Leis artificiais de inversão e leis naturais de desenvolvimento: revisando uma oposição que permeia o Harmonielehre de Schenker
Artificial laws of inversion and natural laws of development: revising an opposition that permeates Schenker’s Harmonielehre
Djalma Bianco Cordeiro
Mestrando em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) – dudacordeiro_4@hotmail.com – orcid.org/0000-0001-6198-0194
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas
Doutor em Música pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) – sergio.freitas@udesc.br – orcid.org/0000-0002-0215-616X
Resumo
Observando que o Tratado de Harmonia de Heinrich Schenker (1906) articula um conjunto de pares opositores do tipo teórico/prático, geral/particular, diatônico/cromático, fixo/variável etc., o presente artigo propõe uma revisão acerca de uma polarização específica que, na terminologia de Schenker, se distingue como inversão (Inversion) e desenvolvimento (Entwicklung). Pondera-se que, caracterizadas como leis, as forças artificiais de inversão e os movimentos naturais de desenvolvimento, com diversas implicações técnicas e especulativas, são dadas como princípios contrários que, por meio da vontade instintiva e engenhosa, se misturam e se complementam visando a variedade necessária para a qualificação artística da composição tonal.
Palavras-chave: Teoria musical. Análise musical. Harmonia tonal. Conceitos schenkerianos.
Abstract
Noting that the Harmony by Heinrich Schenker (1906) articulates a set of opposing theoretical/practical, general/particular, diatonic/chromatic, fixed/varying pairs, among others, the aim of the current study is to thoroughly review a specific polarization that, according to Schenker’s terminology, is categorized as inversion (Inversion) and development (Entwicklung). The study takes into consideration that the artificial laws of inversion and the natural laws of development, which lead to different technical and speculative consequences, are regarded as opposite principles that, through one’s instinctive and ingenious will, blend and complement each other in order to enable the variety needed to artistically qualify the tonal composition.
Keywords: Musical theory. Musical analysis. Tonal harmony. Schenkerian concepts.
Recebido em: 05/05/2019
Aceito em: 25/05/2019
No ano de 1906 – em meio aos dilemas culturais e musicais da chamada modernidade vienense –, foi publicado o primeiro volume de uma série que marcou a trajetória contemporânea da teoria musical ocidental: o Harmonielehre (Tratado de Harmonia)[1] que inaugura as Neue Musikalische Theorien und Phantasien (Novas Teorias e Fantasias Musicais). Tal volume, de autoria a princípio incógnita, veio assinado por um instigante codinome: Einem Künstler (Um artista). E esse “artista” escritor, hoje mundialmente conhecido, foi Heinrich Schenker: jurista, pianista, compositor, professor, editor, periodista, organizador de concertos, arquivista, crítico e teórico musical nascido em Wiśniowczyk, na Galícia (atualmente parte da Ucrânia), em 1868. Em 1884, Schenker fixou residência em Viena e foi nesta cidade que produziu sua vasta e diversificada obra. “No momento de sua morte, em 1935 [...], era desconhecido pela quase totalidade do mundo da música, à exceção de um pequeno grupo de discípulos e admiradores ilustres” (ROSEN, 2004, p. 202), porém entre aprovações e objeções, suas contribuições ao domínio da música tonal se fizeram notórias desde então.
O Harmonielehre é considerado a primeira grande obra teórica de Schenker e sua mais extensa contribuição ao campo da harmonia. No volume, a ordenação dos conteúdos sugere uma lógica quase binária que, se observada sob determinado viés, pode chamar atenção para aspectos relacionados à oposição conceitual aqui em pauta. Como mostra a Figura 1, desconsiderando o prefácio, o sumário e o índice remissivo, o tratado (SCHENKER, 1906) está dividido em duas grandes partes: a teórica e a prática. Cada parte se subdivide em duas seções, as quais estão organizadas em duas ou três repartições principais que acomodam os capítulos. E os capítulos expõem os §1 a §182 em aproximadamente 460 páginas. Nessa figura, vale notar que a ordenação dos conteúdos – e com isso, em alguma medida, também o pensamento sobre tais conteúdos – segue uma espécie de
Figura 1 - Ordenação dos conteúdos no Harmonielehre de Schenker, 1906.
Fonte: Elaborada pelos autores
critério geral: características apontadas como diferentes ou qualidades dadas como opostas estão separadas. E tal separação sugere uma consequente compensação, ou uma reunião em “misturas” – como diz Schenker – capazes de conservar traços vitais daquilo que é misturado. Assim, emprestando a expressão de Dahlhaus (1990, p. 49), nota-se aqui uma espécie de “cadeia de antíteses”: teórico e prático, fundamentos e diferenciações, geral e particular, fenômenos e conteúdo psicológico, natural e artificial, diatônico e cromático, fixo e variável etc.
Pares opositores desse tipo – como argumenta Harrison (1994, p. 16-42) – são vistos como armações teóricas lógicas, convincentes ou mesmo naturais. Trata-se de um consagrado recurso expositivo que faz parte das percepções, memórias, juízos e raciocínios que balizam nossa compreensão sobre a teoria musical ocidental. Conforme Harrison (1994, p, 16), sempre que falamos em termos de melodia e harmonia, homofonia e polifonia, modal e tonal, “experimentamos a conveniência da organização dualista, e achamos isso bom”[2]. Confiando, em uma rede de dualismos (“dual networks”) reiterada por diversos autores da disciplina, estamos acostumados com jogos de noções emparelhadas: maior e menor conformam uma espécie de “dualismo aborígene: o Adão e Eva da função harmônica” (HARRISON, 1994, p. 17)[3], consonância e dissonância, autêntica e plagal, altura e ritmo, sharpness and flatness, dominante e subdominante, quarta justa ascendente e quinta justa descendente, entre outros.
Essa menção genérica aos antagonismos visa ambientar a revisão que se apresenta neste artigo. Uma revisão que trata de apenas um dentre os pares opositores articulados por Schenker ao longo desse volume, a saber: a antítese entre as leis artificiais de inversão e as leis naturais de desenvolvimento. Tais leis vêm à tona em diversas passagens e, se não considerarmos os entendimentos do autor, alguns parágrafos podem se tornar enigmáticos. Dentre as passagens que, ao longo da obra, podem sugerir necessidade dessa revisão, temos:
[§18] Após esta regulação definitiva do número de sons, seu desenvolvimento [Entwicklung] ascendente e seu movimento inverso [Inversion], o artista finalmente pode conseguir a definição mais adequada dos sacrifícios aos quais as notas tinham que ser submetidas individualmente se quisessem fundar uma sociedade frutífera e prosseguir adiante (SCHENKER, 1990, p. 88).[4]
[§21] Também no sistema menor se aplicam os princípios que explicamos em detalhes para o maior; penso na relação quintíada (quintalen Beziehung)[5] das fundamentais do sistema, nas leis do desenvolvimento e da inversão [Gesetze der Entwicklung und Inversion], juntamente com todas as suas consequências. Levando esses princípios em consideração, não se descobre nenhuma diferença entre o comportamento do maior e do menor (SCHENKER, 1990, p. 94).[6]
[§82] Os graus, de certo modo, são iguais àquelas quintas que já conhecemos no §16 como pilares básicos unificadores e notas fundamentais do sistema, e que, segundo os princípios de desenvolvimento e de inversão [Prinzipien der Entwicklung und der Inversion], se sucedem respectivamente para cima ou para baixo (SCHENKER, 1990, p. 224).[7]
[§125] No que diz respeito às progressões por quintas (ou quintíadas), não achamos necessário tratá-las em detalhe, uma vez que - como já mostramos na parte teórica - sua psicologia é inferida por si mesma a partir dos princípios do desenvolvimento e da inversão [Prinzipien der Entwicklung und der Inversion] (SCHENKER, 1990, p. 339).[8]
Nessas passagens percebe-se que o par antitético inversão/desenvolvimento implica ampla articulação conceitual e que sua apreensão não é propriamente imediata ou auto evidente. Com isso, convêm observar sentidos e alcances pretendidos pelo teórico para que seus argumentos não sejam mal-entendidos ou prejudicados. Assim, à medida que a leitura do Harmonielehre avança, uma inevitável questão vai surgindo: o que podemos entender quando Schenker emprega o par antagônico Inversion versus Entwicklung? E tal questão implica outra: como traduzir tais termos para o vocabulário, em língua portuguesa, da teoria e análise musical praticada no Brasil? [9]
Questões como essas surgiram no decorrer da investigação, acerca do conceito de “processos de tonicalização” (cf. destaque na Figura 1), desenvolvida pelos autores do presente artigo junto à linha de pesquisa Teoria e História do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade do Estado de Santa Catarina. E os resultados aqui expostos são respostas as quais, preservando as questões, se apresentam para serem apreciadas pelos “artistas” que ainda acreditam que as temáticas da teoria musical têm lugar em nossas vidas.
Para prosseguir vale uma ressalva. Como se sabe, no âmbito da teoria musical ocidental os termos “inversão” e “desenvolvimento” possuem diferentes histórias e acepções. Schenker os retoma escrevendo em Viena nos primeiros anos do século XX, ou seja, num estágio no qual a teoria harmônica austro germânica conta com um notável corpo de publicações. Tal circunstância sugere correlações que podem estimular a investigação de similaridades e divergências entre entendimentos de Schenker e entendimentos outros, expressos por teóricos igualmente influentes que o precederam e, em determinados casos, recorrem aos modelos e raciocínios dualistas, tais como Georg Joseph Vogler (1749-1814), Gottfried Weber (1779-1839), Simon Sechter (1788-1867), Ernst Richter (1808-1879), Hermann von Helmholtz (1821-1894), Moritz Hauptmann (1792-1868), Hugo Riemann (1849-1919) etc. Com isso, reconhecendo a relevância dos debates que os teóricos travam entre si,[10] convêm notar que a presente revisão é necessariamente parcial, em razão de reler e tecer considerações apenas acerca da posição expressa por Schenker em seu Tratado de Harmonia.
A princípio, podemos compreender “inversão” – tradução literal do vocábulo Inversion empregado por Heinrich Schenker em seu Harmonielehre (1906, p. 44-45) – como um fator de mudança, de modificação ou transformação de um estado para outro. O termo implica ato ou efeito de converter, ou uma troca de direção, como sugere o termo Umstellung, também empregado por Schenker (1906, p. 45) em sua definição. Trata-se, de uma reestruturação ou adaptação no sentido de ação que faz com que algo seja ajustado para uma nova finalidade. Inversão – no sentido empregado por Schenker – é um gesto artificial, uma antidireção que decorre de uma vontade proposital.[11] Por sua vez, o termo “desenvolvimento” [Entwicklung] implica em evolução, progressão, ascensão, fortalecimento ou germinação, no sentido de impulso de propagação ou de processo de expansão natural.[12] Com essas colocações preliminares, podemos reler uma das passagens que sintetizam a contraposição:
As leis naturais de desenvolvimento [Entwicklung] e as artificiais de inversão [Inversion] influem sobre a sequência dos sons e também sobre como cada som implicado nesse caminho é arrastado de novo por seu próprio egoísmo; ou seja, como cada som é solicitado pelo sistema maior, pelo menor ou pela mistura de ambos. [...] o princípio de desenvolvimento e inversão fornece não só a explicação da sequência de notas isoladas, mas também a sequência de graus e tonalidades (SCHENKER, 1990, p. 200).[13]
Nessa passagem chama atenção a ideia de “egoísmo do som” (Egoismus der Töne), reincidente no Harmonielehre (1906, p. 43, 106-107, 150, 173 e 333), a qual também ressoa na conformação da noção de tonicalização. Esse “egoísmo do som” pode ser compreendido como uma espécie de “impulso vital” que cada som, “arrastado [...] por seu próprio egoísmo”, manifesta ao ambicionar a condição de tônica: “O egoísmo do som se manifesta de maneira semelhante ao do homem, prefere dominar seus sons concomitantes a ser dominado por eles, e o meio idôneo para satisfazer essa paixão egoísta de mandar é justamente o sistema” (SCHENKER, 1990, p. 135-136)[14]. Com isso, as citações acima reiteram que, na condição de leis determinantes desdobradas em questões técnicas e artísticas, as noções de inversão e desenvolvimento devem ser esclarecidas. Nessa direção, a seguinte passagem do comentário de Barce é contributiva:
Conceito básico na teoria de Schenker é o movimento de quintas consecutivas ascendente (nach aufwärts), ou em elevação crescente (steigend), e descendentes (nach abwärts), ou em queda decrescente (fallend). [...] O movimento ascendente de quintas supõe o processo “normal” (por assim dizer) da dialética musical, processo que denomina Entwicklung (desenvolvimento), frente ao movimento descendente, denominado Inversion (BARCE, 1990, p. 28).[15]
Por considerar as “leis de desenvolvimento” – isto é, o fenômeno natural da quinta justa como o primeiro harmônico a se diferenciar acima do som fundamental e sua oitava – como algo que é “normal” [normaler Entwicklung][16] e, portanto, consabido ou mesmo irreversível, Schenker (1990, p. 78-85) passa a se ocupar do par opositor. Ou seja, passa a tratar das “leis artificiais de inversão” dedicando ao movimento descendente – aquele produzido pela mão do homem e não pela natureza – todo o §16 “A inversão como contrapartida ao desenvolvimento”, do Capítulo 1, da Seção 1. Sigamos as linhas gerais de sua argumentação:
Schenker começa esse Capítulo 1 tecendo considerações sobre “música e natureza” e, já no §8, destaca que, sob o juízo do “instinto dos artistas”, ou mais especificamente, à disposição do impulso criativo que move os músicos, “a natureza deixou seu sinal na chamada série dos harmônicos superiores” (SCHENKER, 1990, p. 67-68). E alguns aspectos dessa “conhecida série de harmônicos” são então comentados no §9. Em seguida, no §10, Schenker (1990, p. 70-72) sugere a analogia entre a “descendência dos harmônicos naturais” e uma “árvore genealógica muito ramificada”. E, como que para garantir a eficácia dessa comparação, acrescenta uma árvore genealógica da “família Bach” (SCHENKER, 1990, p. 71). Com tal analogia, Schenker defende que, assim como
Os descendentes são criações da natureza. [...]. Também aqui no seio da nota fundamental só existem procriações e propagações segundo princípios de divisão sempre diferentes, como os que distinguimos [Fig. 2] com os números 1, 2, 3, 4 etc.; ou seja, o corpo vibra em 2 metades, em 3 terços, em 4 quartos etc. Como puro postulado de nossa capacidade conceitual, devemos, na série dos harmônicos superiores, ver [...] apenas estritamente a descendência dos harmônicos (SCHENKER, 1990, p. 70-71)[17].
A imagem de uma série de descendentes de um mesmo ancestral se destaca ao longo do tratado e, nessa revisão, convém pré-assinalar dois de seus propósitos persuasivos. Um deles é enfatizar que a inversão é incontestavelmente um engenho, uma inventiva, pois assim como um filho não gera seu progenitor, a quinta (digamos, a nota sol) naturalmente não gera sua nota fundamental predecessora (a nota dó). Contudo, também naturalmente, um filho pode sim mudar de condição, se fazer progenitor e gerar sua própria prole. Esse segundo uso persuasivo ajuda legitimar o argumento de que um som gerado por uma nota fundamental pode igualmente mudar de condição e se tornar uma nova nota fundamental plenamente capaz de gerar suas próprias procriações. E vale notar que essa inversão, ou esse mudar de condição e se fazer uma nova tônica, está na base da noção de processo de tonicalização. No §11, “O cinco, reconhecido como princípio último de divisão para nosso sistema”, Schenker cuida de uma redução, ou seleção parcial, daquilo que conta na série de harmônicos superiores:
O ouvido humano segue a natureza, como se mostra na série dos harmônicos superiores, só até a terça maior, como última fronteira: assim, até o harmônico cujo princípio de divisão é cinco. [...] os harmônicos cujos princípios de divisão são números mais altos resultam já demasiadamente complicados para nosso ouvido [...] tanto que os harmônicos 7, 11, 13, 14 etc. [Fig. 2] nos permanecem completamente estranhos. [...] é sem dúvida maravilhoso, estranho e misteriosamente inexplicável: simplesmente o ouvido chega só até o princípio de divisão 5 (SCHENKER, 1990, p. 72-73).[18]
Com a considerável diferença realçada na Figura 2, observa-se que tal “princípio último de divisão” aproxima-se daquele limite que, na história da teoria musical, se conhece como o numero senario (senarius), a qual foi enaltecido por teóricos como Zarlino, Lippius e Rameau, que viram nesse espelho da natureza a expressão divina da ordem, do número e da perfeição.
Figura 2 - O cinco, apontado por Schenker como princípio último da divisão da série harmônica.
Fonte: Elaborada pelos autores.
O numero senario[19] é uma espécie de chave do chamado sensacionismo harmônico – i.e., a convicção de que “o poder natural da sensação imediata determina em grande medida o desenvolvimento da prática e da teoria da musical” e de que as reações auditivas durante a experiência sonora são os “fatos fisiológicos sobre os quais se baseiam o sentimento estético” (HELMHOLTZ, 1895, p. vii)[20] –, pois mostra a existência de “uma afinidade notável entre sons cujas frequências são proporcionais à sequência dos números inteiros 1, 2, 3, 4, 5 e 6. A correlação do numero senario [...] com a própria relação entre um fundamental e seus harmônicos mais próximos é incontestável” (MENEZES, 2003, p. 252). Mostrando-se adepto ao sensacionismo harmônico, Schenker leva adiante sua argumentação e dedica o §12 ao tema da primazia da quinta:
A quinta [...] é mais forte do que a terça [...], já que descende de um princípio de divisão mais simples [...]. Posto que tal coisa esteja escrita no livro da natureza, não é uma casualidade que o instinto do artista tenha encontrado e encontre sempre valor maior na quinta do que na terça. A quinta, é como o primogênito entre os harmônicos superiores, é para o artista uma unidade de medida auditiva, algo assim como o metro dos músicos (SCHENKER, 1990, p. 73).[21]
Já no §13, detêm-se sobre as bases naturais da tríade maior. E no §14, discorre sobre a consequente autoridade da “relação quintíada (guintale Beziehung)” que governa as combinações melódicas e harmônicas entre os sons (cf. Figura 3). No §15, Schenker aborda uma “uma tarefa extremamente difícil” a ser enfrentada pelo artista, a saber: aquela de reunir em um único sistema as contradições dos impulsos apresentados pelos sons em separado. Tal contradição decorre de um conhecido dilema, causa primeira do processo batizada por Schenker com o termo “tonicalização”: se todo som, naturalmente, porta consigo harmônicos perceptíveis, principalmente os harmônicos 3 e 5 (Figura 2), então, todo som pode ser percebido como uma nota fundamental que, consigo, faz ressoar uma tríade maior. Ou seja, “as notas separadamente devem ser interpretadas como fundamentais equivalentes” (SCHENKER, 1990 p. 77), isso leva a conclusão de que, potencialmente, todas as notas têm direito à condição de nota fundamental e, consequentemente, direito de almejar o papel de tônica.
Na Figura 3, conforme o sugerido em Brown (2005, p. 212-213), as figuras são postas juntas para favorecer a apreciação de sua contraposição simétrica[22]. As duas primeiras figuras encontram-se no §14 (SCHENKER, 1990, p. 76-77) e dizem respeito às leis naturais de desenvolvimento: a Figura 3a mostra a sucessão de sons “mais condizente com o sentido da natureza”, a Figura 3b como os sons dessa sucessão, recebendo o realce de seus respectivos “harmônicos mais fortes 3 e 5”, revelam plena capacidade de atuar como notas fundamentais, ou tônicas autônomas. Em sentido contrário, as duas próximas imagens dizem respeito às leis artificiais de inversão e se encontram ao final do §16 (SCHENKER, 1990, p. 85): a Figura 3c mostra a inversão “introduzida pelo artista” e a Figura 3d as tríades resultantes do realce dos harmônicos principais. Por fim, Schenker propõem a Figura 3e, síntese das anteriores rearranjadas na mesma oitava. Tal síntese, limitada pelo “misterioso número cinco”, demonstra a oposição entre forma “ascendente, ou natural” e a forma “descendente, ou artificial”, a direção invertida que propositalmente contraria a disposição natural.
Figura 3 - Fundamentais “equivalentes” nas “relações quintíadas” ascendentes e descendentes.
Fonte: Schenker (1990, p. 76-77 e 85).
Tais raciocínios concentram-se no §16, pois é aqui que Schenker apresenta seu entendimento sobre as leis artificiais, ou artísticas, das harmonias invertidas. Leis as quais, segundo o autor, são uma espécie de medida de contenção em um sistema capaz de administrar a variedade sem fim imposta pela condição natural das fundamentais equivalentes.
A natureza propõe somente desenvolvimento e procriação [Entwicklung und Zeugung], um avanço indefinido; porém os artistas, construindo a relação de quintas em direção inversa [...] criaram uma oposição condizente; [...] um processo absolutamente artístico que no fundo é um fenômeno contrário à natureza [...]. A relação de quinta para baixo – relação que eu chamaria inversão [Inversion]. [...] O que principalmente atraiu o artista a esta inversão foi a sensação de que estava vinculada a uma tensão de alto nível artístico (SCHENKER, 1990, p. 78).[23]
Ao sublinhar o “alto nível artístico da inversão” no §16, Schenker (1906, p. 44) recorre a outras imagens textuais que contribuem para a compreensão da noção, tais como: Rückentwicklung (movimento reverso, retrocesso ou involução), Rückwärts (recuo, volta, movimento para traz ou em sentido inverso) e Spiegelbild (reflexão simétrica ou imagem em espelho). Na argumentação, Schenker retoma outra analogia culta, a qual realça o valor da inversão enquanto escolha que promove rearranjo de dados existentes em busca de efeitos expressivos, ou ainda, de giro artificioso que visa determinado propósito. Embora extensa, vale reler a analogia narrada pela voz de Schenker:
Encontramos algo semelhante com a linguagem. Quando se diz, por exemplo, “o padre cavalga pelo bosque”, sem dúvida a expressão é diferente à da inversão “cavalgava o padre pelo bosque”, ou de “pelo bosque cavalga o padre”. A diferença reside claramente na matriz de tensão que os dois últimos giros possuem em relação ao primeiro. Evidentemente, o natural é apresentar primeiro o sujeito de que se trata, e só depois explicar as circunstâncias do referido sujeito. Porém, quando essa sequência natural não é exigida por circunstâncias especiais, o homem pode preferir, por razões estéticas, colaborar com o efeito de tensão: coloca assim a ação (“cavalga”) ou um complemento circunstancial (“pelo bosque”) como primeiro termo, e então, e precisamente porque estamos acostumados a perceber a frase em ordem natural, nos sentimos afetados por essa inversão [Umstellung] inabitual e experimentamos curiosidade e tensão. O sujeito, que aparece depois, resolve evidentemente essa tensão. Porém não há dúvida de que tal tensão existiu. E quantas coisas se pensam nesse instante de tensão! “Cavalga”. Quem? Um amigo? Um inimigo, um estranho? [...]. Na música, esta tensão se manifesta assim: aparece, por exemplo, a nota sol, e nosso sentimento pede imediatamente que a este sol se associem prontamente seus próprios descendentes ré e si, posto que nosso sentimento está previamente instruído pela natureza. Se, no entanto, o artista inverte essa ordem natural, e faz seguir ao sol a sua quinta inferior dó, sem dúvida que ludibria a nossa expectativa. Posto que o dó realmente apareça, deduzimos a posteriori que não se tratava aqui de sol, senão de dó, neste caso teria sido mais natural se o sol houvesse seguido a dó, e não o contrário (SCHENKER, 1990, p. 78-79). [24]
O teórico conclui: “as tensões provocadas por estas inversões alcançam, na composição livre [freie Komposition] a maior importância que se possa imaginar”, tanto na melodia quanto na sucessão de graus, isto é, na elaboração harmônica[25]. Schenker (1990, p. 79-85) passa a comentar algumas ocorrências artísticas, mostrado combinações de inversão e desenvolvimento em excertos de Haydn, Mozart, Beethoven, Schumann, Carl Phillipp Emanuel Bach e Brahms. Assim, sem o dizer, Schenker declara qual é o repertório orientador de seus conceitos e para o qual suas apreciações se voltam.
Embora excedendo os limites da presente revisão, vale notar que nos comentários e anotações sobre os oito casos que ilustram o §16, Schenker deixa pistas de como a noção de “linha fundamental” (Urlinie) – tão cara para o campo da teoria e análise musical ulterior – está também associada à oposição inversão versus desenvolvimento. Ou ainda: associada à combinações entre aquilo que é relativo ao homem, ou próprio de sua produção, e aquilo que é natural e, deste modo, pré-condiciona a ação humana.
Figura 4 - Destaque para os movimentos ascendentes nos compassos iniciais do Andante moderato, Divertimento em Lá@ maior, Hob. XVI, nº 46 de Joseph Haydn, c. 1767-70.
Fonte: Schenker (1906, p. 46).
Figura 5 - Destaque para os movimentos ascendentes nos compassos iniciais do Allegro da Sonata para piano em Fá maior, K. 332, nº 12 de Wolfgang Amadeus Mozart, 1778.
Fonte: Schenker (1906, p. 46).
Figura 6 - Destaque para os movimentos invertidos nos compassos iniciais do Allegro da Sonata para piano em B@ maior, K. 333, nº 13 de Wolfgang Amadeus Mozart, 1783.
Fonte: Schenker (1906, p. 47).
Figura 7 - Destaque para os movimentos invertidos nos compassos iniciais do Allegro da Rapsódia em Si menor, Op. 79, nº 1 de Johannes Brahms, 1879.
Fonte: Schenker (1906, p. 47).
As figuras 4 a 7 foram reproduzidas com poucas intervenções, a partir dos exemplos 25 a 28 do Harmonielehre (SCHENKER, 1906, p. 46-47). Nas duas primeiras (Figuras 4 e 5) as combinações em desenvolvimento mostram o movimento ascendente “I para V”, e as combinações melódicas também ascendentes, ainda descritas em palavras, expressam o movimento Grundton para Quint (fundamental para quinta) que, mais tarde, se indicará como: - . Em seguida, as figuras 6 e 7 mostram movimentos de inversão. Aqui as combinações harmônicas se enunciam a partir do modelo descendente “V para I”. Enquanto que, prenunciando linhas fundamentais de tipo , as combinações melódicas invertidas expressam o passo Quint para Grundton (quinta para fundamental, ou para ).
Expandido os assuntos mencionados na introdução, vale acrescentar que nessas ilustrações e argumentações as quais expressam pares em oposição como inversão e desenvolvimento – ou direção “centrípeta para baixo” [zentripetalen nach unten] e direção “centrífuga para cima” [zentrifugalen nach oben] como também sugere Schenker (1990, p. 91)[26] –, reflete-se uma visão de mundo. Pois nelas é possível reconhecer traços de um amplo legado cultural, filosófico e artístico que, desde meados do século XVIII, conforma a imaginação musical ocidental. Tais traços encontram-se em um difuso ideário austro-germânico que atravessa as fases do romantismo e alcança “artistas” que se dispuseram a publicar suas teorias e fantasias nos primeiros anos do século XX.
Um desses traços diz respeito ao fato de que, como vimos, na própria maneira de Schenker redigir sua doutrina-da-harmonia (Harmonielehre), a reflexão em torno da origem, materialidade e limites da harmonia baseia-se em polaridades, isto é, resulta de aspectos ou características opostas a outras. Por um lado, temos aquilo que o fenômeno natural dos sons produz e, de modo irredutível, nos oferece. E por outro, deixando vestígios de um idealismo kantiano, temos uma necessária força de oposição: o fenômeno dos sons não possui autossuficiência, então, para se converter em harmonia, os sons dependem das formas ideais que, gerando sentido e inteligibilidade, caracterizam os esforços da subjetividade humana.
A arte da harmonia fundamenta-se em um incessante movimento pendular que contrabalança uma espécie de causa determinante, dita Entwicklung, e uma causa oposta, a Inversion. Neste âmbito especulativo, adensando o estritamente técnico musical, Entwicklung implica expansão, progressão e germinação, “no sentido de um processo de desenvolvimento natural, biológico e espiritual em que os sons, como os seres vivos, instintivamente se aperfeiçoam progressivamente, realizando novas capacidades, manifestações e potencialidades” (FREITAS, 2010, p. 529). Em contraparte, Inversion também se intensifica, ganhando conotações de uma reorientação artificial e humana que, pela força do querer, expressa a possibilidade de decidir ou a ação de escolher segundo a própria vontade. Desse contrabalanço redunda um ideal de liberdade – que, posteriormente, será flagrante no título Die freie satz escolhido por Schenker para um de seus mais influentes trabalhos.
O aprofundamento das implicações filosóficas aqui sugeridas, de fato, excede os propósitos e capacidades dessa revisão. Contudo, delineando oportunidades para outros estudos e contando com comentários de especialistas, alguns rastros desse imaginário podem ser destacados. Assim, com o auxílio de Barboza (2005), podemos observar que nas polaridades articuladas por Schenker – sistema natural (maior) e sistema artificial (menor), multivocidade e univocidade, diatonismo e cromatismo, centralidade da tônica e coadjuvação da tonicalização etc. – ressoa a seguinte ideia:
Em toda parte, encontram-se tendências opostas: uma positiva produtiva, e outra negativa que obsta a produção. Contudo, concomitantemente, há reabsorção da segunda na primeira, isto é, tem-se uma superação de resistências, que sempre se colocam novamente, para em seguida serem de novo suprimidas, e assim por diante. Como consequência, não há a anulação das tendências em determinado ponto, o que significaria a inexistência dos produtos. Na efetividade se observa um contínuo devir produtivo (BARBOZA, 2005, p. 68).
Nesta passagem, Barboza comenta os escritos de Schelling,[27] para quem um “polo não é perceptível sem que se leve em conta o outro” e que, em seu Da alma cósmica de 1798, defendeu: “o primeiro princípio de uma doutrina-da-natureza filosófica é procurar em toda a natureza por polaridade e dualismo [...]. Onde há fenômenos, já há forças opostas. A doutrina-da-natureza, portanto, pressupõem como princípio imediato uma duplicidade universal” (SCHELLING apud BARBOZA, 2005, p. 69). É oportuno lembrar que, sobre a arte musical, Schelling deixou uma máxima – “a modulação é então a arte de manter, na diferença qualitativa, a identidade do tom que é dominante no todo de uma obra musical” (SCHELLING apud FREITAS, 2010, p. 266) – a qual ecoa tanto na noção de tonicalização de Schenker quanto na noção de monotonalidade de Schoenberg.
Se for possível notar aproximações, ainda que indiretas, entre Schenker e Schelling[28], com o auxílio de Barboza (2005, p. 70-71) e Giannotti (2011, p. 174-176), determinadas correlações entre as teses de Schelling, Goethe, Kant, Hegel e Newton também podem ser assinaladas. Segundo Barboza (2005, p. 70), Schelling baseia suas reflexões nas teses de Goethe acerca dos fenômenos do magnetismo e da metamorfose das plantas. Enquanto que Goethe, apesar da “semelhança com o movimento dialético do pensamento em Hegel [...], entretanto, atribui mais uma vez a Kant essa nova forma de pensar a natureza” (GIANNOTTI, 2011, p. 175). Por seu turno, o próprio Kant “nos informa que, para realizar seu projeto, utilizará as noções de forças de atração e repulsão, as duas emprestadas da ciência de Newton” (LEBRUN apud GIANNOTTI, 2011, p. 175).
Correlações entre Schenker e Goethe são notadas pelos musicólogos[29] e com isso é possível reiterar que polaridades schenkerianas – como Entwicklung e Inversion –, podem se relacionar com as polaridades goethianas. Conforme a revisão de Barboza (2005, p. 71-72), numa carta de 1792, Goethe falava sobre a “tentativa de tomar o conceito de polaridade como o fio condutor” de suas investigações sugerindo, então, a provisória “fórmula do ativo e passivo”. E, em 1808, já na “Farbenlehre” (Doutrina-das-Cores), o princípio é generalizado para a observação de toda a natureza, uma vez que tudo mostra “uma desunião originária, capaz de união”. As analogias biológicas vão surgindo e ganhando força: “a vida da natureza” se expressa na “sístole e [na] diástole eternas”[30], no “respirar e expirar do mundo no qual vivemos, laboramos e existimos!”. Seguindo tais falas de Goethe, Barboza realça alguns “efeitos contraditórios” que, interdependentes, conformam uma “unidade viva”: separação e união, diferença e especificidade, aparecer e desaparecer, solidificar e evaporar, fixar e fluir. E, em destaque, vale notar que a polaridade “expansão e contração” se tornou influente, a partir da repercussão alcançada em “A metamorfose das plantas” (Die Metamorphose der Pflanzen), obra que Goethe concluiu em 1790:
Desde a semente até o mais perfeito desenvolvimento das folhas caulinares, observamos em primeiro lugar uma expansão; em seguida, vimos, através de uma contração, surgir o cálice; as pétalas, através de uma expansão; as partes sexuais, através de uma contração; e em breve nos apercebemos da maior expansão no fruto e da maior contração na semente. Nestes passos, conclui a Natureza irresistivelmente a eterna obra de reprodução bissexuada dos vegetais (GOETHE, 1997, p. 48).
Goethe, como sugeriu Barros (2015, p. 156), também associou o par “expansão e contração” ao âmbito musical, como podemos reler em trechos de uma carta de 1815:
Quando a mônoda se expande, surge o tom maior. Quando a mônoda se contrai, aparece o menor. [Considera-se] o som grave mais imperceptível como um centro mais interior da mônada e o som mais agudo mais dificilmente percebido como a periferia da mônada. Minha convicção é a seguinte: como o tom maior surge da expansão da mônada, ele exerce um efeito igualmente expansivo sobre a natureza humana, impelindo-a para o objeto, para a atividade, para o amplo, para a periferia. O mesmo acontece com o tom menor; surgindo da contração da mônoda, também contraí, concentra, impulsiona para o sujeito, sabendo ali encontrar o derradeiro canto de refúgio onde a mais adorável melancolia ama esconder-se. [...] Todas as mônodas são, por natureza, tão indestrutíveis que no próprio momento da dissolução elas recomeçam sua atividade sem perdê-la ou anulá-la. Desse modo, elas apenas se separam das antigas relações para, em seu lugar, dar início a outras (GOETHE apud SCHUBACK, 1999, p. 43-45).
Procurando resumir a ideia de polaridade expressa por Goethe na Doutrina das Cores, Giannotti (2011, p. 174-175) escreve: “Tudo na natureza, os elementos e as forças em geral estão em alternância contínua entre o efeito e seu contrário. A dualidade do fenômeno é o princípio da vida”. No elenco de dualidades poeticamente elencadas por Goethe, citado por Giannotti, estão pares como: nós e os objetos, espírito e matéria, ideal e real, fantasia e entendimento, o respirar e o imã. Daí a síntese: na compreensão da noção de Polarität expressa por Goethe, “todo fenômeno deve se separar e unir a fim de poder aparecer. A reunião pode se dar num sentido superior, e algo novo, maior e inesperado, pode ser produzido” (GIANNOTTI, 2011, p. 175).
Outra síntese se encontra no ensaio “A doutrina goetheana da polaridade” de Souza:
Na mundividência goetheana, os contrários não constituem dualidades antagônicas, mas, sim, unidades polares. Luz e treva, dia e noite, vida e morte são o anverso e o reverso de uma mesma unidade polarizada... [...] Separar significa engendrar... A polarização do ilumínio e da sombra produz a cor. A propriedade fundamental da unidade polarizada, que preside à gênese e ao desenvolvimento da vida em geral, consiste em dividir o unido e, ao mesmo tempo, unir o dividido... (SOUZA apud KESTLER, 2006, p. 49-50).
Guardadas as devidas distâncias, em nosso estudo, tais colocações podem ser parafraseadas: também para Schenker, na tonalidade harmônica, as forças (ou leis) de desenvolvimento e inversão são unidades polares em alternância contínua e dessa tensão resulta aquilo que impulsiona a consecução da arte musical. Ou em outros termos: na tonalidade harmônica a unidade polarizada força da natureza (Entwicklung) e contraforça da vontade (Inversion) expressa um contínuo devir produtivo que potencializa a composição de obras musicais avaliadas como possuidoras de qualidades intensas e inesperadas.
De acordo com o exposto, podemos ponderar que as chamadas leis artificiais de inversão e leis naturais de desenvolvimento estão a serviço de um ideal artístico – “a necessária variedade dos efeitos” – o qual valoriza a contraposição de elementos distintos. Ou como formula o próprio autor: é na “na multiplicidade e nos contrastes das formas de desenvolvimento e inversão” que “o habitus de um verdadeiro mestre e, portanto, também um privilégio dele, se expressa diante dos talentos menores” (SCHENKER, 1906, p. 51)[31].
Tal ideal – já caracterizado como “o princípio das sonoridades contrastantes” (DAHLHAUS, 1990, p. 71) – implica em uma noção de beleza que, ultrapassando os limites da teoria da harmonia tonal, vem sendo dita e redita por notáveis ao longo da história ocidental. Percebe-se assim que Schenker recupera uma longeva compreensão da noção de harmonia, posto que “o termo harmonia tinha na Grécia um grande campo de aplicação, mas sempre significava a união de coisas contrárias ou de elementos em conflito organizados em um todo” (TOMÁS, 2005, p. 16-17). E mais, percebe-se que, ao contrapor sem desacolher as cores da inversão e do desenvolvimento, Schenker toma parte de uma tradicional conversa sobre fundamentos da arte que pensadores mais antigos também participam.
Nessa conversa ouvimos a voz de um dos grandes do século XVI: Gioseffo Zarlino (1517-1590), teórico italiano que, conforme Abdounur (1999, p. 43), defendeu que a música, como acontece com a pintura, torna-se mais arrebatadora quando realizada com várias cores, e que a arte dos sons proporciona maior prazer aos sentidos se proceder como a própria natureza, a qual gera seres semelhantes de uma mesma espécie, mas contrapõe essa semelhança introduzindo diferenças e traços variantes infinitos. Schenker parece então atualizar ideias de Zarlino, teórico renascentista defensor de que a perfeição em harmonia resulta do confronto de elementos distintos, discordantes e contrários, possuindo em suas partes, proporções, movimentos e tessituras variadas. Nos anos prenunciadores da era barroca e, com isso, a era da tonalidade harmônica, declaração semelhante se fez ouvir na voz do filósofo italiano Giordano Bruno (1548-1600):
A beleza é multíplice, entre coisas completamente similares, não existe beleza. [...] A beleza se revela no engate das partes distintas: a beleza de tudo consiste na própria variedade. [...] O princípio, o meio e o fim, o nascimento, o aumento e a perfeição de tudo o quanto vemos resulta de contrários, por contrários, em contrários e para os contrários (BRUNO apud TATARKIEWICZ, 1991, p. 374 e 377).
Mais tarde, no mundo próximo a Rameau, no influente verbete “O Gosto”, publicado em 1757 no volume VII da Encyclopédie, o filósofo francês Charles de Montesquieu (1689-1755) também ressaltou o valor da variedade de efeitos em diversas passagens:
Sem a variedade a alma se abate: as coisas que se parecem lhe surgem como se fossem uma só. [...] Uma uniformidade prolongada torna tudo insuportável. [...] A alma aprecia os contrastes [...] é preciso, portanto, introduzir contrastes nas atitudes. [...] Os contrastes nos surpreendem porque as coisas em oposição se revelam mutuamente [...] quando um homem baixo está ao lado de um homem alto, o baixo faz parecer o outro ainda maior e o maior faz o outro parecer ainda menor (MONTESQUIEU, 2005, p. 27, 28, 34 e 61).
Para encerrar, vale arriscar uma síntese: a compreensão dos processos harmônicos, no âmbito da conceituação e da tipologia elaborada por Schenker, está associada ao ideal da unidade na variedade. E, em atenção a esse ideal, a alternância entre inversão e desenvolvimento alimenta tanto a técnica quanto a fantasia. Expandindo o sortimento de contrastes, tal oposição implica diversidade e, com isso, também um ganho intensidade. Nesse processo, lembrando que um “polo não é perceptível sem que se leve em conta o outro” (SCHELLING apud BARBOZA, 2005, p. 69), reflete-se a dinâmica da unidade dualista que se faz notar na distinção basilar entre a vontade artística e a matéria prima. Portanto, na “dialética schenkeriana” (BARCE, 1990, p. 28), as inversões são antíteses, momentos descendentes contrapostas à tese do som fundamental e seus harmônicos naturais, representada pela fórmula ascendente dó"sol. Em nítido contraste, as inversões são escolhas que se sustentam na desnatural fórmula descendente: sol"dó. Ou, lembrando os termos de Kant (apud BARBOZA, 2005, p. 70): o passo ascendente dó"sol atua como uma “força originária da matéria” contraposta à força humana do gesto sol"dó. Como consequência, tais forças “tendem à aproximação”, tendem à síntese e, por fim, atendem um ideal de perfeição: dó"sol"dó. Em suma: a contraposição, desenvolvimento e inversão define-se fundamentalmente como um potencial de escolhas harmônicas que manifestam artisticidade, pois, na harmonia as seleções e combinações de opostos são invenções predominantemente governadas por uma lei capaz de confrontar a lei natural: a vontade humana.
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[1] Conforme a edição em espanhol (SCHENKER, 1990), emprega-se aqui a tradução “Tratado de Harmonia”. Contudo, como ressalvam Dudeque e Maluf a respeito do Harmonielehre publicado por Schoenberg em 1911, a tradução de tal título requer atenção: “O título do livro, Harmonie + Lehre, se refere ao uso comum, e demonstra uma tradição, na Alemanha e na Áustria, para obras de disciplinas pertencentes à teoria musical. Esta tradição, que remonta ao final século XIX e início do XX, refere-se aos manuais práticos de música. Porém [...] o termo Lehre também pode se referir a um conjunto maior de saber e conhecimento sobre o assunto abordado” (DUDEQUE, 2004, p. 114-115). Por sua vez, Maluf (apud SCHOENBERG, 2001, p. 19-20) observa que o termo “Lehre” possui acepções de: “ensinamento, doutrina, teoria, ciência, aprendizagem, lição [...], instrução, ensino, tirocínio, dogma, preceito, conselhos etc.”.
[2] “Organizing aspects of tonal music into dualities can be, and has been, an attractive way of theorizing. Whenever we speak of consonance and dissonance, or of melody and harmony, or of homophony and polyphony, we experience the expedience of dual organization, and find it good” (HARRISON, 1994, p. 16).
[3] “Major and minor, then, form an aboriginal dualism—the Adam and Eve of harmonic function” (HARRISON, 1994, p. 17).
[4] “Tras de esta definitoria regulación del número de sonidos, de su desarrollo ascendente y de su movimiento inverso, pudo el artista finalmente conseguir la definición más adecuada de los sacrificios a que habían de someterse las notas individualmente si querían fundar una sociedad fructífera y proseguir adelante” (SCHENKER, 1990, p. 88).
[5] A expressão “relação quintíada” (quintalen Beziehung) empregada por Schenker em seu Harmonielehre (1906, p. 42, 55, 58, 181) diz respeito ao chamado “privilégio da quinta” (DAMSCHRODER, 2008, p. 94-98) reafirmado por diversos cultores da teoria tonal (Cf. FREITAS, 2010, p. 550-552 e 694-695). Para Schenker, a “primazia das quintas” é incontestável, trata-se da relação mais natural entre os sons, uma vez que o intervalo de quinta descende de um princípio de divisão consabidamente simples: "Como tal coisa é baseada no livro da natureza, não é uma coincidência que o instinto do artista tenha encontrado e sempre encontre maior valor na quinta [...] a quinta, como o primogênito entre os harmônicos superiores, é para o artista quase uma unidade de medida auditiva, algo como o metro dos músicos” (SCHENKER, 1990, p. 73). "Puesto que tal cosa está fundada en el libro de la naturaleza, no es una casualidad que el instinto del artista haya encontrado y encuentre siempre valor mayor en la quinta [...]. La quinta, como quien dice el primogénito entre los armónicos superiores, es para el artista casi una unidad de medida auditiva, algo así como el metro de los músicos"(SCHENKER, 1990, p. 73).
[6] “También en el sistema menor tienen aplicación los principios que expusimos detalladamente para el mayor; pienso en la relación quintíada de las fundamentales del sistema, en las leyes del desarrollo y de la involución junto con todas sus consecuencias. Tenido estos principios en cuenta, no se descubre ninguna diferencia entre el comportamiento del mayor y del menor” (SCHENKER, 1990, p. 94).
[7] “Los grados, en cierta manera, son iguales a esas quintas que hemos conocido ya en §16 como pilares básicos unificadores y notas fundamentales del sistema, y que, según los principios de la evolución y de la involución, se suceden respectivamente hacia arriba o hacia abajo” (SCHENKER, 1990, p. 224).
[8] “Por lo que atañe a las progresiones por quintas (o quintíadas), no creemos necesario tratarlas detalladamente, puesto que – como ya hemos mostrado en la parte teórica – su psicología se infiere por si misma de los principios de la evolución y de la involución” (SCHENKER, 1990, p. 339).
[9] As leituras e traduções do Harmonielehre de Schenker foram realizadas a partir de duas traduções. A primeira delas é a versão para o espanhol proposta pelo compositor, tradutor e ensaísta espanhol Ramón Barce (1928-2008) e publicada pela Editora Real Musical (cf. SCHENKER, 1990). A segunda é a versão para o inglês, traduzida por Elizabeth Mann Borgese, com prólogo e notas do musicólogo e discípulo de Schenker, Oswald Jonas, que vem sendo publicada desde 1954 (cf. SCHENKER, 1980). A edição em alemão (SCHENKER, 1906) também foi constantemente consultada. E salvo indicação em contrário, todas as traduções para o português são de nossa autoria. A opção pela edição em espanhol se deve a uma maior proximidade com essa língua. Mas, além disso, deve-se considerar que a edição em inglês – conforme Barce (1990, p. 27) – eliminou um quarto do texto original e suprimiu 75 dos exemplos musicais citados e comentados por Schenker.
[10] Sobre convergências e divergências entre Schenker e o pensamento musical de outros teóricos, cf. Cook (2007), Morgan (2018) e Wason (1995). Sobre as relações entre Schenker e os teóricos supracitados cf. Schenker Sobre as relações entre Schenker e os teóricos supracitados, cf. a seção “Person” no sítio Schenker Documents Online.
[11] Para efeito das leituras e traduções do termo “inversão” [Inversion] ao longo do Harmonielehre de Schenker é preciso observar que: o vocábulo Inversion é originalmente empregado em alemão (SCHENKER, 1906) e, com a mesma grafia, se conserva na versão em inglês (SCHENKER, 1980). Contudo, na versão em espanhol (SCHENKER, 1990) o termo empregado é “involução”. Esse termo se justifica, conforme Barce, pelo fato de que “involução” pode enfatizar, por meio da paronomásia entre os antônimos (evolução-involução), “a coesão de ambos os conceitos da dialética schenkeriana” (BARCE, 1990, p. 28). Contudo, os termos escolhidos por Schenker – Entwicklung e Inversion – não apresentam tal semelhança fônica. “Involução”, argumenta Barce, visa também a desambiguação do termo “inversão” que, na teoria musical, corriqueiramente empregamos para inversão de acordes ou intervalos. Barce observa que tal ambiguidade não ocorre no Harmonielehre, posto que, para se referir a inversão de acordes ou de intervalos, Schenker emprega o termo “Umkehrung” (reversão) e não o termo Inversion. No presente artigo, tanto o termo Inversion quanto o termo involução foram vertidos para o português como “inversão”.
[12] Nas leituras e traduções do termo “desenvolvimento” deve-se reiterar que o vocábulo empregado por Schenker (1906) é Entwicklung, substantivo feminino que é frequentemente traduzido como “desenvolvimento” ou “evolução” e possui acepções de crescimento, comportamento e progresso. O termo “Development” é usado na versão em inglês (SCHENKER, 1980). Na versão em espanhol (SCHENKER, 1990), encontramos “evolución” e “desarrollo”. Barce (1990, p. 28) esclarece que a opção pelo termo “evolución” visa conservar a citada paronímia (evolução-involução) e também evitar ambiguidades com o termo “desenvolvimento” (Durchführung), já consagrado para a designação da seção central da forma sonata. Sobre a inadequada tradução de “Durchführung” como “desenvolvimento” em língua portuguesa (cf. MALUF apud SCHOENBERG, 2001, p. 70). No presente artigo, tanto o termo Entwicklung quanto o termo evolución foram vertidos para o português como “desenvolvimento”.
[13] “Las leyes naturales de la evolución y las artificiales de la involución influyen sobre la secuencia de los sonidos, y como cada sonido implicado en ese camino es arrastrado de nuevo por su propio egoísmo; es decir, solicitado por el sistema mayor, por el menor o por la mixtura de ambos...o principio de evolución e involución suministra no sólo la explicación de la secuencia de las notas aisladas, sino también de la secuencia de los grados y tonalidades” (SCHENKER, 1990, p. 200).
[14] “El egoísmo del sonido se manifiesta, de manera semejante al del hombre, en que prefiere dominar sus sonidos concomitantes que ser dominado por elles, y el medio idóneo que se le ofrece para satisfacer esta pasión egoísta de mandar es justamente el sistema” (SCHENKER, 1990, p. 135-136).
[15] “Concepto básico en la teoría de Schenker es el movimiento por quintas consecutivas ascendendentes (nach aufwärts) o creciente (steigend), y descendente (nach abwärts) o decreciente (fallend). [...] la sucesión ascendente de quintas supone el proceso normal (por decirlo así) de la dialéctica musical, proceso que denomina Entwicklung (evolución), frente a la sucesión descendente, denominada por él Inversión, que hemos traducido como involución” (BARCE, 1990, p. 28).
[16] Cf. Schenker (1906, p. 46).
[17] “Los descendientes son creaciones de la naturaleza. [...]. También aquí en el seno de la nota fundamental sólo hay procreaciones y propagaciones según principios de división siempre diferentes, como los que nosotros distinguimos con los números 1, 2, 3, 4, etc.; es decir, el cuerpo vibrante vibra en 2 mitades, en 3 tercios, en 4 cuartos, etc. Como postulado puro de nuestra capacidad conceptual debemos, en la serie de los armónicos superiores [...] ver sólo estrictamente la descendencia de los armónicos” (SCHENKER, 1990, p. 70-71). Sobre comparações entre a série dos harmônicos e a descendência biológica, cf. Freitas (2010, p. 508-509).
[18] “El oído humano sigue a la naturaleza, como se muestra en la serie de los armónicos superiores, sólo hasta la tercera mayor como última frontera: así pues, hasta el armónico cuyo principio de división es el cinco. [...] los armónicos cuyos principios de división son números más altos resultan ya demasiado complicados para nuestro oído [...] tanto que los armónicos 7, 11, 13, 14, etc., permacen completamente extraños a nosotros. [...] es sin duda maravilloso, extraño y misteriosamente inexplicable, pero es así: sencillamente que el oído llega sólo hasta el principio de división 5” (SCHENKER, 1990, p. 72-73).
[19] Sobre o numero senario, cf. Wienpahl (1959).
[20] “The natural power of immediate sensation”; “physiological facts on which esthetic feeling is based” (HELMHOLTZ, 1895, p. vii,).
[21] “La quinta [...] es más fuerte que la tercera [...] puesto que procede del principio de división más simple [...]. Puesto que tal cosa está fundada en el libro de la naturaleza, no es una casualidad que el instinto del artista haya encontrado y encuentre siempre valor mayor en la quinta que en la tercera. La quinta, como quien dice el primogénito entre los armónicos superiores, es para el artista casi una unidad de medida auditiva, algo así como el metro de los músicos” (SCHENKER, 1990, p. 73).
[22] Tal junção (Figura 3) é uma intervenção gráfica supostamente facilitadora, mas não está no tratado de Schenker. Considerando as ressalvas expostas no “Prefácio” de seu Tratado de Harmonia (SCHENKER, 1990, p. 34-35), pode-se especular que, Schenker recusou essa representação agudamente simétrica para precaver possíveis comparações imediatas, mas superficiais, com os espelhamentos propostos pela vertente do “Harmonischer Dualismus” defendido por teóricos como Hauptmann, Oettingen e, principalmente, Riemann (cf. DAHLHAUS, 1990, p. 59-63; FREITAS, 2010, p. 542-546; HARRISON, 1994; KLUMPENHOUWER, 2006; WASON, 1995, p. 117-119). Em Schenker... ([201-]), encontram-se diversos documentos que atestam os esforços de Schenker para que suas ideias não fossem confundidas com as de Riemann: “Já em 1905, Schenker protegia o manuscrito de seu Harmonielehre, para que o mesmo não caísse nas mãos de Riemann ou de seus seguidores (Correspondência 5-6). Ao longo de sua carreira, Schenker considerou Riemann como seu principal rival, incorporando a antítese de sua própria teoria musical, além de ser uma força odiosa (“o bacilo musical mais perigoso da Alemanha": Correspondência 71, 1907). [“As early as 1905, Schenker was protective of the manuscript of his Harmonielehre, lest it fall into the hands of Riemann or his followers (CA 5-6). Throughout his career, he regarded Riemann as his chief rival, embodying the antithesis of his own music theory, as well as being an odious force ("the most dangerous musical bacillus in Germany": CA 71, 1907)].
[23] “La naturaleza propone solamente desarrollo y generación, un hacia adelante indefinido; pero los artistas, construyendo la relación de quinta en dirección inversa [...] crearon una oposición equivalente; [...] un proceso absolutamente artístico que en el fondo es un fenómeno contrario a la naturaliza [...]. Ésta relación de quinta hacia abajo – relación que yo llamaría involución [Inversión]. [...] Lo que atrajo sobre todo al artista de esta involución fue la sensación de que estaba vinculada a una tensión de alto nivel artístico” (SCHENKER, 1990, p. 78).
[24] “Encontramos algo semejante en el lenguaje. Cuando se dice, por ejemplo, “el padre cabalga por el bosque”, sin duda la expresión es diferente a la del giro “cabalga el padre por el bosque”, o de “por el bosque cabalga el padre”. La diferencia reside claramente en el matriz de la tensión que los dos últimos giros tienen con respecto al primero. Evidentemente, lo natural es presentar primero al sujeto. Pero donde esta secuencia natural no es exigida por circunstancias especiales, el hombre puede preferir, por razones estéticas, colaborar con el efecto de tensión: coloca así la acción (“cabalga”) o un complemento circunstancial (“por el bosque”) en primer término, y entonces, y precisamente porque estamos acostumbrados a percibir la frase en el orden natural, nos sentimos afectados por esa inversión [Umstellung] inhabitual y experimentamos curiosidad y tensión. El sujeto, que aparece después, resuelve evidentemente esa tensión. Pero de que tal tensión ha existido no cabe duda alguna. ¡Y cuántas cosas se piensan en ese instante de tensión! “Cabalga”. ¿Quién? ¿Un amigo? ¿Un enemigo? ¿Un extraño? [...]. En la música, esta tensión se manifiesta así: aparece, por ejemplo, la nota sol, y nuestro sentimiento aboga inmediatamente porque a este sol se asocien pronto ostensiblemente sus propios descendientes re y si, puesto que nuestro sentimiento está ya instruido por la naturaliza. Si ahora el artista invierte este orden natural, y hace seguir a sol su quinta inferior do, sin duda que da un mentís a nuestra espera. Puesto que ha seguido realmente do, deducimos a posteriori que no se trataba aquí de sol, sino más bien de do, en cuyo caso habría sido más natural que sol, hubiera seguido a do, y no al revés” (SCHENKER, 1990, p. 78-79).
[25] Com Freitas (2010, p. 479), observa-se que a analogia aqui proposta por Schenker lembra aquela ponderação formulada pelo abade Charles Batteux em seu Cours de belles lettres publicado em 1764. Na comparação entre “A doninha aos pássaros inimiga” e “A doninha inimiga de pássaros” concluímos, com Batteux, que “há uma razão, por mais tênue que seja, que levou o autor a escolher uma disposição em lugar da outra. Talvez tenha sido a harmonia [a combinação agradável], mas, às vezes, também é a energia” (BATTEUX, 2004, p. 99). Batteux pergunta qual seria o efeito de três possíveis traduções de uma frase de Cícero: “‘Que disciplina pode estabelecer em seu campo aquele que não consegue dirigir sua conduta? ’ [...] ‘Um general que não comanda sua própria conduta não pode comandar um exército? ’ [...] ‘Um general não pode comandar um exército se não pode comandar-se a si mesmo’”. Dessas possíveis formulações se tira ao menos a lição de que “o sentido é o mesmo, mas não há mais a mesma força, porque não há mais a mesma ordem” (BATTEUX, 2004, p. 99). Mais adiante Batteux conclui que a ordem que dá forma ao texto deve ser totalmente invertida “quando o sentido assim o exigir para a clareza, ou o sentimento para a vivacidade, ou a harmonia para a satisfação” (BATTEUX, 2004, p.103).
[26] Metáforas com as forças de atração são comuns, mas aqui Schenker parece lembrar Kant, que nos “Princípios metafísicos da ciência da natureza” assim escreveu: “força de atração e de repulsão pertencem à essência da matéria e nenhuma das duas pode ser separada do referido conceito” (KANT apud BARBOZA, 2005, p. 70).
[27] Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854), filósofo alemão e um dos representantes do idealismo.
[28] Cf. Cook (2007, p. 44).
[29] Cf. Pastille (1990).
[30] Conforme o dicionário Houaiss, Sístole é a “parte do ciclo cardíaco caracterizada por contração rítmica, especialmente dos ventrículos, por meio da qual o sangue é ejetado para a aorta e para a artéria pulmonar”. Enquanto que a “Diástole” é a “parte do ciclo cardíaco que se segue à sístole e é caracterizada por relaxamento muscular e enchimento dos ventrículos”
[31] “In der Mannigfaltigkeit und in den Kontrasten der Entwicklungs- und Inversions formen sich der Habitus eines wirklichen Meisters und dadurch auch den Vorzug desselben vor den geringeren Talenten ausdrückt” (SCHENKER, 1906, p. 51).