A Inserção da dança no currículo dos colégios de aplicação: conquistas, possibilidades e desafios
Débora Souto Allemand, Larissa Verbisck Alcântara Bonfim, Marlaina Fernandes Roriz, Daniel Santos Costa
A inserção da dança no currículo dos Colégios de Aplicação: conquistas, possibilidades e desafios
The inclusion of dance in the curriculum of Laboratory Schools: achievements, possibilities and challenges
Débora Souto Allemand
Doutoranda do Curso de Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – deborallemand@hotmail.com– orcid.org/ 0000-0001-8479-9822
Larissa Verbisck Alcântara Bonfim
Mestranda do Curso de Dança pela Federal da Bahia (UFBA) –
larissa.bonfim@ufpe.br – orcid.org/ 0000-0003-0530-6458
Marlaina Fernandes Roriz
Mestre em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) –
mfroriz@hotmail.com– orcid.org/ 0000-0002-4756-4239
Daniel Santos Costa
Doutor em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP) –
grdcosta@ufu.br– orcid.org/ 0000-0003-3733-471X
Resumo
O trabalho contextualiza e problematiza questões acerca da inserção da Dança no currículo escolar, partindo de experiências de quatro Colégios de Aplicação de diferentes localidades do Brasil, cujas matrizes curriculares possuem a Dança como componente obrigatório. A partir da observação participante foi possível construir dados acerca de cada uma dessas realidades escolares e promover debates que indicam mudanças ou permanência de problemáticas discutidas na área. O texto faz um breve histórico sobre a legislação específica acerca do ensino da Arte e reflete sobre a Base Nacional Comum Curricular, documento que normatiza o currículo do ensino básico nacional. Observam-se avanços na consolidação da Dança como área autônoma, apesar de ainda existirem dificuldades muito semelhantes nos diferentes contextos estudados, especialmente em se tratando da questão da polivalência no ensino de Arte e da relação com a área da Educação Física.
Palavras-chave: Arte - Estudo e ensino; Dança; Currículo e métodos em educação; Currículos - Mudança - Brasil.
Abstract
This paper contextualizes and problematizes the inclusion of Dance in the school curriculum, from experiences in Laboratory Schools in different places in Brazil which have Dance as a mandatory class. Through participant observation it was possible to product data about each one of these school realities and promote discussions that indicate changes or continuities of area problems. It brings a brief history of the specific legislation about the teaching of Arts, and a reflection about the National Common Curricular Base, a document that regulates basic education in Brazil. It is possible to observe advancements in the consolidation of Dance as an autonomous area, although there are still some difficulties that are very similar in the different contexts studied, especially in what concerns the polyvalence in the teaching of Arts and its relation to the field of Physical Education.
Keywords: Art-Study and teaching; Dance; Curriculum and methods in education; Curriculum change - Brazil.
Recebido em: 17/05/2021
Aceito em: 03/08/2021
A presença da Dança na Escola, de modo curricular e obrigatório, é resultado da luta de muitas artistas da dança, educadoras e pesquisadoras[1] da área para sua inserção e reconhecimento como campo de produção de conhecimento de uma linguagem pertencente ao universo das Artes. Contudo, apesar das conquistas legais através da Lei nº 13.278/2016, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), tratando com mais rigorosidade o ensino específico de cada uma das quatro linguagens artísticas, a Dança, que deixou a invisibilidade ou a posição escondida nas linhas finais de outros currículos, permanece, de modo geral, pouco presente nas escolas. Não somente a legalidade não altera a realidade imediata, como, para além da inclusão, muitos debates são necessários sobre sua permanência, consistência e qualidade de ensino (MARQUES, 2007).
Nas Escolas, Colégios e Centros Pedagógicos de Aplicação, unidades de educação básica, públicas, vinculadas a Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), apenas quatro, até o ano de 2020[2], têm a presença da Dança, na perspectiva das Artes, como disciplina obrigatória no seu currículo. Essas instituições que têm o propósito de aprimorar o ensino e estimular a pesquisa de novas práticas pedagógicas, o estágio e a formação de professores, totalizam dezessete unidades no Brasil.
No Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAp - UFRGS) e no Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco (CAp - UFPE), a chegada das professoras licenciadas em Dança se deu em outubro de 2019 e, a despeito de suas diferenças e especificidades, a dança consta no currículo como componente curricular. Já na Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia (ESEBA - UFU) e no Centro Pedagógico da Universidade Federal de Minas Gerais (CP - UFMG), com a chegada das professoras nos anos 2016 e 2014, respectivamente, a Dança faz parte do componente curricular Arte como uma de suas linguagens.
Com o intuito de contribuir com os debates sobre dança no contexto escolar, a partir desse lócus privilegiado em relação a outras escolas de educação básica[3], o presente trabalho é escrito por quatro professoras licenciadas em Dança, cada uma atuante em uma das escolas citadas acima. Através de uma observação participante, fornecendo informações sobre o currículo de cada uma de nossas instituições, refletimos sobre e comparamos nossas experiências em conjunturas políticas e pedagógicas diferenciadas. Assim, o objetivo deste artigo é problematizar questões fundamentais sobre a inserção da Dança no currículo da Educação Básica, a partir de dois temas principais: a questão da polivalência no ensino de Artes e a relação da Dança com a Educação Física.
A diversidade de características dos Colégios de Aplicação é muito grande, pois cada um tem autonomia para estruturar seu ensino da maneira que compreende como sendo a mais adequada. Portanto, existem escolas que ministram aulas desde o Ensino Infantil, enquanto outras só possuem Ensino Fundamental e Ensino Médio ou, ainda, escolas que possuem ensino a partir da segunda metade do Ensino Fundamental (séries finais). E a diversidade se dá também na forma de inserção de cada componente curricular.
Na UFRGS, antes de a Dança integrar o currículo, os(as) alunos(as)[4] de todos os anos do Ensino Fundamental e Médio (tanto do Ensino Regular quanto do Ensino de Jovens e Adultos) possuíam na sua carga horária obrigatória apenas as três linguagens de Arte que contavam com professoras concursadas na escola – Artes Visuais, Música e Teatro. A inserção desses componentes curriculares, no entanto, acontece de diferentes formas nas diferentes etapas de ensino. Nas séries iniciais do Ensino Fundamental (2° ao 5° ano)[5], os(as) alunos(as) têm aulas de Arte no Projeto Multiartes, onde as professoras das três linguagens (Artes Visuais, Música e Teatro) entram juntas em sala de aula. Nas séries finais do Ensino Fundamental (6° ao 9° ano) os(as) alunos(as) têm na sua carga horária de ensino 2 horas/aula de Artes Visuais, 2 horas/aula de Música e 2 horas/aula de Teatro, além dos outros componentes curriculares.
Já no Ensino Médio, os(as) alunos(as) têm uma carga horária de Arte de 2 horas/aula, podendo escolher entre as diferentes linguagens oferecidas. E foi nessa etapa curricular que a Dança foi inserida como componente curricular específico. Então, a entrada da Dança no CAp UFRGS se deu como uma das quatro linguagens da Arte no 1° e 2° anos do Ensino Médio e entraria com oficinas nas séries iniciais (Projeto Alfas) e 6° e 7° anos (Projeto Amora) do Ensino Fundamental, além de eletiva no Ensino Médio, não fosse pela suspensão das aulas presenciais em março de 2020, devido à pandemia de COVID-19. Mas é preciso frisar que só é possível a Arte se inserir dessa forma, porque hoje a escola conta com seis professoras de Artes Visuais, seis de Teatro e sete de Música.
O Colégio de Aplicação da UFPE possuía, até a chegada da Dança, o ensino das três demais linguagens artísticas. Artes Visuais e Educação Musical estão presentes como componente curricular obrigatório ao longo de toda a trajetória acadêmica dos(as) estudantes no Fundamental II e 1º ano do Ensino Médio (sendo que o CAp UFPE não oferta Ensino Fundamental I, nem Educação Infantil) desde um passado mais próximo à criação da Instituição. Atualmente, a escola conta com duas professoras efetivas e uma substituta de Artes Visuais e três professoras efetivas de Música. O ensino de Teatro é ofertado às turmas de 6º e 7º anos do Ensino Fundamental e ao 1º ano do Ensino Médio desde 2011, tendo sido posteriormente ampliado para as turmas de 8º ano a partir de 2013, com a conquista de mais uma vaga para docente especialista, sendo no total, portanto, uma professora e um professor de Teatro. A carga horária de cada componente, nos anos em que se faz obrigatória, é de 2 horas/aula semanais. Além disso, as linguagens artísticas também se fazem presentes em componentes curriculares da Parte Diversificada do currículo[6].
A Dança se inseriu como componente curricular, nessa mesma perspectiva de 2 horas/aula, de maneira obrigatória nas turmas de 6º ano, como Parte Diversificada no 9º ano e no 1º ano do Ensino Médio. Nesta série, a dança se insere da mesma forma que as outras três linguagens artísticas, dentre as quais os(as) estudantes podem escolher uma. No ano de 2020, a Dança também entrou como um componente de Parte Diversificada interdisciplinar para as turmas de 2º ano do Ensino Médio.
O Centro Pedagógico da Universidade Federal de Minas Gerais já apresentou diferentes formatos de organização e propostas curriculares ao longo de sua história. Desde 1995, estrutura-se em Três Ciclos de Formação Humana[7], recebendo estudantes do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental no período da manhã e tarde e também estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA), à noite. A Arte, de lá para cá, também já apresentou diversos formatos, adequando-se a concepções e propostas diversas e possíveis para cada um desses contextos. Durante muitos anos, com apenas duas professoras concursadas – um de Teatro e uma de Artes Visuais –, o Núcleo de Arte conseguiu garantir a oferta das aulas de Arte apenas aos(às) estudantes dos 1º e 2º ciclos, sendo que estudantes dos 1º, 2º e 3º anos tinham 4 horas/aula, enquanto as turmas de 4º, 5º e 6º anos apenas 2 horas/aula.
Com um número tão reduzido de professoras, não era possível estender a oferta ao Terceiro Ciclo, garantindo as condições de ensino de Arte propostas no CP UFMG, especialmente no que diz respeito às turmas com número reduzido de estudantes[8]. Além disso, não havia uma regularidade das demais linguagens artísticas oferecidas, uma vez que o quadro de professoras era sempre composto por um número grande de substitutas, condição que dificultava muito a estruturação de um currículo de Arte no Centro Pedagógico.
Em 2014, a entrada da Dança na escola de educação básica da UFMG se deu juntamente com a Música e com a ampliação das Artes Visuais, com a chegada de mais uma professora efetiva dessa linguagem. Por três anos foi possível garantir a oferta a todo o 1º e 2º ciclos sem substitutas, mas não ainda estender ao 3º ciclo. Somente em 2019, com a chegada de uma docente de Artes Integradas e de uma professora de Artes Audiovisuais, ampliou-se a oferta a todo o Ensino Fundamental regular, mantendo a diferença de carga horária existente no 1º ciclo. O CP trabalha hoje com uma proposta experimental de currículo de Arte, em que os(as) estudantes têm, ao longo de todo o Ensino Fundamental, ao menos dois anos de experiência com cada linguagem, considerando que no CP todas as linguagens integram o componente curricular Arte. Em suma, o corpo docente do Núcleo de Arte do CP é composto atualmente por dois professores de Música, duas professoras de Artes Visuais, um professor de Teatro, um professor de Artes Integradas, uma professora de Dança e uma professora de audiovisual.
Ainda não há uma estrutura curricular definida, pois é necessário um pouco mais de tempo para avaliar, refletir e adequar, caso seja necessário, essa estrutura atual. Na proposta curricular de Arte vigente, a dança é ofertada aos(às) estudantes dos 2º e 5º anos no que se refere à parte comum da matriz curricular. Em relação à parte diversificada, desde 2017, também é oferecida em formato de Grupo de Trabalho Diferenciado (GTD) a um grupo composto de estudantes dos 1º e 2º ciclos, cujo objetivo é o trabalho com crianças público-alvo da Educação Especial e estudantes de diversos cursos de Graduação da UFMG que atuam no Centro Pedagógico como mediadores desses estudantes. Esse grupo de trabalho chama-se Dança e Potencialidades.
A Escola de Educação Básica (Eseba), Unidade Especial de Ensino da Universidade Federal de Uberlândia, fundada em 1977, recebe estudantes da Educação Infantil (4 e 5 anos de idade, 1º e 2º períodos) e do Ensino Fundamental (6 a 14 anos de idade, 1º ao 9º ano). Além disso, oferta vagas na Educação de Jovens e Adultos (6º ao 9º ano), em uma parceria com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (IFTM).
Na Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia, a Arte sempre esteve inserida com estratégias metodológicas que consideram a motivação e o interesse dos(as) estudantes. Diante de um corpo discente bastante diverso, cabe à docente dialogar de modo intercultural com suas turmas, a partir de sua bagagem cultural e profissional. Habitualmente, são vivenciadas apresentações artísticas, assim como a interação com os produtores de arte e espaços culturais da cidade através da apreciação e fruição de obras.
O currículo da Eseba é pensado em ciclos e construído com a seguinte estrutura: o 1º ciclo envolve da Educação Infantil à Alfabetização Inicial, ou seja, do 1º período da Educação Infantil até o 3º Ano do Ensino Fundamental. Os demais ciclos são organizados do seguinte modo: 2º ciclo (4º e 5º ano do Ensino Fundamental), 3º ciclo (6º e 7º ano do Ensino Fundamental) e 4º ciclo (8º e 9º ano do Ensino Fundamental). Por último, a Educação de Jovens e Adultos, com ensino oferecido no período noturno. A dinâmica curricular tem sido revisitada constantemente, em virtude do dinamismo da educação e a possibilidade de construção coletiva e autônoma que os colégios possuem.
A Arte na Eseba, desde sua fundação, possui as linguagens de Música e Artes Visuais. Dança e Teatro estiveram também presentes nas práticas de docentes pedagogas, vinculadas a muitos projetos, extracurriculares ou não, inclusive na área de Educação Física. Em 2010, o Teatro ganha sua cadeira efetiva e a Dança, em maio de 2016, coincidindo com a promulgação da Lei n° 13.278/2016. Organizada em áreas de conhecimento, a área de Arte é composta por cinco docentes, sendo duas de Artes Visuais, uma de Música, uma de Teatro e um professor de Dança. Nesse contexto, para atender as demandas dos(as) aproximadamente 800 estudantes, as linguagens são distribuídas nos diversos ciclos num pensamento processual. Desse modo, ao longo do processo de formação, os(as) estudantes irão ter contato com todas as linguagens artísticas, 01 hora/aula semanalmente.
Portanto, na Educação Infantil são apresentadas a Dança (1º período) e as Artes Visuais (2º período) e no 1º Ano do Ensino Fundamental, o(a) estudante terá contato com a linguagem de Música. Nesses três primeiros anos, a turma completa cursa a mesma linguagem, pois cada um desses períodos/ano é subdividido em quatro turmas (organizadas como A, B, C e D). A partir do 2º ano do Ensino Fundamental, os estudantes são reorganizados em 3 turmas (A, B e C), o que aumenta o número de alunos(as) em cada sala. Desse modo, do 2º ao 9º ano do Ensino Fundamental são apresentadas duas linguagens em cada ano. No currículo do 2º ano, Dança e Artes Visuais; do 3º ano, Música e Dança; do 4º e 5º anos, Música e Artes Visuais; e do 6º ao 9º anos, Teatro e Artes Visuais.
Na estrutura acima apresentada, cada estudante deve cursar uma única linguagem por ano, pois elas são oferecidas concomitantemente. No ano seguinte, o(a) estudante cursa outra linguagem, numa estrutura que é organizada por ciclos e de modo que os docentes da Área de Arte possam integrar-se de modo menos fragmentário às reuniões pedagógicas, diálogos, atendimento às famílias e reuniões de ciclo, em no máximo 02 ciclos. Ou seja, determinados docentes atuam em ciclos próximos para que haja maiores interações entre a equipe pedagógica. A divisão ainda é necessária, uma vez que o corpo docente é muito restrito para integrar-se ao currículo de modo mais expandido. Na Educação de Jovens e Adultos, a disciplina de Arte fica a critério do docente que assume a linguagem. Desde o 2º semestre de 2016, com exceção do 1º Semestre de 2018, foi a linguagem de Dança ministrada para esse público. Apenas o 6º ano, nesta modalidade de ensino, possui contato com a Arte.
A área de Arte na ESEBA encontra-se sempre em constante movimento, em direção à apropriação da Arte no espaço da Escola. Até o momento, são cinco docentes, sendo duas de Artes Visuais, uma de Música, uma de Teatro e um de Dança, organizadas em um itinerário pedagógico que promove a experiência com cada linguagem artística ao longo dos anos na formação do(a) estudante. A Escola passou a contar com um professor licenciado em Dança em 2016, sendo esta a última linguagem a compor o currículo escolar, que hoje oferta todas as quatro. Com isso, o esperado foi o desarraigamento da figura da professora polivalente em Artes e a valorização de docente especialista, com formação própria e atuação específica.
Percebe-se que os projetos pedagógicos dessas quatro instituições valorizam a presença da Arte e a especificidade de cada linguagem artística, considerando as reflexões e pesquisas acerca da polivalência (PENNA, 2004). No entanto, a despeito das conquistas, os desafios enfrentados ainda são muitos e a inclusão da Dança movimenta antigas certezas e provoca o reposicionamento dos projetos político pedagógicos como um todo nas escolas. Mas não é à toa, visto que a Dança, nestas quatro escolas (CAp UFRGS, CAp UFPE, ESEBA UFU, CP UFMG), se consolida há menos de uma década e, em quase todas elas, representou a última linguagem artística a ser inserida nos currículos.
Tendo em vista a precariedade do ensino de Dança na Educação Básica nas redes municipais, estaduais e federais como um todo, os contextos dos Colégios de Aplicação, como escolas com realidades muito diferentes da grande maioria das escolas públicas, parecem satisfatórios nesse quesito. No entanto, foram e seguem sendo necessárias muitas articulações para que a Dança possa ser considerada campo de conhecimento e não fique alijada somente a projetos de extensão, projetos extraclasse, períodos flutuantes ou fique constituída somente como oficina, eletiva, parte diversificada, ou ainda, que venha a substituir alguma das outras três linguagens artísticas presentes no currículo.
As Artes em geral, e de forma mais contundente a Dança, nesta relação com o espaço escolar, tem um histórico de um ensino negligenciado e quase sempre mal compreendido, questão já debatida por diversas autoras (MARQUES, 2011, 2007, 2010; STRAZZACAPPA, 2001a; STRAZZACAPPA; MORANDI, 2006). Essa pouca importância dada à Dança, ou então, por vezes, até uma importância concedida, mas envolta de muitos equívocos na compreensão do que deveria ser o trabalho desenvolvido, conduz a concepção de que qualquer uma ou quase todas aquelas pessoas com algum tipo de vivência em certo estilo de dança poderiam orientar processos educacionais na linguagem. Marques e Brazil (2014) enfatizam que é a professora especialista que tem o preparo profissional para estabelecer as relações entre arte, ensino e sociedade, de modo que artistas, voluntários, professores de outras áreas, por mais bem intencionados que sejam, sem a formação artística e pedagógica adequada, não têm condições de efetivamente cumprir o papel de interlocução entre os conhecimentos de Dança e as turmas de estudantes.
É verdade que para ser uma artista da dança, uma bailarina profissional, a graduação em um curso de Dança em uma Universidade não é o único caminho possível. Da mesma forma, essa artista, sem dúvida, tem capacidade de ministrar aulas. No entanto, no contexto escolar, as professoras das mais diversas áreas fizeram suas escolhas profissionais e não são especializadas em Dança, por mais que possam ter vivências mais ou menos aprofundadas com a linguagem. E quanto a essas professoras mencionadas, incluem-se as professoras das demais linguagens artísticas (Teatro, Música e Artes Visuais) e também as profissionais de Educação Física, que serão tratadas mais adiante neste texto.
Com relação à legislação e profissionalização da área, na década de 1980, quando da discussão sobre reformulações da LDBEN 5692/71, alguns grupos sugeriam excluir a Arte do currículo obrigatório das escolas (BARBOSA apud MARQUES, 2011), mas a luta política da classe das professoras de Arte fez com que a área permanecesse no texto da atual LDBEN 9394, de 1996, no Artigo 26, §2°. Nessa versão, o “Ensino de Arte” caracterizou-se como “componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica” (BRASIL, 1996).
Na conquista da legalidade do ensino obrigatório de Arte, postulado pela LDBEN 9394/96, umas das principais bandeiras levantadas pelo movimento de Arte-Educação nos anos 1980, com a pioneira Ana Mae Barbosa[9], era o reconhecimento das linguagens artísticas como áreas do conhecimento. As Artes entendiam que seu papel não era mais o de estar a serviço de outras disciplinas, sendo um horário para recortar os cartões de dia das mães ou para ensaiar a “dancinha” dessa e de outras comemorações escolares. Propondo um debate sobre a Educação em Arte como um direito para a formação integral dos sujeitos, os conteúdos de Artes precisavam se libertar das definições pautadas pelo calendário de festividades (MARQUES, 2007). Cada área deveria ser compreendida com conteúdo próprio e visibilizada com necessidades específicas e capazes de ensinar a fazer/apreciar/contextualizar, abordagem triangular proposta por Ana Mae Barbosa (MARQUES, 2011; BARBOSA, 1998, 2009), de modo a ampliar o repertório cultural dos(as) estudantes.
No entanto, Strazzacappa (2001b) e outras autoras já apontavam como um problema o fato de a Lei tratar a professora de Arte como uma profissional polivalente, pois assim a dança não era abordada como área de conhecimento específica. E isso fazia com que ela não chegasse efetivamente à escola. A LDBEN 9.394/1996 foi alterada pela Lei 13.278/2016, procurando assegurar que os conteúdos de cada uma das quatro linguagens artísticas fossem contemplados. A lei estabelecia o prazo de cinco anos para que os sistemas de ensino promovessem formação de professoras e instituíssem novos contratos, para implementar, com especificidade, Artes Visuais, Dança, Música e Teatro, curricularmente na educação básica. Contudo, as brechas para a polivalência permanecem no texto atual, pois, se por um lado, garante o conteúdo das quatro linguagens, por outro, não determina a presença da professora especialista. Desta forma, uma professora formada em um curso de Licenciatura em Teatro, por exemplo, precisaria dar conta dos conteúdos de todas as áreas e, evidentemente, é pouco provável que isso seja feito com qualidade. Mas essa ainda é a realidade de muitas escolas hoje.
Essa questão da polivalência, à primeira vista, pode parecer distante da realidade vivenciada nos Colégios de Aplicação autores deste trabalho, já que, atualmente há no quadro docente efetivo, pelo menos uma professora com formação específica em cada uma das linguagens artísticas, incluindo Dança. Apesar de a presença de uma professora de Dança nesses colégios representar uma importante conquista quando se pensa em um ensino democrático, atualizado e qualificado, ainda é necessário considerar que a problemática da polivalência permanece nesses espaços, mesmo que veladamente, quando o debate é a inserção curricular e a incerteza trazida acerca da oferta dessa área de conhecimento: ora autônoma, ora linguagem integrante do componente curricular Arte. Essa condição flutuante se exemplifica na diferença de ofertas dos quatro colégios que compõem este estudo.
E, ainda que as Licenciaturas atuais não funcionem mais, legalmente e na prática, como cursos amplos de Educação Artística, como outrora, uma das questões que ainda segue cruzando nosso caminho é se a Dança é um componente curricular como todos os outros (Português, Matemática, História, etc.) ou se é uma linguagem a ser trabalhada dentro do amplo componente Artes. Hoje, as formações de Licenciaturas nas diversas linguagens artísticas são específicas, ou seja, existe uma formação de 4 ou 5 anos para o sujeito Licenciado em Música, outra formação específica de 4 ou 5 anos para o Licenciado em Artes Visuais, e assim por diante. Ainda assim, na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017)[10], a compreensão que prevalece é a do componente curricular Arte, que abarca todas as áreas. Essa situação se mostra um contrassenso, já que a lógica de formação profissional não coaduna com a atuação no ambiente escolar que não trata, de modo geral, cada linguagem artística como um campo de conhecimentos merecedor de uma carga horária própria na estrutura curricular.
Sendo os Colégios de Aplicação espaços de inovação pedagógica com possibilidades mais amplas de experimentação do que outras instituições de educação básica, todas essas perguntas podem ser feitas e debates travados sobre o tratamento dado às linguagens artísticas dentro do currículo. Mesmo nos Colégios de Aplicação em que a Dança consta como um componente curricular autônomo, como é o caso dos Colégios de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade Federal de Pernambuco, todo esse questionamento foi enfrentado com a chegada da Dança no ano de 2019.
Nessas escolas, a maioria da comunidade se perguntava: mais uma linguagem artística, onde colocá-la? Bom, se a compreensão é de uma linguagem dentro de um componente Arte, as soluções poderiam ir na direção de uma linguagem substituir a outra, dividir a carga horária, já que não seria viável mexer nas outras disciplinas que teriam que “perder” espaço para a entrada de mais uma “Arte”. Além do que, sendo quatro as linguagens artísticas, com média de 2 horas/aula cada, estaríamos falando de “ocupar”, hipoteticamente, o currículo dos estudantes com uma carga horária de 8 horas/aula “somente” com Artes.
Essas batalhas foram enfrentadas, e ainda são, com a inserção da Dança no currículo do CAp UFRGS e do CAp UFPE. Além do que, com apenas uma professora efetiva em cada escola, diferente das outras áreas, seja das Artes ou seja de qualquer outra área de conhecimento, que contam com uma maior quantidade de profissionais, não seria mesmo possível oferecer a Dança para um grupo tão amplo de estudantes quanto gostaríamos.
Já a Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia (ESEBA - UFU) e o Centro Pedagógico da Universidade Federal de Minas Gerais (CP - UFMG), têm seu currículo organizado de maneira mais próxima ao que é proposto pela BNCC, ou seja, todos os níveis escolares têm uma carga horária do componente Arte e, dentro deste, as linguagens de Dança, Música, Teatro e Artes Visuais são revezadas. No CP, ainda há oferta da disciplina Audiovisual desde 2019 e Artes Integradas desde 2017.
No Centro Pedagógico, essa escolha de organização curricular, em que as linguagens artísticas se colocam dentro do componente curricular Arte em todos os anos escolares (apesar da diferença de carga horária da disciplina Arte existente entre os três Ciclos de formação Humana, assim como a diferença entre o número de docentes de cada linguagem), tem garantido que os(as) estudantes do CP tenham, ao longo do Ensino Fundamental, pelo menos dois momentos de contato ou experiência com cada linguagem artística. Essa forma de organização é uma tentativa de equilíbrio entre as disciplinas e principalmente uma busca para que os (as) estudantes possam resgatar e criar redes entre os conteúdos trabalhados em anos e ciclos distintos, cujas especificidades existem e precisam ser consideradas. Esse parece ser, por enquanto, um exercício de possibilidade curricular ainda não fechado, mas possível para as condições atuais que o Núcleo de Arte tem. Essa experiência almeja iluminar e fundamentar futuras reflexões acerca do ensino de Arte no CP, especialmente no entendimento sobre a oferta das disciplinas e a inserção de cada linguagem de modo independente ou não na matriz curricular da escola.
No Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco, durante os primeiros dias da chegada da professora licenciada em Dança, aqueles dias em que ainda se está conhecendo a escola e não se iniciou o trabalho em sala de aula, era possível escutar comentários de alguns(algumas) dos(as) estudantes, como: “será que vamos deixar de ter dança na educação física?”. Outro episódio ilustrativo é o relato do momento de entrada da professora de Dança no corpo docente, que, anunciando enfaticamente a chegada da Dança naquele espaço escolar, tem sua fala rebatida por profissionais de Educação Física, que reforçam que a Dança já era vivenciada na escola há muito tempo.
Esse panorama, trazido apenas com o objetivo de elucidar na prática as questões que seguem, não acontece apenas nesse Colégio, as demais autoras deste trabalho vivenciaram situações semelhantes, assim como tantas outras profissionais Licenciadas em Dança também os vivenciam pelas escolas afora. O debate das relações conflituosas entre Dança e Educação Física datam de um longo tempo (STRAZZACAPPA; MORANDI, 2006; MARQUES, 2007), e, infelizmente, continuam presentes, o que torna a discussão ainda atual e urgente. O tema é bastante complexo, já que a Dança, e de modo bastante enfático na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017), não é exclusividade das Artes, pelo contrário, é um conteúdo também da Educação Física.
A situação se coloca como um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que é preciso reconhecer o esforço das Licenciadas em Educação Física e o trabalho de Dança já desenvolvido, é igualmente necessário marcar a Dança como área autônoma e não como conteúdo de outro componente curricular. Além da perspectiva da relação conteúdo-área, a forma de trabalho com dança na Arte ou na Educação Física é, em geral, muito diferente e, por vezes, mais do que isso, a perspectiva é realmente contrária, no que se refere à compreensão de corpo, dos elementos da linguagem, coreografia, criação, entre tantos outros aspectos (SOUZA, 2017).
Essa é uma reflexão séria, de ambos os campos, que aponta para a delimitação de contornos nas diferenças de compreensão da dança para cada paradigma em questão, ao lado de possíveis trocas e aproximações. Para Strazzacappa e Morandi (2006), na luta dos profissionais da dança, a atividade compreendida como uma prática rítmica expressiva no bloco dos conteúdos da cultura corporal da Educação Física parece ser um retrocesso. Porém, aqui consideramos que o fato de a dança estar presente como conteúdo na Educação Física não exclui a possibilidade de ela se constituir como uma área artística, bem como o contrário também é válido, ou seja, a Dança ser um componente curricular autônomo não exclui a possibilidade de ela ser desenvolvida como conteúdo de outra área. Mas, certamente, esse duplo papel vem dificultando, consideravelmente, a consolidação do campo no contexto escolar.
A Educação Física, como única disciplina escolar dedicada ao trabalho com o corpo, foi e ainda é responsável pela dança na maioria das escolas (SOUZA, 2017). O próprio pesquisador do movimento Rudolf Laban[11], quando iniciou seu trabalho de “Dança Educativa Moderna” na Europa, no início do século XX, utilizou-a como porta de entrada no contexto escolar. Então, devemos reconhecer que este é sim um relacionamento que precisa ser olhado, pois em determinados contextos e momentos, pode até ser um encontro necessário e potente para a viabilização da dança no espaço escolar.
A conflituosa relação Dança-Educação Física foi acirrada na história recente, nos anos 2000, quando o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF) decidiu autuar escolas e academias de Dança que não tivessem profissionais formadas em Educação Física credenciadas no Conselho[12]. Naquele momento, a mobilização da classe da Dança foi grande, o processo foi barrado e muitas reflexões suscitadas, não só sobre o ensino superior em Dança como também sobre a realidade da educação não-formal de muitos artistas, que precisa ser respeitada e considerada.
Como coloca Falkembach: “a história da dança como componente curricular obrigatório, no Brasil, [...] nasce de tensões e segue produzindo tensões” (2017, p. 12). O reconhecimento, na prática, da dança como área de conhecimento pode ainda estar longe de acontecer, mas é preciso crer que ele se realizará, aos poucos, com a entrada das professoras especializadas em Dança nas escolas.
No CAp UFRGS, o concurso para licenciada em Dança aconteceu com vínculo no Departamento de Expressão e Movimento, que compreendia até então as áreas de Artes Visuais, Educação Física, Música e Teatro. Ora, sem uma área exclusiva de Dança, a professora concursada poderia ficar à mercê de qualquer uma das quatro áreas já existentes. Mas a luta política pela criação de uma área específica se deu logo no começo da caminhada e, em março de 2020, a Dança passou a ser uma área específica, com decisão tomada em reunião de Departamento, o que facilitou a compreensão de que ela já seria um componente curricular. Porém, nos meses anteriores a essa decisão administrativa, mais especificamente de outubro a dezembro de 2019, ocorreram muitas discussões sobre a forma de inserção da Dança no ano letivo de 2020, com diversas sugestões de entrada da dança no ensino diferentes das que foram propostas pela professora especializada, como por exemplo como parte dos conteúdos da Educação Física ou em projetos de extensão.
Experiências como essas, tão recorrentes na vida profissional das Licenciadas em Dança que conseguem chegar a atuar em escolas de ensino formal (CORRÊA; SANTOS, 2019), revelam a ignorância que estes outros profissionais têm sobre toda a trajetória e luta do campo da Dança no Brasil. E toda essa ambiguidade e confusão sobre o ensino de Dança é acirrada pelo documento final da Base Nacional Comum Curricular. A versão definitiva da BNCC foi um documento construído de maneira conturbada, já que foi iniciado no governo de Dilma Rousseff, atravessou o golpe parlamentar, jurídico, midiático, empresarial de 2016, as reformas do governo de Michel Temer e a influência conservadora do Movimento Escola Sem Partido. Nela, a Dança está presente tanto no componente curricular Educação Física quanto no componente curricular Arte.
Além disso, a presença da Arte e, consequentemente da Dança, na Área de Linguagens foi questionada por muitas professoras, licenciandas e colegiados de Licenciaturas em Dança de diferentes Universidades do país. Estes sujeitos alimentaram um movimento problematizando em que proporção essa organização deslegitimava a área com especificidades e conteúdos próprios. Isto, somado à presença de uma Unidade Temática denominada “Danças” dentro do componente curricular Educação Física, inclusive tratando especificamente das matrizes indígenas e africanas, adensava os referidos questionamentos.
Carla Andrea Silva Lima, única especialista da área da Dança na elaboração do texto da BNCC pelo menos até a segunda versão[13], em entrevista a Alexandre Molina (2016), criticou essa ambiguidade, visto que na área de Educação Física a Dança era tratada como tema e na área de Arte ela era componente curricular. Na realidade, houve mudanças de como as linguagens artísticas foram sendo referidas nas versões publicadas. Na primeira, Artes Visuais, Dança, Música e Teatro eram subcomponentes dentro do componente curricular Arte. Na segunda, eram tratadas como linguagens, cada uma com “seu próprio campo epistemológico, seus elementos constitutivos e estatutos, com singularidades que exigem abordagens pedagógicas específicas das artes e, portanto, formação docente especializada.” (BRASIL, 2016a, p. 112, grifo nosso). Porém, na versão final, Artes Visuais, Dança, Música e Teatro se tornaram Unidades Temáticas e a necessidade de formação docente especializada não ficou ressaltada no texto.
Segundo Lima (2016), a dança como tema pode ser abordada por qualquer componente curricular, como a Matemática, para fazer os alunos entenderem determinado conteúdo da Matemática. Porém, quando a Educação Física elenca objetivos de aprendizagem de dança, se está “afirmando que esta é conteúdo próprio do componente curricular Educação Física.”. A especialista afirma que lutou contra a inclusão da dança como tema no componente curricular Educação Física, mas “havia um consenso entre todos os especialistas do componente curricular arte de que ali havia ingerência, sim, de um campo de conhecimento sobre o outro.” (LIMA, 2016, s.p.).
No CAp UFRGS, a fala da professora de Dança em evento de formação no início do ano de 2020 acirrou o debate com a área de Educação Física. Com o tema “Arte, Educação e Resistência”, foi discutido, entre outras questões, se seria feita (ou não) a adequação do currículo da escola à BNCC. Na ocasião, foi realizada a palestra “A presença da Dança na escola”, proferida pela recém efetivada professora, com ampla contextualização da área, apresentando um panorama com o número de graduações[14], leis, bibliografia especializada, concursos específicos para licenciadas em Dança no Rio Grande do Sul, incluindo o concurso do CAp UFRGS. Por fim, falou-se da BNCC com suas características controversas, ponderando sobre o componente curricular ser Arte e não o de cada linguagem específica, e explicitando o lugar da Dança no documento, que tem status de conteúdo dentro da Educação Física, ainda que seja uma área com diversos cursos de graduação específicos.
Tratar a Dança como conteúdo de uma ou de outra disciplina enfatiza conceitos que ainda estão arraigados no imaginário geral: dança se faz na frente do espelho, dança se faz com música ou dança serve para ajudar a integrar a comunidade escolar. Isto pode ser visto na especificação da unidade temática Danças na área de Educação Física da BNCC do Ensino Fundamental, que a define como: “[...] conjunto das práticas corporais caracterizadas por movimentos rítmicos, organizados em passos e evoluções específicas, muitas vezes também integradas a coreografias.” (BRASIL, 2017a, p. 216).
A partir da nossa experiência, percebemos que professoras de outras áreas, gestores e alunos(as) habitualmente estão imbuídos(as) deste tipo de dança historicamente enraizado. Contudo, é importante atentar para as singularidades conceituais acerca do corpo nas áreas de Arte e de Educação Física. “São perspectivas de entendimento e uso do corpo muito diferentes, com percepções políticas, sensíveis e filosóficas acerca do corpo muito distintas e singulares.” (LIMA, 2016, s.p.).
Assim, no debate sobre o lugar da dança ministrado por professoras Licenciadas na linguagem artística, é necessário notar que a compreensão da Dança como área autônoma e não como conteúdo de outra área, possibilita habilidades criativas e de descoberta de si como corpo. E isso é resultado de um trabalho especializado que desconstrói a ideia da dança como virtuose e nem sempre envolve produtos para serem apresentados no final do ano.
Essa atual disputa de compreensões da dança como componente curricular ou como conteúdo de outra área, de maneira mais ou menos conflituosa nas realidades escolares, aponta para as diferentes – muitas vezes divergentes – perspectivas de corpo, de movimento, de relação com um mundo e assim “[...] produto de diferentes saberes [...]”, o que “[...] implica em diferentes danças.” (FALKEMBACH, 2017, p. 35).
A presença da Dança nos currículos do CAp UFRGS, do CAp UFPE, da ESEBA UFU e do CP UFMG é, sem dúvida, uma conquista a ser celebrada como resultado de muitas lutas. E, não podemos deixar de mencionar, que muitas vezes essa luta é feita por colegas de outras áreas, como o Teatro e a Educação Física. Ao mesmo tempo, diante de tantos desafios, é imprescindível que o lugar da dança na escola seja lócus de investigação e pesquisa na área, para que essas e outras possibilidades de inserção da Dança no currículo escolar possam ser problematizadas e viabilizadas.
Este trabalho procurou relatar experiências pontuais com o intuito de promover reflexão sobre dois principais temas: a questão da polivalência no ensino de Artes e a relação com a Educação Física. Como vimos, algumas autoras reconhecidas na área apontam essas questões desde o início do nosso século. Vinte anos se passaram, o número de Graduações, Pós-graduações, pesquisas em dança e professoras licenciadas em Dança nas escolas aumentou consideravelmente no país (CORRÊA; SANTOS, 2019), mas essas tensões ainda estão presentes nas nossas práticas cotidianas. Assim, a partilha de nossas experiências, articulada com a bibliografia especializada produzida sobre o assunto, é movimento de enfrentamento dos desafios em busca de horizontes de possibilidades.
Percebe-se que o documento da Base Nacional Comum Curricular, publicado em 2017 e em fase de implementação pela maioria das escolas, nos coloca novamente em lugares nos quais pensávamos já terem sido ultrapassados. Sendo a Dança uma Unidade Temática tanto da Educação Física quanto da Arte, abrem-se novamente os questionamentos sobre a polivalência na Arte e sobre a dança como conteúdo ou como área. Além disso, um desdobramento que não tratamos neste texto, mas que também é lugar de tensão para a nossa área, é a forma de organização do currículo do Ensino Médio da BNCC. Apesar de ser urgente pensarmos sobre as formas de interdisciplinaridade, a indefinição de componentes curriculares para o último ciclo da educação básica aumenta consideravelmente as chances de a Arte se tornar, mais uma vez, “dancinha” de final de ano. Por isso, é importantíssimo estarmos informadas, atentas e ocupando espaços de decisão curricular, normativa e legislativa.
Porém, pensamos que a indefinição desse lugar da dança no currículo também pode ser potente. É tempo de mapeamento, experimentação e reflexão sobre nossas práticas. A dança, muito recente no contexto escolar formal, ainda está se estruturando. É interessante que seja garantida também a essa área do conhecimento a possibilidade de autonomia nesse caminho: que a dança possa, a partir da corporeidade, contribuir com novos modos de se pensar a educação, na elaboração de currículos ou propostas pedagógicas, por exemplo. É importante compreender que, nesse caminho, a dança pode, em sua especificidade, ao lançar novos olhares sobre o corpo na escola, apresentar modos menos dicotômicos de ensinar e aprender.
Essa ampliação e liberdade deve acontecer também entre as diferentes linguagens artísticas e a dança, no modo como articulam propostas e constroem conhecimento em Arte. Assim, o trabalho integrado entre as Artes tem seu valor no quesito da aproximação com a contemporaneidade e com o aumento das possibilidades criativas dos(as) alunos(as). E a Dança como componente curricular específico também carrega o risco da “disciplinarização” dos corpos. Isabel Marques (2007) diria que é preciso que a dança mude a escola e não que a escola formate a dança.
A inserção da Dança no currículo escolar sempre foi um esforço de muitos corpos dançantes. Somos desbravadoras da inserção da linguagem da dança nos respectivos colégios e, com isso, esperamos contribuir para reflexões acerca da inserção da linguagem em outros Colégios e Escolas de Aplicação, bem como estar prontos a discutir a inserção, aplicação e reflexão da dança no currículo da educação básica através das experiências singulares que constituem nossas práticas, nossas experiências, nossos corpos.
Por fim, ressaltamos a construção coletiva desse texto feito por quatro pessoas que articularam uma possibilidade de reflexão sobre suas experiências em conjunturas políticas e pedagógicas diferenciadas. Entretanto, tais práticas poderão ser vistas como espaços inovadores do pensamento artístico que possam atravessar o currículo da educação básica com diretrizes deslizantes e na valorização das experiências e das diversidades das práxis locais, regionais e/ou globais. Esperamos ter contribuído, com este trabalho, sobre esses enfrentamentos, pois é necessário respirar e não perder o fôlego para seguir com o movimento, em um contínuo resistir e avançar. E para finalizar com arte, é preciso estar atento e forte, como canta Gal Costa (DIVINO, 2012).
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DAPesquisa, Florianópolis, v. 16, p. 01-21, ago. 2021.
DOI: http://dx.doi.org/10.5965/18083129152021e0026
[1] A opção pelo uso das palavras no feminino é um movimento de colocar em questão a naturalidade com que o masculino é tratado como sendo o genérico da humanidade, além do fato de que a grande maioria de pessoas artistas, educadoras e pesquisadoras na área da Dança são mulheres.
[2] No período de finalização da escrita deste artigo, em outubro de 2020, ocorreu a nomeação de uma professora de Dança no Colégio de Aplicação João XXIII, da Universidade Federal de Juiz de Fora.
[3] O privilégio se dá no sentido de que as professoras concursadas na categoria EBTT (Ensino Básico, Técnico e Tecnológico) possuem parte da sua carga horária dedicada à pesquisa, extensão e gestão (representatividade em órgãos diversos e comissões administrativas e pedagógicas), o que possibilita a reflexão sobre assuntos como este que estamos tratando aqui, diferentemente de professoras das redes municipais e estaduais que, geralmente, têm sua carga horária de trabalho quase que completamente dedicada ao ensino. As docentes dos Colégios de Aplicação têm seu regime de trabalho ancorado pela Portaria MEC 959/2013, que demarca um campo educativo “que têm como finalidade desenvolver, de forma indissociável, atividades de ensino, pesquisa e extensão com foco nas inovações pedagógicas e na formação docente”. Disponível em: https://cutt.ly/qdNW0xj. Acesso em: 07 set. 2020.
[4] Na busca de incluir a totalidade de estudantes, utilizamos o genérico no masculino e no feminino, visto que, diferentemente das pessoas que são docentes em Dança, há um equilíbrio maior entre a quantidade de meninos e meninas nas escolas.
[5] No 1° ano do Ensino Fundamental, somente a disciplina de Música, dentre as linguagens artísticas, tem seu espaço como componente curricular específico.
[6] As chamadas PDs, partes diversificadas, são disciplinas ofertadas de modo obrigatório, contudo são de livre-escolha, ou seja, os(as) estudantes podem decidir o que vão cursar dentre algumas possibilidades. Esse tipo de disciplina é chamada de Oficina e Eletiva no Colégio de Aplicação da UFRGS.
[7] Os Ciclos de Formação Humana no Centro Pedagógico estão hoje organizados da seguinte maneira: 1º, 2º e 3º anos integram o Primeiro Ciclo; 4º, 5º e 6º anos integram o Segundo Ciclo e 7º, 8º e 9º anos formam o Terceiro Ciclo. Dadas as especificidades das faixas etárias atendidas em cada ciclo de formação, compreende-se a necessidade de autonomia para organização de propostas pedagógicas diversas e independentes em cada um deles.
[8] No Centro Pedagógico, as turmas são divididas entre duas professoras de linguagens diferentes, que atuam juntas. Ou seja, cada professora trabalha com metade da turma por um semestre e depois há uma troca desses grupos, de modo que, ao final do ano, os(as) estudantes tenham vivências em duas linguagens artísticas diferentes. Essa divisão é critério para aulas de Arte e acontece do 1º ao 9º ano.
[9] Ana Mae Barbosa (1936 - ) é educadora, pioneira na arte-educação no Brasil e criadora da Proposta Triangular.
[10] Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo balizador das aprendizagens mínimas necessárias para todos os estudantes de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio de instituições públicas e privadas do Brasil, previsto na Carta Constitucional, no Artigo 210 (BRASIL, 1988). Este currículo-base deve ser complementado, segundo a LDBEN 9394 (BRASIL, 1996), com uma parte diversificada definida a partir das características regionais e locais da sociedade. Teve sua primeira versão disponibilizada para debate da população em 2015 e sua terceira e última versão publicada em 2017.
[11] Rudolf Laban (1879 - 1958) com seu trabalho de pesquisa e criação é, até hoje, uma grande referência para a produção artística e para o ensino e aprendizagem da dança, principalmente por ter desenvolvido estudos sobre o movimento humano, a Coreologia ou “ordem oculta da dança”.
[12] Evidentemente, a área da Educação Física não é homogênea e existem profissionais que compreendem a autonomia da dança como linguagem artística.
[13] Na última versão do documento não constam os especialistas que participaram do processo. Mas há muitas controvérsias sobre as mudanças ocorridas da segunda para a última versão, algumas delas em função da falta de democracia no processo que vinha acontecendo até 2016, quando da troca de governo Dilma para governo Temer, através de processo denominado por alguns como Impeachment e por outros, como nós, como golpe. Uma das tensões ocorridas pode ser comprovada pelo depoimento de Andrea Penteado, especialista da área de Arte, no seguinte link: <https://www.facebook.com/notes/andrea-penteado/pedido-de-desligamento-da-bncc/998716913510712/>. Acesso em 21 jun. 2020.
[14] O e-Mec, banco oficial de dados sobre o ensino superior no País, registra atualmente 47 cursos de Graduação em Dança aprovados pelo Ministério da Educação (MEC) em atividade no Brasil, sendo 31 licenciaturas, 14 bacharelados e 1 curso tecnológico. Além dos nomeados como cursos de Dança, consta também o curso de Bacharelado em Teoria da Dança, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Disponível em: https://emec.mec.gov.br/. Acesso em: 07 set. 2020.