Moda para meninas adolescentes e obesas: seria um vestuário efetivamente para meninas reais?
Tais Oliveira Ventura, Alberto Cipiniuk, Irina Aragão dos Santos
Moda para meninas adolescentes e obesas:
seria um vestuário efetivamente para meninas reais?
Fashion for adolescent and obese girls: would it be a garment for real girls?
Tais Oliveira Ventura Pereira
Mestre em Design pela Pontifícia Universidade Católica Rio de Janeiro (PUC-Rio) – taventuracontato@gmail.com - orcid.org/0000-0002-3323-2380
Alberto Cipiniuk
Doutor em Filosofia e Letras pelo Université Libre de Bruxelles (Bélgica) – acipiniuk@gmail.com -
orcid.org/0000-0002-4640-0646
Irina Aragão dos Santos
Doutora em Pós-Graduação em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - irinaa@uol.com.br - orcid.org/0000-0002-6307-4942
Resumo
O presente artigo reflete sobre a produção de peças de vestuário para adolescentes com obesidade mórbida de 12 a 14 anos, tendo em vista o número crescente de usuários na condição de excesso de peso e a forma como as marcas elaboram seus produtos de moda. O objetivo é ampliar o debate sobre os padrões de beleza do mercado, refletir sobre a práxis do designer, além de indagar se o vestuário oferecido atende às adolescentes em questão. O método utilizado foi revisão bibliográfica, levantamento de lojas do setor, aplicação de questionários às meninas estudadas e aos seus responsáveis, além de entrevistas com os profissionais responsáveis pelo atendimento médico delas no Hospital Pedro Ernesto, localizado em Vila Isabel, campo escolhido por reunir maior número de adolescentes em situação de obesidade. Para entender o mercado de moda, realizamos entrevista com a dona de uma marca carioca de moda feminina infanto-juvenil estabelecendo um paralelo com outra marca do setor feminino, encerrando com uma reflexão acerca da prática profissional do Designer dentro do modo de produção capitalista, e a atividade laboral de desenhar roupas para os usuários. A pesquisa é relevante por convidar os pares a refletir sobre os padrões estabelecidos de beleza e de produção, que materializados na forma como estão elaborando os produtos de vestuário, de acordo com as condições materiais de produção não atendem as usuárias em questão.
Palavras-chave: Moda - Estilo. Obesidade em adolescentes. Roupas de meninas. Vestuário - Indústria
Abstract
The present article reflects on the production of garments for adolescents with morbid obesity from 12 to 14 years of age, in view of the growing number of users in the condition of being overweight and the way brands make their fashion products. The objective is to broaden the debate on the beauty standards of the fashion market, in addition to asking if the clothing offered caters to the teenagers in question. The method used was a bibliographic review on the social space of children and adolescents over the centuries, a study on social practices as the arbiter of the notion of beauty and self-care, in addition to a field research that covered the application of a questionnaire to a group of teenagers and their guardians at Pedro Ernesto Hospital, in the nucleus dedicated to adolescent health, NESA. Interviews were also carried out with professionals who took care of the girls' health, and with the owners of two clothing brands that would be related to those studied. We end with a reflection on the professional practice of the Designer within the capitalist mode of production, and the labor activity of designing clothes for users. The research is relevant for inviting peers to reflect on the established standards of beauty and production, which materialized in the way they are making clothing products, according to the material conditions of production, do not serve the users in question.
Keywords: Fashion design. Obesity in adolescence. Girls’ clothing. Clothing and dress-Industry
Recebido em: 06/12/2019
Aceito em: 09/11/2020
Em se tratando de adolescência, Rodrigues (2006) identifica que de acordo com cada sociedade a puberdade é valorizada ou ignorada. Em nossa sociedade contemporânea, os indivíduos são enquadrados em categorias como: solteiro, casado, batizado etc. Quando o indivíduo ainda não ocupou plenamente uma categoria, a sociedade estabelece ritos para assinalar a passagem delas, que podem ser: circuncisões, batizados, tatuagens, etc. Elas representam a passagem para uma nova fase da vida e espera-se que o indivíduo possa encarar bem seus desafios.
Cada sociedade espera dos indivíduos do sexo feminino e do masculino responsabilidades diferentes durante as fases da vida, tais demandas podem influenciar diretamente a vida orgânica e biológica desses indivíduos. Para Rodrigues (2006), os dados etnográficos deixam supor que as transformações biológicas, que operam em nível de organismo, têm pouca ou nenhuma relação com as perturbações nervosas e comportamentais com que geralmente se define a adolescência, ele explica que a puberdade cultural não coincide com a fisiológica, ambas são diferentes já que o organismo evolui enquanto as sociedades o classificam. O autor reconhece que há mudanças significativas neste período chamado puberdade, ressaltando que para cada cultura ela terá um significado diferente.
Atualmente, a entrada na vida adulta ocorre a partir da mudança do olhar do adulto para este adolescente (CALLIGARIS, 2000), este pode ser um dos motivos para o fato de cada vez mais vermos crianças e adolescentes sofrendo as exigências e questionamentos pertencentes à vida adulta. Se há duas ou três décadas elas só estavam preocupadas em brincar na rua, agora elas têm mais aspirações oriundas da vida de adulto, e a ditadura da “nova” noção de beleza não deixaria de antecipar nelas suas preocupações.
O estímulo midiático afeta o mercado, o consumo e a sociedade, produzindo amadurecimento acelerado entre os adolescentes, e a busca por um corpo perfeito cada vez mais cedo. Um dos resultados desse estímulo é o aumento exponencial do interesse em cirurgias plásticas. Este dado tem despertado a atenção da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), que realizou estudo declarando que o número de cirurgia em adolescentes entre 14 e 18 anos mais que dobrou em um período de quatro anos, saltando de 37.740 procedimentos em 2008 para 91.100, em 2012 (141% a mais), tendo como preferência a lipoaspiração e implante de mamas.
De acordo com o presidente da SBCP José Horácio Aboudib (BASSETTE, 2013, s. p.), não existe uma norma que defina qual a idade mínima para se submeter à cirurgia plástica, cada caso deve ser avaliado considerando a evolução física do paciente. Em geral segundo Aboudib (BASSETTE, 2013, s. p.), esta maturação acontece na menina dois a três anos após a menstruação. No menino torna-se mais difícil definir o início da puberdade, por isso cada caso tem de ser avaliado separadamente.
Para Maurício de Souza Lima, médico hebiatra (especializado no atendimento de adolescentes) do Hospital Sírio-Libanês, a decisão de fazer plástica na adolescência é polêmica. Ele pondera que na adolescência os jovens são imediatistas, estão em transformação, na maioria das vezes não é hora de mudar. E desabafa: “Tem jovens que preferem uma cirurgia em vez de uma festa de 15 anos. É um exagero”, avalia (ABESO, 2013). Esta declaração demonstra como a preocupação com a correção estética tem afetado cada vez mais jovens, que vêm se tornando capazes de abrir mão de ritos de passagem tradicionais para alterar a aparência.
O Brasil ocupa posição de destaque no número de cirurgias ao redor do mundo, ficando à frente dos Estados Unidos. Dos 23 milhões de cirurgias, o Brasil ficou com 1.491.721 do total, num universo de cirurgias declaradas. Sem contar com as clandestinas, que disparam os números e continuam a fazer vítimas. As cirurgias mais realizadas no Brasil, segundo a Sociedade Brasileira, foram a lipoaspiração e colocação de próteses mamárias. O país também é líder quando o assunto é rinoplastia e abdominoplastia (DE ACORDO..., 2014 ). Trazemos estes dados, pois deduzimos que o fato dos adolescentes insatisfeitos com a sua forma física buscarem cada vez mais a cirurgia como forma de “corrigir” suas imperfeições, deflagram dois problemas contemporâneos:
1. A busca imediata de satisfação, na maioria das vezes sem esforço, pois nãoveem mais na prática de exercícios e dieta um caminho natural para chegar à forma física desejada; e 2. O sucesso da ditadura de uma noção de beleza sobre seus pais, que cedem ao capricho de seus filhos pagando a cirurgia, depois, sobre os adolescentes. Ressaltamos que as cirurgias necessárias para melhoria da saúde devem ser realizadas de acordo com a indicação do médico, aqui assinalamos a crescente insatisfação corporal e cada vez mais precoce entre jovens e adolescentes, que refletem no número de cirurgias estéticas para alterar a aparência cada vez mais cedo.
Passamos agora a outra questão que permeia o universo das pessoas com excesso de peso: a dificuldade de encontrar roupas que sejam confortáveis, bonitas segundo seus critérios e respeitem suas formas. Aqui ressaltamos que estes critérios ao qual nos referimos são subjetivos e de difícil definição, pois estão relacionados a um conjunto de fatores que não envolvem só a forma da roupa, mas a critérios imanentes do indivíduo e sua relação com seu corpo, daí defendemos que parte da dificuldade da indústria de vestuário em atender a estes indivíduos em suas demandas materiais, talvez possa surgir da dificuldade de percebê-los como pessoas que têm demandas semelhantes ao geral, e como veremos mais a frente a capacidade produtiva e tecnológica é capaz de atender a demanda. Durante muito tempo, pessoas com excesso de peso foram ignoradas pelo mercado comercial de moda por razões ininteligíveis visto que como cidadãos são economicamente ativos e têm o direito de acessar produtos de moda. Trazemos reflexões sobre a atividade de representar o outro através dos produtos, neste caso de moda, refletindo sobre a prática de ouvir e dar voz como parte do processo produtivo dos designers de moda.
Os recortes desta pesquisa foram tomando forma a partir do campo. Como nosso interesse de investigação estava na moda para meninas adolescentes com excesso de peso, localizamos inicialmente uma marca de moda carioca infanto-juvenil para estudar seus produtos e buscar compreender em que medida eles não estariam atendendo a este público. Em seguida, localizamos o Hospital Pedro Ernesto, que atende adolescentes em situação de obesidade no Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente – NESA em nível de atenção primária, secundária e terciária. Nossa pesquisa foi realizada na atenção primária, que tratam de doenças relacionadas à obesidade em nível laboratorial. A escolha do hospital nos possibilitou acesso a um grupo significativo de adolescentes, pois lá são atendidos pacientes entre 12 e 20 anos, mas de acordo com nosso recorte selecionamos as fichas médicas de meninas de 12 a 14 anos para que pudesse corresponder à idade atendida pela marca de moda. As contradições encontradas no campo foram tomando forma na proporção em que identificamos um grupo de indivíduos de classe D e, de acordo com a declaração no questionário, e uma marca de moda que se propunha a ofertar roupas para adolescentes da classe A e B. Além da contradição das classes sociais, a incompatibilidade também foi percebida nos produtos, pois sua medidas não correspondiam às necessidade de vestuário das meninas investigadas. Durante a aplicação do questionário, um número expressivo de menina declararam comprar roupas no comércio popular de Madureira, despertando nossa curiosidade em relação a oferta de produtos neste local. Depois de visitar o local, conseguimos o contato do dono de uma das lojas indicada na pesquisa, que apesar de ser moda feminina e adulta atendia de maneira parcial o grupo. As marcas tinham condições de produção diferentes e a figura do designer de moda não existia em ambas, fato que nos causou curiosidade. No cruzamento destes dados nos deparamos com várias arestas, que a nosso ver são formadas pelas diferenças sociais que atravessam o modus operandi de nossa prática.
Como lidar com a obesidade além das questões médicas? Ao olharmos para estes indivíduos sob a ótica da oferta de produtos de vestuário, nos deparamos com alguns produtos que deixam a desejar no que diz respeito à modelagem, tamanho, conforto e estilo. Apesar de o mercado comercial de moda plus size estar em plena ascensão, alguns indivíduos frequentemente se deparam com produtos que apresentam problemas de execução. Em parte, provavelmente, isso se deve porque o corpo obeso tem medidas de circunferência diferentes entre si e também pelos materiais que alguns produtos são confeccionados.
Outra questão é o fato de algumas empresas que atuam no segmento tradicional enxergarem a possibilidade de expansão de negócio, lançando ao mercado produtos denominados plus size simplesmente por ter um tamanho maior, que muitas vezes não passaram por um estudo de público e acabam por não atender de forma satisfatória esses indivíduos, além de frequentemente “confundirem” um corpo curvilíneo com o corpo obeso, reforçando o estigma de inadequação, não pertencimento, exclusão da moda. Em se tratando de desenhar para corpos obesos, a diversidade entre eles é fundamental para a execução da prática, e no Brasil a ampla diversidade de biótipos entre as regiões torna o trabalho delicado, pois nas diferentes regiões pode ser verificada grandes diferença de estatura, circunferência de medidas e distribuição corpórea.
A tabela ABNT (NBR16060; NBR 13377; NBR 15800) padroniza os tamanhos de roupa para homens, mulheres e crianças, no entanto, esbarramos com a diversidade de corpos que se equivalem, mas não são iguais, demandando alguns ajustes em sua aplicação. Diante desse desafio de desenhar para todos os corpos, é que trouxemos uma crítica à prática laboral do designer de moda, que é representar as necessidades de seus usuários a partir dos produtos de vestuário, afinal, os pares de nossa categoria profissional se apresentam como solucionadores de problemas.
“O Design Industrial é um processo estratégico de solução de problemas (grifo nosso) que impulsiona a inovação, constrói o sucesso do negócio e leva a uma melhor qualidade de vida por meio de produtos, sistemas, serviços e experiências inovadores. O design industrial preenche a lacuna entre o que é e o não é possível. É uma profissão transdisciplinar que aproveita a criatividade para resolver problemas e co-criar soluções com a intenção de tornar melhor um produto, sistema, serviço, experiência ou negócio. Na sua essência, o Design Industrial oferece uma maneira mais otimista de olhar para o futuro, reformulando problemas como oportunidades. Ele conecta inovação, tecnologia, pesquisa, negócios e clientes para fornecer novo valor e vantagem competitiva em todas as esferas econômica, social e ambiental. Designers Industriais colocam o humano no centro do processo. Eles adquirem uma compreensão profunda das necessidades do usuário por meio da empatia e aplicam um processo de solução de problemas pragmático e centrado no usuário para projetar produtos, sistemas, serviços e experiências. Eles são partes interessadas estratégicas no processo de inovação e estão posicionados de maneira única para unir diversas disciplinas profissionais e interesses comerciais. Valorizam o impacto econômico, social e ambiental de seu trabalho e sua contribuição para co-criar uma melhor qualidade de vida”.
Problemas estes que, se projetuais, conseguimos resolver em grande maioria, no entanto, quando os mesmos problemas estão mesclados à esfera estrutural, fogem à nossa prática, pois não dispomos de soluções universais. A força produtiva industrial contemporânea tem capacidade de, através de seus maquinários e mão de obra especializada (designers e técnicos de vestuário), confeccionar peças de tamanhos variados, pois há maneiras de graduar a modelagem de qualquer peça até o tamanho desejado, bem como tabela de medidas plus size. No entanto, sabemos que os empresários ou donos de indústria afirmam que a fase de desenvolvimento de uma coleção de tamanho extra é cara, exige pesquisa, conhecimento de anatomia e modelagem, porque encaixar corpos maiores é mais complexo do que simplesmente aumentar tamanhos menores. Isso seria verdadeiro se considerássemos que grande parte da indústria de vestuário só opera para atender modelos que chamaríamos de normais.
Apesar dessas observações, nos questionamos onde reside o problema em produzir roupas em numeração maior? Afinal, sabemos que existe um universo de sujeitos sociais que demandam por roupas plus size, e sabemos que a indústria e os designers podem alterar os projetos para atender esses consumidores, sem aumentar o seu custo industrial, pois dispomos de tecnologia e profissionais para tal. Assim, o argumento de alguns donos de indústria de que a produção desse tipo de roupa é mais cara, pois demanda mais “trabalho” é um argumento falso e contraditório com o processo de fabricação industrial.
Faz-se necessário indicar que nos últimos anos o mercado comercial de moda plus size tem estado em plena ascensão, em resposta a esta enorme demanda, poderíamos reduzir o problema apenas à escala produtiva. Bourdieu (2015) afirma que todos recebem desde o nascimento estímulos e informações que são definidas como capital simbólico. Este pode ser familiar, escolar e cultural. Todo indivíduo ou se desejarmos, todos os sujeitos sociais, são constituídos assim, todos possuem seus próprios capitais simbólicos ou ele é conquistado nas disputas sociais dentro do campo profissional onde se atua e, algumas vezes, tal como ocorre com o capital financeiro ele é herdado. Para Bourdieu (2015) ser filho de um grande artista, músico ou literato, é um prestígio ou distinção social que obtemos no nascimento. Podemos incrementá-lo ou não, mas desse modo o capital simbólico nos precede ou é herdado.
O capital familiar está relacionado aos hábitos e costumes do meio em que se vive, sendo este o mais significativo de todos, por ser apresentado desde o nascimento. O mesmo varia de acordo com o grau de instrução dos pais, que desenvolverão em seu filho um gosto aproximado daquilo que eles consomem tanto na arte, na cultura, na música, literatura etc. O indivíduo também recebe o capital escolar, responsável por transferir ao mesmo o conhecimento do mundo. Um bom estímulo da escola traz ao indivíduo sede de absorver cada vez mais conhecimento.
Todavia, o indivíduo recebe o capital social, mergulhado nas tramas da sociedade, ele convive com a realidade dos fatos, e o modo de se viver contribui na construção desse ser, que transmite também aos seus todos os estímulos recebidos outrora. Bourdieu (2015) afirma que toda competência cultural ocorre através da instância de inculcação que continua sendo definida pela condição de aquisição, funcionando como uma espécie de máscara de origem. Os indicadores nível de instrução ou origem social apontam as competências adquiridas assim como as maneiras de implementá-las. “As diferenças de capital cultural marcam as diferenças entre as classes” (BOURDIEU, 2015 p.67).
O autor posiciona a família e a escola[1] como os dois mercados que funcionam como espaços que constroem a competência julgada necessária para o indivíduo atuar socialmente, fortalecendo o que é aceitável e admissível, incentivando o valor dessa competência que é chamada de senso de aplicação dos investimentos culturais. Todos os comportamentos, que estão fora desses valores simbólicos promovidos pela família e pela escola, são marginalizados ou excluídos, aliás, é aqui que a mídia atua majoritariamente com seus vaticínios moralistas e conservadores. Diante dessas afirmações, podemos compreender que todos recebemos um capital cultural, este mesmo capital determinará o que é aceitável ou execrável de acordo com a classe ou origem social do indivíduo inserido em seu contexto histórico. O poder simbólico que é invisível trata de promover uma ordem social da distinção:
“[...] que cumpre a função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra (violência simbólica) contribuindo, segundo Weber para a domesticação dos dominados.” (BOURDIEU, 1989 p.11).
Este poder simbólico é responsável por estabelecer o sentido de tudo, levando as pessoas a crerem que esta construção faz parte de suas convicções sobre o sentido e a ordem das coisas, sobre aquilo que é ideal, correto, adequado. “O poder simbólico é um poder de construção da realidade, que tende a estabelecer uma gnoseológica: o sentido imediato do mundo” (BOURDIEU, 1989 p.9). A partir desses aspectos, podemos compreender a origem daquilo que consideramos correto, adequado para nós. Nossas escolhas estão envolvidas por uma espécie de matriz social que interfere nos modos de ver e de viver das pessoas. Esta dominação jamais deixará de existir, pois “O poder simbólico só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 1989 p.7-8).
No mundo da moda, que é também um mundo de produção, trocas simbólicas e de legitimação de valores sociais, essa distinção se dá através de um restrito grupo de pessoas que se propõe a ditar aquilo que é tendência – que os designers de moda e estilistas chamam de trends and forecasts –, e com a mesma rapidez pretende desacreditá-la, para, em seguida, lançar outra, e alimentar eternamente a sensação de que isso ou aquilo está à frente do tempo, portanto, inatingível, mas podendo ser negociado por preços sempre ascendentes. Bourdieu (2015) esclarece que os produtos industriais dependem das condições sociais em que serão operados, das funções que eles cumprem, assumindo características e modos a partir de sua aplicação. Em consonância ao que vem sendo tratado, Cipinuk (2014) ao criticar o campo de produção do Design parte igualmente da reflexão sobre as estruturas sociais para pensar a liberdade tanto no sentido da criatividade do designer quanto da liberdade como individuo no caldo cultural ao qual está inserido, pois:
“Uma pessoa vê aquilo que é levada a ver. Dependendo do modo como ela é educada, dependendo das experiências que vivenciou durante o processo de assimilação dos enunciados e das práticas de legitimação social, constrói um conjunto de valores que propiciam essa ou aquela forma de percepção. A noção de liberdade individual precisa ser matizada pelas determinantes das estruturas sociais.” (CIPINIUK, 2014 p.76).
É claro que esta não é uma fórmula de vida e de comportamento humano, no entanto, é possível notar que os indivíduos tendem às influências do meio em que vivem, e costumam reagir conforme seus estímulos. Voltando às questões pertinentes ao produto, Bourdieu afirma que todo produto serve a algumas funções, que são: os interesses das classes, o interesse daqueles que os produzem, assim como aos meios de extração da matéria-prima (BOURDIEU, 1989 p.13). Lançando no mercado produtos que não estão em sua maioria voltados às necessidades do cliente, mas sim ao conjunto de fatores simbólicos que o tornam vendável do ponto de vista da produção.
A partir dessas afirmações, é possível compreender o motivo da carência de determinados produtos no dia a dia das pessoas. O fato de não existir uma gratuidade nos processos de fabricação em geral, pois os produtos são fabricados e destinados para um determinado grupo social – aqui os chamados corpos normais ou representativos do ponto de vista da produção, pois possuem medidas referenciais de acordo com os cânones legitimados –, traz à tona a razão de determinada roupa ou acessório possuir isso que as campanhas de marketing denominam de um grande valor agregado, muitas vezes supertarifado e que confere certa exclusividade ao usuário, quando outros produtos similares possuem um valor de mercado, isto é, preços significativamente mais reduzidos. Presumimos que o desequilíbrio na oferta de produtos de vestuário a estes indivíduos aqui estudados, possa ser um reflexo do corpo que foi legitimado como normal, comum, adequado. Levando as grandes empresas a direcionarem sua produção ao hegemonicamente inculcado.
Por meio de Forty (2007) e Bourdieu (1983) demonstramos que o processo de criação do designer sofre influência das estruturas sociais e do próprio campo, no qual possui seus agentes executando e sofrendo ações, sendo estes por vezes defensores de seus interesses próprios e comuns. No que tange ao Campo da Moda, nos aproximamos dessas questões para indagar se as necessidades de usuários de moda plus size são representadas com a transparência que profissionais do campo se propõe. Como trabalho reflexivo, buscamos trazer aos pares do campo questões sobre a prática de se projetar para o outro, e quanto estamos dispostos como profissionais pôr em prática a representação, levando em conta que as tensões que vivemos socialmente são reflexo do contexto histórico que estamos inseridos, e que as transformações ocorridas nos padrões de beleza contribuíram para aquilo que praticamos hoje como corpo padrão.
O movimento de tomada de posição dos pares do Campo não é ingênuo, pois se evidencia à medida que o modo de produção industrial determina as práticas defendidas pelos agentes e em última instância carregam um posicionamento político e social. Nesta linha de raciocínio, a partir das noções empregadas por Adrian Forty (2007) ao examinar a sociedade industrial e sua produção, o autor afirmava que: “Em quase todas as indústrias, uma das primeiras condições que um desenho precisava cumprir era a de dar resultados homogêneos em sua execução, pois um produto que apresentasse variações eventuais seria julgado falho, com razão” (FORTY, 2007 p. 54) não obstante, julgamos que trabalho do designer é uma prática laboral que responde à indústria, à medida que o modo de produção capitalista norteia o seu processo de criação, pois é a partir de um briefing elaborado pelos donos das indústrias que se cria ou projeta um objeto industrial. A prática do design está fortemente relacionada aos aspectos econômicos, ideológicos, à produção da necessidade do consumo e à transmissão de ideias próprias da ideologia comercial em vigor na sociedade industrial. Sendo esta uma atividade significativa que desempenhou ao longo do tempo um papel vital na criação da riqueza da sociedade industrial.
O design por vezes é confundido com arte, esta confusão segundo Forty (2007) está relacionada à exibição de bens manufaturados nos mesmos espaços em que são exibidas pinturas e esculturas, no entanto, esta diferença é marcada pela execução dos processos de fabricação, onde os artistas, se comparados aos designers, têm considerável autonomia na fabricação dos objetos de arte, levando à crença de que uma das principais funções da arte é dar livre expressão à criatividade e à imaginação. No entanto, tal como os designers, o artista quando produz está condicionado a um habitus, ao momento social e político assim como à matéria-prima disponível, sofrendo influência do Campo.
Os objetos industriais, em sua maioria, correlacionam sua aparência às condições de sua produção. Dentro do modo de produção capitalista eles são pensados, conceituados ou desenvolvidos com o objetivo de gerar lucro ao fabricante. Assim, pode-se verificar que o objeto de design é uma manufatura e, o trabalho do designer é afetado pelos processos do modo de produção industrial. “Qualquer que seja o grau de imaginação artística esbanjado no design de objetos, ele não é feito para dar expressão à criatividade e à imaginação do designer, mas para tornar os produtos vendáveis e lucrativos” (FORTY, 2007 p. 13).
A prática do design está relacionada aos aspectos econômicos, ideológicos, à produção da necessidade do consumo e à transmissão de ideias próprias da ideologia comercial em vigor na sociedade industrial. Sendo esta uma atividade significativa que desempenhou ao longo do tempo um papel vital na criação da riqueza industrial e da riqueza de modo geral.
Os pares do Campo do Design normalmente mencionam apenas a sua contribuição ao desenvolvimento de objetos, mas raramente fazem alusão ao fato de serem agentes implicados diretamente na produção da riqueza, isto é, na produção do capital. Munidos da noção disso que é o design, da atividade laboral que exercemos e de sua contribuição social, seguimos o estudo com olhar crítico a esta atividade que é desenhar roupas para indivíduos. Para nos aproximarmos dos desafios enfrentados pelo grupo estudado, tomaremos como parte deste estudo a prática laboral exercida por uma marca de moda do setor infanto juvenil, certos de que esta não é capaz de responder por todo o setor, mas pode oferecer através do seu modus operandi pistas sobre a configuração dos processos produtivos no Rio de Janeiro.
carioca Para observar a oferta de produtos, adotamos como critério de escolha uma marca que fosse, se posicionasse no mercado oferecendo produtos de vestuário para adolescentes, e que se enquadrassem na idade que estávamos observando. Ainda que houvesse outras marcas que suprissem a necessidade de vestuário dessas meninas obesas, a escolha desta esteve relacionada principalmente ao seu posicionamento de mercado, setor voltado à idade estudada nesta pesquisa. Foi realizada entrevista semi-estrururada com a dona da marca, que ao contar sua história revelou que o nascimento da marca estava relacionada a uma oportunidade de negócio, não a um estudo das necessidades do setor infanto-juvenil, muito menos em se tratando de adolescentes com obesidade. A marca utiliza como tabela de tamanhos a norma ABNT 15/800, que padroniza os tamanhos de vestuário infanto-juvenil e, apesar de compreendermos que as peças de vestuário não dariam conta de vestir as meninas aqui estudadas, esta contradição reiterou a carência existente no mercado de moda carioca, sabidos que a prática de se adequar a modelos da moda plus size feminina é uma realidade comum entre essas adolescentes.
Ao perguntarmos como se configuram as características gerais de suas consumidoras, a entrevistada as reconhece como
“Meninas descoladas, antenadas com a moda, que querem estar bem vestidas com roupas coloridas, alegres, despojadas, mas com um quê de moda”. Elas (as clientes) gostam de estar atualizadas. Normalmente são meninas com poder aquisitivo alto, pois a marca é voltada para a classe A. A marca está na Zona Sul, nossas peças têm diversos aspectos que a tornam especial, e isso se reflete em nossos produtos. Nós temos vários tipos de clientes, mas fazemos nossas roupas pensando que elas são meninas fortes, que sabem o que querem, que são alegres, gostam de dançar. Quando fazemos a roupa idealizamos as clientes assim. A marca não lança moda, geralmente trazemos detalhes das peças de adultos e adaptamos para que a peça esteja adequada para a idade. Como nossas clientes usam nossos produtos desde os 6 anos, quando chegam aos 13 elas se sentem adultas e acham que a loja é de criança, muitas querem ir para uma loja de adulto.
Analisando o discurso da entrevistada, nos deparamos com um dos muitos arbitrários propagados pelo Campo da Moda, o ser descolado, antenado, despojado, que têm a função de determinar atitudes ou características de um grupo específico, e que operam como uma marca de distinção em relação aos outros. Ter estas características confere ao indivíduo um caráter especial em que são transferidos aos objetos de vestuário aspectos relacionados ao comportamento e ao humor do individuo. Toda essa atmosfera objetiva levar os consumidores a adotar um estilo de comportamento adequado às roupas, numa relação invertida onde consumimos o que queremos ser e não vestimos o que somos. Parece-nos que como consumidores, precisamos nos adequar àquilo que nos é oferecido e como nos é oferecido, ratificando a noção empregada por Forty (2007), em que os produtos são desenvolvidos para trazer lucro aos seus fabricantes, estando sua prática na maioria das vezes, descolada de qualquer ingenuidade no processo produtivo.
A entrevistada afirmou com veemência que as meninas adoram a moda adulta, a partir desse relato, refletimos sobre o fato de uma marca voltada ao público infanto-juvenil, que não é o adulto, trazer peças e detalhes deste universo, quando o posicionamento de mercado é claramente outro, demonstrando um mercado jovem e inseguro nas escolhas, na ousadia. Infelizmente esse não é um problema exclusivo desta, temos muitas marcas que reproduzem modelos que deram certo, num movimento cíclico no Campo da Moda, que muitas vezes é chamado de ressignificação, mas que reflete o cenário da insegurança econômica do país, em que as marcas precisam fazer dar certo aquilo que já deu anteriormente.
Crianças e adolescentes gostariam efetivamente de se vestirem como adultos? Acreditamos que parte delas gostaria, por conta da admiração que sentem, mas defendemos que haja uma parcela grande de crianças e adolescentes que desejem roupas que sejam confortáveis, e se sintam representados em seus gostos, voltado para a fase de amadurecimento a qual estão. Destacamos que muitas marcas, principalmente infantis, se apresentam com produtos interessantes voltados a este universo. Mostrar a carência de produtos voltados a adolescentes pode ser um reflexo dessa fase transitória que os indivíduos passam, em que não são adultos, mas tem corpo de adulto, querem ser adultos, mas não têm maturidade nem autorização suficiente para tal, além dos estímulos que são variados de acordo com a classe e idade.
Em relação ao processo produtivo da marca a entrevistada declara:
“A gente tenta escutar a opinião delas, além de verificar as peças que mais vendem, também buscamos filhas de amigas, de funcionárias, buscamos inspiração nas festas, nos desfiles para entender o que elas querem. Mas com certeza eu pego a ideia do que está na moda de adulto e transformo para a nossa realidade. Em relação às estampas e coleção, nós trabalhamos em parceira com um grupo de branding. Nós fazemos uma reunião onde é definido o tema, que, depois de escolhido, um departamento daqui desenvolve as estampas exclusivas que são aprovadas por mim. Após este processo, escolho os modelos dentro daquela estampa.”
Branding consiste no conjunto de atividades que se destinam exclusivamente a gestão de uma marca, atuando desde a sua concepção e continuamente ao longo do seu desenvolvimento. O branding envolve funções de investigação, estratégias, criação, design e, por fim, o gerenciamento constante da marca, com o intuito de acompanhar as suas "expressões" e otimizar relações com os respectivos públicos-alvo, buscando aumentar não apenas o valor econômico, mas principalmente o valor simbólico da marca. Neste exemplo parece-nos clara a enunciação de um direcionamento de produtos vindo de outros setores que não o responsável por uma moda infanto-juvenil, acreditamos que este tipo de posicionamento possa fragilizar este compromisso que os designers de moda têm ao desenvolverem produtos para seus usuários, apesar de esta ser um compromisso assumido pelos pares.
Nesta relação resta às meninas apenas escolher dentre aquilo que está disponível, situação, aliás, que ocorre na grande maioria das marcas que se comprometem a ouvir seus clientes, obviamente dentro daquilo que se propõe a oferecer. Conforme verificamos, existe uma conformidade no modo como esta e outras marcas em geral que têm o modelo de gestão semelhante operam, as mesmas seguem direcionando seus produtos a um grupo usuários. Esta última declaração assinala-nos um posicionamento de mercado que funciona bem para esta marca, como dito anteriormente, se empenha em atender o círculo social no qual a dona está inserida, apenas ratificamos que uma marca não podendo atender a todos os indivíduos, escolhe aqueles que lhe apraz e os atende. O fato desta marca não estar interessada em fornecer vestuário a este grupo que estudamos e, claramente não se propor a tal, representa um posicionamento que está refletido nos preços das roupas, nos tamanhos oferecidos, bem como a localização das lojas, que certamente não faz parte da circulação das meninas aqui observadas. Este dado também ratifica a carência desse tipo de vestuário no mercado de moda carioca.
Foi realizada uma pesquisa qualitativa no Hospital Pedro Ernesto, localizado à Av. 28 de Setembro, 109 – fundos, Vila Isabel CEP 20551-030, Rio de Janeiro – RJ, no núcleo voltado à saúde do adolescente, NESA, que compreendeu aplicação de questionário às adolescentes e seus responsáveis, bem como entrevista semi- estruturada a alguns profissionais da casa. Todas as perguntas passaram pelo Comitê de Ética da instituição ao qual esta pesquisa está vinculada.
O primeiro contato foi com a equipe médica, através de entrevistas com os profissionais que lidam diretamente com estes adolescentes, buscamos compreender o perfil dos jovens que frequentavam o hospital, para que posteriormente tivéssemos contato com eles. A população atendida pelo NESSA, de acordo com a equipe de enfermagem, é extremamente pobre, salvo algumas exceções. A grande maioria não tem acesso a uma educação de qualidade, fato que pôde ser verificado durante a aplicação dos questionários, pois apesar de conterem perguntas simples, notamos grande dificuldade na construção do raciocínio na resposta, para nossa surpresa, a maioria dos entrevistados não quis escrever no questionário, sendo a maioria das respostas preenchidas por nós durante a entrevista.
Foram selecionadas 21 fichas de pacientes, porém o total de questionários completos foram 20, sendo 10 de meninas e 10 de responsáveis. A renda familiar das entrevistadas girava entre 2 e 4 salários mínimos. Vários fatores influenciaram para que tivéssemos este número: a falta das pacientes, a restrição financeira, a distância entre uma consulta e outra, a falta de alguns responsáveis para responder às perguntas, além de algumas pacientes não desejarem participar do estudo. A abordagem inicial foi feita pelas enfermeiras, que convidavam as adolescentes a fazerem parte do estudo entre uma consulta e outra.
Reconhecemos que ouvir não seja uma tarefa fácil, em parte porque desloca o ouvinte do seu lugar, gerando desconforto. Depois porque se torna intrigante o esforço em ser fiel àquilo que foi dito, mesmo que se reconheça que há interferência na representação. Esses lugares de fala foram ocupados por meninas de 12 a 14 anos todas com obesidade mórbida e por seus responsáveis. Um dos parâmetros utilizados para avaliar ou determinar o nível de obesidade é o Índice de Massa Corporal (IMC). Esse índice é obtido dividindo-se o peso pelo quadrado da altura do indivíduo. De acordo com o valor do IMC, tem-se a seguinte classificação: Menor que 18,5 -> abaixo do peso; Entre 18,5 e 24,5 -> peso normal; Entre 20,0 e 29,9 -> sobrepeso; Entre 30,0 e 34,9 -> Obesidade Grau I ou leve; Entre 35,0 e 39,9 -> Obesidade Grau II ou moderada; Acima de 40,0 -> Obesidade mórbida. A obesidade mórbida é uma doença grave, qualificada como uma doença crônica multifatorial, ou seja, dura por longos períodos e está relacionada a vários fatores, tais como predisposição genética, desordens glandulares ou gastrintestinais, alterações nervosas e psicológicas, erros alimentares (comer em excesso, consumo elevado de açúcares e gorduras, mastigação rápida) e falta de exercícios físicos. Em mulheres, o período pós-parto e a menopausa contribuem para a retenção de gordura no organismo e podem levar à obesidade.
Depois de dois meses de trabalho, lidando com as frustrações relatadas acima e com a grande evasão de pacientes, que não compareciam porque não tinham dinheiro de passagem, refletimos sobre o papel do design especialmente dos pares do campo da moda nestes espaços, na vida dessas pessoas. O trabalho do designer geralmente se localiza nos grandes centros de poder e circulação de bens, e por vezes marginaliza indivíduos em seus processos de desenvolvimento de produtos. A experiência vivida durante esta pesquisa despertou a consciência de que por se tratar de uma atividade profissional transdisciplinar, podemos atuar nas diversas esferas da vida dos usuários, trazendo inovação e desenvolvendo produtos que se adequem à realidade delas.
Antes de passarmos aos questionários, observamos que o recorte de 12 a 14 anos foi escolhido por dois motivos: para que houvesse certa uniformidade no pensamento das meninas entrevistadas, sendo a adolescência uma fase de rápidas mudanças emocionais, bem como respeitarmos a idade máxima atendida pela marca estudada. Reiteramos que estes questionários não são capazes de transmitir na totalidade os desafios que meninas adolescentes com obesidade enfrentam pelo fato de as estruturas sociais afetarem o seu modo de vida e a percepção que têm das coisas, mas pareceu-nos interessante relacionar duas realidades antagônicas – a de meninas de classe A, pelos olhos da dona da marca, e as meninas do Hospital Pedro Ernesto, de classe C ou D, de acordo com a classificação de renda. Ao demonstrar estas duas realidades tão distintas, unidas apenas pela faixa etária, destacamos os abismos impostos pela sociedade em todos os âmbitos, inclusive na simples tarefa de vestir-se.
As perguntas voltadas às meninas estavam relacionadas ao local onde compravam suas roupas, se gostavam delas, se usavam os mesmos tamanhos de roupa de suas amigas e se buscavam dicas de moda em redes sociais e revistas. As respostas foram semelhantes em vários aspectos, principalmente quanto à insatisfação relacionada ao modelo (que geralmente são da moda adulta plus size) e à dificuldade em encontrar peças que coubessem em seus corpos. O fato de geralmente não encontrarem roupas do seu tamanho, gera em grande parte das meninas aqui estudadas decepção consigo mesmas, pois algumas já sabem que “Não vai servir mesmo.”
Acreditamos que essa carência de produtos e o sentimento de inadequação reafirmado no provador das lojas, refletem no aumento das vendas de roupas plus size pela internet, saída encontrada para fugir do constrangimento de pedir um tamanho maior, achar que nada cabe, ou não caber no maior tamanho da loja. Algumas buscam inspiração na internet, mas reparam que as modelos geralmente não tem o corpo parecido com o seu.
Nas entrevistas com os responsáveis das meninas, eles ordenaram critérios levados em conta no momento da compra, que eram preço, durabilidade, tamanho, conforto e, por último, a estampa. Foi unânime a informação por parte dos pais que havia grande dificuldade em comprar roupas para suas filhas, muitos deles, declararam não gostar das roupas que encontram para elas, achando qualquer coisa inadequada nas roupas. Para solucionar este problema, alguns se dispunham a procurar até que encontrassem algo que consideravam adequados, somente uma mãe fabrica em casa suas próprias roupas. As principais reclamações giravam em torno dos modelos, tamanhos e estampas. Uma das entrevistas nos chamou atenção, pois quando perguntada sobre o que ela diria aos fabricantes de roupas, G. respondeu: “Vocês deveriam olhar mais o universo contrário, é como se houvesse uma barreira criada tipo: você só pode ir até aqui”. Esta nos parece uma visão bem lúcida sobre os limites impostos às minorias, que por conta do politicamente correto vemos pseudos espaços abertos à fala, quando na verdade existe um regulador hegemônico e invisível, que tornam estes mesmos espaços inacessíveis.
Na indústria têxtil, esse limitador se expressa nos modelos de algumas marcas que são desenvolvidos só até determinado tamanho, como se o manequim maior sofresse a sanção de não possuir aquelas formas. Por outro lado, existe também certa resignação por parte de algumas pessoas ao fato de serem consideradas inadequadas. No Campo da Moda, essa constatação no dia a dia de pessoas que já estão habituadas a outros tipos de opressão, escapa qualquer indignação a esse respeito, talvez porque o silêncio estrutural imposto pelos moldes de opressão da sociedade capitalista dê conta de calar algumas vozes, naturalizando então a exclusão.
Não se pode pensar na relação entre indivíduos e sociedade separada das condições materiais em que essas relações se apoiam. Ainda que estas questões sociais sejam latentes na percepção de algumas delas, algum reflexo já pode ser sentido, como por exemplo, quando elas acompanham as amigas nas compras, mas nenhuma delas consegue comprar roupas para si nas mesmas lojas, nem conseguem usar o mesmo tamanho que suas amigas. Sendo elas adolescentes, com os mesmos sonhos e aspirações, por que este espaço lhe é negado? Havendo demanda por este tipo de produto, e uma visível falha na oferta, encontramos nas estruturas sociais uma das razões para tal desequilíbrio, reconhecendo que haja outros motivos que possam reforçá-los.
Ao perguntarmos sobre o local de suas compras, a maioria declarou comprar roupas em feirinhas e no comércio popular de Madureira, zona norte do Rio de Janeiro. Este dado direcionou a pesquisa para um novo ambiente de produção, o mercado popular de Madureira. Nas lojas que visitamos, todas tinham algo em comum: fabricação e modelagem própria. A maior parte dessas confecções não tem este profissional que estudamos aqui chamado designer de moda, tampouco alguém especializado em projetar uma coleção de acordo com a sazonalidade. Na realidade, há profissionais com experiência conquistada pelos anos de mercado e observação, que se adaptam rapidamente às tendências e conseguem colocar nas ruas a última tendência da novela e até mesmo da passarela.
De alguma forma eles estão à nossa frente, se compararmos à mítica crença dos pares do campo que possuem ou se propõem a possuir, a capacidade de atender integralmente os usuários. Nossas reflexões recaem sobre a nossa prática profissional, a de designers de moda, que muitas vezes engessada e presa a velhas práticas de projeto não pode ver seus usuários e acabam por pecar na contribuição social por causa do status que aparentemente acredita ter.
Aqui é importante lembrar que estamos tratando de adolescentes com obesidade mórbida, que não se veem representadas na moda, e mais especificamente nesse tipo ou recorte classista de moda que estamos estudando. Quando elas assinalaram estas lojas em Madureira, era constante a ressalva de não encontrarem roupas que gostavam, mas que cabiam no seu corpo e que as agradava relativamente. Isso porque o segmento de mercado de todas as lojas que visitamos era adulto, nenhuma delas tinha produtos voltados às adolescentes. As meninas recorriam a estas lojas de por não identificarem alguma marca que fosse voltada à sua idade e seus produtos se enquadrassem em suas medidas corporais. O contato com essas lojas se dá porque geralmente elas estão acompanhadas de suas mães, que consomem nestes lugares e na falta de produtos, acabam por comprar uma ou outra peça do agrado dessas meninas.
Lá entrevistamos o dono de uma loja conhecida da região e ao reproduzirmos as perguntas feitas à primeira marca estudada, notamos imediatamente a diferença existente entre o modus operandi das duas marcas. Na primeira, fomos recebidos num escritório decorado e ambientado, vários funcionários estavam envolvidos no processo de chegar até a dona da marca, isso porque o escritório está localizado num espaço onde estão instaladas várias empresas do ramo da moda. Diferente da segunda, que só pôde nos atender por telefone por conta da falta de tempo. Sem dados mais aprofundados ou concretos sobre essa situação, julgamos que a diferença na rotina dessas duas pessoas em suas marcas seja reflexo da diferença econômica e estrutural existente em nossa sociedade, que configura a luta existente no campo, permitindo ou não a existência de planejamento e divisão dos processos produtivos.
O dono da marca de roupas de Madureira é o responsável pela escolha dos produtos disponíveis na loja, bem como a modelagem destes. Quando perguntado onde e como buscava inspiração para seus produtos, ele disse se inspirar nas ruas, naquilo que via no metrô, no ônibus, nas lojas, nos desfiles. Ele afirmou que quando gostava de um modelo, adaptava aos tamanhos de suas gordinhas. Dessa forma, a fabricação de seus produtos tenta agradar a todos, sem um público alvo específico. Não há planejamento de coleção, sua produção é totalmente intuitiva, de acordo com as tendências do momento. Ele acredita atender nas suas 8 lojas espalhadas no Centro, Zona Norte e Baixada pessoas populares, geralmente secretárias, domésticas, pois se propõe a oferecer produtos acessíveis, que de fato são, se comparados àqueles ofertados nos grandes magazines, lojas especializadas em roupas plus size e na loja infanto-juvenil que estudamos mais acima.
Apesar de estudarmos duas lojas antagônicas em seu público, bem como na classe que busca atender, encontramos um elo entre esses agentes: a reprodução de modelos existentes vindo de inspirações variadas, a falta do projeto de design nos produtos de vestuário. Refletindo sobre essa ausência de projeto, ponderamos que ambos não são designers, como o postulado acadêmico legitima, e não têm designers envolvidos diretamente em seu modo de produção. Dadas as afirmações, e considerando que este não é o modus operandi de todas as marcas de moda, questionamos onde estão os pares do campo?
O eixo central desta pesquisa esteve na crítica daquilo que como designers temos produzido. Nosso maior objetivo foi observar o espaço que como profissionais de moda damos aos nossos usuários, neste caso, adolescentes de 12 a 14 anos com obesidade mórbida. A reflexão sobre a forma como estamos operando a representatividade na moda complementa o estudo sobre a prática laboral daquilo que nos disponibilizamos fazer, auxiliando na direção da contribuição social que como pares do campo podemos oferecer. Cientes de estarmos inseridos no modo de produção industrial, poderemos reduzir as desigualdades sociais mesclando as demandas desse processo à sincera disposição de ouvir e dar voz aos usuários. Constatamos ser esta uma ação delicada e de difícil interpretação, pois vários fatores afetam isto que chamamos de dar voz.
Durante o trabalho, vimos que a interpretação da fala geralmente é maculada pelas forças do processo produtivo, no entanto, o conhecimento das estruturas sociais nas quais estamos envolvidos, e o entendimento dos desafios contidos nela, aproxima-nos do rompimento de algumas barreiras que, a princípio, parecem inevitáveis, mas a reflexão sobre seus desafios provoca a quebra da inevitabilidade da história. Romper padrões é um ato de resistência, consideramos que o esgotamento dos aspectos que envolvem esta trama, pode contribuir para a redução da desigualdade no processo produtivo.
Em se tratando de nosso objeto de estudo, concluímos que este grupo não se sentia representado na moda, que acreditamos ser o mesmo na grande maioria das pessoas obesas. Dentre as entrevistadas, percebemos uma conformação a um conjunto de critérios artificiais que creditamos às pressões que os padrões de beleza as impõem, imprimindo nelas um sentimento de inadequação. Mas não somente eles, mas ressaltamos uma única preocupação, transformar o produto em mercadoria, isto é, produzir a mais valia. Em relação à disponibilidade de produtos para aquisição, estas quando os encontravam, manifestavam insatisfação e pouca oferta de acordo com seus valores culturais, lançando mão de produtos como os da loja de Madureira, que, como a maioria das lojas da região que estudamos, acaba absorvendo as demandas deste público, sem qualquer preocupação social sobre o produto industrial que fabrica e coloca à venda.
Quanto ao processo produtivo da marca infanto-juvenil, constatamos que seus produtos são voltados para atender uma demanda específica, que apesar de terem a mesma idade deste grupo que estudamos, difere drasticamente tanto em poder aquisitivo, por conta dos preços das mercadorias, como pelos produtos em si, que jamais poderiam vestir as meninas em questão, por conta do seu tamanho, ainda que elas pudessem pagar por eles. A estas usuárias, restam as adaptações ao vestuário plus size que já enfrenta suas mazelas com o mercado de moda tradicional. Esta pesquisa se propôs a discutir se os produtos de vestuário, isto é, as mercadorias oferecidas no Rio de Janeiro, que deveriam atender à demanda do grupo referido, atendem efetivamente, levando em conta que suas medidas corporais estão acima da média.
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DOI: https://doi.org/10.5965/18083129152021e0010
[1] Embora Pierre Bourdieu não tenha mencionado diretamente a mídia, isto é, a imprensa e a televisão, assim como as empresas que veiculam informação pela internet, julgamos que as mesmas também atuam, mesmo que com menos intensidade, na legitimação e consagração desses valores.