisas, um estado de decomposição que aguarda todo mortal (SCHNEIDER, 2009), independentemente de suas riquezas.
Séculos passaram e algumas mudanças surgiram. Na Modernidade, por exemplo, houve um afastamento das formas priorizadas na arte acadêmica, predominantes até o final do século XIX. A natureza-morta se desvencilha de valores alegóricos e simbólicos, em favor de valores estéticos e compositivos. As formas, cores, luz, perspectiva, composição e textura passam a ser a principal questão na pintura, assim como as variações de estrutura compositiva. Um marco na era da representação, condizente com as novas possibilidades formais que começariam a eclodir no decurso no século XX.
A rápida passagem do século XX ao XXI trouxe muitas inovações, entre elas, o objeto-arte, arte conceitual, a arte tecnológica e as demais mudanças que marcaram os anos de 1960 a 2000, principalmente. A conhecida arte contemporânea, de acordo com Jacques Rancière (2012), muda praticamente todas as concepções anteriores: provoca a mobilização para fora do ateliê e do museu e opõe-se ao sistema dominante ao negar ser elemento desse sistema, deixa as pessoas revoltadas quando mostra coisas revoltantes, por exemplo, Caixas de Brillo (1964) de Andy Warhol.
Assim, é evidente as produções de naturezas-mortas também adquirem novas formas e conceitos, além de uma motivação diferente. Os objetos saem dos parâmetros bidimensionais e da parede com fundo branco, alcançam outras estruturas que não apenas representam, mas problematizam o cotidiano. A arte se amplia para além das questões próprias da arte, invadindo discussões ambientais, políticas, socioeconômicas e culturais de modo avassalador.
As naturezas-mortas da arte contemporânea se distinguem das naturezas-mortas da história da arte, não só pelas mudanças formais e estruturais na abordagem e na produção artística. Hoje, elas são produzidas sem o abrigo de uma narrativa linear da história. Ainda que incorporem o tema tradicional, ao manter algumas formas e motivações, a abordagem conceitual é, em princípio, diferente. Assim como os objetivos do artista, os significados inerentes da imagem também mudam, tendo em vista que não pertencem a uma configuração única de história da arte.
Um exemplo que ilustra essa mudança refere-se ao movimento conhecido por Land Art, emergido por volta dos anos 70, interessado por problemas ligados à ecologia. Diante da onda de artistas manifestantes de preocupação, Jason deCaires exibe aflições com a ecologia subaquática nas profundezas do mar (Figura 1). Esculturas de cimento não tóxico, livre de poluentes nocivos e pH neutro, tornam-se parte do ecossistema, convidando as larvas de coral a se prenderem em suas extremidades e cantos escondidos, transformando-se em casas para peixes e crustáceos.
Figura (1). Jason deCaires Taylor: Silent evolution, 2010. Cimento. 80 x 100 x 70 cm
Fonte: Disponível em: http://noholodeck.blogspot.com/2011/11/evolucao-silenciosa-de-jason-decaires.html
A obra Silent Evolution (2010)[2] expande o campo conceitual na arte contemporânea: objetos sobre uma mesa compondo uma natureza-morta no fundo do oceano, em Cancún. Por não pertencerem àquele lugar, portam-se como se ainda estivessem sobre a terra e sem preocupações se sua existência interfere ou prejudica, de alguma forma, a vida aquática, como com as garrafas jogadas ao fundo do mar. Parece que a crítica de Taylor está, primeiramente, no contraste causado pela imagem: garrafas no fundo do mar, que, normalmente, causam poluição mas, nesse caso, contribuem para o meio ambiente por meio de seus recifes artificiais.
Trata-se de uma natureza-morta que expande totalmente os conceitos anteriores e centra-se, sobretudo, em uma nova fronteira da arte: a saúde continuada das ecologias marinhas. É uma composição de objetos dispostos de modo que os recifes a serem formados tenham espaço para se ampliar, passando de uma escultura de cimento limpa, intocada pela vida oceânica, para um ecossistema em funcionamento. A narrativa dessas imagens é adaptada conforme o passar do tempo, podem presenciar diferentes momentos e se mostrarem de forma alterada para cada pessoa que mergulhar no local em distintos períodos.
As estratégias contemporâneas, como se pode perceber pelo exemplo aqui desenvolvido, são caracterizadas pela conservação e persistência das formas silenciosas, de certo modo, padronizadas. Contudo, ao contrário da inércia aparentemente envolvida nas naturezas-mortas da história da arte, entre os séculos XVII e XX, aqui, elas adquirem uma dinâmica e uma força que expande as motivações do artista para além da representação do cotidiano, com uma presença marcada pelos questionamentos e problematizações do nosso contexto contemporâneo.
2 AS IMAGENS PERSISTEM E SE RELACIONAM
Falar da persistência de uma imagem é afirmar que, mesmo diante de determinadas circunstâncias contrárias, tentando fazer sua vida desaparecer, persistiram com força suficiente para continuar mobilizando e reaparecendo. Essa reaparição pode ser sutil ou pulsante, pode trazer de volta formas específicas e conhecidas, ou novos significados e conteúdos. A persistência normalmente pode ser medida pela coincidência de formas e cores visíveis e enunciáveis familiares, de referências passadas.
Diante do exposto na primeira parte do texto, conclui-se que as imagens de naturezas-mortas são persistentes. Passando de meros adereços para motivo central; ultrapassando todas as mudanças de cultura e narrativas na arte; misturando-se à arte abstrata; adaptando-se à arte conceitual, as naturezas-mortas ainda aparecem de forma recorrente em todos os períodos. O processo de sobrevivência dessa temática é evidente, suas referências passadas persistem e são atualizadas na arte contemporânea.
A persistência dessas formas ocorre graças à troca e à soma de significados adquiridas pelas imagens no decorrer da história. Em Diante do tempo, Georges Didi-Huberman (2015), uma das principais referências em teoria da arte, quanto ao estudo da imagem, propõe um modelo de temporalidade. Segundo ele, as imagens relacionam-se porque a vida e a montagem ocorrem de forma heterogênea e descontínua, conectam-se através de um olhar contemporâneo, feito a partir de ressignificações do passado. Ou seja, funciona como se toda imagem contemporânea viesse de uma imagem do passado e ainda se conectasse com ela.
A teoria da temporalidade e das sobrevivências das imagens de Didi-Huberman, deriva da proposta precursora de Abraham Moritz Warburg (1866-1929). Historiador judeu-alemão, transitou entre pesquisas sobre o Renascimento italiano, filosofia, história da arte, iconografia e astrologia, cujo trabalho caracteriza-se pela utilização de testemunhos figurativos (pinturas) como fonte histórica. Ou seja, a escrita de uma história da arte através de imagens.
A pesquisa de Warburg é estruturada a partir de três conceitos fundamentais: Nachleben, Pathosformel e Mnemosyne. Aqui, nos interessa o primeiro: Nachleben, do alemão, após a vida, além da vida, sobrevida, que tenta fazer justiça à complexa temporalidade das imagens: longas durações e fissuras do tempo, latências e sintomas, memórias fugidias e memórias ressurgentes, anacronismos e limiares críticos (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 52). Para o pesquisador, Nachleben se explica através da magia, uma vida que pode se perpetuar e se renovar além de qualquer condição, como se as imagens combatessem o tempo e produzissem novas configurações, tornando-se imagens dialéticas e discursivas.
A partir disso, Didi-Huberman (2013a), aplicado estudioso das teorias de Warburg, desenvolveu o próprio conceito de sobrevivência no livro A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Apresentando o termo estrutura de recalque, esclarece como a sobrevivência da história pode alcançar a contemporaneidade: os elementos que retornam passam pelo recalque e revelam novamente estruturas antes já conhecidas, mas, algumas vezes, de outra forma.
Pensar que uma imagem sobrevive é reconhecer, primeiramente, a imagem como atemporal. Segundo Didi-Huberman (2013b, p. 15) “sempre, diante da imagem, estamos diante do tempo”, ou seja, a imagem é composta por uma montagem de tempos heterogêneos: passado anacrônico e presente reminiscente. A configuração da imagem, em um outro estatuto, temporal não linear ou cronológico, permite essas movimentações, quando os tempos se chocam, separam-se nas imagens e então constituem a história da arte. Portanto, quando a imagem é constituída, surge de um intervalo, um acontecimento, um choque, da relação entre presença e ausência, de uma sobrevivência.
A sobrevivência assegura que as imagens são pertencentes a vários tempos, fazem referência ao que já passou e possibilita, através de um tempo reminiscente, visualizar algo que ainda nem aconteceu. Pelo caráter anacrônico e dialético, podem movimentar-se em várias direções de maneira não linear. Portanto, a sobrevivência não quer dizer meramente a conservação de formas iguais, mas as simbologias e características conceituais que voltam a se desenvolver de outra forma, em outro momento, e afetando quem as encontra.
Para Didi-Huberman (2015), a grande potência da imagem é o fato dela ser sintoma, ser retorno, associar-se com diferentes tempos, sobrevivências, repetições e conjunções. A persistência dessas formas consiste na constante ressignificação a que são submetidas. Um dos principais meios para essa ressignificação é a atualização dessas imagens pela contemporaneidade, o modo como elas voltam ao seu referencial de origem e encontram as emergências atuais.
A confluência de tempos da imagem, faz com que diferentes imagens possam se relacionar, ao evidenciarem referências de tempos semelhantes, elas acabam se conectando. Mantendo suas formas e estruturas do passado, ou expandindo e modificando totalmente as características visuais, podemos concluir que as naturezas-mortas continuam persistindo. Algumas delas conservam parte das questões próprias do gênero (forma, estrutura), mas discutem as demandas da arte contemporânea, o que define a atualização iconográfica.
Com isso, entende-se que o passado está constantemente a se reconfigurar a partir dos elementos, fissuras e saltos atemporais que, quando revistos na contemporaneidade, produzem articulações antes impensadas. Reconhecer a sobrevivência é um movimento de valorização do antigo e de atualização. Esse diálogo atemporal entre as imagens de naturezas-mortas é provedor de encaixes sobreviventes, os quais atestam a persistência e promovem atualizações para um tema tradicional.
3 OPERANDO COM AS IMAGENS
Neste momento do texto, dividido em duas partes, identifica-se o que de fato sobrevive nas naturezas-mortas. Na primeira parte, é apresentada a metodologia da pesquisa e o método em que as imagens do texto são analisadas: a iconografia proposta por Didi-Huberman. Em seguida, através de um padrão iconográfico, é feita a análise de duas obras de natureza-morta: uma da metade do século XVII e outra da arte contemporânea. Nessa análise, são utilizados dois critérios de classificação: persistência das formas e persistência dos motivos. O primeiro, refere-se à recorrência de elementos visuais, enquanto o segundo diz respeito à repetição das motivações dos artistas. Com esses dois critérios, selecionam-se quais obras têm relação.
Depois de definidas as obras, categoriza-se um conjunto de características formais (técnica e composição) e temáticas (questões manifestadas por esse motivo). Essa primeira análise formal e superficial ajuda a identificar a partir de quais motivações as naturezas-mortas sobreviveram. Posteriormente, utiliza-se o processo de comunicação e novidade para a descrição mais detalhada de aspectos que se relacionam entre as imagens de diferentes tempos, bem como a novidade que a arte contemporânea apresenta.
Em se tratando de iconografia, compreende-se o termo como a denominação dada aos estudos dos significados convencionais das imagens, com abordagens descritivas, e, em seus últimos níveis de abordagem, também interpretativas. A iconografia alcançou seu apogeu ainda no século XX, mas pode ser aplicada às obras recentes elaboradas com marcante apelo simbólico e recurso à figuração. O que se conhece com maior importância no estudo da iconografia e iconologia são as pesquisas realizadas por Erwin Panofsky (1995)[3]; (2017)[4] e, em parte, as investigações desenvolvidas na escola alemã de Aby Warburg (2013)[5].
Didi-Huberman, a partir da iconografia de Warburg, apresenta uma iconografia flexível e adaptável, sem limites fixos de interpretação e rigidez de métodos. Acredita numa dialética do olhar, desmembra os códigos da imagem e enxerga além do visível. Pelo caráter anacrônico e dialético, a imagem compõe uma história de confrontações e sobrevivências, com abertura, convidam o espectador a entrar. Na medida em que se direciona o olhar para a imagem, o espectador se vê capturado por ela e o tempo também é capturado.
Diante de uma imagem, enfim, temos que reconhecer humildemente isto: que ela provavelmente nos sobreviverá, somos diante dela o elemento de passagem, e ela é, diante de nós, o elemento do futuro, o elemento da duração [durée]. A imagem tem frequentemente mais memória e mais futuro que o ser [étant] que a olha (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 16).
Isso não ocorre somente pelo óbvio: por sua durabilidade enquanto matéria, mas por sua presença constante na memória de quem alcança e pelos artefatos visuais que faz sobreviver em si mesma, através dos símbolos que carrega. A sobrevivência que possibilita à imagem ser interpretada e interrogada em outros tempos, acontece pelo caráter anacrônico e dialético da imagem; portanto, toda questão de método de análise refere-se, diretamente, ao tempo.
“Eu entendo a imagem como conceito operatório e não como simples suporte de iconografia” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 50). Aqui, entende-se por conceito operatório a capacidade da imagem em falar de um tempo a partir da diferença e da repetição. Para o autor, a imagem não é apenas um suporte para embasar a iconografia, por isso, pode ser adaptada às imagens contemporâneas. A imagem se torna uma forma de visualizar os tempos através de signos e símbolos que se tornam produtores de outros sintomas.
Cabe pensar as imagens de naturezas-mortas não como fetiches intemporais – como se pensaria a partir da estética clássica, mas sim, como ritmos heterogêneos que formam anacronismos. Isso muda radicalmente as concepções historiográficas clássicas, e propõe um método de abordagem iconográfica contemporânea que transcende, porque identifica nas imagens suas forças incidentes e constituintes do presente, sobre e com esse presente.
À vista disso, para evidenciar como o processo de atualização e sobrevivência acontece, retoma-se, como exemplo, a obra comentada no início desse artigo: as Vanitas. A pintura de Philippe Champaigne (1602 – 1674), Vanitas Natureza-Morta com Tulipa e Ampulheta (Figura 2), metade do século XVII, traz a caveira como elemento central da pintura, encarando o espectador. A flor à esquerda, em consonância com a ampulheta, lembra da efemeridade da vida e das coisas. Três objetos silenciosos, que ecoam alto no pensamento sobre a transitoriedade e metamorfose.
Figura (2). Philippe Champaigne: Vanitas Natureza-Morta com Tulipa e Ampulheta, metade do século XVII.
Fonte: Disponível em: https://www.pinterest.fr/pin/570338740295245885/
Em contraste, séculos depois, em 2007, Damien Hirst impacta o público com a polêmica For the Love of God (Figura 3). Um molde em tamanho real de um crânio humano coberto de platina e cravejado com 8.601 diamantes, vendido por aproximadamente 50 milhões de euros, sendo a obra de um artista vivo mais cara da história. O crânio, que parece encarar, anuncia, com seus diamantes, um êxito sobre a morte, mas essa mesma figura, demonstra o quanto a morte é implacável. Apesar da resistência do crânio e da ostentação dos reluzentes diamantes lapidados, o tempo não tarda ao passar.
Figura (3). Damien Hirst: For the Love of God, 2007.
Fonte: Disponível em: http://www.damienhirst.com/for-the-love-of-god.
Operando com as duas imagens, do ponto de vista iconográfico, percebe-se a notável persistência da forma, pelo objeto principal ser uma caveira central, o enquadramento, tanto na pintura, quanto na fotografia, colocadas na mesma posição frontal, exigindo uma prioridade na atenção do espectador. A persistência do motivo, apesar de atravessar séculos, também parece presente: enquanto Philippe Champaigne traz como motivação a futilidade dos bens materiais e a passagem do tempo, Damien Hirst usa a caveira como forma de zombar o quanto os bens materiais são passageiros, visto que a morte é a única certeza.
A recorrência da forma e dos motivos faz com que o aspecto da comunicação seja evidenciado: mesmo se tratando de séculos diferentes, algumas motivações, formas e temas ainda são alarmantes e merecem lugar na arte contemporânea. O objeto principal manteve sua estrutura formal básica, mas, ao ser renovado para a versão atual, utilizou-se da pedra mais cara da história de forma a provocar a vaidade e, principalmente, a cultura do consumismo instalada nesse momento.
No que diz respeito à novidade, diferente de Vanitas Natureza-Morta com Tulipa e Ampulheta, que traz um horrendo crânio dominante na pintura, For the Love of God carrega uma visão de morte embelezada pelos diamantes, como um apelo à beleza da morte, um convite. Em contraponto, ainda assim, é como se toda riqueza, beleza, excesso e o luxo não desfizessem a certeza da morte. Os diamantes comprovam a banalidade dos bens quando colocados em uma caveira.
Com esse exemplo, percebe-se que uma das grandes diferenças das naturezas-mortas contemporâneas em relação às do passado, é a saída do contexto religioso e suas simbologias, para adaptação em um universo totalmente laico, que não privilegia discussões religiosas, mas políticas, econômicas, ambientais, entre outras. Essa novidade faz com que a temática se aproxime de forma mais íntima ao contexto atual e alcance esferas de problematizações globais.
Assim, é perceptível a grande distância formal das obras de arte contemporâneas em relação aos seus precedentes históricos – formal em relação aos objetivos principais, não à forma – mas, basicamente, assemelham-se na conservação das estruturas de composição inertes. Constata-se que alguns aspectos motivacionais – transitoriedade da vida e passagem do tempo, por exemplo, também são preservados. Por se tratar de imagens de tempos e séculos diferentes, algumas características se repetem, enquanto outras mudam. Os objetivos, ao se modificarem e se adaptarem às demandas atuais, deslocam-se, mas confirmam que o gênero sobrevive e é pertinente nas pesquisas da arte contemporânea.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse estudo buscou identificar os modos pelos quais um assunto remoto da história da arte pôde atravessar os séculos e encontrar um lugar privilegiado na arte contemporânea. Com a aproximação ao conceito de sobrevivência proposto por Didi-Huberman, observou-se o quanto a vida das imagens ultrapassa as barreiras temporais e adapta-se em qualquer momento ou lugar assim que agenciada. Nesse caso, as imagens de naturezas-mortas contemporâneas, ainda que mantendo uma estrutura visual, não são mais inertes e sossegadas, seus discursos não se mostram mais introvertidos e modestos.
Conhecer a história de um tema discreto e secundário que, aos poucos, foi ganhando autonomia, é importante. Como sugere Didi-Huberman, o exercício de suspeita em conhecer o passado ajuda a entender algumas possíveis motivações atuais. Ao olhar para as imagens, percebem-se algumas referências e a conservação de formas anteriores, enquanto outras podem ter sido apagadas. Cada obra tem um objetivo e uma intenção diferente de voltar a viver, ou seja, os aspectos sobreviventes se diferenciam.
A iconografia, nesse sentido, permitiu uma expansão nas categorias de análise, levando em conta o ato de ver sempre inquietante e transitório. Adaptada às imagens contemporâneas, possibilitou uma relação da imagem com o sujeito que a encontra. Tal como afirma Didi-Huberman, no encontro do sujeito com a imagem, a pessoa é capturada, o seu tempo também é capturado, um tempo anacrônico, que se relaciona com vários outros: os tempos da imagem e do sujeito.
As duas naturezas-mortas analisadas, confirmam a existência de uma tendência natural na arte, e em qualquer imagem, de retornar ao passado, às suas referências. Portanto, trazer elementos sobreviventes pode produzir outros sentidos em outro tempo e contexto. Nessa investigação, optou-se por selecionar imagens que conservassem as formas tradicionais do gênero, entretanto, essa não é uma regra para caracterizar o que pode ou não ser natureza-morta na arte contemporânea. Assim, conclui-se que a natureza-morta, mesmo sendo tradicional, teve força suficiente para superar limites históricos, sobreviver e marcar sua presença na arte contemporânea de forma conceitual e desafiadora, respondendo às emergências atuais.
DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013a.
DIDI-HUBERMAN, G. Diante da Imagem. São Paulo: Editora 34, 2013b.
DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: WMF; Martins Fontes, 2012.
SCHNEIDER, N. Naturezas-Mortas. Lisboa: Taschen, 2009.
DAPesquisa, Florianópolis, v. 16, p. 01-13, nov. 2021.
DOI: https://doi.org/10.5965/18083129152021e0031
[1] A origem vem de vanitas vanitatum dixit Ecclesiastes vanitas vanitatum omnia vanitas da versão latina de Eclesiastes, capítulo I, versículo 2. Cf. Vulgata. Latim. Bilia Online. Disponível em: https://bibliaestudos.com/vulgata/eclesiastes/1/. Acesso em: 4 maio 2021. Traduzível, Cf. Antigo Testamento Poliglota. Hebraico; Grego; Português. Inglês. São Paulo: Vida Nova, 2003, como: "Vaidade de vaidades, diz o Pregador, tudo é vaidade”. Ou ainda como: “Vaidade das vaidades – diz o Eclesiastes – vaidade das vaidades, tudo é vaidade.” Cf. Biblia Sagrada. Tradução da CNBB. São Paulo: Loyola, 2002.
[2] Jason deCaires Taylor. Silent Evolution. Disponível em: https://www.underwatersculpture.com/ Acesso em: 05 mar. 2021.
[3] PANOFSKY, Erwin. Estudos de Iconologia: temas humanísticos na arte do renascimento. Lisboa: Estampa, 1995.
[4] PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2017.
[5] WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade Pagã. Contribuições científico-culturais para a história do Renascimento Europeu. Tradução de Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.